Entrevista com Pierre Clastres

Realizada em 1974 para a revista francesa L’Anti-Mythes n.9.[1]

O que é, para você, “antropologia política”? Como se situa em seu procedimento etnológico atual (particularmente em relação ao estruturalismo)?

A questão do estruturalismo, em primeiro lugar. Não sou estrutura lista, mas não tenho nada contra o estruturalismo; é que me ocupo, como etnólogo, de campos que, em minha opinião, não são do domínio de uma análise estrutural; quando se trata de parentesco, de mitologia, o estruturalismo aparentemente funciona, e Lévi-Strauss demonstrou isso claramente quando analisou as estruturas elementares do parentesco, ou as mitológicas. Aqui me ocupo em linhas gerais, digamos, de antropologia política, da questão da chefia e do poder, e aí tenho a impressão de que a coisa não funciona, depende de um outro tipo de análise. No entanto, se trabalhasse com um corpus mito lógico, é muito provável que seria necessariamente estruturalista, porque não vejo muito bem como analisar um corpus mito lógico de uma maneira extra-estruturalista… ou então faria tolices, tipo psicanálise ou marxização do mito – “O mito é o ópio do selvagem”; mas isso é uma piada.

Não é somente à sociedade primitiva que você se refere. Quando se interroga sobre o poder, é uma interrogação sobre nossa sociedade. O que fundamenta essa atitude? O que justifica a passagem?

A passagem está implicada por definição. Sou etnólogo, isto é, me dedico às sociedades primitivas, mais especialmente àquelas da América do Sul onde fiz todos os meus trabalhos de campo. Então, parte-se de uma distinção que é interna à etnologia, à antropologia: o que são as sociedades primitivas? São sociedades sem Estado. Falar de sociedades sem Estado é necessariamente nomear ao mesmo tempo as outras, isto é, as sociedades com Estado. Onde está o problema? De que maneira ele me interessa e por que busco refletir sobre isso? É que me pergunto por que as sociedades sem Estado são sociedades sem Estado, e então julgo perceber que, se as sociedades primitivas são sociedades sem Estado, é por serem sociedades de recusa do Estado, sociedades contra o Estado. A ausência do Estado nas sociedades primitivas não é uma falta, não é porque elas estão na infância da humanidade e porque são incompletas, ou porque não são suficientemente grandes, ou porque não são adultas, maiores, é simplesmente porque elas recusam o Estado em sentido amplo, o Estado definido em sua figura mínima, que é a relação de poder. Por isso mesmo, falar das sociedades sem Estado ou das sociedades contra o Estado é falar necessariamente das sociedades com Estado, a passagem, ou ela sequer existe ou é possível de antemão; e a questão que se fixa na passagem é: de onde provém o Estado, qual a origem do Estado? Mas trata-se, ainda assim, de duas questões separadas: Como fazem as sociedades primitivas para não ter Estado? De onde provém o Estado? Então, voltando à “etnologia política”: se perguntarem “será que a análise da questão do poder nas sociedades primitivas, nas sociedades sem Estado, pode alimentar uma reflexão política sobre nossas próprias sociedades?”, certamente sim, mas não é necessário. Posso perfeitamente deter-me em questões, se não acadêmicas, ao menos de pura antropologia social: Como funciona a sociedade primitiva para impedir o Estado? De onde provém o Estado? Posso deter-me nisso e permanecer pura e simplesmente etnólogo. Aliás, de um modo geral, é o que faço. Mas não há dúvida de que uma reflexão ou uma pesquisa sobre, enfim, a origem da divisão da sociedade, ou sobre a origem da desigualdade, no sentido de que as sociedades primitivas são precisamente sociedades que impedem a diferença hierárquica, uma tal reflexão ou pesquisa pode alimentar uma reflexão sobre o que se passa em nossas sociedades. E aí nos deparamos muito depressa com a questão do marxismo.

Você poderia explicar? Quais são suas relações com os etnólogos marxizantes?

Minhas relações com aqueles meus colegas marxistas são marcadas por uma discordância no plano do que se faz, ao nível do que se escreve, não necessariamente no plano pessoal. A maioria dos mar xis tas são ortodoxos; digo a maioria porque alguns não o são, felizmente; mas os ortodoxos se apegam muito mais à letra que ao espírito. Então, o que vem a ser a teoria do Estado? É uma concepção instrumental do Estado, ou seja, o Estado é o instrumento da dominação da classe dominante sobre as outras; tanto na lógica quanto na cronologia, o Estado vem depois, tão logo a sociedade é dividida em classes e há ricos e pobres, exploradores e explorados; o Estado é o instrumento dos ricos para melhor explorar e mistificar os pobres e os explorados. A partir de pesquisas e de reflexões que não abandonam o terreno da sociedade primitiva, da sociedade sem Estado, parece-me que é o contrário que acontece; não é a divisão em grupos sociais opostos, não é a divisão em ricos e pobres, exploradores e explorados, a primeira divisão, aquela que funda afinal todas as outras; é a divisão entre os que comandam e os que obedecem. Ou seja, o Estado. Porque fundamentalmente é assim, é a divisão da sociedade entre os que têm o poder e os que se submetem ao poder. No momento em que isso existe, isto é, a relação comando/obediência, um sujeito ou um grupo de sujeitos comandando outros que obedecem, tudo é possível; porque quem comanda tem o poder de mandar os outros fazerem o que ele quer, já que ele se torna o poder, precisamente. Pode dizer-lhes: “Trabalhem para mim”, e nesse momento o homem do poder pode se transformar facilmente em explora dor, isto é, naquele que faz os outros trabalhar. Mas a questão – quando se reflete seriamente sobre a maneira como funcionam essas má quinas sociais que são as sociedades primitivas – é que não se percebe como essas sociedades podem se dividir, quero dizer, se dividir em ricos e pobres. Não se percebe, porque tudo funciona exatamente para impedir isso. Ao contrário, percebe-se muito melhor, compreende-se muito melhor, enfim, várias questões obscuras se esclarecem, se colocarmos primeiro a anterioridade da relação de poder. Por isso, penso que, para poder ver com mais clareza essas questões, convém inverter firmemente a teoria marxista da origem do Estado – é um ponto enorme e preciso ao mesmo tempo – e parece-me que, ao contrário de ser o Estado o instrumento de dominação de uma classe, portanto o que vem depois de uma divisão anterior da sociedade, é o Estado que engendra as classes. Isso pode ser demonstrado a partir de exemplos de sociedades com Estado não-ocidentais, penso particularmente no Estado inca, nos Andes. Mas também poderiam ser tomados outros exemplos perfeitamente ocidentais, e até mesmo um exemplo muito contemporâneo, a URSS. Naturalmente simplifico, não sou russólogo nem especialista em Kremlin… mas, enfim, se a considerarmos em conjunto, vista de uma certa distância, mas não de muito longe, o que fez a revolução de 1917? Ela suprimiu as relações de classe, suprimindo simplesmente uma classe, os exploradores, os burgueses, os grandes proprietários, a aristocracia e o aparelho de Estado que funcionava com tudo o que era a monarquia, e restou apenas uma sociedade da qual se poderia dizer que não era mais dividida, pois um dos termos da divisão fora eliminado; restou uma sociedade não dividida e acima dela uma máquina estatal (com o apoio do Partido) que detinha o poder em benefício do povo trabalhador, dos operários e dos camponeses. Muito bem. O que é a URSS atual? Com exceção dos militantes do partido comunista, que dirão que a “URSS é o socialismo, o Estado dos trabalhadores etc.”, para quem não segue a teologia e o catecismo, para quem não é cego, o que é a URSS? É uma sociedade de classes, não vejo por que hesitar em utilizar esse vocabulário. É uma sociedade de classes e uma sociedade de classes que se constituiu puramente a partir do apare lho de Estado. Parece-me que se vê claramente aí a genealogia das classes, dos ricos e dos pobres, dos exploradores e dos explora dos, isto é, a divisão econômica da sociedade a partir da existência do aparelho de Estado. O Estado soviético, centrado no parti do comunista, engendrou uma sociedade de classes, uma nova burguesia russa que certamente não é menos feroz que a mais feroz das burguesias européias do século XIX, por exemplo. Vejo isso como certo, e quando digo tal coisa que parece surrealista, a saber, que é o Estado que engendra as classes, pode-se ilustrá-lo to mando exemplos em mundos completamente diferentes daquele no qual vivemos, como os Incas ou a URSS. É provável que especialistas, digamos, do Egito antigo ou de ou tras regiões, ou de outras culturas – das sociedades que Marx designava pelo nome de despotismo asiático e outros pelo nome de civilização hidráulica – chegassem, suponho, à mesma conclusão que eu. Eles mostra riam como, a partir da divisão política, se engendra, aliás muito facilmente, a divisão econômica, os que obedecem tornando-se ao mesmo tempo pobres e explorados, e os que comandam, ricos e exploradores. Isso é perfeitamente normal, porque se detém o poder para exercê-lo; um poder que não se exerce não é um poder. E o que implica o exercício do poder? A obrigação que alguém impõe aos outros de trabalhar para ele. Não é em absoluto a existência do trabalho alienado que engendra o Estado, penso que é exatamente o contrário: é a partir do poder, da detenção do poder, que se engendra o trabalho alienado. O que é o trabalho alie nado? “Eu trabalho não para mim, mas para os outros”, ou melhor, “trabalho um pouco para mim e muito para os outros”. Quem tem o poder pode dizer aos outros: “Vocês vão trabalhar para mim”. E então surge o trabalho alienado, sendo que sua primeira forma, e a mais universal, é a obrigação de pagar tributo. Pois, se digo “sou eu que tenho o poder e são vocês que se submetem”, é preciso que eu o prove, e faço isso obrigando a pagar o tributo, isto é, a desviar uma parte da atividade dos outros em meu proveito exclusivo. Desse modo, não sou apenas aquele que tem o poder, mas aquele que explora os outros; e não há máquina estatal sem essa instituição que se chama tributo. O primeiro ato do homem de poder é exigir tributo, pagamento de tributo daqueles sobre os quais exerce o poder.

Então você me dirá: “por que eles obedecem? por que pagam o tributo?”. É essa a questão da origem do Estado. Não sei exatamente, mas existe na relação de poder algo que não é apenas da ordem da violência. Seria fácil demais, pois resolveria o problema de imediato! Por que existe o Estado? É porque num dado momento, aqui ou ali, um sujeito ou um grupo de sujeitos dizem: “temos o poder e vocês vão obedecer”. Mas então duas coisas podem acontecer: ou os que ouvem essas palavras dizem “sim, é verdade, vocês têm o poder e vamos obedecer”, ou “não, vocês não têm o poder e a prova é que não vamos obedecer”, e poderão tratar os outros de loucos ou matá-los. Ou há obediência, ou não há, e é preciso realmente que tenha havido esse reconhecimento do poder, pois o Estado apareceu aqui e ali em diversas sociedades. Em realidade, a questão da origem dessa relação de poder, da origem do Estado, em minha opinião, é dupla, no sentido de que há uma questão da parte de cima e uma questão da parte de baixo. A questão de cima é: o que faz que em algum lugar, num momento dado, um sujeito diga “sou eu o chefe e vocês vão me obedecer”? É a questão do topo da pirâmide. A questão de baixo, da base da pirâmide, é: por que as pessoas aceitam obedecer, quando um sujeito ou um grupo de sujeitos não detêm uma força, uma capacidade de violência suficientes para fazer reinar o terror sobre todos? Portanto, há uma outra coisa, essa aceitação da obediência remete a outra coisa. Não sei exatamente o que é; sou um pesquisador… portanto, investigo. Mas parece-me que tudo o que se pode dizer por ora é que, se a questão é pertinente, a resposta não é evidente. De todo modo, se queremos refletir a sério sobre a questão da origem da relação de poder, sobre a questão da origem do Estado, não podemos evitar a questão da base, isto é, por que as pessoas aceitam obedecer.

Já eram essas as duas questões que Rousseau colocava no início do Contrato social, quando dizia: jamais um homem será suficientemente forte para ser sempre o mais forte, no entanto existe o Estado; sobre o quê fundar então o poder político? Tive a impressão, ao ler A sociedade contra o Estado, que havia uma analogia entre seu procedimento e o de Rousseau, com um ponto de fixação muito significativo: a referência a pequenas sociedades (penso nas referências de Rousseau a Genebra, a Córsega, aos pequenos vales suíços), tal investigação desembocando na questão da origem do poder político.

Não é uma investigação. É o que me ensinam as sociedades primitivas… Lá, nos deslocamos um pouco, mas em verdade estamos sempre no mesmo campo. Em que condição pode uma sociedade existir sem Estado? Uma das condições é que a sociedade seja pequena. Por aí chego ao que você disse a propósito de Rousseau. É verdade, as sociedades primitivas têm em comum o fato de serem pequenas, demográfica e territorialmente; e isso é uma condição fundamental para não haver o surgimento de um poder separado nessas sociedades. Sob esse ponto de vista, poderíamos opor termo a termo as sociedades primitivas sem Estado e as sociedades com Estado: as sociedades primitivas estão do lado do pequeno, do limitado, do reduzido, da cisão permanente, do lado do múltiplo, ao passo que as sociedades com Estado estão exatamente do lado contrário, do crescimento, da integração, da unificação, do lado do uno. As sociedades primitivas são sociedades do múltiplo; as não primitivas, com Estado, são sociedades do uno. O Estado é o triunfo do uno.

Você lembrou Rousseau; poderíamos evocar um outro que se colocou a questão fundamental, que há pouco chamei a questão da base: por que as pessoas obedecem, quando são infinitamente mais fortes e numerosas que aquele que comanda? É uma questão misteriosa, em todo caso pertinente, e quem há muito a colocou, e com perfeita clareza, foi La Boétie no Discurso sobre a servidão voluntária. É uma velha questão, mas não é porque é velha que é uma questão ultrapassada. Não penso em absoluto que esteja ultrapassada; ao contrário, é hora de voltar a ela, isto é, de sair um pouco do lodaçal marxista, que apóia o ser da sociedade sobre, digamos resumidamente, o econômico, quando talvez ele esteja antes no político.

Você dizia que se deparava naturalmente com o problema do marxismo. Não ocorreria o mesmo com a grade de leitura psicanalítica, e por que não faz referência a ela?

Trata-se aqui de outra coisa. Devo dizer que sou quase analfabeto em matéria de literatura psicanalítica. Logo, a ausência de referência vem da ausência de cultura. E, em segundo lugar, não tenho necessidade dela. Não tenho necessidade de fazer referência à leitura, à grade psicanalítica, para o que pesquiso. Talvez assim eu me limite ou perca tempo, mas até o presente não tive necessidade. Por outro lado, devo dizer que as poucas leituras que fiz de textos que estão na fronteira da etnologia e da psicanálise não me encorajaram a seguir nessa direção. Quando, ao falar da questão do poder, falo do desejo de poder, ou, na outra extremidade, isto é, na base, do desejo de submissão, sei bem que a palavra “desejo” faz parte do vocabulário e do arsenal de conceitos da psicanálise; mas, enfim, posso perfeitamente tê-la tomado em Hegel ou mesmo em Karl Marx, e de fato minhas referências estão sobretudo desse lado. É simples, não conheço grande coisa, não sei quase nada de psicanálise, e também não me faz falta. Naturalmente, se um dia eu achar que chego a um impasse e que a grade psicanalítica me ajudaria a sair, aí então farei um esforço… Mas, por ora, não tenho necessidade desse instrumento; penso, ao contrário, que ele me confundiria as idéias; e o grave não é confundir as idéias, mas a realidade.

Você diz que o fundamento da distinção entre sociedade primitiva e sociedade não-primitiva é, num caso, a divisão, no outro, a não-divisão. Mas parece-me que, se a divisão rico/pobre, explorador/explorado não existe, por exemplo, entre os Guayaki, existe um outro tipo de divisão, nem que seja a de homem/mulher, obviamente, e normais/desviantes. Na Chronique des Indiens Guayaki [Crônica dos índios Guayaki], por exemplo, você falou do caso de dois pederastas, há um que se adapta às normas e o outro não. Que espécie de poder se exerce sobre ele para fazê-lo sentir que sua posição é anormal?

Nesse caso há distância, afastamento. Que espécie de poder? Talvez se possa dizer… o ponto de vista do grupo, o ponto de vista da comunidade, a ética da sociedade. Aqui se trata de um caso preciso: os Guayaki formam, formavam, pois convém falar no passado, uma sociedade de caçadores. Lá, um cara que não é um caçador é pouco menos que nada. Portanto, ele não tem escolha: não sendo caçador, ele praticamente não é mais homem. Não há um caminho muito grande a percorrer para ir pro outro lado, isto é, o outro setor da sociedade, que é o mundo feminino. Mas não sei se é possível falar em termos de poder. Em todo caso, não é um poder no sentido do que se falou até agora, um poder de natureza política.

Um poder não-coercitivo? Mas será que o fato de não identificar um poder cristalizado sobre alguém não te faz dizer que é uma sociedade sem poder, justamente porque não está cristalizada sobre alguns indivíduos? De todo modo existe claramente uma divisão, uma reprovação social que faz que os indivíduos não se comportem de uma maneira qualquer. Assim, nas relações matrimoniais, o sujeito que recusa que sua mulher tenha um segundo esposo (Crônica dos índios Guayaki), acaba por se submeter ao grupo depois de um certo tempo. Então, existe o poder apesar de tudo, já que há normas de comportamento?

São normas sustentadas pela sociedade inteira, não são normas impostas por um grupo particular ao conjunto da sociedade. São as normas da própria sociedade, as normas através das quais ela se mantém; são normas que todo mundo respeita, não são impostas por ninguém. Nas sociedades primitivas, as normas, as interdições, etc., são como as leis entre nós, sempre se pode transigir um pouco. Mas, enfim, não são as normas de um grupo especial da sociedade, que as impõe ao resto da sociedade; são as normas da própria sociedade. Essa não é uma questão de poder. Aliás, poder de quem, sobre quem? É o poder da sociedade tomada como um todo unitário, já que ela não é dividida, é o poder da sociedade como um todo sobre os indivíduos que a compõem. E essas normas, como são aprendidas, adquiridas, interiorizadas? Pela vida, pela educação dos filhos etc. Não estamos no campo do poder. Assim o “poder” de um pai sobre seus filhos, na sociedade primitiva, ou de um marido sobre sua mulher ou suas mulheres, se ele tiver várias, nada tem a ver com aquela relação de poder que digo ser a essência do Estado, da máquina estatal. O poder de um pai sobre seus filhos nada tem a ver com o poder de um chefe sobre as pessoas que lhe obedecem, não é a mesma coisa. Não devemos confundir os domínios.

Há uma divisão do espaço que é geralmente tida como determinante por Henri Lefebvre e pelas análises de situação, é a divisão cidade/campo. Na Crônica dos índios Guayaki e principalmente no capítulo “O arco e o cesto” de A sociedade contra o Estado, você faz aparecer uma outra divisão entre espaço masculino e espaço feminino. A que remete essa divisão?

É normal que haja tal divisão, nesse caso. Não esqueçamos que se trata de caçadores nômades; é normal que haja dois espaços bastante bem diferencia dos, pois a caça é uma ocupação de homens e ocorre na floresta. É um domínio de florestas, todos estão na floresta; mas há uma distinção entre o acampamento, onde se faz uma parada, onde se dorme, onde se come etc., que é o espaço de todos (homens, mulheres, crianças, velhos…), e a floresta, claramente marcada pelos que nela passam seu tempo, que são os homens enquanto caçadores. Além disso, verifica-se que, em razão da composição demográfica dos Guayaki, as mulheres eram mais numerosas que os homens; logo, o acampamento era mais marcado do lado das mulheres que do lado dos homens, ainda mais que os homens partiam para a caça entre homens, enquanto as mulheres permaneciam com os filhos no acampamento. Portanto, sem levar muito longe essa oposição, pode-se distinguir dois espaços: a floresta, que é o espaço da caça, do animal caçado e dos homens enquanto caçadores; o acampamento, que é sobretudo o espaço feminino, com os filhos, a cozinha, a vida familiar, etc. Dito isto, não temos aqui nada que lembre alguma relação de poder de uns sobre os outros.

O espaço dividido entre cidade e campo é um espaço hierarquizado, autoritário. Não haveria aqui uma relação idêntica de hierarquia entre os dois espaços?

Não, de modo algum! Mesmo se tomarmos outros casos, porque esse é um caso especial, trata-se de caçadores nômades (afinal, é muito raro uma sociedade de caçadores nômades, ou melhor, era muito raro…), mesmo se tomarmos o caso mais corrente que é o das sociedades primitivas de agricultores sedentários (era o caso da quase totalidade dos índios da América do Sul, e não falo dos Andes, falo dos índios da Floresta, dos selvagens-com-plumas-e-totalmente-nus da Amazônia… quase todos são agricultores sedentários, mesmo se caçam, se pescam, se colhem… são agricultores sedentários), não há nenhuma distinção entre a aldeia, como primeira imagem da cidade, e o campo. Isso de nenhum modo se aplica aqui. A distinção ci da de/campo aparece quando existe cidade, com pessoas que não são aldeões – porque aldeões têm a ver com aldeia – mas burgueses, pessoas que habitam o burgo, com chefes. É lá que habitam os chefes, em primeiro lugar. A cidade e a distinção cidade/campo aparecem com e depois do apareci mento do Estado, porque o Estado, ou a figura do déspota, fixa-se de imediato num centro, com suas fortalezas, seus templos, seus armazéns… Então aí, necessariamente, há uma distinção entre o centro e o resto; o centro passa a ser a cidade, e o resto vira campo. Mas essa distinção não funciona de modo nenhum numa sociedade primitiva, mesmo se há comunidades primitivas com um tamanho considerável. A dimensão não altera nada: quer se trate de um bando de caçadores guayaki de trinta pessoas, ou de uma aldeia guarani de 1500 pessoas, aqui não há em absoluto a distinção cidade/campo. Cidade/ campo é quando o Estado está presente, quando existe o chefe, sua residência, sua capital, seus depósitos, suas casernas, seus templos etc. As cidades são criadas pelo Estado; é por isso que as cidades, sua parte central, são tão antigas quanto o Estado; onde há Estado, há cidade; onde há exercício da relação de poder, há distinção cidade/campo. Como há pessoas habitando a cidade em volta daquele que comanda, é preciso necessariamente que elas comam, é preciso que vivam, e então são os outros, os que estão fora da cidade, os que estão no campo, que trabalham para elas. Aliás, pode-se dizer que é para isso que a figura do camponês enquanto tal aparece no interior da máquina do Estado, o camponês sendo aquele que vive e trabalha no campo parcialmente em proveito dos que estão na cidade e comandam, isto é, que paga o tributo, tributo em forma de serviços pessoais, que são corvéias, ou produtos de suas colheitas… Mas para que serve o tributo? Serve em primeiro lugar para marcar o poder, é o signo do poder! Não há outro meio de manifestar o fato do poder. Este não pode passar sem o tributo. De que maneira, se eu disser “sou o chefe, tenho o poder”, irei manifestá-lo? Exigindo de alguém alguma coisa, e essa coisa chama-se tributo. O tributo é o signo do poder e ao mesmo tempo o meio de manter, de assegurar a permanência da esfera do poder, de todos os que cercam o chefe. E a burocracia incha muito depressa a partir do momento em que há um chefe, um déspota. Rapidamente ele é cercado de pessoas que asseguram seu poder, guardas do palácio, guerreiros. Elas podem transformar-se rapidamente em funcionários especializados para arrecadar ou contabilizar o tributo, estatísticos, sacerdotes, enfim, toda a constelação de soldados, funcionários, escribas, sacerdotes surge muito depressa em torno da figura do chefe.

Basta que o campo de aplicação da relação de poder seja um pouco vasto. A partir desse momento, há imediatamente tudo o que cerca a figura do chefe: os sacerdotes, os militares, os escribas, os funcionários, os inspetores etc., e uma vida de corte, uma aristocracia. Toda essa gente não irá trabalhar, em realidade eles têm outra coisa a fazer; não por preguiça, por desejo de gozo, como o mestre em Hegel, mas porque têm outra coisa a fazer, precisam ser sacerdotes, generais, funcionários etc. Não podem simultaneamente cultivar os campos, criar rebanhos, então é preciso que os outros trabalhem por eles.

Há feiticeiros na sociedade primitiva, xamãs. Como explicar o papel deles?

Aqui voltamos ao que falávamos há pouco, às ambigüidades do ter mo poder.

Sim, creio que em realidade um certo número de nossas questões se deve a esse tipo de ambigüidade, a saber: coerção que assegura a coesão social e, de outro lado, poder político; e parece-me que você distingue muito claramente as duas, enquanto para nós isso era menos claro. Talvez seja esse ponto que mais nos “chocou” no conjunto das questões que chegamos a nos colocar.

Em primeiro lugar, você diz coerção: não há coerção nas sociedades primitivas.

O exemplo, a necessidade de retribuir, de dar e de retribuir, de receber e de retribuir.

A troca e a reciprocidade! Seria absurdo negar, digamos, a obrigação de trocar, de trocar bens ou serviços, como a de trocar as mulheres para respeitar as regras matrimoniais, e em primeiro lugar a proibição do incesto, mas a troca dos bens que ocorre todo dia, que se vê, é principalmente a do alimento; aliás, não se percebe muito bem que outra coisa poderia circular. Isso se passa entre quem e quem? Quais são as pessoas englobadas nessa rede de circulação dos bens? São principalmente os parentes, o parentesco, o que implica não apenas os consangüíneos mas também os aliados, os cunhados… É uma obrigação, mais ou menos da mesma maneira que é uma obrigação, para nós, dar um presente a um sobrinho ou levar flores a uma avó. Ademais, essa é uma rede que define o que poderíamos chamar os seguros sociais. Com quem um indivíduo de uma sociedade primitiva pode em princípio contar? Com seus parentes. A maneira de mostrar que se conta eventualmente, em caso de necessidade, com a ajuda dos parentes e dos aliados, é oferecer-lhes alimentos, é um circuito permanente de pequenas oferendas. Isso não é complicado; quando as mulheres cozinham, quando a carne ou alguma outra coisa está pronta, vê-se imediatamente a própria mulher, ou um filho que ela envia, levar uma pequena quantidade, quase simbólica, de alimento – não se trata de uma refeição – a essa ou àquela pessoa. São quase sempre parentes ou aliados, e por que se faz isso? Porque se sabe que eles próprios farão o mesmo; pode-se contar com eles em caso de necessidade, de catástrofe… são os seguros, a previdência social. É uma previdência social que não é de Estado, é de parentesco. Mas um selvagem jamais pensaria em oferecer o que quer que seja a alguém de quem ele nada tem a esperar. Isso nem mesmo lhe passaria pela cabeça! É por isso que o campo das trocas é reduzido, não digo exclusivamente, mas principalmente, às redes de aliança e de parentesco. Mas pode haver, naturalmente, outros tipos de troca que tenham, elas sim, uma função diferente, que são mais ritualizadas e que dizem respeito, por exemplo, às relações de uma comunidade com outra comunidade. Nesse caso, estamos na ordem das “relações internacionais”, de certo modo. As trocas entre parentes e entre aliados, de que eu falava, se passam no interior da comunidade.

Você falou há pouco do xamã. De fato, o xamã, não há dúvida, é provavelmente o homem que possui mais poder. Mas qual o seu poder? Não é em absoluto um poder de natureza política; quero dizer que o lugar no qual se inscreve na sociedade não é em absoluto um lugar a partir do qual ele possa dizer “sou o chefe, portanto vocês vão obedecer”. De modo nenhum. Há xamãs, nos diferentes grupos, que têm uma maior ou menor reputação, conforme sejam melhores ou piores xamãs. Há xamãs que têm uma reputação formidável, isto é, cuja reputação se estende até a grupos distantes que nem sequer o conhecem. O xamã, enquanto médico, isto é, enquanto senhor das doenças, é senhor da vida e da morte: ele põe e tira a doença do corpo do paciente, é senhor da vida. Enquanto tal, ele trata e cura. Mas, ao mesmo tempo, ele é necessariamente senhor da morte, isto é, ele manipula as doenças, e, se é capaz de arrancar a doença, ou melhor, de arrancar uma pessoa à doença, inversamente é capaz de lançar a doença sobre alguém. O que faz que o ofício de xamã não seja um ofício garantido, porque, se algo de anormal acontece na sociedade (seja que o xamã fracasse várias vezes em suas curas, seja que algo diferente ocorra), o xamã funcionará, de preferência, como bode expiatório na sociedade. Ele será responsabilizado pelo que se passa, pelas coisas anormais que se passam na sociedade, pelas coisas que amedrontam e inquietam as pessoas, será visto como responsável porque, enquanto senhor da vida, é também senhor da morte. Dirão “é ele”, é ele que lança malefícios, que faz as crianças adoecerem etc. O que se faz nesse caso? Bem, na maioria das vezes o xamã é morto!

É por isso que eu dizia há pouco que o ofício de xamã não é um ofício garantido. Mas, em todo caso, o prestígio e o respeito de que o xamã pode gozar numa tribo não lhe dá a menor possibilidade de fundar o Estado, de dizer: “sou eu que comando”; ele nem pensaria nisso.

Seu prestígio não está sujeito a caução? Ele não é necessariamente um personagem, digamos, sagrado? Nas duas “histórias” que você relata sobre os xamãs, as pessoas zombam deles.

Os xamãs não pertencem de modo nenhum ao sagrado. A relação dos índios com o xamã não é de modo nenhum como a do indígena dos Andes, outrora, com o Inca, ou como a do cristão com o Papa. Simplesmente sabe-se que, em caso de doença, pode-se contar com ele, e sabe-se também que é preciso ficar atento porque ele tem poderes – não o Poder, mas poderes, o que não é em absoluto a mesma coisa. Como ele é auxiliado por espíritos assistentes (como e por que ele é auxiliado por espíritos assistentes? Porque ele aprendeu, para ser xamã é preciso um longo tempo, anos e anos, digamos, de estudos), o xamã tem poderes, mas isso jamais lhe dará o poder, ele não o aceita! E para que lhe serviria? As pessoas ririam dele! Não, seguramente a origem do poder não deve ser buscada, em minha opinião, no prestígio do xamã. Não é certamente desse lado.

Ele é um “inspirado”… Há relação entre o xamã e o profeta?

Nenhuma. Os xamãs devem ser vistos exatamente como médicos. Eles medicam as pessoas de sua comunidade e, ao mesmo tempo, matam os inimigos. Um xamã medica as pessoas de sua comunidade e, se lhe pedirem, as pessoas das comunidades aliadas, e também mata os inimigos. Nesse sentido, é um puro instrumento da comunidade. Como ele mata? Mata como um xamã, convoca todo o seu exército de espíritos-assistentes e manda matar os inimigos. De modo que, por exemplo, se numa comunidade x uma criança ou outra pessoa morre, e o xamã local não conseguiu medicá-la, as pessoas dirão: “Foi o xamã de tal grupo que matou essa pessoa”, donde a necessidade de vingar-se, de fazer um reide.

O xamã é isso. Ele funciona como médico para a comunidade e como máquina de guerra a serviço da comunidade contra os inimigos. Um profeta jamais é um médico, ele não medica as pessoas. Aliás, para dar um exemplo da América do Sul, houve profetas entre os Tupi-Guarani, mas todos os cronistas distinguem perfeitamente entre os xamãs, de um lado, que são feiticeiros, médicos, e os profetas, de outro. Os profetas falam, fazem discursos de comunidade em comunidade, de aldeia em aldeia. Denominam-se com um nome particular, os karai, enquanto os xamãs denominam-se os pajé. A distinção é perfeitamente clara. Penso mesmo que se pode ir um pouco mais longe e dizer que o profeta não é um antigo xamã. É uma figura realmente diferente.

A guerra

Numa nota de rodapé das Memórias de Gerônimo, este é definido como xamã guerreiro. O que isso pode querer dizer?

Não sei. Isso tem uma importância secundária. Gerônimo era um chefe guerreiro. É possível que ao mesmo tempo tivesse alguns ta lentos de xamã, conhecesse cantos especiais. Mas ele era sobretudo um chefe guerreiro.

Poderíamos retomar essa questão da guerra, a saber: qual o estatuto da guerra nas sociedades primitivas? O que nos leva de volta ao problema de saber se devemos falar de sociedades isoladas ou de conjuntos de sociedades, de relações entre grupos. É a guerra um fenômeno excepcional, ou ela faz parte do cotidiano, da vida da comunidade? Na medida em que se fala do papel do chefe no momento da guerra, o que isso pode querer dizer? É um fenômeno excepcional ou estaria no horizonte de toda a vida social?

Isto é certo: a guerra está inscrita no ser mesmo das sociedades primitivas. Quero dizer que a sociedade primitiva não pode funcionar sem a guerra; portanto, a guerra é permanente. Dizer que na sociedade primitiva a guerra é permanente não quer dizer que os selvagens guerreiam da manhã à noite e o tempo todo. Quando digo que a guerra é permanente, quero dizer que, para uma comunidade dada, há sempre inimigos em alguma parte, portanto pessoas suscetíveis de vir nos atacar. O ataque em questão só se produz de tempo em tempo, mas as relações de hostilidade entre as comunidades são permanentes; por isso digo que a guerra é permanente, o estado de guerra é permanente.

Por quê? Aqui, voltamos àquilo de que falamos logo no início, a propósito do tamanho das sociedades. Eu dizia em que condição uma sociedade podia ser primitiva. Uma dessas condições, essencial, é o tamanho da sociedade, da comunidade; penso que não pode haver sociedade ao mesmo tempo grande e primitiva. Para que uma sociedade seja primitiva, ela deve ser pequena. Para que uma sociedade seja pequena, ela deve recusar ser grande, e, para recusar ser grande, há como técnica, universalmente utilizada nas sociedades primitivas e, em todo caso, nas sociedades americanas, a fissão, a cisão. Ela pode ser perfeitamente amistosa. Mas, quando a sociedade julga, calcula que seu crescimento demográfico ultrapassa um certo limiar ótimo, há sempre alguém que propõe a partida a um certo número de pessoas. Em geral, essas separações seguem linhas de parentesco; pode ser um grupo de irmãos que decidem fundar uma outra comunidade, que será naturalmente aliada da que eles abandonam, pois não apenas são aliados como também parentes. Mas eles fundam outra comunidade; logo, há um processo permanente de cisão.

Igualmente importante, porém, é o fato da guerra, pois a guerra primitiva, a guerra nas sociedades primitivas, aquele estado de guerra permanente de que eu falava, que se torna efetivo de tempo em tempo, isso depende realmente das sociedades. Todas ou quase todas as sociedades primitivas são guerreiras. Elas o são com mais ou menos intensidade; há povos muito guerreiros, há povos que o são menos, mas para todos, sempre, a guerra faz parte do horizonte. Quais são os efeitos da guerra? Os efeitos da guerra são manter constantemente a separação entre as comunidades. De fato, com inimigos pode-se ter apenas relações de hostilidade, isto é, de separação: essa relação de separação, de hostilidade culmina na guerra efetiva, mas o efeito da guerra, o estado de guerra é manter a separação entre as comunidades, isto é, a divisão. O efeito principal da guerra é criar o tempo todo o múltiplo; com isso, a possibilidade de haver o contrário do múltiplo não existe. Enquanto as comunidades estiverem, por meio da guerra, num estado de separação, de frieza ou de hostilidade entre si, enquanto cada comunidade assim se mantiver na auto-suficiência – quase se poderia dizer, na autogestão –, não pode haver Estado. A guerra nas sociedades primitivas consiste antes de tudo em impedir o uno; o uno é primeiramente a unificação, ou seja, o Estado.

Seria possível voltar aos fenômenos de cisão? Você disse que eram sociedades pequenas e, assim que cresciam, elas se cindiam. Como explica que as sociedades tupi-guarani tenham atingido dimensões bastante colossais? Por que esse mecanismo de cisão deixou de funcionar?

Aqui não posso responder com muita precisão, exceto quanto aos números. A particularidade dos Tupi-Guarani na América do Sul é que as tribos ou comunidades que constituíam o que chamo a sociedade tupi-guarani eram de um tamanho muito considerável, a tal ponto que somos forçados a pensar numa espécie de explosão demo gráfica, mas guardadas as proporções: não é como a China ou a Índia. Explosão demográfica, aliás, que levou os Tupi-Guarani a uma espécie de expansão territorial; eles passaram a ocupar um espaço gigantesco. Muito provavelmente porque tinham necessidade de espaço vital; como eram ao mesmo tempo muito numerosos e muito guerreiros, eles expulsavam os ocupantes que encontravam e estabeleciam-se no lugar deles; expulsavam ou matavam, ou então os integravam… não sei. Mas, em todo caso, eles chegavam e estabeleciam-se no lugar dos outros depois de tê-los afastado.

Então, por que isso? Por que há entre eles esse notável crescimento demográfico? Quanto a mim, nada sei a respeito. E não é apenas um problema de etnólogo, é um problema que envolve muita gente, geneticistas, ecologistas… Não sei dizer mais que isso. Mas, em todo caso, o que posso dizer (e que se observa cada vez mais à medida que pesquisadores se interessam pelas questões de população nas sociedades primitivas) é que as sociedades primitivas são, digamos, “sociedades da codificação”, para empregar o vocabulário de O anti-Édipo [de Guattari e Deleuze]. Digamos que a sociedade primitiva é to da uma multiplicidade de fluxos que circulam, ou então, outra metáfora, uma máquina com seus órgãos. A sociedade primitiva codifica, isto é, controla, tem em mãos todos os fluxos, todos os órgãos. Quero dizer com isso que ela controla o que se poderia chamar o fluxo do poder; ela o controla e o mantém dentro dela, não o deixa sair; pois, se o deixar sair, haverá conjunção entre chefe e poder, e aí caímos na figura mínima do Estado, isto é, na primeira divisão da sociedade (entre o que comanda e os que obedecem). Ela não deixa que isso ocorra; a sociedade primitiva controla esse órgão que se chama a chefia.

Mas parece haver um fluxo que na sociedade primitiva às vezes sai de controle, é o fluxo demográfico. Diz-se com freqüência que as sociedades primitivas sabiam controlar sua demografia; às vezes isso é verdade, outras vezes não. É evidente que, no que se refere aos Tupi-Guarani, no momento em que os conhecemos, isto é, logo no início do século XVI, isso não os perturbava, porque estavam em expansão territorial. Não havia problema. Mas teria havido um problema se, por exemplo, sendo obrigados a ter uma expansão territorial, eles tivessem encontrado adversários decididos e deter mina dos a proteger o território que eles queriam ocupar. O que teria acontecido? Quando há abertura demográfica e fechamento territorial, surgem problemas. Então, há talvez uma coisa que escape à sociedade primitiva, a demografia.

Há muitas técnicas para controlar a demografia: a prática constante do aborto, a prática muito corrente do infanticídio, a grande quantidade de proibições sexuais; por exemplo, enquanto uma mulher não desmamou uma criança (o desmame ocorre no final de dois ou três anos), quase de uma maneira universal, as relações sexuais são proibidas entre essa mulher e o marido. Se a mulher tem um filho (pois, como eu dizia há pouco, as proibições, os tabus são feitos para ser respeitados, mas também para ser violados), ou se engravida enquanto seu primeiro filho não desmamou, há muitas chances de que se pratique o aborto ou de que a criança seja morta ao nascer. Apesar disso, pode haver um crescimento considerável da população num horizonte, numa economia e numa ecologia selvagens…

Poder e linguagem

Toda uma série de questões que nos colocamos giravam em torno do problema da linguagem: de um lado, a linguagem é apresentada como estando na origem do poder coercitivo (é a palavra do profeta), de outro, a linguagem se opõe à violência.

Continuamos naquela questão da codificação. Sabe-se que na América (e não só na América, é algo aparentemente universal), o líder, o chefe da tribo, o chefe na sociedade primitiva, deve ter diversas qualidades que o qualifiquem, a fim de exercer essa função; e, entre outras, há a necessidade de saber falar, de ser um bom orador. Isso foi seguidamente constatado. Então é possível dizer que é porque os selvagens gostam dos belos discursos, sentem prazer em ouvir um bom orador; o que é verdade, eles adoram isso. Mas creio que é preciso ir mais longe, e que, nessa obrigação que impede alguém de ser reconhecido como chefe se não for um bom orador, há alguma coisa que leva a comunidade, a qual reconhece fulano como seu líder, a prendê-lo na armadilha da linguagem. Ela prende o líder na armadilha da linguagem, nos discursos e nas palavras que ele pronuncia. Não se trata simplesmente do prazer de ouvir um belo discurso. Num nível mais profundo e naturalmente não consciente, isso tem a ver com a filosofia política implicada no funcionamento mesmo da sociedade primitiva. O líder, o chefe, isto é, aquele que poderia ser o detentor do poder, o comandante, aquele que dá ordens, ele não pode sê-lo, porque está preso na armadilha da linguagem, preso no sentido de que sua obrigação é falar.

Enquanto estiver na linguagem, nessa linguagem (porque dar uma ordem é também falar…), nessa obrigação de ser bom orador, ele não pode livrar-se disso. Caso lhe ocorresse a idéia de passar a um outro tipo de linguagem, que é a linguagem do comando (ele dá uma ordem e a ordem é executada), ele não o conseguiria. De minha parte, não posso compreender essa obrigação de ser um bom orador senão como um dos múltiplos meios que a sociedade primitiva cria para manter na disjunção chefia e poder. Enquanto o chefe estiver no discurso e no que chamei o “discurso edificante”, que é um discurso vazio, ele não tem poder.

Ele conta a história da tribo, as razões que a fizeram…

Sim, e é um discurso profundamente conservador. Mas conservador de quê? Da sociedade. É um discurso contra a mudança, entre outras, a mudança mais considerável que poderia ocorrer na sociedade primitiva: aquela que deixaria aparecer um sujeito que dissesse à sociedade “sou eu o chefe e agora vocês vão obedecer”. Portanto, é para que o chefe não possa dizer isso que ele é um bom orador, ele está agora imobilizado, é prisioneiro no espaço da linguagem. Enquanto estiver no espaço da linguagem, ele está no interior de um círculo de giz e não pode sair. Ele é o homem que fala, nada mais.

E que as pessoas não são sequer obrigadas a escutar, não é mesmo?

Sim, não há nenhuma obrigação. Se elas fossem obrigadas a escutar, haveria lei, já se teria passado para o outro lado. Não há nenhuma obrigação nas sociedades primitivas, ao menos nas relações sociedade/ chefia. O único que tem obrigações é o chefe. Ou seja, é rigorosamente o contrário, a inversão total do que se passa nas sociedades onde há Estado.

O chefe é aquele que deve obedecer?

Em nossos países, é o contrário; é a sociedade que tem obrigações em relação a quem comanda, enquanto o chefe não tem nenhuma. E por que o chefe que comanda, o déspota, não tem nenhuma obrigação? Porque ele tem o poder, obviamente! Então, o poder quer dizer precisamente: “As obrigações, agora, não mais são minhas, são de vocês”. Na sociedade primitiva, é exatamente o contrário. Somente o chefe tem obrigações: obrigação de ser bom orador, e não apenas de ter talento, mas de prová-lo constantemente, isto é, de presentear as pessoas com seus discursos, obrigação de ser generoso.

O que quer dizer a obrigação de ser generoso em sociedades nas quais, digamos, a atividade é auto-suficiente ao nível das unidades de produção? As unidades de produção são as famílias elementares (um homem, uma mulher e os filhos). Elas são auto-suficientes, ou seja, cada unidade, colocando entre parênteses os pequenos fluxos de bens que são trocados, não tem necessidade das outras (ou quase) para subsistir; por outro lado, sua produção não vai além de suas necessidades. Mas, para o chefe, é muito diferente, porque ele é obrigado a ser gene roso, é obrigado (se quiser cumprir seu dever de generosidade) a fazer sua produção ir além de suas necessidades. É obrigado a fazer que sua produção inclua suas obrigações de líder, isto é, a ter sempre um pequeno estoque de diversas coisas a colocar em circulação eventualmente, se lhe pedirem. Portanto, ser chefe quer dizer fazer discursos para não dizer nada (se quisermos dizer a coisa de uma forma resumi da) e trabalhar um pouco mais que os outros. Quando digo que na sociedade primitiva o chefe é o único a ter obrigações em relação à sociedade, pode-se tomar isso ao pé da letra, é verdade.

Por que tornar-se chefe? Quem se torna chefe e por quê?

Como alguém se torna chefe? Em primeiro lugar, é preciso haver um chefe. Mas veja bem, não estou dizendo: “É preciso haver o Estado. Se não houver chefe, estamos perdidos; é preciso haver alguém que comande”. Não se trata disso, pois o chefe não comanda, precisamente. Mas a máquina social primitiva só funciona bem se ela tiver, não sei exatamente como dizer, um porta-voz. O chefe é em primeiro lugar um porta-voz, no sentido próprio. Nas relações intertribais ou intercomunitárias, é evidente que todos não vão falar ao mesmo tempo, caso contrário nada mais se entende. Ora, as relações intertribais são essenciais, em razão mesmo do estado permanente de guerra. Quando se tem inimigos, convém ter aliados; convém ter redes de alianças, e os negociadores, os porta-vozes das comunidades, são os líderes, em razão do fato, precisamente, de serem hábeis no falar. Mas penso que se poderia ir um pouco mais longe e dizer que sem líder a sociedade seria incompleta. Pareço contradizer-me completamente, mas explico-me em seguida, baseando-me, aliás, em da dos etnológicos. Uma sociedade que não tivesse líder, um sujeito que fala, seria incompleta, no sentido de que é preciso que a figura do poder possível (isto é, o que a sociedade quer impedir), o lugar do poder, não sejam perdidos. É preciso que esse lugar seja definido. É preciso alguém do qual se possa dizer: “Aí está, o chefe é ele, e é precisamente ele que impediremos de ser o chefe”. Se ninguém puder dirigir-se a ele para pedir-lhe coisas, se não houver essa figura que ocupa o lugar do poder possível, não se pode impedir que o poder se torne real. Para impedir que o poder se torne real, é preciso montar uma armadilha nesse lugar e ali pôr alguém, e esse alguém é o chefe. Quando ele é chefe, dizem-lhe: “A partir de agora, és aquele que vai ser o porta-voz, aquele que fará discursos, aquele que cumprirá corretamente sua obrigação de generosidade; vais trabalhar um pouco mais que os outros, vais ser aquele que está a serviço da comunidade”. Se não houvesse esse lugar, o lugar da aparente negação da sociedade primitiva enquanto sociedade sem poder, ela seria incompleta.

Eu me lembro… estava há três anos, com meu colega Jacques Lizot, entre os índios Yanomami, na Amazônia venezuelana; é a região das nascentes do Orenoco, na divisão do extremo sul da Venezuela e do extremo norte do Brasil, isto é, o coração do sistema amazônico; digamos que é ainda um dos últimos espaços “em branco” da Amazônia. E lá vive a última grande sociedade primitiva do mundo, certamente, pois os Yanomami contam-se, embora seja bastante difícil avaliar, entre 12 e 15 mil, o que é enorme, quando comparado com os números atuais dos índios da América. Estávamos numa pequena comunidade de 50-60 pessoas. E, em conseqüência de não sei que conflito intracomunitário, não havia mais líder. Não sei o que eles haviam feito dele, se o haviam matado ou se ele se demitira, se é possível dizer, ou fora embora. Em suma, era uma comunidade sem líder, sem porta-voz. Não havia ninguém que pudesse desempenhar o papel de chefe do protocolo, porque é um pouco assim… Eles receberam a visita de um grupo aliado, o qual tinha um líder, isto é, o sujeito que falava; e esse sujeito fez um belo discurso ao grupo que não tinha líder. Disse-lhes: “Vocês são menos que nada, não têm sequer líder, não chegarão a nada”. Ele não estava de modo nenhum querendo dizer: “Vocês precisam de alguém que comande, de um chefe (no sentido em que o entendemos atualmente)”. Ele estava bem situado para saber isso; sabia muito bem que não comandava, mas quase se irritava de ver o que via, porque o espetáculo não era completo. Havia um lugar que, pode-se dizer, está estruturalmente inscrito na sociedade primitiva, que é o lugar da chefia, e esse lugar estava desocupado. “Se não tiverem líder, vocês estão perdidos”, porque havia um vazio, uma ausência; faltava um órgão.

Penso que o órgão existe a fim de poder ser codificado. Se ele não existe, então não se sabe exatamente onde buscá-lo. É preciso que se possa vê-lo. Se esse lugar não é ocupado, a sociedade não é completa. Naturalmente não estou querendo dizer que, se não houver chefe, no sentido de chefe que comanda, nada funciona. É o contrário, precisamente. E, se o lugar do poder aparente está vazio, então chegará talvez um tipo qualquer, de um lugar qualquer, e lhes dirá: “Sou eu o chefe, eu comando”. Eles se arriscam a ficar embaraçados, porque não há mais o chefe do protocolo, o porta-voz, o homem que faz os discursos, para dizer: “Nada disso, sou eu”. E penso que é por essa razão que, no episódio que acabo de contar, o líder visitante dizia aos outros: “Vocês são nada, se arriscam a ser nada, porque estão à mercê de qualquer um, de qualquer coisa”.

Isso é um pouco como se a palavra fosse considerada como potencialmente perigosa, e que, ao localizá-la num lugar preciso, se evitasse fazê-la perigosa. E então o profeta seria aquele que a tomaria de outra parte, de uma outra parte incontrolada e incontrolável?

Sim, claro. Poderíamos dizer, resumindo numa fórmula, que, quando o lugar do poder é ocupado, quando o espaço da chefia é preenchido, não há erro possível, a sociedade não se enganará sobre aquilo do qual deve desconfiar, pois está aí diante dela. O perigo visível, perceptível, é fácil de conjurar, pois o temos sob os olhos. Quando o lugar está vazio (e jamais fica vazio por muito tempo), qualquer coisa é possível. Se a sociedade primitiva funciona como máquina anti-poder, ela funcionará tanto melhor se o lugar do poder possível estiver ocupado. Foi o que eu quis dizer. Portanto, para além das funções cotidianas que o chefe cumpre, que são funções quase profissionais (fazer discursos, servir de porta-voz nas relações com os outros grupos, organizar festas, dirigir convites), há uma função estrutural, no sentido de que faz parte da estrutura mesma da máquina social, e que é a necessidade de esse lugar existir e estar ocupado, para que a sociedade como máquina contra o Estado tenha constantemente sob os olhos o lugar a partir do qual sua destruição é possível: é o lugar da chefia, do poder que ela deve tornar inexistente (e ela consegue isso perfeitamente). É nesse sentido que eu dizia que, se não houvesse esse lugar, ela seria incompleta.

A constância do discurso e também a constância do controle do grupo sobre o discurso do chefe seria talvez o meio de ver se ele não enlouquece? Enfim, o meio de ver se ele não quer monopolizar o poder?

Com certeza. Enquanto ele faz discursos – e isso ocorre geralmente todos os dias ou quase – e enquanto faz o mesmo discurso, as pessoas estão tranqüilas, porque o chefe enquanto orador também nunca diz coisas diferentes daquilo que a sociedade quer ouvir. Ele próprio funciona como órgão de manutenção da sociedade (enquanto sociedade sem poder), pois o que ele diz é um discurso que se refere constantemente às normas tradicionais da sociedade; é o discurso “edificante”: “Vivemos perfeitamente assim até agora, respeitando as normas que nossos antepassados nos ensinaram, sobretudo sem nada alterá-las”.

Em Yanoama (livro lançado na coleção [Terre Humaine/Plon] onde publiquei a Crônica dos índios Guayaki), fala-se dos índios que mencionei há pouco, os Yanomami. É absolutamente apaixonante. O autor é um italiano, Ettore Biocca, mas, em realidade, não é ele o autor; ele não passa de um escroque. O verdadeiro autor é uma mulher chamada Helena Valero, uma brasileira que foi raptada pelos índios Yanomami. Isso se passou em 1939. Ela desapareceu completamente e só reapareceu 21 ou 22 anos depois, com quatro filhos. Portanto, passou mais de vinte anos nessa sociedade incrível, da qual escapou. O livro em questão é o relato que ela faz a esse italiano, que não julgou indecente assinar ele próprio o livro, simples transcrição de cem horas de gravação. Enfim, é um episódio formidável. Ela narra vinte anos de sua vida lá. Nem sempre foi divertido, porque não se deve ter uma visão ingênua dos selvagens. Convém sobretudo não tomar ao pé da letra o que diz [Yannick] Jaulin, por exemplo, sobre os índios: as intenções são boas, talvez, mas é radicalmente falso.

Em suma, ela fala longamente de seu primeiro marido. Por ter se tornado índia, essa mulher teve dois maridos; em todo caso, ela fala de dois maridos em seu relato; e fala sobretudo do primeiro, por quem sentia o que se poderia chamar de amor. Faz dele um retrato comovente. Quem era esse cara? Era um líder, justamente. Ele a tomou como sua última mulher, já tinha quatro a seu lado. Era uma situação clássica: o líder sempre tem muitas mulheres. Ela foi sua mais recente esposa e, aliás, visivelmente a preferida, talvez porque viesse do mundo dos brancos: ela tinha mais prestígio. Por que esse cara era o líder? A maioria dos líderes yanomami são guerreiros, organiza dores de incursões de ataque ao inimigo. E ele era um grande líder, um cara corajoso. Só que aos poucos foi ficando louco. Tornou-se paranóico e megalômano: é a dinâmica da guerra, o destino dos guerreiros. O que quer o guerreiro? Ele quer guerrear o tempo todo. Isso é normal, pois ele é guerreiro. E aos poucos, em vez de fazer guerras que correspondiam ao que queria a sociedade, a tribo da qual era o líder, ele quis fazer guerra por sua própria conta. Tinha uma desavença pessoal, que dizia respeito somente a ele, com um grupo. E quis arrastar sua tribo a essa guerra. Mas essa guerra não era a da sociedade.

Então, o que aconteceu? Poderíamos dizer que uma das diferenças entre os selvagens e os outros é que eles, os selvagens, quando não querem guerrear, não guerreiam; ao passo que para nós, até hoje, quando o Estado quer que façamos a guerra, queiramos ou não, temos sempre de aceitar! O que aconteceu no caso desse líder? As pessoas o abandonaram; abandonaram-no a tal ponto que ele, por um lado, não podendo perder seu prestígio (porque era um guerreiro), não ia dizer: “Está bem, já que vocês não vêm comigo, eu também não vou”. Um guerreiro não pode dizer isso. Então, o que ele fez? Partiu ao ataque sozinho e, naturalmente, foi morto! Era um suicídio. Mas ele estava condenado à morte, porque quisera impor sua guerra à sociedade que não a queria. Eis como os chefes são impedidos de serem chefes. Aqui, há um exemplo magnífico. É o que acontece constantemente a Gerônimo, independentemente do fato de ser um herói.

Há dois aspectos: de um lado o fato de Gerônimo ter um ódio absolutamente visceral aos mexicanos…

Mas também a outros índios, a outros Apache…

Mas ele era aparentemente mais motivado pelas guerras contra os mexicanos do que contra os americanos do Norte…

Porque ele havia sofrido pessoalmente, já que os mexicanos haviam matado sua primeira família e sua mãe; mas a muitos outros Apache também…

Por outro lado, mesmo quando ele partia com dois ou três sujeitos, se eles voltavam após terem sido batidos, voltavam envergonhados e fazia-se silêncio. Mas se obtivessem uma vitória (mesmo sendo dois ou três que partiram), havia uma festa. Era uma “retratação” nitidamente mais limitada do que no caso do líder yanomami…

Sim, mas aí pode-se levar em conta o fato de que, provavelmente, os Apache sabiam muito bem que podiam ter necessidade dele a qualquer momento; afinal, era competente como guerreiro (como provou suficientemente).

Certo, mas ao mesmo tempo, em suas Memórias e nas de seu sobrinho Cochise Jr. (as duas coincidem em muitos pontos), vê-se a imagem que Gerônimo podia ter na sociedade apache. O massacre de sua família foi em 1858. Em 1859 dá-se o grande ataque de todos os Apache, como vingança. No mesmo ano ele volta a atacar com dois companheiros; há um fracasso; todos se calam, não se fala disso…

Os dois companheiros foram mortos e só ele voltou. Havia muitas expedições com apenas dois ou três sujeitos…

Em dez anos, até 1868, houve todo ano uma ou duas expedições; mas em 1863, por exemplo, ele partiu com três companheiros; foram vitoriosos; e, quando voltaram, houve uma grande festa. A retratação era limitada; Gerônimo era deixado em seu canto, fazia o que queria; consideravam-no um pouco como um marginal, mas não como um perigo potencial.

O que é que ele, Gerônimo, gostaria que acontecesse? Exatamente como aquele chefe amazônico, de que eu falava há pouco. Ele gostaria que, toda vez que tivesse vontade, os outros tivessem vontade também. Gostaria de arrastar consigo dois ou três ou quatrocentos Apache, e eles não queriam.

Mas ele não era chefe de tribo. Não estava no lugar de uma chefia.

De fato, não era um chefe no sentido institucional; era um chefe guerreiro, conhecido como tal por causa de sua competência técnica. Era um técnico da guerra, um especialista. Então, quanto tinham necessidade dele, chamavam-no. Mas quando ele queria fazer sua guerra e tinha necessidade dos outros, se os outros não quisessem, eles não iam; só isso.

Se Gerônimo era temido, era sobretudo de maneira indireta, naquele período de dez anos (de que fala especialmente Cochise Jr.), pois ele fazia incursões e havia represálias; mas, considerando o fato de que ele, pessoalmente, queria fazer sua guerra, não me parece que houvesse uma reprovação, as pessoas simplesmente não o acompanhavam.

É isso. Mas, no caso do guerreiro yanomami, ele queria impor sua guerra à sociedade; os outros não quiseram; ele era o líder de um grupo bastante numeroso (entre 150 e 200 pessoas). Visitei esse grupo; ele já era bastante considerável. É a comunidade clássica amazônica. As pessoas não bateram nele nem o mataram, simplesmente viraram-lhe as costas.

Mas conheço um outro caso, num outro grupo, de um sujeito que também era líder guerreiro, e este foi muito mais longe. Em razão de seu prestígio e de sua violência (era um tipo violento), ele começou a dirigir sua violência contra as pessoas do grupo do qual era líder. Isso durou um momento; depois, um dia, ele foi morto. Não faz muito que isso aconteceu (uma dezena de anos), é relativamente recente. Foi morto no meio da praça em torno da qual está edificada a aldeia. Foi morto por todos. Contaram-me que umas trinta flechas o perfuraram! Eis o que acontece com os chefes que querem bancar os chefes. Em alguns casos, as pessoas viram-lhe as costas, é o suficiente. Se não, ele é simplesmente liqüidado. É algo mais raro, mas está no campo de possibilidades da relação entre a sociedade e a chefia, se a chefia não permanece em seu lugar.

É a diferença em relação a Gerônimo: não parece que ele quisesse se impor. Ele dizia: “Eu parto; há companheiros que vêm comigo?”. Só isso.

Provavelmente ele fazia um pouco de chantagem. Pode-se muito bem imaginar o que ele devia dizer-lhes: “Vocês são covardes; os mexicanos nos matam e vocês não querem sequer continuar a se vingar”; e depois: “Como? Vocês se recusam a me acompanhar, a mim que lhes proporcionei essa vitória total?”. Porque a primeira vez, de fato, foi uma vitória total sobre os mexicanos… Mas pense agora em outros exemplos, sempre na América do Norte: os equivalentes de Gerônimo em outras sociedades, os “grandes chefes” do Western, Touro Sentado, Nuvem Verme lha e outros. Eram grandes líderes, mas que não tinham o menor poder. Nuvem Vermelha, que, por volta de 1865, era capaz de arrastar consigo uma “nuvem” de cavaleiros sioux (300 ou 400), não tinha o menor poder, no sentido de comando. Não comandava absolutamente nada. Era apenas um sujeito muito inteligente. É preciso ver também que os líderes são os sujeitos mais inteligentes da comunidade, os mais finos, os mais políticos para desenvolver, em relação às outras comunidades, não a estratégia deles, mas a da comunidade da qual são puramente os instrumentos. Nuvem Vermelha, Touro Sentado e outros, pode-se dizer que adquiriram um prestígio muito grande, mas não estavam de modo algum do lado do poder. É algo bem diferente.

Uma questão mais geral a propósito do tipo de interrogação que você pode formular sobre nossa sociedade contemporânea, a partir do estudo das sociedades primitivas: não há uma espécie de “utilização” da sociedade primitiva? É um pouco a questão colocada no começo desta entrevista. Julguei perceber, à leitura dos textos de A sociedade contra o Estado, um certo número de referências mais ou menos implícitas a pessoas como Nietzsche (você fala do gai savoir dos índios…). Pergunto-me se a referência aos primitivos não funciona como pode funcionar no pensamento de Nietzsche ou de Heidegger a referência aos pré-socráticos, isto é, aos que estão antes e, ao mesmo tempo, aos que são exteriores, de modo que não se pode pensar a passagem dos pré-socráticos a Sócrates, dos primitivos aos “civilizados”. Tenho a impressão de que não se trata apenas de analogia ou de conivência com o leitor, mas que isso recobre outra coisa em seu procedimento.

De fato, ao menos nos textos mais antigos – porque ali, afinal, há um vocabulário filosófico; é o caso do mais antigo, que intitulei “Troca e poder: filosofia da chefia indígena” [cf. cap. 2 supra], escrito em 1962, faz um bom tempo; fora isso, não tenho grandes mudanças a fazer nele – podem me acusar de trocar de idéias como se trocam camisas! Mas, naquela época, eu não havia saído da filosofia, continuava sendo um estudante de filosofia; estava há muito preparando o concurso para o magistério. E devo dizer estava envolvido, de fato, com Heidegger. Então, são tiques que marcam o momento em que escrevi aquilo, embora nem sempre sejam somente tiques: quando Heidegger diz: “A linguagem é a morada do ser; em seu abrigo, habita o homem”, “O homem é o pastor do Outro”, isso poderia ser dito dos selvagens. Há nas sociedades primitivas um respeito à linguagem, que não existe noutra parte. Aqui seria preciso citar as falas produzidas pelos selvagens. Foi um pouco por isso que escrevi Le Grand parler [A fala sagrada, 1974].

As referências a Heidegger, Nietzsche, estavam presentes, mas não foram muito além daquele momento. Com exceção de Nietzsche… Posso reconhecer e afirmar claramente a influência de Nietzsche, sobretudo da Genealogia da moral. Porque, se não tivesse refletido um pouco sobre a Genealogia da moral, eu teria tido mais dificuldade de escrever algo como “Da tortura nas sociedades primitivas” [cf. cap. 10 supra]. Isso é certo. Mas aqui a referência não é mais literária e para fazer bonito; ela é séria. A gente percebe que alguém como Nietzsche, que provavelmente desconhecia e era indiferente (com razão) à etnologia de sua época, via com uma clareza infinitamente maior que todos em sua época a questão da memória, da marca…

Haveria uma questão sobre a relação com a natureza. Você diz, por um lado, que isso não é determinante; por outro lado, após ter lido Pés nus sobre a terra sagrada, tive a impressão de que os índios tinham uma atitude radicalmente diferente da nossa em relação à natureza, uma atitude, digamos, de respeito, e um grande espanto diante do branco que profana alegremente. Será que isso corresponde a algo que você percebe? Há uma diferença de atitude ou seria apenas uma diferença aparente?

Pés nus sobre a terra sagrada são textos recolhidos por Mac Luhan, com belas fotos. Li apenas dois ou três textos; há alguns magníficos. Para voltar àquilo de que falamos antes, eis aí um exemplo da linguagem, da maneira de falar dessa gente. É esplêndido. É profundamente emocionante. É preciso ser um “selvagem” para falar assim, mais ninguém o consegue. Impossível encontrar hoje algo semelhante. Sem reduzir a questão ao modo de produção, há uma ligação com ele, e mesmo uma ligação profunda. O selvagem é um sujeito que não saqueia. Ele tira da natureza aquilo de que necessita. Quando suas necessidades estão satisfeitas, ele se detém. Essa é precisamente toda a questão da economia primitiva. A economia primitiva, como toda economia, destina-se a satisfazer necessidades. Quando o selvagem julga que suas necessidades estão satisfeitas, ele interrompe uma atividade de produção. Portanto, não irá cortar inutilmente galhos de árvores, nem caçar por nada um animal. Nunca fará isso. Ele caça o animal para comer carne. Por isso, as sociedades primitivas seguramente não corriam o risco de destruir o ambiente. Por outro lado, pode-se dizer que as sociedades primitivas, com as diferenças ecológicas locais, haviam realizado perfeitamente o que Descartes queria: ser senhor e possuidor da natureza! Os índios da Amazônia são perfeitamente senhores de seu ambiente, que é a Floresta Tropical. Os esquimós são perfeitamente senhores de seu ambiente, que é a neve e o gelo: trata-se de uma economia sem agricultura, por definição! Os australianos, os homens do deserto, com pouquíssima água, em circunstâncias ecológicas que nos parecem não apenas duras, mas impossíveis, tornaram-se senhores de seu ambiente; não digo que não teriam sido mais noutra parte, é possível; em todo caso, lá onde estavam, eles eram senhores de seu ambiente; quando tinham sede, sabiam onde achar água… não ficavam na penúria. Aliás, isso não é complicado: uma sociedade, por definição, controla seu ambiente. Porque, se não o controlar, ou ela morre ou vai embora. A sociedade primitiva controla absolutamente seu ambiente, mas o controla em vista de quê? Não para construir o capitalismo, isto é, para acumular, para produzir além das necessidades; ela produz até as necessidades e não vai além, são sociedades sem excedente. Por quê? Não porque não se interessem em produzir, porque estejam no ponto zero da técnica. Os selvagens são técnicos perfeitos e, quando digo que cada sociedade é senhora de seu ambiente, não digo isso à toa: eles sabem perfeitamente utilizar todos os recursos do ambiente em relação a suas necessidades. Suas técnicas são muito finas.

Para tomar exemplos americanos, são homens que, em numerosas tribos sul-americanas, tinham uma tecnologia química extremamente refinada, para produzir curare, por exemplo. O curare encontra-se em vegetais, em cipós. O cipó é um cipó, e o curare é uma pequena porção de veneno que se passa nas pontas das flechas. Certamente, entre o cipó e a pequena porção de veneno, há um monte de operações que requerem conhecimentos químicos; primeiro, saber que é de tal cipó, que se deve misturar a outros elementos… Não vejo como se poderia dizer que os conhecimentos científicos dos índios da Amazônia eram inferiores aos dos europeus. Apenas estavam adaptados às suas necessidades.

Nos grandes Estados, nas chamadas altas civilizações (o que não quer dizer nada, não há alta e baixa civilização; simplesmente, com o olhar europeu, as boas civilizações, as altas civilizações são aquelas onde há Estado, como os Incas, os Astecas, o resto sendo as baixas civilizações, inferiores porque sem Estado), as pessoas se surpreendem que não tenha havido a roda. Não é de modo algum uma lacuna ou uma carência. Diz-se mesmo que os astecas, que as crianças astecas, tinham brinquedos que incluíam a roda; além disso, eles esculpiam pedras redondas, sabiam portanto perfeitamente o que era um círculo, e eram certamente capazes de fazer rolar um círculo da mesma maneira que faziam rolar bolas, pois eles tinham jogos de bola. Então, por que não tinham a roda? Porque não lhes servia para nada. Quando abordamos tais problemas, penso que não se deve partir da questão “por quê”, mas da questão “para quê lhes teria servido”. As pessoas se surpreendem, por exemplo, que no império inca tenha havido um sistema viário fabuloso, inacreditável; os espanhóis ficavam estupefatos, diziam “não há equivalente entre nós”, os mais instruídos diziam que aquilo se assemelhava à rede viária dos romanos. Então, um magnífico sistema viário e ausência de roda! Parece contraditório, mas é normal. Para que a roda lhes teria servido? A roda funciona principalmente com a domesticação dos animais de tração, e não havia animal de tração domesticável nos Andes; o único animal domesticável, e ele já o fora efetivamente, era a lhama. Mas a lhama só pode transportar uma pequena carga, não mais que vinte quilos, e portanto prendê-la a uma carroça de nada teria adiantado. Assim, pode perfeitamente haver estrada sem haver roda. Inversamente, quando os selvagens vêem algo que lhes é útil, eles o adotam. Aliás, isso é geralmente o sinal do fim; é a história do ferro na América: a chegada do ferro foi uma catástrofe. Em contrapartida, a integração do cavalo em certas sociedades da América do Sul e do Norte foi, por algum tempo, uma espécie de promoção para essas sociedades. O certo é que as sociedades primitivas resolvem os problemas que se colocam a elas. Resolvem-nos sempre. Caso contrário, é simples: se não consegue resolver seus problemas, a sociedade morre, desaparece.

Se eu tomar as principais características das sociedades primitivas, a primeira condição de uma sociedade primitiva, como foi dito no início, é ser pequena. Talvez eu esteja demasiado preso a essas referências demográficas, mas parece-me que o problema da população é sem solução. Na Europa ocidental rica e relativamente pouco povoada, em relação ao Terceiro Mundo, a coisa pode ainda durar algum tempo… Mas quanto ao resto? Tenho a impressão de que pela primeira vez na história da humanidade, que dura já um bom milhão de anos, o que o outro dizia não é mais verdadeiro; o outro é Marx, quando dizia “a humanidade só se coloca os problemas que ela pode resolver”. Aqui há problemas insolúveis, entre outros o do crescimento demográfico. Não sei, talvez esteja enganado, mas penso que a questão do crescimento demográfico, que é sempre superior ao crescimento da alimentação, introduz uma defasagem que tende necessariamente a aumentar. É o que estamos assistindo atual-mente, a fome no norte da África. Você me dirá, é a seca. Sim, é claro, não tem chovido há anos, mas há outros problemas; além disso, onde talvez seja ainda mais grave, porque lá não se vê solução, é no Bangladesh, na Índia, no Paquistão. Quando vemos os ecologistas, ou os tecnocratas da FAO [Food and Agriculture Organization of the United Nations] ou do Clube de Roma dizerem a mesma coisa, a saber, que dentro de vinte anos haverá 500 milhões de pessoas passando fome na Ásia, na Índia, isso é um desastre, e não tem volta.

É por isso que, em minha opinião, e foi o ponto de partida e será o ponto de chegada, não quero fazer da questão da demografia o deus ex machina que explica tudo, mas creio que é um fator fundamental. Pois, se levarmos isto a sério, a saber, que a condição para que uma sociedade primitiva seja primitiva, isto é, sem Estado, enfim, uma sociedade em que haja o mínimo de alienação e portanto o máximo de liberdade, se a condição para tudo isso é que ela seja pequena, o que é que faz, em primeiro lugar, que uma sociedade deixe de ser pequena? É seu crescimento demográfico.

Aliás, a propósito dessa questão, percebe-se que, quando há Estado, ocorre exatamente o contrário do que ocorre na sociedade primitiva. Há pouco falávamos da guerra, o Estado impede a guerra, o Estado impede o estado de guerra. A guerra pelo menos muda completamente de sentido quando se está na sociedade com Estado. O Estado impede a guerra na medida em que ele tem o poder, evidentemente. Ele não pode tolerar a guerra, a guerra civil; ele existe para manter unitárias as pessoas sobre as quais exerce o poder. Mas falávamos de demografia: todos os Estados, pode-se dizer que está inscrito na essência de todos os Estados, são natalistas, todos os Estados querem um aumento quase planejado da população. Enfim, todos os Estados são natalistas, todos querem uma população mais numerosa e alguns planejam a demografia; por um certo lado, os imperadores incas não estavam longe de uma planificação dos nascimentos, mas no sentido do aumento, contando com os casamentos e a quase interdição do estado solteiro. Quando há proibição de ser solteiro, é preciso casar, e então há muita chance de ter filhos…

Todos os Estados são natalistas, necessariamente, porque, quanto maior a população, tanto maior o número de contribuintes, de pessoas que pagam o tributo, os impostos, tanto mais haverá produtores; quanto mais numerosas as massas a manipular, maiores o poder, a riqueza e a força. Por isso pode-se dizer também que a vocação de um Estado, da máquina estatal, não somente do sujeito que a controla num momento dado (penso que está na essência mesma da máquina estatal), é condenar-se à fuga para a frente, à conquista. A história dos grandes impérios, dos grandes déspotas, é uma conquista permanente, o limite sendo uma outra máquina estatal igualmente forte. É a única coisa capaz de detê-la. Ou então selvagens, selvagens verdadeiros que nada sabem e, sobretudo, não querem saber o que é o Estado. A expansão dos Incas é impressionante; ela se deteve na metade da encosta dos Andes em direção à Amazônia, porque ali começava o reinado dos selvagens, das comunidades e tribos que não queriam saber de pagar tributo a um chefe que eles não aceitavam. Mas, se isso não ocorrer, a vocação de toda máquina estatal é estender-se e, no limite, tornar-se planetária.

Mas podem os “selvagens” aparecer na sociedade?

Se você entende por “selvagens” as pessoas de que falamos até aqui, isto é, pessoas que dizem “abaixo os chefes!”, essas sempre existiram! Só que está ficando cada vez menos fácil dizer isso. Ou melhor, o destino dos Estados atuais, sob os quais vivemos, é ser cada vez mais estatal, se posso dizer. E não devemos nos deixar levar pelas aparências, ou talvez mesmo pela vontade sincera de alguém como Giscard d´Estaing, isto é, a vontade de liberalismo. Pessoalmente, não considero Giscard mais simpático que Pompidou; talvez raciocino de maneira epidérmica, mas, enfim, fico muito contente de que ele expulse o trio sinistro Marcellin-Druon-Royer.[2] Mas não convém ter ilusões, independentemente da boa vontade ou não do sujeito que, provisoriamente, dirige a máquina estatal.

Em todas as sociedades ocidentais, a máquina de Estado torna-se cada vez mais estatal, ou seja, ela vai ser cada vez mais autoritária; e isso, durante um bom tempo pelo menos, com a concordância profunda da maioria, da geralmente chamada maioria silenciosa; esta última estando igualmente distribuída à esquerda e à direita. Fiquei impressionado com uma pesquisa, publicada no Le Monde, sobre as atitudes das pessoas em relação à propriedade privada, portanto em relação a uma futura sociedade socialista na qual o problema poderia se colocar. Dos mais aferrados à propriedade privada e que a defenderiam tenazmente, cerca de 47% eram eleitores comunistas. Então, em minha opinião, marcharemos cada vez mais para formas de Estado autoritárias, porque todos querem mais autoridade. Tão logo Giscard desaparece durante quatro horas, porque está com uma namoradinha em algum lugar, é uma loucura: onde está o chefe? Ele desapareceu, estamos sem comando!

A máquina estatal vai chegar a uma espécie de fascismo, não um fascismo de partido, mas um fascismo interior. Quando digo máquina estatal, não me refiro apenas ao aparelho de Estado (o governo, o aparelho central de Estado). Existem submáquinas que são verdadeiras máquinas de Estado, e que funcionam, às vezes a despeito das aparências, em harmonia com essa máquina central de Estado. Penso nos partidos e nos sindicatos, principalmente no PC [Partido Comunista] e na CGT [Confédération Générale du Travail]. Convém analisar o PC e a CGT (abandono um pouco meu terreno, pois não estamos mais entre os selvagens); convém analisá-los como órgãos muito importantes da megamáquina estatal. Quero dizer com isso que a sociedade, tal como é atualmente, teria a maior dificuldade de funcionar se não houvesse esse fantástico dispositivo intermediário de poder e de preenchimento, capaz de chegar mesmo até o abuso de poder, que constitui o aparelho do PC e da CGT; eles não devem ser separados; são formações produzidas pela mesma sociedade e, de fato, há uma profunda cumplicidade de estrutura; não quero dizer que eles se telefonam à noite para se perguntar: “Então, como foi hoje?”. Há uma profunda cumplicidade de estrutura entre [Georges] Marchais e [Georges] Séguy[3] e os príncipes que nos governam. Isso é evidente. E, afinal, o partido, seja qual for, o que ele quer? Quer ocupar o poder; já está preparado para assumir o controle da máquina.

Não me parece que a sociedade seja cada vez mais coerente e cada vez mais racional. Isso é a visão da ficção científica, no limite, que nos faz ver a evolução da sociedade para o “melhor dos mundos” ou para 1984. Mas pergunto-me em que medida não assistimos, ao contrário, a uma fragmentação, a uma justaposição de oposições que não levam a nada, e que não podemos explicar, digamos, referindo-se a um aparelho que funcionaria, que tampouco podemos explicar como o surgimento de uma nova estrutura no seio da sociedade. É realmente a fragmentação. Retomemos o exemplo da escola; há uma visão da escola como aparelho ideológico (Althusser), você viu o texto… Tenho a impressão de que o que dizemos não remete exatamente ao mesmo tipo de problemática que a sua.

Penso que estamos próximos, e não para bancar o radical-socialista, aproximando os pontos de vista de maneira artificial. É por haver fragmentação que há mais centralismo; isso me parece completamente ligado. O capitalismo contemporâneo desarticula-se visivelmente, funciona no dia-a-dia, mas é porque se desarticula e falha aqui e ali, geralmente na periferia do sistema, que o sistema tende a se tornar cada vez mais sistemático ou autoritário. Eu não disse há pouco que o Estado era cada vez mais totalitário; eu disse: o Estado tende a se tornar cada vez mais estatal. Você dirá que, num momento dado, se o Estado torna-se o todo, caímos no totalitarismo. É evidente. Esse risco não deve em absoluto ser excluído. Mas penso que, por haver cada vez mais falhas, aqui e ali, é que há cada vez mais “anti-falha”, isto é, Estado. O Estado pode muito bem assimilar as questões difíceis, por exemplo, o aborto. Antes, as mulheres não eram donas delas mesmas, de seu corpo, como se diz, por causa do Estado, porque o Estado não queria, porque havia leis. E não respeitar a lei é ser fora-da-lei; ser fora-da-lei é ser julgado e ser preso. Agora, as mulheres podem ser donas delas mesmas, mas não há capitulação do Estado. Elas conseguem isso graças ao Estado. Antes, ele dizia a elas “vocês não podem”; agora ele diz “vocês podem”. Mas não é uma derrota da máquina estatal. Tanto melhor que a lei do aborto tenha sido votada; certamente ela é insuficiente… Mas não devemos ter ilusões; não é uma derrota da máquina estatal nem da moral burguesa; partiu do alto, mesmo se, graças a diversas organizações (como o MLAC [Mouvement pour la Liberté de l’Avor tement et de la Contraception]), não foi apenas do alto.

Basta ver as palavras de ordem; no começo era “aborto livre e gratuito”, mas tornou-se “aborto livre e pago pela Previdência social”.

Sim, a Previdência social é o Estado!

[tradução de Paulo Neves, 2003]

1. L’Anti-Mythes foi uma publicação de estudantes franceses da Universidade de Caen, Baixa Normandia, ligados à Agence de Presse Libération [APL]. Em brochura, as tiragens mimeografadas de cerca de 400 exemplares eram vendidas em restaurantes universitários. Entre 1974 e 1975, quatorze números foram editados a partir de uma leitura aguda de autores certeiramente escolhidos – autores que apenas despontavam ou se firmavam naquela época –, deixando um conjunto de entrevistas memoráveis com personagens como Claude Lefort, Cornelius Castoriadis, Henri Simon e ainda esta com Pierre Clastres.

2. Raymond Marcellin, Maurice Druon e Jean Royer foram, respectivamente, Ministros do Interior, da Cultura e do Comércio e Artesanato, entre 1962 e 1974, quando Georges Pompidou era o Primeiro Ministro do general Charles de Gaulle.

3. Membros do Partido Comunista francês.