APRESENTAÇÃO

Das vantagens (e desvantagens) de ser saxão

COMO AUTÊNTICO ROMÂNTICO da melhor cepa, Alexandre Dumas, em prefácio à primeira edição de Robin Hood, se explica sobre esse personagem histórico, mas “sem a menor prova material de autenticidade”. O que importa para o incansável empreendedor/aventureiro/mundano/esteta e rebelde que foi Dumas é o herói e a descrição de uma época: uma época distante que, acima de tudo, se preste bem à valorização oitocentista da sensibilidade e da imaginação, em detrimento da fria razão dos clássicos.

O romance, a princípio, não dá margem a ambiguidade alguma: mocinho é mocinho e bandido é bandido. Mas uma ambiguidade essencial, é claro, confirma a regra: o bandido é o mocinho. Temos os saxões de um lado e os normandos usurpadores de outro, em disputa na grande ilha britânica (pouco importa que os saxões e os anglos, por sua vez, tivessem igualmente invadido e “usurpado” o território, anteriormente ocupado por celtas). Entre eles vigora um ódio recíproco que historiadores rapidamente apontariam como inverossímil na época em que se passa a narrativa, o século XII.

Tão implacáveis quanto esses historiadores foram alguns especialistas da literatura, que identificaram, nos dois volumes de Robin Hood, a maciça participação do ghost-writer Victor Perceval, com quem Dumas teve uma filha, Alexandrine, que concretizou em carne e osso a duradoura parceria intelectual entre os dois autores. Para não abusar da provocação: trata-se do pseudônimo de uma tradutora do inglês, Marie de Fernand, que colaborou com subsídios a respeito da Grã-Bretanha desde a época de Os três mosqueteiros (1844). Colaboração profícua, pois Dumas emprestou seu nome famoso para facilitar a publicação em jornais de algumas traduções e livres adaptações de Victor Perceval, como também introduziu a amiga no mercado editorial parisiense, onde ela seguiu, sempre sob pseudônimo, carreira independente.

A trama de Robin Hood abrange um período de mais ou menos sessenta anos, indo, grosso modo, de 1160 a 1220. A Inglaterra, nessas décadas, vive sob os reinos de Henrique II, Ricardo Coração de Leão e João Sem Terra, da dinastia Plantageneta, que Dumas não distingue da normanda, dos três monarcas anteriores (são todos “do continente” e não da ilha). Como no decorrer do romance há pequenos anacronismos e imprecisões de datas que a tradução se viu obrigada a assinalar, deve-se lembrar que, além de o rigor científico não ser a intenção principal do autor, nem ele nem seus leitores contavam com consulta a informações tão rápida e acessível quanto nós.

A ambientação de época, é verdade, mais servia de pano de fundo para um elogio do heroísmo dos bons velhos tempos, em que se podia viver numa confortável e imensa caverna, invisível às autoridades, numa comunidade de mais de trezentos homens de infalível lealdade, sob as sempre verdes árvores da floresta na qual aparentemente nunca havia inverno. O romance é um hino à amizade viril, em que os homens — os saxões, é claro — aceitavam naturalmente a liderança meritocrática de um Robin Hood, é verdade que assentada na genética do sangue azul, pois desde o início do século XVII, em peças elisabetanas, o herói medieval ganhara uma ascendência nobre, de conde injustamente despossuído de seus bens.

Sensatamente, o romancista introduziu mulheres no enredo, pois de início inexistiam na lenda, mas naquele tempo ideal a elas bastava o amor, não faziam exigências e, se não chegavam a achar bonito não ter o que comer, pois era sempre farta a floresta, ali viviam satisfeitas com seus próprios homens. Estes, por sua vez, amavam suas próprias mulheres para sempre, em bons e duradouros casamentos, sempre abençoados por Deus com uma prole de louras crianças que desde cedo trepavam em árvores e atiravam ao arco, mas que não têm muito espaço no mundo romântico de Dumas.

O arquétipo do bom bandido da floresta — que o historiador marxista Rodney Hilton tornou símbolo, nos anos 1960, da revolta camponesa —, tirando dos ricos para dar aos pobres, numa redistribuição primitiva de rendas, era já antigo na tradição camponesa britânica. Como prova disso, a filologia erudita, através de toda uma ginástica que passa pelos dialetos gaulês e bretão, remete a palavra hood a “bosque”, enquanto salta de forma gritante aos olhos que o próprio nome Robin Hood significaria literalmente Robin Encapuzado e não Robin dos Bosques, como a paronímia entre hood e wood foi frequentemente traduzida, sobretudo em adaptações infantis da lenda.

Confirmando a antiguidade do patronímico, foram localizadas referências a certo Robinhood, ou Robunhood, preso em 1228 por não pagamento de uma dívida. As menções em registros cartoriais, a partir dessa data, se tornam relativamente frequentes no norte da Inglaterra, mostrando que por essa época o nome já se tornara usual, pelo menos entre os desvalidos. São muitas, também, as canções populares, a partir do início do século XIV, a exaltar as aventuras do herói, vivendo ora na floresta de Barnsdale ora na de Sherwood, distantes cerca de sessenta quilômetros uma da outra. Com a tradição oral bem estabelecida, o bom fora da lei (ou outlaw, como gosta de dizer Alexandre Dumas, para diferenciá-lo do simples salteador) passou para a literatura, que eventualmente o descreveu, de maneira mais crua, como um bandido que matava friamente, sem se preocupar em distribuir entre os desfavorecidos o fruto dos roubos.

Resumindo, Robin Encapuzado, ou dos Bosques, seria, à época do primeiro rei Plantageneta, um yeoman, como Dumas também gosta de designar os pequenos proprietários rurais plebeus, revoltado contra as autoridades, bom caçador e adepto da caça ilegal nas florestas de Sherwood e Barnsdale. Da tradição oral o herói ganhou a escrita, que pouco a pouco o “politizou” e lhe deu um estofo mais nacional, extrapolando inclusive os limites da ilha inglesa no século XIX, ao fazer uma “ponta” no best-seller Ivanhoé, do escocês Walter Scott (o escritor foi agraciado com o título de sir, pela divulgação mundial da boa fama da Inglaterra). Foi como Alexandre Dumas o conheceu, em tradução de Marie de Fernand/Victor Perceval, que ele coassinou para publicação. E logo percebeu o potencial romântico e romanesco do personagem, que ele estabeleceu definitivamente com a leitura e anotações que a amiga lhe passou, a partir do folhetim jornalístico inglês de 1838 Robin Hood and Little John or The Merry Men of Sherwood Forest, de Pierce Egan, principal fonte para os dois volumes do nosso Robin Hood.

Dos vários personagens do romance, o par romântico Robin e Marian é igualmente antigo e vinha de uma tradição independente, tendo passado por igual evolução enobrecedora, pois de início os dois são da camada menos privilegiada da sociedade, encontrando-se em festas paroquiais, sendo ela às vezes apresentada como dançarina, mas migrando em seguida para uma ascendência senhorial (seu irmão Allan Clare, nas primeiras tradições, era menestrel). Will Escarlate e Much, o filho do moleiro, vêm também do mesmo suporte inicial de fixação da lenda: as antigas baladas populares, que aliás estão muito presentes no romance, por exemplo no orgulho que Robin tem de sua melodiosa voz e no fato de seu pai adotivo, Gilbert, ser o autor das canções.

Aos dezesseis anos (mas parecendo ter vinte), quando realmente começam as aventuras que o tornarão famoso, Robin já é um espantoso arqueiro, mas sabe se defender eficientemente com o cajado e a espada. É nessa idade que se revela para ele não só um rebuliço interior, que afinal se identifica como sendo o do verdadeiro amor, mas, coincidentemente, quase ao mesmo tempo, no calor da ação, descobre seu poder de sedução e charme. Sorte nossa ter sido esta a progressão (primeiro o imortal sentimento e depois a revelação do talento sedutor), ou teríamos um cafajeste e não um herói, já que por um curto espaço de tempo há uma oscilação.

Sublinhando ainda as indeterminações do adolescente, uma característica igualmente guardada, mas dessa vez salva pela decisiva e sempiterna integridade moral do pai Gilbert, é a jovial irresponsabilidade de Robin, que o faz comprar brigas desnecessárias, pelo simples exercício, contra adversários aparentemente mais avantajados. Ressalte-se, porém, ter sido dessa maneira que ele atraiu os melhores elementos dos “alegres homens da floresta”, como o bando era conhecido por seus simpatizantes dos condados de Nottingham e de York, e isto exatamente pelo espírito cordial e cavalheiresco com que o jovem chefe (quando se estabelece em Sherwood, tem cerca de vinte anos) impregnou todo o grupo. Diga-se ainda que ninguém, naquela comunidade fora da lei, tinha vocação para a maldade ou para o delito: eram todos bons saxões, cristãos, ali agrupados por vacilações da sorte.

Sem dúvida, na alegre confraria, os dois personagens mais marcantes são, ao menos fisicamente, Tuck e João Pequeno, ambos colossais. O primeiro, monge beneditino que acaba se tornando clérigo “residente” do bando da floresta, é falastrão, mulherengo/misógino, beberrão e briguento, sem nem por isso deixar de ser bom religioso. O segundo, laico, é o seu oposto: ingênuo, meigo, abstêmio (o único no romance). Arraigadamente bom, João Pequeno vem a ser o mais fiel admirador do líder, sua sombra protetora e primeiro lugar-tenente no comando dos alegres homens da floresta.

É grande o elenco, ou ainda arremedando Dumas, o dramatis personae da trama, mas assinalamos por último o indefectível vilão da história, o lorde e barão xerife de Nottingham, um “velho” (tem cerca de cinquenta anos) leão que, desde um golpe de cimitarra que lhe rachou o elmo, na Terra Santa, tem crises de raiva (além das de gota) descontrolada, só comparáveis à sua avidez por ouro e poder.

OS DOIS VOLUMES DE Robin Hood foram publicados postumamente, em 1872 e 1873. A imensa e brilhante produção dramatúrgica e literária de Dumas fez dele, junto com Victor Hugo — os dois foram grandes amigos, desde o período anterior ao sucesso, com carreiras semelhantes e personalidades opostas —, um dos maiores expoentes do romantismo francês. Ele não nasceu pobre, mas o pai, o primeiro general mulato do exército napoleônico, filho de uma escrava alforriada da ilha de São Domingos, morreu quatro anos depois, e o menino foi criado pelos avós maternos, estalajadeiros no interior da França.

Aos treze anos, não muito dado aos estudos, mas com bela caligrafia, ele passa a trabalhar num escritório de advocacia, indo aos vinte tentar a vida, ainda como escriturário, em Paris. Nesse meio-tempo, porém, havia descoberto a literatura, que poderia, achou ele, ser um meio rápido de fazer fortuna e ganhar notoriedade — e com isso escapar das humilhações sofridas com a pobreza e a mestiçagem (mas apenas num romance, Georges, de 1843, Dumas abordou a questão racial, pelo viés da colonização na ilha Maurício).

O sucesso e um bom dinheiro não demoram tanto, aparecendo dois anos depois da vinda do interior, com um vaudeville encenado na capital. Seguem-se diversas comédias ligeiras, escritas apressadamente e que o desgastam junto ao público. Era preciso mudar de rumo, pois ganhara forma também, nesses anos, uma característica de Dumas que o acompanharia por toda a vida: gastar mais do que tinha.

Ele passa a frequentar um efervescente círculo de jovens autores, obtendo enorme sucesso com um drama histórico, Henrique III e sua corte, que em 1829 abre o palco da prestigiosa Comédie-Française à jovem geração romântica — uma vitória que se consolida, no ano seguinte, com Hernani, de Victor Hugo.

A década posterior confirma a dramaturgia de Alexandre Dumas com Christine e o triunfal sucesso de Antony. E o faz descobrir o prazer das viagens, nas quais certamente gasta menos dinheiro do que em sua vida “normal” parisiense. Casa-se com a atriz Ida Ferrier, o que não o leva a interromper uma sucessão inesgotável de aventuras amorosas, tendo legado à posteridade, além da obra escrita, pelo menos três ou quatro filhos de diferentes mães. Aliás, a esposa também não dispensa suas próprias aventuras extraconjugais, e o casamento dura quatro anos, com uma separação que não chega ao divórcio.

A partir desse período, tornam-se contínuas então as deambulações de Dumas, que dão início a uma série de publicações, Impressões de viagem, e vão se estender por toda a sua vida, até o fim, como escapatória para os momentos mais turbulentos da existência. Em viagem, disse ele, vive-se apenas o presente, sem pensar no que passou nem no que vai acontecer. Essas frequentes fugas o tornaram, segundo o poeta Gerard de Nerval (com quem viajou, em 1841, pela Alemanha), “um dos nossos mais célebres escritores turistas”. Suas impressões cobrem o sul da França (1834), Itália e Sicília (1835), Bélgica e margens do Reno (1838), Florença (1840-43), Espanha e norte da África (1846), Holanda (1849), Londres (1857), Rússia, Cáucaso e Grécia (1858-59), norte da Itália (1860), novamente a Sicília e Nápoles (1860-64), Áustria e Hungria (1864-65), e de novo Espanha (1870).

O prodigioso sucesso de Eugène Sue, em 1842, com a publicação em folhetim de Os mistérios de Paris (“que até analfabetos acompanham”, segundo a imprensa da época, pois leituras públicas eram diariamente organizadas), faz o atento escritor olhar com carinho essa alternativa literária. De início ele hesita quanto ao gênero a explorar, até se decidir pelo que, indubitavelmente, é criação sua: uma forma teatral do romance histórico, que vai se desenvolvendo por meio de cenas movimentadas por admiráveis diálogos.

Ao mesmo tempo, Dumas põe em marcha um sistema de produção usual na dramaturgia de então, muito exigida quantitativamente, pois o teatro era o mais popular entretenimento social. Ele se utiliza de outros escritores, não exatamente ghosts (que os franceses chamam nègres, o que valeu ao autor mulato frequentes sarcasmos racistas), mas auxiliares para as pesquisas históricas e primeiros esboços narrativos, a partir do tema geral escolhido por ele próprio, que em seguida “fechava” e dava dinamismo ao romance, fazendo do “produto” um autêntico Alexandre Dumas. Tais participações — sendo a mais conhecida a de Auguste Maquet — eram declaradas e notórias. Um jornalista, Eugène de Mirecourt, publicou em 1845 um violentíssimo panfleto intitulado Fábrica de romances Alexandre Dumas e Cia. e foi processado judicialmente, sendo condenado a seis meses de prisão e pagamento de multa.

A imediata boa recepção de Os três mosqueteiros e O conde de Monte Cristo demonstrou o quanto tinha sido acertada a escolha de Dumas pelo romance histórico, que o consagrou postumamente, apesar de ele próprio sempre ter se considerado antes de tudo um autor teatral.

Seu talento é inquestionável, mas o dinheiro ganho ainda mais rapidamente é gasto. Ele manda construir, entre Paris e Versalhes, um “castelo de Monte Cristo”, monumental residência, num estilo misto renascimento/barroco, por onde perambula à sua custa uma quantidade de “amigos” do mundo artístico. Logo em seguida, em 1847, inaugura a sua própria sala de teatro, no centro da capital.

Dois anos depois vem a falência, com seus bens, inclusive o castelo, vendidos em leilão judicial. Perseguido pelos credores, ele se refugia em Bruxelas, onde também já se encontrava o amigo Victor Hugo, junto com muitos republicanos proscritos em consequência do golpe de Estado que dera início ao Terceiro Império na França.

O INÍCIO DA DÉCADA de 1850 assiste à ascensão de Alexandre Dumas filho, com o sucesso de A dama das camélias, enquanto nosso autor é obrigado a aceitar certa discrição, devido aos problemas decorrentes das dívidas. Com indisfarçável nostalgia, ele reconhece que passara a ser conhecido como Dumas pai. A relação entre os dois autores é carinhosamente ambígua, apesar de Dumas filho ter sido registrado ao nascer com “pai e mãe desconhecidos”, criado num orfanato e só aos sete anos de idade ganhado uma paternidade (que lhe garantiu boa formação num internato caro). Ele deixaria duas peças emblemáticas nesse sentido: O filho ilegítimo e O pai pródigo.

Em 1854 Dumas volta a Paris, após negociar as principais pendências financeiras. No recesso desses anos, termina a redação de suas memórias, começadas à época faustuosa do castelo de Monte Cristo. Com uma frase lapidar, que vale ser citada, ele acredita justificar aqueles anos perdulários: “Não tenho vícios, apenas fantasias; e isso custa bem mais caro!” Além das Mémoires, ele publica nesse período alguns romances e dedica-se à criação de dois jornais consecutivos, Le Mousquetaire e Le Monte-Cristo, que não tiveram vida longa.

E eis que sobrevém novo coup de théâtre, graças a um contrato assinado com a prestigiosa editora Michel Lévy (em seguida Calmann-Lévy) para a exploração do conjunto da obra, em 1860. Dumas compra então uma escuna, com a qual espera partir Mediterrâneo adentro, indo à Grécia, Palestina e Egito.

Mas o caudilho e guerrilheiro Giuseppe Garibaldi, “o herói dos dois mundos”, dera início à grande campanha para a conquista da Sicília e da Calábria, com a chamada Expedição dos Mil, fazendo apelo aos simpatizantes para a compra de armas e embarcações. O recém e autopromovido capitão de escuna dá início à sua última grande aventura “robinhoodesca”, juntando-se, com armas, velames e casco, à empreitada da unificação italiana.

Passa três anos em Nápoles, nomeado por Garibaldi diretor das escavações arqueológicas e museus. Funda um jornal, Il Indipendente, mais garibaldiano do que o próprio Garibaldi, e volta a Paris. Sexagenário, dedica-se a organizar e dar forma a uma das paixões maiores da sua vida, editada em o Grande dicionário de culinária, dividindo seu tempo, como a imprensa o descreve à época, entre os romances e as panelas.

Em 1870, porém, um AVC paralisa Dumas, que morre meses depois, em 5 de dezembro, na casa do filho homônimo e confrade, no litoral norte da França.

Bem mais recentemente, em 2002, por ocasião do bicentenário de nascimento do grande homem, seus restos mortais foram simbolicamente transferidos ao Panteão de Paris, num reconhecimento oficial da República, em espetáculo transmitido ao vivo pela televisão, sendo o caixão transportado por atores vestidos como Aramis, Porthos, Athos e d’Artagnan, os famosos “três mosqueteiros que eram quatro”.

O GRANDE ALEXANDRE — Dumas pai — foi em si mesmo formidável personagem, que alimentou a crônica literária com muitas anedotas em torno da sua vida privada.

Casado com Ida Ferrier, numa noite fria ele preferiu ir trabalhar no quarto do casal, onde a lareira estava acesa. Ida aparentemente dormia e ele escreveu por bom tempo, até ouvir um espirro, vindo de dentro do armário — onde descobriu o escritor e amigo Roger de Beauvoir. Viu que o pobre homem estava se resfriando e aconselhou que se pusesse junto ao fogo. Depois, indicando a cama, onde a esposa continuava a fingir que dormia, propôs: “Façamos como os romanos antigos e reconciliemo-nos em praça pública.”

Certa vez, indo à casa do pai, Dumas filho o encontrou escrevendo à mesa, com os olhos vermelhos de lágrimas, e perguntou preocupado o que tinha acontecido, ouvindo como explicação: “Acabo de matar Porthos” (estava então escrevendo O visconde de Bragelonne).

Théophile Gautier contou que, de outra feita, o autor de A dama das camélias andava em crise de criatividade e cheio de “manias de higiene”. Escrevia três linhas, ia tomar um banho frio e, ao voltar, achava aquelas linhas completamente idiotas, cortava e sobravam apenas três palavras. O pai, vindo às vezes de Nápoles, pegava o papel e dizia: “Mande preparar uma costeleta que termino isso.” Em pouco tempo montava um plano de ação, introduzia algumas prostitutas, tomava algum dinheiro emprestado do filho e ia embora. O jovem Dumas lia o roteiro, achando-o muito bom, mas ia tomar outro banho, voltava, relia e achava aquilo totalmente idiota…

E os irmãos Goncourt registraram em seus famosos diários, em 14 de fevereiro de 1866, a seguinte descrição: “Entrou no salão [da princesa Mathilde], engravatado de branco, colete da mesma cor, enorme, esbaforido, feliz como um negro afortunado, Dumas pai. Chegava da Áustria, da Hungria, da Boêmia. Falou de uma peça sua encenada em húngaro, de uma conferência em Viena [sobre o pintor Delacroix], onde o imperador emprestara um salão do palácio, dos seus romances, das suas peças …, de um restaurante que pretende abrir na Champs-Elysées …. É um ego enorme, transbordante, mas cheio de espírito e agradavelmente embalado por uma vaidade infantil: ‘Mas o que querem? Hoje só se consegue dinheiro no teatro com alças que se rompem… Foi assim o sucesso de Hostein. Ele dizia às dançarinas que usassem trajes com alças que arrebentassem, e sempre no mesmo ponto! O público masculino acompanhava de binóculos… Mas a censura acabou notando e isso abalou muito a venda de binóculos…’”a

A SAGA DE ROBIN HOOD se situa então nesse último período da vida produtiva do escritor, um daqueles romances redigidos entre um refogado e outro, num provável vaivém entre as mesas do escritório, da cozinha e da sala de jantar. Alexandre Dumas não inventou o personagem nem criou o mito, e não há como não reconhecer que se trata de um texto literariamente longe dos títulos imperecíveis do autor. Porém, com seu toque de gênio, ele soube globalizar um personagem que até então era incapaz de atravessar os mares no sentido oposto ao dos invasores, tanto normandos quanto, antes deles, saxões e romanos. Sem Dumas, Robin Hood não estaria tão presente em nosso imaginário: o herói, afinal, tem povoado, de lá para cá, inúmeros filmes, revistas em quadrinhos, séries de televisão e, nos últimos anos, jogos de videogame.

O condado inglês de Nottingham inseriu a silhueta do fora da lei na sua bandeira (em 2010), confirmando-o como o maior atrativo turístico da região: pagam-se cinquenta euros para uma visita à caverna onde moraram os alegres homens da floresta, “localizada”, entre outras 450, a partir de uma iniciativa da universidade local, com um levantamento das grutas de Sherwood, escaneadas a laser 3D. Na mesma floresta, reverencia-se o multicentenário carvalho major oak, sob o qual o grupo se reunia, mas que certamente no século XII não devia ser tão impressionante assim. Pululam as referências hoodianas por todo o condado e um festival regional organiza anualmente grandes eventos medievais, num espírito mais próximo da Disneylândia do que do rigor que os críticos cobravam de Alexandre Dumas, acusando-o de “violentar a História”. Como prova da definitiva vitória do escritor, toda a população de Nottingham, fixa e flutuante, como se confirma a cada ano no Festival, quer ser saxã, jamais normanda.

Esta edição de As aventuras de Robin Hood reúne pela primeira vez em único volume O príncipe dos ladrões e O proscrito. O primeiro acompanha a gênese do personagem, desde a sua adoção recém-nascido até a proscrição e o estabelecimento na floresta, assumindo-se como fora da lei, e o segundo apresenta a sequência de suas aventuras, até a velhice e a morte.

Apoiando-se na regra dumasiana que soi-disant dirigia as intenções literárias do autor — a de “divertir e interessar” —, nossa tradução tomou a liberdade de procurar tornar o texto o mais palatável (o cozinheiro Dumas gostaria) possível para o leitor brasileiro de hoje. É um texto simples, mas montado basicamente sobre diálogos, criando frequentes armadilhas para o tradutor.

O personagem Robin Hood continua mais vivo do que nunca, mas a última edição em português do romance em texto integral datava de 1954 e 1955 (para o primeiro e segundo volume, respectivamente), fazendo com que gerações inteiras de leitores só o conhecessem a partir das suas diversas adaptações. A presente edição corrige então mais essa injustiça — das mais imerecidas — que se juntava à tumultuada carreira do herói.

JORGE BASTOS


JORGE BASTOS é tradutor, responsável por mais de sessenta traduções publicadas, de obras de autores como Voltaire, Victor Hugo, Raymond Aron, Michel Serres, Elie Wiesel, Marguerite Duras e Amin Maalouf. Foi livreiro e editor, e é autor de Atrás dos cantos e O deserto e as tentações de santo Antão.

a As anedotas foram extraídas de Claude Schopp, Dictionnaire Alexandre Dumas (Paris, CNRS Éditions, 2010) e de Edmond e Jules de Goncourt, Journal (Paris, Robert Laffont, col. Bouquins, 1989).