Posfácio
O talento do amor à vida e ao próximo
O fim do século xix e o início do xx marcaram-se por grandes mudanças nos destinos do mundo, observadas também nas artes em geral. Na literatura russa revelou-se, em toda a riqueza, o talento de Anton Tchékhov, testemunha da mudança dramática da visão de mundo da intelligentsia e, a partir de 1887-88, também dramaturgo e prosador menos fecundo, mas cada vez mais concentrado e profundo, chegou a termo o caminho literário e terrestre de Liév Tolstói (1910), e surgiu a figura de Maksim Górki (com a publicação do primeiro conto em 1892), que avultou nos dois decênios precedentes à Revolução de Outubro, em meio a uma plêiade de talentos originais, como Dmítri Mámin-Sibiriak, Vladímir Koroliénko, chamado “a consciência da Rússia”, Vikiénti Veressáev, Serguéi Serguiéev-Tsénski e Aleksandr Serafimóvitch.
Ao lado do autor de “Mãe”, os três maiores escritores russos da época eram, provavelmente, Ivan Búnin, Leonid Andriéev e Aleksandr Kuprin. Este, não obstante tivesse idéias progressistas, tomou muitas atitudes políticas equivocadas; por outro lado, pintou quadros originais da velha Rússia, uma espécie de panorama em forma de mosaico em que se podiam ver o amadurecimento do protesto social e a evolução do pensamento democrático naquele período; isso aproximou-o ao Maksim Górki das descrições diretas e rudes da vida popular, cheias de revolta contra as injustiças e de simpatia pelos semelhantes. Cantor dos sentimentos sublimes, Kuprin, dono de um cabedal artístico haurido na leitura dos clássicos nacionais e reforçado por uma grande intuição, não possuía a fantasia lúgubre de Leonid Andriéev e a cultura refinada de Ivan Búnin, estilista requintado e analista com muito poder de observação, em cujos livros a perfeição formal não ocultava a pobreza afetiva.
O que a mente não conseguia dissecar, Kuprin sentia-o de coração, e sabia transmiti-lo com espontaneidade, singeleza e calor; nada lhe escapava à intuição de poeta. As suas personagens descobriam, na terra, um lugar não somente de sofrimento e luta, como também de delícias e encantamentos. O seu lirismo terno, sem ensombrecer a realidade ou embelezá-la, reafirmava sempre a maravilha de haver vida, de haver mundo e de estarmos nele. Uma mirada jubilosa para o que a natureza nos deu e a poesia das impressões representaram uma constante em sua obra.
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Aleksandr Ivánovitch Kuprin nasceu em 7 de setembro de 1870, em Narovtchát, pequena urbe da região de Piénza, no Sudeste da parte européia da Rússia.
Quando não tinha ainda dois anos, morreu-lhe de cólera o pai, ajudante de juiz de paz. Em 1874, a mãe, descendente de príncipes tártaros, resolveu partir, com ele e as outras duas filhas, para Moscou, onde se instalou em um abrigo para viúvas, descrito posteriormente no conto “Mentira santa” (1914).
Na formação da personalidade de Kuprin teve papel fundamental a sua genitora, mulher de muita força de vontade e caráter até um tanto despótico. Pelas palavras de Kuprin, ela possuía um “bom gosto intuitivo” e um refinado poder de observação e comentava sempre, com uma palavra justa, forte e peculiar, tudo o que lhe contavam ou liam; já famoso, ele costumava dizer que, ao escrever, “roubava” sempre alguma coisa a ela.
Em 1876, a mãe, que ganhava a vida ora como professora de francês, ora como governanta, viu-se em situação material dificílima e pôs o filho como interno em uma escola para órfãos e, dois anos depois, em um colégio militar moscovita. Ele entrou a escrever versos mais ou menos aos treze anos; aos dezoito, ingressou na academia de oficiais. Em meio às aulas de pedagogos medíocres e ríspidos, havia as conferências inspiradas do professor de língua e letras pátrias; precisamente na realidade sombria da caserna, meio hostil às relações verdadeiramente humanas entre as pessoas, nasceu em Kuprin o amor à literatura; em 1889 publicou o primeiro conto, “A última estréia”. Isso lhe rendeu alguns dias de prisão e uma ameaça de expulsão; considerava-se a atividade literária incompatível com a farda.
A infância e a adolescência de Kuprin modelaram parte da sua face de escritor. Um artigo dedicado à memória de Tchékhov fala-nos, de passagem, do seu amargo tirocínio no ambiente formal e burocrático do abrigo para viúvas, do orfanato, com velhas solteironas más, transformadas em educadoras, e do colégio militar, com os seus endemoninhados coetâneos:
“Por vezes, na tenra infância, voltava ao internato, depois de longas férias. Tudo insignificante e medíocre, parecido a um quartel, o cheiro a tinta a óleo fresca e a mástique, os companheiros malcriados, diretores e superiores hierárquicos inamistosos. Enquanto é dia, manténs-te rijo... Mas, quando começa a anoitecer e cessa a algazarra no dormitório semi-escuro, oh, que aflição insuportável, que desespero tomam conta da pequena alma! Mordes o travesseiro, a reprimir os soluços, choras lágrimas quentes e sabes que nunca calarás a tua mágoa com elas.”
Isso determinaria uma das características mais peculiares do Kuprin-artista, qual seja, a combinação da celebração de atos destemidos, heróicos, e da vida rústica e saudável com uma sensibilidade extremada ao sofrimento alheio e um olhar atento para os desvalidos, sucumbidos a um meio hostil. Tal como o menino é o pai do homem, esse importante traço do escritor nasceu das impressões do garoto trazido de uma província distante. Era preciso não ter ainda buço e conhecer já os horrores da caserna, como o açoitamento público, para comiserar-se tanto dos sofrimentos do tártaro Baigúzin, torturado na praça de armas de um batalhão (“Inquérito”, 1894), ou do drama do humilde soldadinho Khliébnikov, vítima de espancamentos (O duelo, 1905).
Em 1890 seguiu, como alferes, para o povoado ucraniano de Proskúrov, para servir em um regimento de infantaria. A miséria do lugar e a vida provinciana, com as suas mesquinhezas e horizontes estreitos, somadas à já conhecida torpeza dos costumes militares (à qual ele, diga-se, não era imune, com as suas bebedeiras, rixas e outros desatinos), moveu-o, em uma espécie de catarse, à denúncia do ambiente moral dos quartéis, constrangedor das pessoas inteligentes e honestas já nas suas primeiras produções sérias, como a novela No escuro (1893) e os contos “Em uma noite enluarada” (1893) e “O inquérito”. Este, com o seu pathos humanístico e a crítica ao absolutismo, intensificados em “O sargento-mor do Exército” (1897), “Turno da noite” (1899) e “Momento de viragem” (1900), antecipou o tema da criação mais importante do escritor, o romance O duelo.
Kuprin iniciou-o em 1902 e largou o manuscrito várias vezes, insatisfeito com o produto dos seus esforços; mostrou, então, os capítulos prontos a Maksim Górki; este, sempre capaz de comover-se com o talento de outrem e generoso nas manifestações de entusiasmo e incentivo, transmitiu-lhe a confiança necessária para a conclusão da obra. As forças progressistas da sociedade saudaram o aparecimento do livro, que teve tiragem inicial de 25 mil exemplares e reedição no mês seguinte. Ele pôde vir à luz e não sofrer cortes sérios graças à habilidade do diretor comercial da Editora Znánie (O conhecimento), embora o jugo político e a vigilância da censura houvessem diminuído após a queda de Port Arthur e os acontecimentos de nove de maio de 1905, em meio ao crescimento do movimento revolucionário e à quase certeza da derrota da Rússia na guerra com o Japão.
A ação do romance transcorria na metade dos anos 1890, mas ele palpitava da realidade do momento da sua publicação; os quadros do quotidiano das unidades do Exército explicavam os descalabros deste no conflito, e os soldados, submetidos a tratamento brutal, personificavam o povo. Com maestria psicológica e a força da grande arte, O duelo não somente mostrava a desumanidade do serviço militar no regime czarista, como também exortava as pessoas à luta por um mundo menos cruel e menos sombrio.[98]
Para Kuprin, expoente da filantropia combativa, o verdadeiro humanismo não se limitava ao preceito “Ama o semelhante como a ti próprio”; a natureza do seu talento e as suas atitudes afirmavam: “Deves defender o próximo de todas as coisas cruéis, tenebrosas, e de todas as ignomínias”. Ao saber, por exemplo, por um advogado de Odessa, que um estivador batia na mãe, foi ao porto no mesmo dia, encontrou o sujeito e desafiou-o a briga. Conta Ksénia Aleksándrovna Kupriná, no livro Kuprin — moi otiéts (Kuprin, meu pai, Moscou, 1976), que viajava ele, certa vez, pelo rio Dnepr, quando um inspetor de polícia insultou uma camponesa na sua presença; Kuprin deu um pescoção no homem e atirou-o por cima da borda do barco. Segundo ela, tal fato impediu-o de continuar a prestar exames para ingresso na Escola de Estado-Maior e moveu-o definitivamente a pedir a reforma, em 1893.
Kuprin deambulou de um lugar a outro, a ganhar a vida como trabalhador braçal, agrimensor, operário, plantador de tabaco, sacristão, protético, pescador, cantor de coro e artista de teatro; boêmio, generoso e bem-humorado, conviveu com pessoas de todas as camadas sociais. Em agosto daquele ano, chegou a Kiev, não tendo senão cotão nos bolsos. Empregou-se como repórter e publicou contos e artigos em jornais e revistas; a sua atividade de publicista nos anos 1890 refuta a tese dos críticos sobre o seu indiferentismo social e apolitismo; isso vê-se muito bem nos trabalhos sobre o tema da produção, como “A fábrica de Iúzov” (1896) e “Na mina principal” (1899). Os seus primeiros contos apresentavam traços do estilo do Kuprin-publicista: avidez de conhecimentos, interesse pelas pessoas, principalmente pelo destino das mais humildes, e a tendência a basear-se em fatos. A notoriedade veio-lhe com a novela Molok (1896), caracterizada por quadros expressivos do mundo dos mineiros da bacia do Don e pelo tratamento maduro de problemas sociais e éticos da época posterior à reforma de 1861 (a libertação dos servos).
Aqui cabe uma palavrinha sobre o nomadismo de Kuprin, nesse período. Após a saída do Exército, abriu-se para ele uma estrada grande, larga, livre. Desejava ser escritor, mas não conhecia o mundo, a vida. Como ex-militar, não tinha e não podia ter nenhuma profissão civil, conhecimentos técnicos ou científicos —daí a troca freqüente de ocupação, empurrada pela necessidade de sobreviver, de ganhar um dinheirinho para um copo de vodca e um pedaço de pão; por outro lado, a precisão de, como se diz, meter a cara no mundo vinha ao encontro da inclinação da sua natureza, que parecia geneticamente ajustada para a mudança constante de cidades e rostos, para os encontros fortuitos, as patuscadas e escândalos ruidosos, o trabalho exigidor de força física, o amor inflamado e efêmero como um fogo de artifício, enfim, para uma vida feita de uma sucessão contínua de folguedos e a má disposição resultante da embriaguez.
Pela primavera de 1900, começou a percorrer a Criméia, onde travou conhecimento com Tchékhov e outros literatos. Casou-se, em 1901, com Maria Dav´ydova, de abastada família de São Petersburgo. Descobriu Balaklava, vila de pescadores em uma enseada, cujo dia-a-dia retratou em “Os lestrigões” (1907-11), repassados de intenso e jubiloso sentimento e escritos com a naturalidade e a liberdade que denotam a verdadeira inspiração. Ao participar na arriscada labuta dos homens do mar, Kuprin obedeceu aos instintos da sua alma cândida e extrovertida, atraída por aquele trabalho rude que, na região, constituía o princípio de todos os princípios da existência e, com a sua simplicidade aparente, ressumava um sentido profundo e eterno, pleno de encanto. O sítio e a gente parecem ter-se esmerado por oferecer-lhe uma dádiva de carinho, que nunca o deixasse esquecer a estada ali, e o talento do escritor, feito de cor e lirismo, fundiu os homens e as coisas no mesmo fluido vital.
Demorou-se um tempo em Ialta, visitando quase diariamente Tchékhov. Este acompanhou-lhe a gravidez da esposa e, ao saber que ele não conseguia concentrar-se para concluir um conto (“No circo”, 1902), por causa do barulho da rua e do próprio hotel, cedeu-lhe uma sala da sua casa.
Em outubro de 1905, Kuprin foi freqüentemente de Balaklava a Sevastópol, apresentando-se a auditórios com a leitura de trechos de O duelo, encontrou-se com marinheiros e sabia da iminência de uma rebelião. Permaneceu na cidade durante a insurreição do cruzador Otchákov (11 a 15 de novembro) e, em meio à repressão sangrenta aos sublevados e ao fuzilamento de centenas de pessoas, ajudou muitos insurretos a esconder-se na aldeia de Tchorgun, salvando-os da morte; esses fatos deram origem ao conto “A lagarta” (1918). Pelas manifestações na imprensa e pela participação nos acontecimentos, as autoridades obrigaram-no a mudar-se de Balaklava em dezembro daquele mesmo ano.
Kuprin nem sempre, deve dizer-se, teve consciência clara do lado de quem devia estar, mas é invariável o seu desprezo às classes privilegiadas, as quais representou com ironia e sarcasmo, como no conto “Inebriamento” (1907); contrapôs à imoralidade e à frivolidade do mundo burguês a integridade e a nobreza dos humildes, qual o velho tocador de realejo e o menino acrobata de “O cão de águas branco” (1904), amigos seus que perambulavam pela Criméia, em companhia de um cão, e apresentavam espetáculos de rua. Incapaz de regrar a sua maneira de viver, tinha, no ajuntamento plebeu, o seu elemento natural e prezava a atmosfera livre, fácil e estimulante que rodeava as pessoas simples; disso advinham muitos atritos com a esposa, empenhada em atraí-lo para um meio mais refinado.
Casado com uma mulher rica, homem respeitado na sociedade e escritor aclamado, Kuprin soía sucumbir ao tédio e, então, escapulia-se para a taberna mais reles de São Petersburgo, ou ia visitar os pescadores de Balaklava, ou desaparecia nos tendilhões de algum circo, enfim, queria poder beber tanto quanto pudesse, conversar, despir a couraça do trato cerimonioso da alta sociedade. “Eu vagueei por todos os cantos, em procura da vida, do seu cheiro. Em meio aos estivadores do porto de Odessa, ladrões, vigaristas e músicos de rua, encontravam-se pessoas com as biografias mais inesperadas, fantasistas e sonhadores de alma larga e terna” — escreveu Kuprin, cujo democratismo tem um pé na consciência do seu parentesco com esses representantes da plebe e na sua necessidade de convívio com eles.
Ele andou com as melhores companhias e também com as piores, freqüentando todos os sítios possíveis; isso forneceu-lhe variada galeria de tipos, material que o seu talento amoldou com habilidade, infundindo-lhe o tom da tragédia ou a tônica sadia do gosto de viver e da força ante os lances adversos do destino. Ele não se deixava atrair por pensamentos abstratos e especulativos, e centrava a atenção nas idéias enraizadas no mais profundo das relações humanas e nas necessidades mais imperiosas do indivíduo. Fosse para onde fosse, a manter-se precariamente dos rublos ganhos como jornalista e escritor, e a usar a sabedoria dada pela experiência, Kuprin encontrava sempre o ambiente necessário à inspiração e à sua natureza vivaz e transbordante. Assim o retrata o poeta Korniéi Tchukóvski, testemunha de muitas brincadeiras suas:
“Aleksandr Ivánovitch causava a impressão de uma pessoa saudável até demais: o pescoço era como de boi, o peito e as costas, como de carregador; atarracado, largo de ombros, ele levantava com facilidade uma poltrona antiga e pesadíssima por um pé da frente. A gravata e o paletó não combinavam com a sua figura musculosa: ele parecia um ferreiro, que se houvesse ataviado por ocasião de um feriado. O seu rosto era largo, o nariz como que levemente fraturado; os olhos, estreitos, sempre semicerrados, olhos incansáveis e espertos, absorviam as mínimas coisas da vida circundante.”[99]
Servir-se basicamente de fatos e das próprias experiências constituía uma das características fundamentais de Kuprin; a fisionomia do homem e a descrição do ambiente saíam das suas obras com o cunho de quem vira e conhecera intimamente tudo o que retratava. Ele procurava avidamente o convívio de quem ganhava o sustento com as próprias mãos, e consagrou toda a sua criação ao povo, aos que conhecia pelo nome, recordava pelo sorriso, modo de falar e pelas canções. Com esse espírito, foi algum tempo a uma cervejaria de Odessa, riu e bebeu com os seus freqüentadores, na maioria trabalhadores do porto, operários, pescadores, mergulhadores e marinheiros. Um ano depois, publicou o conto “Cambrino” (1907), em que celebrava a casa e o violinista Sachka e reiterava a sua simpatia a todos os que negavam ostensivamente os valores pequeno-burgueses e podiam entrar na luta pela liberdade e contra as iniqüidades. Essa obra-prima dá toda a medida da afirmação da vida como parcela da arte de Kuprin; para ele, ser artista significava, primordialmente, sentir a alegria de estar vivo, não deixar nunca de admirar o belo e de encontrá-lo nas coisas mais comuns, e tirar um canto à luz e ao bem ainda que do ambiente penumbroso e enfumaçado de um botequim e da convivência com sujeitos de costumes desenfreados.
Kuprin cultuava a beleza e a força físicas, pois ele próprio, além de freqüentar circos desde criança, praticava vários desportos, entre eles o boxe, a natação, a ginástica e a luta greco-romana, e não somente exultava em realizar trabalhos braçais ao ar livre, como também tinha fascinação por atividades que exigissem vigor e destreza e envolvessem risco, como voar em balões e nos primeiros modelos de avião, sair ao mar alto com pescadores e mergulhar de escafandro. Essa verdadeira fome de sensações e conhecimentos fazia-o querer saber tudo dos representantes das mais variadas nacionalidades e atividades, fossem eles russos, ucranianos, tártaros, judeus ou gregos, artistas, mineiros, ferroviários, ladrões de cavalo, banqueiros, jogadores ou monges, e a ir a assembléias de empregados do comércio, passar dias em acampamentos de ciganos, gastar horas na observação de animais e até entrar em jaulas de tigres, com domadores. Kuprin escrevia febrilmente, em acessos iguais aos de bebedeira, de modo que as palavras do jornalista Platón de O fosso, escrito de 1909 a 1913: “Com a breca, eu gostaria de por alguns dias tornar-me cavalo, planta ou peixe, ou ser uma mulher e experimentar o parto; eu gostaria de viver a vida interior e olhar para o mundo com os olhos de cada pessoa que encontro”, podem entender-se como súmula de uma atitude consciente do autor.[100]
Encontravam-se marcas de tal ardor em todos os seus livros, embora acontecimentos tolhessem essa disposição do seu espírito afável e o álcool lhe turvasse freqüentemente a razão. Ao boêmio de curiosidade sempre desperta, intuição pronta e alma sincera, espontânea, sensível ao belo na natureza e nas pessoas, a vida soube sempre nova. Kuprin proclamou que este mundo é o nosso paraíso, na expansão patética de Nazánski (O duelo), homem fisicamente arruinado, mas sempre ávido de reavivar a sua chama interior:
“— Olhe, olhe só quão linda, quão sedutora é a vida! — exclamou Nazánski, estendendo as mãos em amplo movimento, em torno de si. — Oh, a alegria, a suprema beleza da vida! Olhe: o céu azul, o sol do entardecer, a água serena. O corpo todo treme de entusiasmo, quando olhamos para eles. Lá, ao longe, os moinhos de vento movem as suas pás, eis a doce erva verdejante, a água, rósea do crepúsculo, ao pé da margem. Ah, quão maravilhoso, quão terno e ditoso é tudo isto!
Nazánski cobriu de repente os olhos com as mãos e rompeu a chorar, mas recuperou de pronto o domínio de si e continuou a falar, sem pejo das lágrimas, com os olhos refulgentes e úmidos fitos em Romachov:
— Se um trem me atropelar e me rasgar o ventre, se as minhas entranhas, misturadas à areia, se enrolarem nas rodas, e, se nesse derradeiro instante me perguntarem: “E então, ainda achas bela a vida?”, eu responderei com agradecido entusiasmo: “Sim, que linda é!”. Quanta alegria nos dá só o dom da vista! E há, ademais, a música, o aroma das flores, o doce amor das mulheres! E a incomensurável delícia do pensamento humano, dourado sol da nossa existência!”
Kuprin parecia ter pressa de viver, de gastar a energia acumulada em si, e tal perenidade na dissipação de forças talvez tenha encontrado o seu maior reflexo na representação do amor, ao domínio do qual, em regra, as personagens se entregavam totalmente; em alguns casos, elas adquirem até direito à superação da morte, tamanha a concentração de conteúdo de cada figura e da tensão das paixões que respiram. A comoção amorosa ocupou lugar importante na sua obra; ela o ajudou a afirmar os seus ideais humanísticos, como o valor estético e moral da nossa existência, a capacidade humana para as atitudes mais nobres e abnegadas, e, por outro lado, a revelar a marca sombria das contradições da época no mundo interior do indivíduo.
O amor, correspondido (Oliéssia, 1898) ou não (“Allez!”, 1897; O duelo, e outros), morria sempre porque nascia em circunstâncias excluidoras da felicidade. Kuprin produziu um conto altamente poético sobre o tema, “O bracelete de granadas” (1911), história real um tanto melodramatizada mas, ainda assim, uma obra-prima, e celebrou impulsos sublimes em uma época em que uma literatura soez inundava o mercado. Maksim Górki, não obstante de relações estremecidas com Kuprin por causa de atitudes e das novas amizades deste, exultou com a obra, considerando-a um alento novo para as letras russas.
Kuprin relacionava a busca da beleza com os grandes e elevados sentimentos e também com a aspiração à natureza. Criou vívidas e verazes imagens dela e escreveu admiravelmente sobre animais, com vários contos dedicados a cães, galos, gatos e bodes. Não raramente, os fortes e belos animais perecem, vítimas da cobiça e das mais baixas ambições humanas, como o magnífico potro Esmeralda.
No período de reação política, estendido de 1907 a 1913, ele, um grande humanista e escritor respeitado, colaborou em jornais e revistas vulgares que se haviam multiplicado com rapidez, como a Zemliá (A Terra), de Mikhail Artsibáchev. Malogrou de vez o seu casamento; em 1907, morava já sozinho em um hotel. Por São Petersburgo, andavam de boca em boca os versos: “Iésli ístina v vinié, Skolhko ístin v Kuprinié!” (Se a verdade na vodca está, então, quantas verdades em Kuprin não haverá?!)... Contraiu segundas núpcias, mas recaía, volta e meia, na boêmia e cometia desatinos. Desafiou a duelo um jornalista, autor de um pasquim sobre ele; o ofensor foragiu-se e o escândalo aumentou. Acabrunhados com tal situação, os conhecedores do valor de Kuprin como pessoa e artista abriam os jornais com renovado temor pela sua vida. Foi Fiódor Bátiuchkov, professor da Universidade de São Petersburgo e o mais devotado amigo de Kuprin, quem o demoveu da idéia de vingança e o reconduziu ao meio dos que realmente gostavam dele.
Corriam anos tenebrosos para a Rússia. Como parte do plano de terror, ideado pelo primeiro-ministro Piotr Stol´ypin, colocaram-se forcas em praças públicas e estações ferroviárias (“as gravatas de Stol´ypin”, dizia-se), e cortes marciais condenaram quase 5 mil pessoas à morte e outras 126 mil à prisão. A época abalou o democrata desprovido de uma cultura sólida e da consciência das forças detentoras do papel principal na renovação do mundo; Kuprin, em quem o instinto sobreexcedia de muito o intelecto, empolgara-se com a vaga revolucionária de 1905 mas não penetrara a verdade dos que queriam alforriar a vida e torná-la verdadeiramente humana. Assim, em meio às suas contradições, hesitações, estranhezas e problemas pessoais, revelou toda a variabilidade do seu estado de ânimo; as realidades da situação soíam sufocar a exaltação pura, espontânea e terna, característica do seu talento, e, então, com hinos à liberdade (“Cambrino”), à vida (“Os lestrigões”) e ao amor (“O bracelete de granadas”), alternavam poetizações do naturalismo cru (“Enjôo”, 1908), da crueldade e do vício (“O aluno”, “Tentação”, ambos de 1910). No entanto, apesar de se refletirem, em Kuprin, os ânimos políticos do meio degenerado ao qual se ligara, não se pode falar em decadência moral ou artística sua, pois as obras desabonadoras dele se apequenavam ao pé das que atestavam a intocabilidade da essência democrática e humanística da sua criação. Ademais, quando sacudia de si os vapores do álcool e ia para algum sítio silvestre, recuperava a disposição do espírito para as coisas elevadas e ficava de novo artista.
Ao iniciar-se a Primeira Guerra Mundial, Kuprin alistou-se como voluntário. Enviaram-no para a Finlândia; instruiu soldados e chegou a comandar uma companhia, mas desmobilizaram-no pouco depois, por causa da saúde debilitada pelo tifo. Voltou para Gátchina, cidadezinha próxima de São Petersburgo.
A Revolução Socialista de 1917 representou verdadeiro divisor de águas na vida de Kuprin. A convite de Maksim Górki, trabalhou na Editora Literatura Universal (escreveu extenso prefácio à coleção das obras de Alexandre Dumas, pai, de quem gostava muito, e traduziu a tragédia Dom Carlos, de Friedrich Schiller), manifestou, na imprensa, respeito aos bolcheviques e encontrou-se com Vladímir Lênin no Kremlin para obter autorização para a fundação de um jornal camponês. No entanto, se no conto “A lagarta” louvara os revolucionários de 1905, em “O fantasma de Gátchina” (1919) revelou incompreensão dos novos tempos; os acontecimentos puseram-lhe as faculdades críticas em confusão. Já muito bem se disse:
“Kuprin não conseguiu, apesar de tudo, superar a barreira que separa a mundividência e a psicologia do democrata do ensinamento revolucionário, que subleva o povo. Os planos dos bolcheviques para a reorganização social do país pareciam-lhe utópicos. [...] Kuprin não conseguiu orientar-se na situação política. Mas não se pode culpá-lo por isso. Grassava a fome, a destruição parecia não ter fim, havia a guerra civil, e quase todos os seus amigos e conhecidos estavam do lado dos inimigos da revolução. No fogo desta e da guerra civil, nas trevas da fome e da destruição, erros foram cometidos até por pessoas de convicções mais firmes e de visão clara do mundo (Górki, por exemplo).”[101]
No outono de 1919, regimentos brancos derrotados passaram por Gátchina, e Kuprin, com a segunda esposa e a filha, seguiu com eles para a Finlândia, que, parte do império russo até a Revolução de Outubro, se tornara, um mês após esta, país soberano. Dali, partiu para a França. Como ele emigraram Aleksiéi Tolstói, Ivan Búnin, Leonid Andriéev, Boris Záitsev e outros literatos, o compositor Serguiéi Rakhmáninov, o tenor Fiódor Chaliápin e artistas.
Kuprin trabalhou em publicações anti-soviéticas, provou grandes dificuldades materiais (não raramente, de comer, na sua casa, não havia mais do que pepinos e pão) e logo se convenceu de estar em meio pernicioso a ele, como pessoa e escritor: “Viver no exílio, ainda mais entre russos, e, ainda mais, russos de segunda convocação, é o mesmo que viver em um aposento pequeno, em que se quebrou uma dúzia de ovos podres”.[102]
O romance Os cadetes (1932), única obra significativa desse período, cristalizou as lembranças do passado, a saudade da Rússia. Na descrição das comoções juvenis, ingênuas mas puras, ressuscita como psicólogo e poeta.
Kuprin sentiu-se sempre estranho ao ambiente francês e parou de escrever muito antes da morte. Habituado desde a infância a meter-se em aglomerações de gente e a falar espontaneamente a quem estivesse perto, ressentia-se da falta da língua pátria, da conversa de empregados de botequim, dos pregões de vendedores ambulantes, das histórias de viajantes de trem, do burburinho das feiras russas, enfim, do povo, cuja seiva lhe marcara tão profundamente a alma no nascimento. Do homem, que esbanjava vigor na pátria, restava apenas um velho doente, disposto a voltar para ali nem que fosse a pé.
O governo soviético permitiu o seu regresso. Em 31 de maio de 1937, ele chegou de trem a Moscou, com recepção calorosa. Vivia-se o auge do terror do regime stalinista, e, certamente, muitas coisas horrorizaram Kuprin.[103] Por outro lado, operários e soldados convidavam-no às suas festas, pessoas cumprimentavam-no na rua, saíam edições das suas obras, e isso, mais a boa vontade de todos com ele, abafou um tanto o seu sentimento de culpa perante o novo país e deu-lhe um pouco de ânimo, enchendo-o de planos. Logrou, porém, escrever apenas uns poucos “Fragmentos de recordações” e o artigo “Moscovo querida”.[104]
Faleceu em 25 de agosto do ano seguinte, de câncer no esôfago, e o seu corpo baixou à sepultura no cemitério de Vólkovo, em Leningrado. A esposa, Elizaveta Morítsovna Kupriná, pereceu durante o bloqueio nazista na cidade, na Segunda Guerra Mundial, e a filha, Ksénia Aleksándrovna Kupriná, que chegara a trabalhar em cinema na França, tornou à União Soviética em 1958.
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Kuprin, criador de imagens elevadas, tendia a uma linguagem patética e, por outro lado, descobria grande afeição a todas as coisas mundanas. A crítica atentou logo na tangibilidade das suas figuras, na corporeidade dos objetos da sua comoção; as suas obras encerravam a compreensão e o sentimento dos gozos terrenos, e o estilo refletia uma alma de sensibilidade aguda e sempre pronta a reagir ao menor estímulo, a vibração interior da pessoa, que vivia com gosto e entre muita gente. A natureza do homem materializou-se nas criações do escritor, em quem a intuição de poeta sobrepujava o entendimento de analista. Isso nutriu o seu realismo lírico; ele apresentava a realidade em todo o seu aspecto desgracioso e até sórdido, mas, também, não despojada do sorriso da quimera, do afago da ternura e da coragem haurida das recordações, para que ela não se reduzisse a algo mesquinho e baço; assim, no enredo de fatos desalentadores, manifestava-se o poder mágico de pequenos acontecimentos que suavizavam um pouco o peso daqueles, como um acorde, no ar, de uma melodia vaga, mas sumamente bela.
Em meio aos tons carregados e sombrios despontava, aqui e além, uma claridade abridora de uma perspectiva encantada, que atenuava a presença do aflitivo e do cruel; podia minguar o humor, mas o lirismo nunca se ausentava. O jogo do claro-escuro, recorrente nos contos e nas novelas de Kuprin e nítido, por exemplo, em “No circo” e “Cambrino”, tinha a sua expressão mais prosaica na alternância de contentamentos e apreensões e constituía, com as suas gradações, uma faceta da oposição entre, de um lado, a consciência de que a vida representa o bem mais precioso do homem e, do outro, a inelutabilidade do desaparecimento da massa complexa do seu ser e sentir, do aniquilamento do seu mundo visível (o que Kuprin exprime magnificamente em O duelo, no diálogo de Nazánski e Romachov, transcorrido no passeio pelo lago). Assim, no credo de Kuprin, as pessoas deviam exultar com as irradiações benéficas do meio, sentir a paz e a doçura das coisas simples, e desfrutá-las com entusiasmo: “O homem nasceu para a grande alegria, para a criação ininterrupta, por meio da qual se torna um deus, para o livre e ilimitado amor a tudo: à árvore, ao céu, ao semelhante, ao cão, à terra submissa, querida e magnífica na sua beleza, sim, principalmente à terra, com a sua maternidade ditosa, com as suas manhãs e noites, com a incessante maravilha dos seus milagres” (O fosso). Da natureza predominantemente sensorial das fontes da comoção de Kuprin, a sua prosa tirava vigor de expressão e de cor, força de relevo e sentido de vida imediata, com uma veia lírica que, sobre o fundo da intuição segura, trazia uma sugestão de graça e festa e realçava os prazeres, os escrúpulos sutis e a espiritualidade, em contraposição ao embrutecimento provocado pela sordícia e pela aspereza do mundo.
Kuprin fez um canto às coisas boas, sem fechar os olhos às torpezas que as rodeavam, e sabia transmitir sensações vívidas e diretas, com cenas vibrantes, cheias de intenso e poético sentimento. Segundo ele, as pessoas não nascem simplesmente para morrer, mas para trazer algo novo, seu, à beleza do mundo, e disseminar a consciência da maravilha de estarmos nele constitui uma das missões do artista. Assim, esmerava-se na descrição das circunstâncias, em que as personagens provavam um alento vigoroso da sua ligação à terra, e exortava o leitor a apurar os sentidos para a percepção do milagre da vida, como neste trecho:
“O menino deu acordo de si somente ao chegar à fonte, ao pé da qual ele e o avô desjejuaram na véspera. Atirando-se juntos ao tanque frio, o cão e o homem sorveram longa e avidamente a água fresca, saborosa. Eles se empurravam e de quando em quando levantavam a cabeça para tomarem alento; a água, então, pingava sonora dos seus lábios, e os dois deixavam-se outra vez cair sobre a fonte com nova sede, incapazes de desprender-se dela. Quando finalmente se apartaram dela e seguiram adiante, nos seus estômagos repletos marulhava e grugulejava a água. Passara o perigo, desapareceram sem vestígios todos os terrores daquela noite, e ambos sentiam a alegria e a doçura de ir pelo caminho branco, iluminado pela Lua, por entre moitas escuras, das quais emanavam já a umidade da manhã e o suave aroma das folhas refrescadas” (“O cão de águas branco”).
Eis aí Kuprin inteiro, com a sua volúpia de sorver a essência das coisas circunstantes e aspirar a vida por todos os poros, e uma nota de simpatia afetuosa. O poder de comoção desse e de tantos outros registros perfeitos de um estado de felicidade completa provém, de um lado, da vitalidade de espírito de Kuprin, pessoa de grande vigor físico e simplicidade, e, do outro, da sensibilidade veemente e da força estuante, que o faziam expandir-se em solicitude com todos os viventes do mundo e rejubilar-se de respirar sob o céu e de caminhar sobre o chão com eles. Kuprin nutriu sempre pela vida a curiosidade e o amor, sem os quais não se podem criar verdadeiras obras de arte. Ele vira muito, sabia muito, e soube contar isso tudo aos leitores.
Para alguém assim, dotado de avidez de conhecimentos, sentidos sempre vígeis e excelente memória, o mundo é uma mina de temas a céu aberto. É necessário tão-somente aprofundar a vista; o talento encarrega-se de enriquecer, com pormenores, a impressão suscitada pelo motivo, e ampliar os contornos e as ressonâncias deste: a ação vem com a moldura não meramente acessória do seu contexto, do ambiente, o que torna as coisas palpáveis e confere à personagem uma densidade humana e uma nitidez de caracterização verdadeiramente raras. Do mesmo modo como um escultor toma um pedaço de pedra bruta e áspera e faz dele um objeto delicado, gracioso e suave ao contato dos dedos, o escritor apanhou a anedota do amor de um telegrafista a uma princesa, que normalmente se leria com estranhamento e desdém, e transformou-a em uma das histórias de amor mais comoventes da literatura russa.
Sobre si escreveu com tristeza, sem ilusão: “Não sirvo para ensinar ninguém a viver: eu próprio estropiei a minha vida tanto quanto pude. Para os meus leitores, sou tão-somente um bom camarada e um interessante contador de histórias. Mais nada”.
O entusiasmo em face da menor manifestação do encanto do simples fato da nossa existência e a glorificação dos impulsos naturais e saudáveis do homem representaram os principais auxiliares de Aleksandr Ivánovitch Kuprin, que deixou uma obra radiante, manancial de alegria e inspiração para todos nós.
Noé Silva