Capítulo 3

INDEPENDÊNCIA E EXOGAMIA

Independência e exogamia*

A oposição tão contrastante entre culturas dos altos planaltos andinos e culturas da Floresta Tropical, salientada por narrativas e relatos dos missionários, soldados, viajantes dos séculos XVI e XVII, foi mais tarde acentuada até o exagero: pouco a pouco, desenhou-se a imagem popular de uma América pré-colombiana inteiramente entregue à selvageria, com exceção da região andina, onde os Incas tinham conseguido fazer triunfar a civilização.[1] Essas concepções simplistas, e ingênuas só na aparência – pois harmonizavam muito bem com os objetivos da colonização branca –, se cristalizaram em uma verdadeira tradição, cujo peso se fez fortemente sentir sobre a etnologia americanista em seu início. Pois se esta, na escolha e posicionamento dos problemas em termos científicos, se conformou à sua vocação, nem por isso as soluções propostas deixavam de transparecer uma persistência certa dos esquemas tradicionais, de um estado de espírito que, sem o conhecimento dos próprios autores, determinou parcialmente suas perspectivas de pesquisa. Por que se distingue esse estado de espírito? Primeiro, por uma certeza: os primitivos, de maneira geral, são incapazes de fornecer bons modelos sociológicos; em seguida por um método: realçar até à caricatura o traço mais aparentemente perceptível das culturas consideradas. Foi assim que o império inca impressionou os antigos cronistas, essencialmente pela forte centralização do poder e por um modo de organização da economia então desconhecido. A etnologia moderna transforma essas dimensões da sociedade inca ora em totalitarismo, com Rafael Karsten,[2] ora em socialismo, com Louis Baudin.[3] Mas um exame menos etnocêntrico das fontes leva a corrigir essas imagens por demais modernas de uma sociedade apesar de tudo arcaica; e Alfred Métraux,[4] em recente trabalho, destacou a existência, no Tahuantinsuyu, de forças centrífugas que os clãs do Cuzco não pensavam, aliás, em destruir.

No que concerne às populações da Floresta, não se procurou relacioná-las em esquemas anacrônicos; pelo contrário, e na própria medida em que se tentava dilatar os traços “ocidentais” do império inca, os quadros sociológicos das sociedades da Floresta parecem cada vez mais primitivos, mais fracos, menos suscetíveis de dinamismo, estreitamente limitados a pequenas unidades. É assim, sem dúvida, que se explica a tendência em insistir sobre o aspecto fragmentado, “separatista”[5] das comunidades indígenas não-andinas, e sobre o correlato necessário dessa situação: uma guerra quase permanente. E a Floresta, como área cultural, apresenta-se assim como uma poeira de micro-sociedades, todas mais ou menos semelhantes entre si, mas todas igualmente hostis umas às outras. É claro que se, com Baudin, se pensa do índio guarani que “…sua mentalidade é de uma criança”,[6] não se pode esperar descobrir tipos de organização social “adultos”. Essa sensibilidade ao atomismo das sociedades indígenas se encontra também em Koch-Grundberg ou Paul Kirchhoff, por exemplo no uso às vezes excessivo do termo “tribo” para designar qualquer comunidade, o que os leva à noção surpreendente de exogamia tribal a propósito das tribos tucano do Uaupés – essa tese tenta alinhar de alguma forma as tribos da Floresta Tropical com as dos Andes. Parece entretanto que a imagem mais conhecida das sociedades em questão nem sempre é exata; e se, como escreve Murdock, “The warlikeness and atomism of simple societies have been grossly exaggerated”,[7] isto é certamente verdadeiro para a América do Sul. Uma tarefa se impõe, portanto: a do reexame do Caquetá.[8]

Não se trata, sem dúvida, aqui de empreender a contramarcha em relação ao material etnográfico e à reavaliação das unidades sociopolíticas da Floresta Tropical, simultaneamente em sua natureza e em suas relações.

A informação etnográfica encontra-se em grande parte no monumental Handbook of South American Indians, cujo volume III é consagrado às culturas da Floresta. Essa área cultural comporta uma importante massa de tribos, muitas das quais pertencem aos três principais estoques lingüísticos: tupi, caribe, aruaque. Pode-se agrupar todas essas populações sob uma categoria comum: a sua ecologia se baseia, com efeito, e ressalvadas variações locais, em um mesmo modelo. O modo de subsistência das sociedades da Floresta é essencialmente agrícola, de uma agricultura certamente limitada à jardinagem, mas cuja contribuição é quase sempre ao menos tão importante quanto a da caça, da pesca e da colheita. Por outro lado, as plantas cultivadas são sempre mais ou menos as mesmas, sendo semelhantes as técnicas de produção assim como os hábitos de trabalho. A ecologia fornece, pois, uma base muito válida de classificação, e o conjunto de sociedades estudadas apresenta, sob esse ponto de vista, uma real homogeneidade.[9] Não é, portanto, surpreendente constatar que a identidade ao nível da “infra-estrutura” seja assinalada também no das “superestruturas”, isto é, dos tipos de organização social e política. Dessa forma, o modelo sociológico mais difundido na área considerada parece ser, se se der crédito à documentação geral, o da “família extensa”, que aliás constitui com muita freqüência a comunidade politicamente autônoma, abrigada pela grande casa coletiva, ou maloca; é o caso especialmente das tribos das Guianas, da região do Juruá-Purus, dos Witoto, dos Peba, dos Jivaro, de numerosas tribos tupi etc. A amplitude demográfica dessas households pode variar de quarenta a muitas centenas de pessoas, se bem que a média ótima pareça situar-se entre cem e duzentas pessoas por maloca. Notáveis exceções à regra: as grandes aldeias apiacá, guarani, tupinambá, que congregavam até mil indivíduos.[10]

Aparece, então, uma dupla série de problemas. A primeira dificuldade refere-se à natureza das unidades sociopolíticas da Floresta Tropical. Sua caracterização sociológica como comunidades constituídas de uma família extensa não está de acordo com sua amplitude demográfica média. Lowie aceita com efeito a definição, dada por Kirchhoff, desse tipo de organização social:[11] trata-se de um grupo composto por um homem, sua mulher – ou suas mulheres, se ele é polígino –, seus filhos com as esposas, se a residência pós-marital é patrilocal, suas filhas solteiras e os filhos de seus filhos. Se a regra para residência é matrilocal, um homem vive cercado por suas filhas com os maridos, seus filhos solteiros, e os filhos de suas filhas. Os dois tipos de família extensa existem na área da Floresta, o segundo menos difundido que o primeiro, e só prevalecendo nitidamente nas Guianas ou na região do Juruá-Purus. A dificuldade provém de que uma família extensa, definida stricto sensu, não poderia alcançar a dimensão habitual das comunidades da Floresta, isto é, uma centena de pessoas. Uma família extensa não engloba, com efeito, mais do que três gerações de parentes em linha direta; e ainda, conforme observa Kirchhoff, um processo de segmentação a submete a uma transformação permanente, que a impede de ultrapassar certo nível de população. É, por conseguinte, impossível que as unidades sociopolíticas da Floresta sejam compostas por uma única família extensa, e que ao mesmo tempo elas agrupem cem pessoas ou mais. Deve-se, pois, admitir, para eliminar a contradição, ou bem a inexatidão dos números dados, ou então um erro na identificação do tipo de organização social. E como é sem dúvida mais fácil enganar-se no que se refere à “medida” de uma sociedade do que sobre sua natureza, é a respeito desta que será preciso questionar.

A comunidade indígena da Floresta é descrita, conforme vimos, como uma unidade autônoma que tem a independência política por atributo essencial. Haveria então, ao longo de toda essa imensa área, um sem-número de estabelecimentos existindo de forma autônoma, cujas relações recíprocas seriam muito freqüentemente negativas, isto é, guerreiras. E aqui surge a segunda dificuldade. Porque, além do fato de que, de maneira geral, as sociedades primitivas estejam abusivamente condenadas a um esmigalhamento, revelador de uma “primitividade” que só se manifestaria no plano político, o estatuto etnológico das populações indígenas da Floresta Tropical apresenta uma particularidade suplementar: se estas estão realmente agrupadas no seio de um mesmo conjunto cultural, é na exata medida em que diferem das outras populações não-andinas, quer dizer, das tribos ditas marginais e submarginais.[12] Estas últimas são culturalmente determinadas pela ausência quase geral e completa da agricultura; elas são, pois, constituídas por grupos nômades de caçadores, pescadores e colhedores: fueguinos, patagônios, guayaki etc. É claro que essas populações não podem subsistir a não ser em pequenos grupos dispersos em vastos territórios. Mas essa necessidade vital de disseminação não atormenta mais os habitantes da Floresta que, como agricultores sedentários, poderiam, ao que parece, acionar modelos sociológicos diferentes dos de seus vizinhos marginais menos favorecidos. Não é estranho ver coexistir em um mesmo conjunto uma organização social do tipo nômade e uma ecologia de agricultores aos quais, por outro lado, suas próprias capacidades de transporte e deslocamento por navegação fluvial permitiriam uma intensificação das relações “exteriores”? É realmente possível que se desfaça assim a vantagem, sob certos aspectos enorme, da agricultura e da sedentarização. Não é impossível que populações ecologicamente marginais possam inventar modelos sociológicos muito refinados: os Bororo do Brasil central, com sua organização de clã recortada por um duplo sistema de metades, ou os Guaykuru do Chaco, com sua hierarquia de castas, o comprovam. Mas o inverso – populações agrícolas organizadas segundo esquemas marginais – é mais difícil de conceber. Deve-se procurar saber, então, se o isolamento político de cada comunidade é um traço pertinente para a etnologia da Floresta Tropical.

Trata-se primeiro, entretanto, de esclarecer a natureza dessas comunidades. Que esta seja efetivamente problemática é o que parece derivar da ambigüidade terminológica que se encontra no Handbook. Se, no tomo III, Lowie chama de “família extensa” a unidade sociopolítica mais conhecida na área estudada, Steward, no tomo V, chama-a de “linhagem”, indicando assim a inadequação do termo proposto por Lowie. Mas, enquanto as unidades consideradas são muito “povoadas” para serem constituídas por uma só família extensa, não parece também que se esteja diante de linhagens no sentido estrito, isto é, de agrupamentos de descendência unilinear. Na América do Sul, e particularmente na área da Floresta Tropical, é real mente a descendência bilateral que parece predominar. O conhe cimento de genealogias mais variadas e mais completas talvez possibilitasse a descoberta de que se trata, em muitos casos, de organizações unilineares. Porém, o material atualmente disponível não permite vincular com certeza este último tipo de organização senão a um número reduzido de sociedades florestais: populações da região do Pará (Mundurucu, Maué), ou do Uapés-Caquetá (Cubeo, Tucano etc.).

Não se trata, tampouco, de kindreds ou parentelas: a residência pós-marital, que nunca é neolocal, determina a composição das unidades, pelo simples fato de que a cada geração, e admitindo-se que o sex ratio seja estatisticamente equilibrado, metade dos siblings, sejam os irmãos em caso de residência matrilocal, sejam as irmãs em caso de residência patrilocal, deixam a comunidade de origem para irem viver na comunidade do cônjuge. De certo modo, conseqüentemente, as regras de casamento determinam ao grupo uma unilinearidade efetiva, senão culturalmente reconhecida por seus membros, uma vez que estes se tornam, segundo a regra de residência adotada, parentes consangüíneos em linha patrilinear ou em linha matrilinear. Foi isso, sem dúvida, que levou Steward a identificar como linhagens as unidades sociológicas da Floresta. Convém, entretanto, notar que, se a noção de família extensa, muito “estrita”, deixa escapar em grande parte a realidade concreta desses grupos, a noção de linhagem, por outro lado, lhes confere um certo número de determinações que eles visivelmente não possuem. Porque uma autêntica linhagem comporta uma descendência articulada segundo uma forma unilinear, enquanto aqui ela é bilateral na maioria dos casos; e, sobretudo, o fato de pertencer a esse tipo de agrupamento independe do local de residência. Seria pois necessário, para que as comunidades da Floresta Tropical fossem equivalentes a linhagens, que todos os seus membros, inclusive aqueles que o casamento afastou da maloca de nascimento, continuassem a fazer parte dessas comunidades, isto é, que a residência pós-marital não transformasse o seu estatuto sociológico. Ora, as unidades em causa são essencialmente residenciais, e uma mudança de residência parece de fato acarretar uma mudança de filiação, ou pelo menos uma ruptura do estatuto anterior ao casamento. Trata-se aqui de um problema clássico da etnologia: o da relação entre uma regra de residência e um modo de descendência. É evidente que uma regra de residência patrilocal, por exemplo, tende a favorecer fortemente a instituição de uma forma patrilinear de descendência, isto é, de uma estrutura de linhagem de regime harmônico. Não existe aí nenhum mecanismo, nenhuma necessidade formal, de passagem da regra de residência à da filiação; simplesmente uma possibilidade que depende muito das circunstâncias históricas concretas, certamente válida, mas ainda insuficiente para permitir a identificação rigorosa dos grupos, pois que a determinação de filiação não está “liberada” da regra de residência.

Se não pode, portanto, se tratar de verdadeiras linhagens, isso não deve contudo mascarar a atividade muito real – e talvez pouco realçada – de um duplo processo dinâmico que, interrompido definitivamente pela Conquista, parecia efetuar pouco a pouco as transformações das comunidades da Floresta Tropical, precisamente em linhagens: o primeiro, que deverá ser examinado mais tarde, refere-se às relações recíprocas das diferentes unidades; quanto ao segundo, é inerente a cada unidade em si mesma, e articula-se à unilocalidade da residência. Deve-se ainda notar que se trata, com efeito, de um processo único, porém de dupla incidência, externa e interna, cujos efeitos, longe de se anularem, acumulam-se e reforçam-se, como tentaremos demonstrar.

Será possível agora, depois dessa enumeração das razões que impedem de considerar as unidades da Floresta Tropical como famílias extensas ou como linhagens, atribuir-lhes uma denominação positiva? Sabendo-se o que elas não são, e conhecendo-se os seus traços distintivos essenciais, a dificuldade reduz-se finalmente a uma simples questão de terminologia: como denominar essas comunidades? Elas reúnem em média cem a duzentas pessoas; o seu sistema de descendência é geralmente bilateral; praticam a exogamia local, e a residência pós-marital é ou patri ou matrilocal, de forma que se manifesta uma certa “taxa” de unilateralidade. Trata-se, portanto, aqui de verdadeiros demos exogâmicos, no sentido de George Murdock,[13] isto é, de unidades principalmente residenciais, mas cuja exogamia e unilocalidade de residência desmentem, em certa medida, a bilateralidade da descendência, conferindo-lhes assim a aparência de linhagens ou mesmo de clãs.

Que dizer enfim da composição desses demos? Se as comunidades, em vez de serem demos, se reduzissem a famílias extensas como sugerem Kirchhoff e Lowie, a pergunta seria um tanto acadêmica. Mas, como vimos, os dados demográficos desmentem essa hipótese. Isso não significa, porém, que esse modelo de organização social não existe na Floresta Tropical: simplesmente, ele deixa de ser coextensivo à própria comunidade local, que o ultrapassa de muito. O modelo se mantém bem nas culturas da Floresta, mas perde seu caráter por assim dizer de máximo, para tornar-se o elemento mínimo de organização social: isso significa que cada demo é composto por uma pluralidade de famílias extensas; e estas, longe de serem estranhas umas às outras e simplesmente justapostas no interior de um mesmo conjunto, estão ao contrário entrelaçadas por linha patri ou matrilinear. Isso permite aliás supor que, ao contrário do que escreve Kirchhoff, a profundidade genealógica dessas unidades ultrapassa três gerações, mesmo que os índios não tenham uma contagem exata. Reencontramos assim a tendência, já percebida, à unilinearidade; e é legítimo, sob esse aspecto, pensar que o tipo de habitat mais comum na área – a grande casa coletiva ou maloca – exprime, no plano da distribuição espacial, essa dimensão fundamental. Quanto à questão do número de famílias extensas que compõem um demo, depende evidentemente do tamanho das unidades; poder-se-ia entretanto estimá-lo em três ou quatro para os grupos menores (de quarenta a sessenta indivíduos: uma comunidade do rio Aiari compreendia quarenta pessoas), em dez ou doze para as maiores (de cem a duzentas pessoas: uma comunidade manjerona no Juruá-Purus tinha 258 pessoas), considerando-se que cada família extensa reúna de quinze a vinte pessoas.

Falar desses demos como unidades sociopolíticas pressupõe que funcionam segundo o esquema unitário de totalidades “orgânicas”, e que a integração dos elementos componentes é profunda: o que se traduz pela existência de um “espírito de corpo” como autoconsciência do grupo, e por uma solidariedade permanente de seus membros. Nesse sentido, Kalervo Oberg tem razão em ver nessas coletividades “sociedades homogêneas”, isto é, sem estratificação social ou segmentação horizontal.[14] Os cortes que aí se operam são os do sexo, da idade e das linhas de parentesco; e essa “coalescência” exprime-se no caráter quase sempre coletivo das atividades essenciais à vida do grupo: construção da casa, jardinagem, trabalho de coleta, vida religiosa etc. Mas será que essa homogeneidade existe integralmente em todos os níveis da existência social? Afirmá-lo conduziria à idéia de que as sociedades arcaicas são, como tais, sociedades simples, e que a divergência ou o conflito estão ausentes de sua sociologia. Ora, a sua possibilidade parece baseada em pelo menos um plano: o da autoridade política. Sabe-se, com efeito, de um lado, que cada comunidade é dirigida por um chefe, e, de outro lado, que cada elemento da estrutura, isto é, cada família extensa, possui igualmente seu líder, em geral o homem mais idoso. Aparentemente, não existe nenhum problema: não há, por motivos já expostos em outro lugar, nenhuma “corrida ao poder” nessas sociedades, e, além disso, a hereditariedade do cargo político parece resolver todas as questões. Deve-se notar entretanto que a autoridade, longe de ser única, de alguma forma se divide e torna-se múltipla; que, conservando seu próprio líder, cada família extensa traduz com isso sua “vontade” de manter, de maneira mais ou menos acentuada, sua identidade; isso libera, no interior do grupo, forças que podem ser divergentes, isso certamente não chega à ameaça de explosão do grupo, e é aí, precisamente, que intervém a principal função do chefe: sua vocação de pacificador, de “integrador” das divergências. Vê-se então a estrutura social do grupo e a estrutura de seu poder se fundirem, se completarem, uma à outra, e cada uma encontrar na outra o sentido de sua necessidade e sua justificativa: é porque existe uma instituição central, um líder principal exprimindo a existência efetiva – e vivida como unificação – da comunidade, que esta se pode permitir, de alguma forma, um certo quantum de força centrífuga, atualizado na tendência de cada grupo em conservar sua personalidade; e é, reciprocamente, a multiplicidade dessas tendências divergentes que legitima a atividade unificante da chefia principal. O equilíbrio, constantemente a conquistar, entre a dualidade do periférico e do focal, não poderia ser confundido com a simples homogeneidade do todo, mais digna de uma composição geométrica das partes que da inventividade sociológica imanente à cultura. Ao nível da pesquisa etnográfica, isso se traduziria na tarefa de analisar a estrutura das relações entre os diversos subgrupos, entre os subgrupos e a chefia, com todas as intrigas, tensões, resistências mais ou menos aparentes, acordos mais ou menos duráveis que o futuro concreto de uma sociedade implica.

Assim se verifica a presença latente, e como que furtiva, da contestação e do seu horizonte último: o conflito aberto; presença não-exterior à essência do grupo, mas, ao contrário, dimensão da vida coletiva engendrada pela própria estrutura social. Eis o que nos afasta da bela simplicidade das sociedades arcaicas; a observação atenta e prolongada das sociedades primitivas mostraria que elas não são mais imediatamente transparentes do que as nossas, e um estudo como o dirigido por Buell Quain sobre os Trumai do Alto Xingu contribui para desmentir esse preconceito etnocêntrico.[15] As sociedades primitivas, tal como as sociedades ocidentais, sabem perfeitamente preservar a possibilidade da diferença na identidade, da alteridade no homogêneo; e nessa recusa do mecanicismo pode-se ler o signo de sua criatividade.

Essa parece ser, pois, a imagem, talvez mais fiel à realidade, dessas sociedades indígenas espalhadas ao longo da imensa bacia amazônica: são esses demos exogâmicos compostos por algumas famílias extensas ligadas em linha matri ou patrilinear. E, para existirem e funcionarem como unidades verdadeiras, elas não deixam de permitir um certo “jogo” a seus elementos. A tradição etnográfica, por outro lado, salientou fortemente a autonomia, a independência política dessas comunidades, o separatismo das culturas indígenas. Estaríamos então na presença de pequenas sociedades vivendo como em compartimentos estanques, mais ou menos hostis umas às outras, e inscrevendo suas relações recíprocas essencialmente no âmbito de um modelo muito desenvolvido da guerra. Essa visão de suas “relações exteriores”, se assim se pode dizer, está estreitamente ligada à imagem a princípio esboçada de sua natureza. E, como o exame desta última conduziu a conclusões sensivelmente diferentes, uma análise de seu “ser-conjunto” se impõe: é a isso que nos dedicaremos agora.

Uma constatação se impõe imediatamente: a grande maioria dessas populações pratica a exogamia local.

Sem dúvida é difícil fundamentar rigorosamente – isto é, sobre fatos constatados – a generalidade dessa instituição. Pois se a tecnologia e mesmo a mitologia de numerosas tribos sul-americanas nos são amiúde muito conhecidas, o mesmo não acontece, infelizmente, em relação à sua sociologia. Entretanto, por mais dispersa e por vezes contraditória que seja a informação utilizável, certos dados permitem, quanto à quase-universalidade da exogamia local, se não uma certeza absoluta, pelo menos uma probabilidade extremamente alta. De maneira geral, o número das populações sobre as quais possuímos informações válidas é muito pequeno em relação ao número total das etnias recenseadas. A exploração do material reunido no Handbook (tomo III) e no Outline of South American Cultures, de Murdock, permite avaliar aproximadamente em 130 o número de etnias (aliás de desigual importância) que florescem na área da Floresta Tropical. Mas é somente para 32 tribos que são indicados fatos precisos abrangendo o estatuto do casamento, ou seja, mais ou menos um quarto do total. Ora, dessas 32 tribos, 26 são apresentadas como praticando a exogamia local, enquanto as seis restantes são formadas por comunidades endogâmicas. Pode-se dizer conseqüentemente que a exogamia local aparece em três quartos das tribos sobre as quais possuímos dados concretos. Resta, pois, uma centena de tribos das quais ignoramos as regras de casamento, pelo menos sob esse ponto de vista. Mas pode-se supor que a proporção das tribos exógamas e endógamas, tal como se estabelece nas tribos conhecidas, mantém-se mais ou menos idêntica nas tribos desconhecidas: isso nos leva a admitir, não como certeza (esta é definitivamente inacessível, já que grande parte das tribos indígena desapareceu), mas como hipótese parcialmente verificada, a idéia de que pelo menos três quartos da Floresta praticavam a exogamia local. Deve-se notar ainda que algumas das etnias nitidamente identificadas como endogâmicas (por exemplo, os Sirionó, os Bakairi, os Tapirapé), são grupos numericamente frágeis ou isolados no seio de populações culturalmente distintas. Convém enfim assinalar que as tribos em que a exogamia local é constatada pertencem às principais famílias lingüísticas da Floresta (aruaque, caribe, tupi, chibcha, pano, pelba etc.), e que, longe de estarem localizadas, elas estão, pelo contrário, dispersas por todos os pontos da área considerada: do Peru oriental (tribos amahuaca e yagua), ao leste brasileiro (tribos tupi) e das Guianas (tribos yekuana) à Bolívia (tribos tacana).

Se o exame por assim dizer estatístico das tribos da Floresta Tropical torna verossímil a vasta extensão da exogamia local, esta, em grande número de casos, está mesmo necessariamente presente, devido à natureza da comunidade. Quando com efeito uma só maloca abriga o conjunto do grupo, os membros que o compõem se reconhecem reciprocamente como parentes consangüíneos reais sempre que o grupo é constituído por uma ou duas famílias extensas, e como parentes consangüíneos fictícios ou classificatórios todas as vezes em que o grupo é mais importante. Em todos os casos, as pessoas que vivem juntas numa mesma maloca são parentes muito próximos entre si, e pode-se pois esperar uma proibição de casamento no interior do grupo, isto é, a obrigação de exogamia local. Sua presença não se prende apenas a uma das suas funções que, como veremos adiante, é proporcionar vantagens políticas: ela prende-se primeiro à natureza das comunidades que a praticam, comunidades cuja propriedade principal é a de só reunir parentes assimilados de fato a siblings, o que não permite que Ego se case em seu grupo. Em resumo, a comunidade de residência em uma grande casa e a filiação culturalmente reconhecida a um mesmo conjunto de parentes colocam os grupos da Floresta Tropical como unidades sociológicas entre as quais se operam as trocas e se concluem as alianças: a exogamia, que é ao mesmo tempo condição e meio, é essencial à estrutura dessas unidades e à sua permanência como tais. E, de fato, o caráter local dessa exogamia é apenas contingente, pois que é uma conseqüência do distanciamento geográfico das diversas comunidades; quando estas se aproximam e se justapõem até formar uma aldeia, como nas populações tupi, a exogamia, deixando de ser local, nem por isso desaparece: converte-se em exogamia de linhagem.

De repente, estabelece-se, pois, uma abertura para o exterior, em direção às outras comunidades, abertura que compromete desde já o princípio muito citado da autonomia absoluta de cada unidade. Pois seria surpreendente que grupos engajados em um processo de intercâmbio de mulheres (quando a residência é patrilocal) ou de genros (quando ela é matrilocal), isto é, em uma relação positiva vital para a existência de cada grupo como tal, contestassem simultaneamente a positividade desse elo pela afirmação – suspeita de ser muito valorizada – de uma independência radical, de aspecto negativo, já que implica uma hostilidade recíproca rapidamente transformada em guerra. Não se trata, naturalmente, de negar que essas comunidades levam uma existência completamente autônoma em certos planos essenciais: vida econômica, ritual, organização política interna. Mas, além de não poder estender a todos os aspectos da vida coletiva uma autonomia que, por atingir níveis importantes, não deixa de ser parcial, o fato geral da exogamia local torna impossível uma independência completa de cada comunidade. O intercâmbio de mulheres de maloca a maloca, estabelecendo estreitos laços de parentesco entre famílias extensas e demos, institui por isso mesmo relações políticas, mais ou menos explícitas e codificadas, é verdade, mas que impedem grupos vizinhos e aliados pelo casamento de se considerarem reciprocamente como puros estrangeiros, até mesmo como inimigos ferrenhos. O casamento, como aliança de famílias, e acima destas, de demos, contribui, pois, para integrar as comunidades em um conjunto, por certo muito fluido e difuso, mas que se deve distinguir por um sistema implícito de direitos e deveres mútuos, por uma solidariedade revelada ocasionalmente em circunstâncias graves, pela certeza de cada coletividade de se saber rodeada, por exemplo, em caso de escassez ou de ataque armado, não de estrangeiros hostis, mas de aliados e parentes. Porque o alargamento do horizonte político além da simples comunidade não depende apenas da presença contingente de grupos amigos nas proximidades: ele se reporta à necessidade imperiosa, em que se encontra cada unidade sedentária, de garantir sua segurança pela conclusão de alianças.

Um outro fator favorece a constituição de tais conjuntos multicomunitários. A exogamia local efetua, com efeito, entre os cônjuges possíveis, uma classificação tal que somente os parceiros sexuais acessíveis pertencem a unidades distintas da de Ego. Mas o próprio conjunto desses parceiros se encontra reduzido, já que entre eles apenas uma minoria cai na categoria dos cônjuges preferenciais: com efeito a regra do casamento entre primos cruzados parece ser coextensiva à da exogamia local. De forma que a esposa provável ou desejável de Ego masculino vem a ser não só uma mulher residente em outra maloca que não a dele, mas ainda a filha do irmão de sua mãe, ou da irmã de seu pai. Daí se conclui que o intercâmbio de mulheres não se estabelece entre unidades a princípio “indiferentes” umas às outras, mas entre grupos entrelaçados por estreitos vínculos de parentesco, mesmo que este seja como sem dúvida é provável, mais classificatório do que real. As relações de parentesco já fixadas e a exogamia local somam pois seus efeitos para tirar cada unidade de sua unicidade, elaborando um sistema que transcenda cada um de seus elementos. Pode-se entretanto indagar que intenção profunda induz à prática da exogamia local: se se trata simplesmente de sancionar a proibição do incesto impedindo o casamento entre co-residentes, isto é, entre parentes, o meio pode parecer desproporcional em relação ao fim; pois, como cada maloca abriga em média pelo menos cem pessoas, teoricamente todas parentes entre si, o caráter bilateral da descendência impede que as conexões genealógicas tenham a precisão e a extensão que permitiriam o conhecimento exato dos graus de parentesco e que somente a descendência unilinear lhes confere. Um homem de uma família extensa A poderia portanto desposar uma mulher da mesma maloca porém pertencente a uma família extensa B, sem por isso incidir formalmente a transgressão maior, já que o estabelecimento de um laço de parentesco não-fictício entre o homem A e a mulher B poderia muito bem ser impossível. A função da exogamia local não é, pois, negativa – assegurar a proibição do incesto –, mas positiva – obrigar a contrair casamento fora da comunidade de origem. Ou, em outras palavras, a exogamia local encontra o seu sentido em sua função: ela é o meio da aliança política.

Será possível avaliar o número das comunidades que podem compor uma tal rede de alianças? A ausência quase total de documentos sobre esse ponto parece impedir qualquer tentativa de resposta, mesmo aproximativa. Entretanto, alguns dados permitirão, talvez, alcançar um número verossímil, ou melhor, situar esse número entre um mínimo e um máximo. Se de fato a exogamia local não fosse instituída de forma permanente senão entre duas comunidades, teríamos um verdadeiro sistema de metades exogâmicas complementares. Mas, como esse tipo de organização social, quase universal junto às tribos jê, só foi realizado muito raramente pelas populações da Floresta Tropical, exceção feita por exemplo aos Mundurucu e aos Tucano, é muito provável que os intercâmbios matrimoniais se verifiquem ao menos entre três comunidades. Parece então que esse número pode ser considerado como um mínimo. Se se aceita por outro lado a idéia de que os modelos sociopolíticos – e sem dúvida também ecológicos – específicos das culturas da Floresta Tropical atingiram sua melhor realização sobretudo em certas populações oriundas do grupo tupi, pode-se então legitimamente supor que estes últimos atingiram a extensão política máxima que procuramos. Ora, sabe-se que as aldeias tupinambá ou guarani eram constituídas por quatro a oito grandes casas coletivas. Trata-se aqui de autênticas aldeias, isto é, conjuntos concentrados em um território reduzido, enquanto o resto das populações da área vive em comunidades às vezes muito distantes umas das outras. Pela maior ou menor proximidade das malocas, pode-se verificar o sinal de uma diferença no plano da organização social e política.

Parece assim possível caracterizar o mais importante tipo de organização social dessa área. Em conformidade com a natureza das unidades, tal como é estudada acima, chamaremos essas megaunidades de três a oito comunidades locais de estruturas polidêmicas, das quais os Tupi nos deram a melhor ilustração. Em lugar do quadro tradicional “tachista” por assim dizer, de uma miríade de grupos ao mesmo tempo temerosos e hostis uns aos outros, vemos o lento trabalho de forças unificantes solapar o pseudo-atomismo dessas culturas, agrupando-as em conjuntos de dimensão variável, mas que, de qualquer modo, dissolvem a imagem por demais fácil de sociedades das quais o egocentrismo e a agressividade atestariam o infantilismo.

Até agora, essas culturas têm sido encaradas somente sob o ponto de vista de sua estrutura, isto é, segundo um esquema que não exige qualquer referência a uma possível dimensão diacrônica. Por ocasião do estudo da natureza das comunidades, verificou-se entretanto que, se elas não são linhagens, isto é, organizações formalmente unilineares, e sim demos exogâmicos, muitos fatores podem favorecer a transformação progressiva desses demos bilaterais em linhagens unilineares. Esses fatores são de suas espécies: uns são imanentes à própria estrutura do demo, enquanto os outros agem na esfera das relações políticas interdêmicas. Mas todos contribuem para fragmentar, nas populações primitivas, não decerto uma história propriamente dita, mas antes uma dinâmica, cujo movimento se adapta aos ritmos muito lentos da vida dessas sociedades.

Assim como vimos acima, a co-residência cria entre habitantes de uma mesma maloca um elo privilegiado que os situa como parentes. Por outro lado, como a residência pós-marital está determinada em patri ou matrilocal, traz inevitavelmente um poderoso reforço das relações de afeição e de solidariedade dos parentes em linha patri ou matrilinear. Em caso de residência patrilocal por exemplo, Ego, nascido na mesma casa que seu pai e seu avô paterno, passará ele próprio sua vida nessa casa, cercado por sua parentela patrilinear, isto é, os irmãos de seu avô e seus descendentes homens. O elemento estrutural permanente que fornece o arcabouço do demo, e em torno do qual se organiza a vida coletiva, é constituído por uma linhagem patrilinear e somente por ela, porque a parentela matrilateral de Ego ficará, se não completamente desconhecida, pelo menos muito mais distante. A mãe de Ego masculino provém, com efeito, de uma comunidade que, mesmo que esteja ligada à do pai por relações de parentesco, será entretanto para Ego um grupo praticamente estrangeiro, com que se encontra em circunstâncias ocasionais. O elo entre Ego e sua parentela matrilateral dependerá bastante da distância que separa as casas de seus pais. Se há muitos dias, ou mesmo muitas horas de caminhada entre as duas, o contato com a linhagem materna será apenas periódico. Ora, as malocas estão situa das com mais freqüência a grandes distâncias umas das outras, e será pois em relação ao grupo de parentes patrilineares que Ego sentirá um sentimento de filiação quase exclusiva.

Além do mais, esses demos apresentam também uma determinação importante da linhagem: a continuidade. Porque, contrariamente ao que escrevia Kirchhoff,[16] a comunidade – para ele uma família extensa – não se dissolve com a morte de seu chefe, pela simples razão de que a chefia é quase sempre hereditária, como o revela – curiosamente – o próprio Kirchhoff. A hereditariedade do cargo político é um sinal suficiente da permanência da estrutura social no tempo. Com efeito, o que acontece às vezes quando morre o chefe, no caso dos Witoto, não é a dispersão do grupo, mas o abandono da casa da qual o chefe é “proprietário”, e a construção de uma outra maloca, muito próxima da primeira. A transmissão do cargo de líder de pai a filho, isto é, sua manutenção na linhagem patrilinear que forma o coração da estrutura social, traduz justamente a vontade do grupo de manter sua unidade espaço-temporal. Os Tupinambá levavam a fundo seu respeito pela patrilinearidade, pois um filho de mãe pertencente ao grupo, mas de pai estrangeiro – muitas vezes um prisioneiro de guerra –, era rapidamente devorado, enquanto os filhos de um homem do grupo eram incorporados à linhagem de seu pai. Esses diversos fatores, operando ao nível da organização interna do demo, revelam perfeitamente uma tendência a acentuar uma das duas linhagens de pais e a assegurar-lhe a continuidade: o demo orienta-se para a linhagem, e o motor, se assim se pode dizer, dessa dinâmica é a contradição entre um sistema bilateral de descendência e uma residência unilocal, isto é, entre a legalidade bilateral e a realidade unilinear.

Sabe-se que a unilocalidade da residência não leva necessariamente à unilinearidade da descendência, mesmo se ela é uma condição necessária desta, assim como o demonstrou Murdock, neste ponto em desacordo com Lowie. Só se pode falar de verdadeiras linhagens quando a filiação independe da residência. Os demos patrilocais da Floresta Tropical seriam linhagens se as mulheres continuassem a fazer parte do seu grupo de origem, mesmo depois da partida causada pelo casamento. Mas, precisamente, o afastamento das grandes casas, que dá à partida de uma mulher um caráter quase definitivo, impede que essa tendência à organização em linhagem se confirme, uma vez que, para uma mulher, o casamento é como um desaparecimento. Pode-se pois dizer que, em todos os setores da Floresta Tropical onde as estruturas polidêmicas, em conseqüência da dispersão das malocas, são fluidas, a tendência à linhagem não se pode verificar. O mesmo não acontece onde esse tipo de estrutura é mais nítido, mais sólido, mais cristalizado: as grandes aldeias guarani ou tupinambá. Aí, a contigüidade espacial das casas suprime o movimento das pessoas: o jovem, durante os anos de “serviço” devi dos ao sogro, a jovem, quando o casamento é definitivo, mudam apenas de maloca. Cada indivíduo permanece, pois, sempre sob as vistas da família e em contato diário com sua linhagem de origem. Nada se opõe, pois, nessas populações, à conversão dos demos em linhagens. Além do mais porque outras forças vêm apoiar essa orientação. Pois se os Tupi realizaram com vigor modelos apenas esboçados pelas outras populações da Floresta, isto é, uma integração desenvolvida das unidades sociopolíticas em um conjunto estruturado, é que havia aí correntes centrípetas cuja presença é atestada pela estrutura de aldeia concentrada. Mas, deve-se então perguntar, que acontece às unidades dentro dessa nova organização? Duas possibilidades sociológicas se oferecem aqui: ou a tendência à unificação e à integração se traduz pela dissolução progressiva dessas unidades elementares – ou ao menos por uma diminuição importante de suas funções estruturais – e pelo aparecimento consecutivo de um começo de estratificação social que se pode acentuar mais ou menos rapidamente, ou então as unidades subsistem e se fortalecem.

A primeira possibilidade foi realizada pelas populações do noroeste da América do Sul (Chibcha, Aruaque das Ilhas, por exemplo), unificadas sob a categoria de área cultural circuncaribe.[17] Essas regiões, particularmente a Colômbia e o norte da Venezuela, viram desenvolver-se grande número de pequenos “estados”, feudos muitas vezes limitados a uma cidade ou a um vale. Lá, aristocracias que controlavam os poderes religioso e militar dominavam uma massa de “plebeus” e uma classe numerosa de escravos conquistados na guerra às populações vizinhas. A segunda possibilidade parece ter sido adotada pelos Tupi, já que não havia entre eles estratificação social. Não podemos realmente assimilar os prisioneiros de guerra dos Tupinambá a uma classe social de escravos de cuja força de trabalho se haviam apropriado os senhores-vencedores. Os primeiros cronistas do Brasil, como Thevet,[18] Léry[19] ou Staden,[20] narram que a posse de um ou de muitos prisioneiros de guerra gerava tal prestígio aos guerreiros tupinambá que estes preferiam, em casos de escassez, privar-se eles próprios de comer, do que fazer os seus prisioneiros passarem fome. Estes últimos eram, de resto, rapidamente integrados na comunidade do seu senhor, e este não hesitava em dar sua irmã ou filha em casamento a esse testemunho vivo da sua glória. E a incorporação tornava-se completa quando, ao fim de um tempo às vezes bastante longo, a matança do prisioneiro o transformava em alimento ritual dos seus senhores.

As sociedades tupi não estavam portanto estratificadas; conseqüentemente as clivagens e linhas de força em torno das quais elas se edificavam eram as mesmas que no resto da área: sexo, idade, parentesco etc., e precisamente o fechamento e a contração do modelo geral de organização social multicomunitária, da qual a aldeia constitui a expressão espacial, não operaram como princípio unificador colocando em questão a “personalidade” de cada um dos elementos, aqui dos demos; mas, ao contrário, a própria emergência de tal força centrípeta, visando à cristalização de uma estrutura “flutuante”, determinou o fortalecimento simétrico das tendências centrífugas imanentes à estrutura dos demos. Ou, em outras palavras, a dinâmica aqui descrita é de natureza dialética: pois, à medida que se afirma e se precisa a constituição do sistema, os elementos que o compõem reagem a essa transformação do seu estatuto, acentuando sua particularidade concreta, sua individualidade. De sorte que o aparecimento da estrutura global gera, não a supressão dos demos – o que permitiria outra diferenciação, isto é, uma estratificação social –, mas uma modificação estrutural das unidades. Qual será o sentido dessa transformação? Ele está inteiramente contido nas determinações que lhes são próprias: são essencialmente grupos de parentesco. Que meios terão pois estes últimos para se remodelarem em função de um futuro que os identifique unificando-os? É colocar em primeiro plano a unilinearidade latente que os caracteriza, centrar a lei de vinculação, não mais sobre uma co-residência que deixe de ser primordial, mas sobre a regra de filiação: os demos se transformam então em linhagens e a transformação dos elementos aparece solidária da constituição dos conjuntos. As populações tupi nos oferecem assim a ilustração da passagem de uma estrutura polidêmica a uma estrutura de múltipla linhagem.

Quererá isso dizer que as linhagens só aparecem por reação a uma nova organização de um conjunto de unidades residenciais e em relação com ela? É evidentemente impossível afirmá-lo, já que residência e filiação não são concomitantes. Essa passagem em si mesma é contingente, isto é, articulada à história e não à estrutura: no que concerne aos Tupi, o elemento catalisador daquilo que não era senão tendencial e potencial entre as outras populações da Floresta Tropical foi a inquietude que os levava a construir estruturas sociais mais “compactas”. Processos históricos diferentes poderiam muito bem ocasionar essa passagem. Mas, o que é possível reter é que a transformação de um demo em linhagem leva a desenvolver a essência relacional de cada unidade. Só há linhagens no seio de um sistema “forte” e, reciprocamente, a promoção de um tal sistema leva ou a uma estratificação social que nega o valor estruturador das regras de filiação, ou à confirmação e mesmo à supervalorização dessas regras: a linhagem, poder-se-ia dizer, é de natureza diacrítica. Tudo se passa, pois, como se o movimento centrípeto pelo qual se estende o campo das relações políticas de uma sociedade antes fluida, criando um desequilíbrio interno, determinasse simultaneamente o meio de remediar essa situação pela entrada, ao nível dos elementos, de forças centrífugas que respondem à nova situação e permitem reequilibrar a sociedade. Pois é finalmente à conquista de um equilíbrio constantemente ameaçado que tendem, de forma direta ou indireta, as forças que “trabalham” essas sociedades primitivas.

É certo por sinal que a versão tupi do modelo sociológico da Floresta não deixa subsistirem idênticas a si mesmas as relações internas descritas no plano do demo. De um lado, a emergência da estrutura de linhagem – quer dizer, de uma contração das conexões genealógicas em que se afirma o seu caráter unitário – diminui consideravelmente o valor funcional dos subgrupos componentes da linhagem ou famílias extensas. Eis por que o problema pertinente é, com os Tupi, o das relações interlinhagens. Cada aldeia tupinambá agrupava em média quatro a oito grandes casas, cada uma abrigando uma linhagem, e tendo cada uma o seu líder. Mas a aldeia como tal também era dirigida por um chefe; a comunidade tupinambá eleva a uma escala desconhecida no resto da Floresta a questão das relações políticas: sendo estrutura de muitas linhagens, ela se atribui uma autoridade “centralizada” e conserva ao mesmo tempo as subchefias “locais”. E é certamente a esse dualismo de poder que respondia, no meio desses índios, a instituição de um “conselho dos anciãos”, cuja aprovação era necessária para o exercício da autoridade pelo chefe principal. As populações do grupo tupi-guarani se diferenciam, pois, das outras etnias da mesma área cultural pela maior complexidade de sua problemática política, ligada ao alargamento às vezes muito vasto de seu horizonte. Mas parece justamente que os Tupi não limitavam essa extensão à constituição de comunidades aldeãs de múltiplas linhagens e que, em diversas zonas da Floresta, se desenvolvia uma tendência a construir um modelo da autoridade que ultrapassava muito o âmbito da aldeia em si. Sabe-se que, de maneira geral, as relações intertribais na América do Sul eram muito mais estreitas e respeitadas do que o faria crer a insistência sobre o ânimo belicoso desses povos, e diversos autores, Claude Lévi-Strauss[21] e Alfred Métraux[22] por exemplo, bem mostraram a freqüente intensidade de intercâmbios comerciais entre grupos situados a distâncias às vezes muito consideráveis. Ora, com os Tupi, não se trata apenas de relações comerciais, mas de uma verdadeira expansão territorial e política, com o exercício da autoridade de certos chefes sobre várias aldeias. Lembremos assim a figura de Quoniambec, aquele famoso chefe tamoio, que tão vivamente impressionou Thevet e Staden. “Esse Rei era muito venerado por todos os selvagens, até mesmo pelos que não eram de sua terra, tão bom soldado que fora em seu tempo, e tão sabiamente os conduzira à guerra.”[23] Esses mesmos cronistas nos ensinaram por outro lado que a autoridade dos chefes tupinambá nunca era tão forte como em tempo de guerra, e que então seu poder era quase absoluto, e perfeitamente respeitada a disciplina imposta às suas tropas. Por isso o número dos guerreiros que um chefe era capaz de reunir é o melhor índice da extensão da sua autoridade. Precisamente, os números citados são, às vezes – e guardadas as devidas proporções – enormes: Thevet dá um máximo de 12 mil “tabajaras e margajeaz” lutando uns contra os outros em um só combate. Léry fornece, em circunstância semelhante, um máximo de 10 mil homens e o número de 4 mil para uma escaramuça à qual assistiu. Staden, acompanhando os seus senhores à luta, conta por ocasião de um ataque por mar às posições portuguesas “38 barcos de 18 homens em médio, isto é, perto de 700 homens só para a pequena aldeia de Ubatuba”.[24] Como se deve multiplicar por quatro, aproximadamente, o número de guerreiros para obter o da população total, vê-se que havia entre os Tupinambá verdadeiras federações, agrupando de dez a vinte aldeias. Os Tupi, particularmente os da costa brasileira, revelam pois uma nítida tendência à constituição de sistemas políticos amplos com chefias pode rosas, cuja estrutura deveria ser analisada; de fato, ao estender-se, o campo de aplicação de uma autoridade central suscita conflitos agudos com os pequenos poderes locais; surge então a questão sobre a natureza das relações entre chefia principal e subchefias: por exemplo, entre o “Rei” Quoniambec e os “reizinhos, seus vassalos”.

Os Tupi litorâneos não são, aliás, os únicos que revelam tais tendências. Para lembrar um exemplo bem mais recente, citemos também os Tupi-Kawahib; um de seus grupos, os Takwatip, estendia pouco a pouco, no começo do século [XX], sua hegemonia sobre as tribos vizinhas, sob a direção de seu chefe Abaitara, cujo filho Claude Lévi-Strauss encontrou.[25] Processos análogos foram notados entre os Omagua e os Cocama, populações tupi estabelecidas no curso médio e superior do Amazonas, onde a autoridade de um chefe se exercia não somente sobre a casa grande, mas sobre o conjunto da comunidade inteira: esta podia ser de tamanho considerável, pois uma aldeia omagua compreendia, dizem, sessenta casas de cinqüenta a sessenta pessoas cada uma.[26] Por outro lado, os Guarani, culturalmente tão próximos dos Tupinambá, também tinham chefias bem desenvolvidas.

Entretanto, tomando-se assim a cultura tupi em sua dinâmica política criadora de “realezas”, não se estará correndo o risco de forçar sua originalidade em relação ao conjunto da Floresta Tropical e, por conseguinte, de constituí-la como entidade cultural independente da área em que inicialmente foi situada? Isso seria negligenciar processos idênticos, se bem que de menor envergadura, em populações pertencentes a outros estoques lingüísticos. Convém lembrar por exemplo que os Jivaro também apresentavam esse modelo de organização multicomunitária, já que alianças militares eram feitas entre grupos locais: dessa forma muitas jivaria – as malocas desses índios – se associavam para lutar contra os espanhóis. Por outro lado as tribos caribe do Orinoco utilizavam a exogamia local como meio de estender a hegemonia política sobre várias comunidades. A tendência a constituir conjuntos sociais mais vastos que no resto do continente – característica própria da área da Floresta – se manifesta, pois, de diversas formas. O que se deve guardar é que a força dessa corrente variava com as circunstâncias concretas – ecológicas, demográficas, religiosas – das culturas onde se manifestava. A diferença entre os Tupi e as outras sociedades não é de natureza, mas de grau; isso significa portanto que, assim como realizaram melhor do que as outras, no plano da estrutura social, um modelo de organização que não lhes é exclusivo, da mesma forma a dinâmica imanente ao conjunto das culturas da Floresta encontrou nos Tupi um ritmo e uma aceleração mais rápidos do que em qualquer outro lugar.

Arcaicas, as sociedades ameríndias o foram, mas, se é lícita a expressão, negativamente e segundo os nossos critérios europeus. Devemos por isso qualificar de imóveis culturas cujo futuro não se enquadra em nossos próprios esquemas? Devemos ver nelas sociedades sem história? Para que a questão tenha sentido, devemos formulá-la de modo a possibilitar uma resposta, isto é, sem postular a universalidade do modelo ocidental. A história se conta em múltiplos sentidos e se diversifica em função das diferentes perspectivas em que é situada: “A oposição entre culturas progressivas e culturas inertes parece assim resultar, primeiramente, de uma diferença de focalização”.[27] A tendência ao sistema, realizada em desigualdade de extensão e profundidade segundo as regiões, leva, por suas próprias diferenças, a dar às culturas dessa área uma dimensão “diacrônica”, notada sobretudo junto aos Tupi-Guarani: não são, portanto, sociedades sem história. É ao nível da organização política, muito mais do que no plano da ecologia, que se encontra a mais clara oposição entre culturas marginais e culturas da Floresta. Mas elas não são tampouco sociedades históricas: nesse sentido, a oposição simétrica e inversa com as culturas andinas é igualmente forte. A dinâmica política que confere sua especificidade às sociedades da Floresta iria situá-las, pois, em um plano estrutural – e não em uma etapa cronológica – que se poderia chamar de pré-histórica, fornecendo os Marginais o exemplo de sociedades a-históricas, e os Incas o de uma cultura já histórica. Parece então legítimo supor que a dinâmica própria da Floresta Tropical seja uma condição de possibilidade da história tal como conquistou os Andes. A problemática política da Floresta situa-se, pois, nos dois planos que a limitam: o genético, do lugar de nascimento da instituição; o histórico, de seu destino.

* Inicialmente publicado em L’Homme, III, n. 3, 1963.

1.Uma ausência sem dúvida causará surpresa: a das numerosas tribos pertencentes ao importante estoque lingüístico jê. A questão decerto não é retomar aqui a classificação do HSAI (Handbook of South American Indians), que atribui a essas populações um estatuto de “Marginais”, ao passo que a sua ecologia, que compreende a agricultura, deveria integrá-los na área cultural da Floresta Tropical. Se isso não é tratado nesse trabalho, é precisamente em virtude da complexidade particular de suas organizações sociais em clãs, múltiplos sistemas de metades, associações etc. Os Jê, por esse motivo, merecem um estudo especial. E, aliás, não é um dos menores paradoxos do Handbook o fato de ele associar à ecologia bem desenvolvida da Floresta modelos sociopolíticos muito rudimentares, enquanto os Jê, de tão rica sociologia, estagnariam em um nível claramente pré-agrícola.

2. Rafael Karsten, La Civilisation de l’empire inca (Paris: Payot, 1952).

3. Louis Baudin, L’Empire socialiste des Inka (Paris: Institut d’Ethnologie, 1928).

4. Alfred Métraux, Les Incas (Paris: Seuil, 1961).

5. Cf. Robert Lowie, The Journal of the Royal Anthropological Institute, 1948.

6. Louis Baudin, Une Théocratie socialiste: l’Etat jésuite du Paraguay (Paris: Génin, 1962), p. 14.

7. [O gosto pela guerra e o atomismo das sociedades simples foi em grande parte exagerado.] Cf. George Peter Murdock, Social Structure [1949].

8. HSAI, t. III, p. 780.

9. Cf. HSAI, t. III, Lowie, Introdução.

10. Cf. cap. 4, infra.

11. Cf. Zeitschrift für Ethnologie, vol. LXIII, pp. 85-193.

12. HSAI, t. V, pp. 669-ss.

13. Cf. Social Structure, op. cit.

14. American Anthropologist, v. LVII, n. 3, p. 472.

15. Cf. Robert Murphy & Buell Quain, The Trumai Indians of Central Brazil (Nova York: J.-J. Augustin, 1955).

16. Cf. nota 11.

17. Cf. HSAI, t. IV e V.

18. André Thevet, Le Brésil et les Brésiliens (Paris: PUF, 1953), p. 93.

19. Jean de Léry, Journal de bord… en la terre de Brésil [1557] (Paris: Editions de Paris, 1952).

20. Hans Staden, Véritable histoire et description d’un pays… situé dans le Nouveau Monde nommé Amérique [1557] (Paris: A. Bertrand, 1837).

21. Lévi-Strauss, “Guerre et commerce chez les Indiens de l’Amérique du Sud”; Renaissance, v. I, fasc. 1 e 2.

22. Alfred Métraux, La Civilisation matérielle des tribus Tupi-Guarani (Paris: P. Geuthner, 1928), p. 277.

23. Id. ibid., p. 93.

24. Id. ibid., p. 178, nota 2.

25. Lévi-Strauss, Tristes tropiques (Paris: Plon, 1955), cap. XXXI. [Ed. bras.: Tristes trópicos, trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.]

26. Cf. HSAI, t. III.

27. Lévi-Strauss, Race et histoire (Paris: Unesco, 1952), p. 25. [Ed .bras.: “Raça e história”, in Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.]