Capítulo 5

O ARCO E O CESTO

O arco e o cesto*

Quase sem transição, a noite conquistou a floresta, e a massa das grandes árvores parece estar mais próxima. Com a escuridão instala-se também o silêncio; pássaros e macacos calaram-se e só se escutam as seis notas desesperadas do urutau. E, como por acordo tácito com o recolhimento geral em que se dispõem os seres e as coisas, nenhum barulho surge mais desse espaço furtivamente habitado onde acampa um pequeno grupo de homens. Ali um bando de índios Guayaki acampa. Animado de quando em quando por um sopro de vento, o reflexo avermelhado de cinco ou seis fogos familiares tira da sombra o círculo vago dos abrigos de folha de palmeira; cada um deles, frágil e passageira morada dos nômades, protege o repouso de uma família. As conversas murmuradas que se seguiram à refeição cessaram pouco a pouco; as mulheres, abraçando ainda seus filhos encolhidos, dormem. Poder-se-ia julgar também estarem adormecidos os homens que, sentados junto ao fogo, montam uma guarda muda e rigorosamente imóvel. Entretanto eles não dormem, e seu olhar pensativo, preso às trevas próximas, mostra uma espera sonhadora. Pois os homens se preparam para cantar, e essa noite, como por vezes nessa hora propícia, vão entoar, cada um por si, o canto dos caçadores: sua meditação prepara o acordo sutil de uma alma e de um instante com as palavras que vão dizê-lo. Uma voz logo se eleva, quase imperceptível a princípio, brotando do interior, murmúrio prudente que nada traz ainda da busca paciente de um tom e de um discurso exatos. Mas ela sobe pouco a pouco, o cantor torna-se seguro de si e, subitamente, seu canto jorra, esplendoroso, livre e tenso. Estimulada, uma segunda voz se une à primeira, depois uma outra; elas trazem palavras precoces, como respostas a questões às quais elas sempre se antecipam. Agora todos os homens cantam. Estão ainda imóveis, o olhar um pouco mais perdido; cantam todos juntos, mas cada um canta seu próprio canto. Eles são senhores da noite e cada um pretende ser senhor de si.

Mas precipitadas, ardentes e graves, as palavras dos caçadores aché[1] se cruzam, à sua revelia, em um diálogo que elas queriam esquecer.

Uma oposição muito clara organiza e domina a vida cotidiana dos Guayaki: aquela entre os homens e as mulheres cujas atividades respectivas, marcadas fortemente pela divisão sexual das tarefas, constituem dois campos nitidamente separados e, como em todos os lugares, complementares. Mas, diferentemente da maioria das outras sociedades indígenas, os Guayaki não conhecem forma de trabalho em que participem ao mesmo tempo os homens e as mulheres. A agricultura, por exemplo, alterna tanto atividades masculinas como femininas, já que, se em geral as mulheres se dedicam a semear, a limpar os campos de cultivo e a colher os legumes e cereais, são os homens que se encarregam de preparar o lugar das plantações derrubando as árvores e queimando a vegetação seca. Mas se os papéis são bem distintos e nunca se misturam, nem por isso deixam de assegurar em comum o início e o sucesso de uma operação tão importante como a agricultura. Ora, nada disso ocorre com os Guayaki. Nômades que tudo ignoram da arte de plantar, sua economia apóia-se exclusivamente na exploração dos recursos naturais que a floresta oferece. Estes se distribuem sob duas rubricas principais: produtos da caça e produtos da coleta, esta última compreendendo sobretudo o mel, as larvas e o cerne da palmeira pindoba. Poderíamos pensar que a procura dessas duas classes de alimento se conformaria ao modelo muito difundido na América do Sul segundo o qual os homens caçam, o que é natural, deixando para as mulheres o cuidado de coletar. Na realidade, as coisas se passam de maneira muito diferente, uma vez que, entre os Guayaki, os homens caçam e também coletam. Não que, mais atentos que outros ao lazer de suas esposas, quisessem dispensá-las das tarefas que normalmente lhes caberiam; mas, de fato, os produtos da coleta são obtidos à custa de operações penosas que as mulheres dificilmente realizariam: localização das colméias, extração do mel, derrubada das árvores etc. Trata-se então de um tipo de coleta que concerne bem mais às atividades masculinas. Ou, em outros termos, a coleta conhecida alhures na América e que consiste na obtenção de bagas, frutas, raízes, insetos etc., é quase inexistente entre os Guayaki, pois na floresta por eles ocupada não são abundantes os recursos desse gênero. Então, se as mulheres praticamente não coletam, é porque nela quase nada existe para ser coletado.

Conseqüentemente, como as possibilidades econômicas dos Guayaki estão culturalmente reduzidas pela ausência da agricultura e naturalmente reduzidas pela relativa raridade dos alimentos vegetais, a tarefa cada dia recomeçada de procurar alimentação para o grupo recai essencialmente sobre os homens. Isso não significa que as mulheres não participam na vida material da comunidade. Além de lhes caber a função, decisiva para os nômades, do transporte dos bens familiares, as esposas dos caçadores fabricam cestos, potes, cordas para os arcos; elas cozinham, cuidam das crianças etc. Longe, então, de serem ociosas, elas dedicam inteiramente o tempo de que dispõem à execução de todos esses trabalhos necessários. Mas não deixa de ser verdade que na questão fundamental da “produção” de alimentos, o papel de fato menor desempenhado pelas mulheres deixa aos homens o absorvente e prestigioso monopólio. Ou, mais precisamente, a diferença entre homens e mulheres no plano da vida econômica surge como a oposição de um grupo de produtores e de um grupo de consumidores.

O pensamento guayaki, como veremos, exprime claramente a natureza dessa oposição que, por estar situada na própria raiz da vida social da tribo, comanda a economia de sua existência cotidiana e confere sentido a todo um conjunto de atitudes na qual se liga a trama das relações sociais. O espaço dos caçadores nômades não se pode repartir segundo as mesmas linhas que o dos agricultores se dentários. Dividido para estes em espaço da cultura – constituído pela aldeia e pelos campos de cultivo – e em espaço da natureza – ocupado pela floresta circundante –, ele se estrutura em círculos concêntricos. Para os Guayaki, ao contrário, o espaço é constantemente homogêneo, reduzido à pura extensão onde se anula, ao que parece, a diferença entre natureza e cultura. Mas, na realidade, a oposição já salientada no plano da vida material fornece igualmente o princípio de uma dicotomia do espaço que por ser mais disfarçada do que em sociedades de outro nível cultural, nem por isso é menos pertinente. Existe entre os Guayaki um espaço masculino e um espaço feminino, respectivamente definidos pela floresta onde os homens caçam e pelo acampamento onde reinam as mulheres. Decerto as paradas são muito provisórias: elas raramente duram mais de três dias. Mas são o lugar de repouso onde se consome o alimento preparado pelas mulheres, ao passo que a floresta é o lugar do movimento especialmente destinado às incursões dos homens em busca da caça. Não poderíamos, evidentemente, tirar desse fato a conclusão de que as mulheres são menos nômades que seus esposos. Mas, por causa do tipo de economia em que está apoiada a existência da tribo, os verdadeiros senhores da floresta são os caçadores: eles efetivamente a cercam, pois são obrigados a explorá-la com minúcia para extrair sistematicamente todos os seus recursos. Espaço do perigo, do risco, da aventura sempre renovada para os homens, para as mulheres, a floresta é, diversamente, espaço percorrido entre duas etapas, travessia monótona e fatigante, simples extensão neutra. No pólo oposto, o acampamento oferece ao caçador a tranqüilidade do repouso e a ocasião de fazer trabalhos rotineiros, enquanto é para as mulheres o lugar onde se realizam suas atividades específicas e se desenrola uma vida familiar que elas controlam amplamente. A floresta e o acampa mento encontram-se assim dotados de signos contrários conforme se trate de homens ou de mulheres. O espaço, poder-se-ia dizer, da “banalidade cotidiana” é a floresta para as mulheres, o acampamento para os homens: para estes, a existência só se torna autêntica quando realizada como caçadores, quer dizer, na floresta, e para as mulheres quando, deixando de ser meios de transporte, elas podem viver no acampamento como esposas e como mães.

Podemos então medir o valor e o alcance da oposição socioeconômica entre homens e mulheres porque ela estrutura o tempo e o espaço dos Guayaki. Ora, eles não deixam no impensado o vivido dessa práxis: têm uma consciência clara e o desequilíbrio das relações econômicas entre os caçadores e suas esposas se exprime, no pensamento dos índios, como a oposição entre o arco e o cesto. Cada um desses dois instrumentos é, com efeito, o meio, o signo e o resumo de dois “estilos” de existência tanto opostos como cuidadosamente separados. Quase não é necessário sublinhar que o arco, arma única dos caça dores, é um instrumento exclusivamente masculino e que o cesto, coisa das mulheres, só é utilizado por elas: os homens caçam, as mulheres carregam. A pedagogia dos Guayaki se estabelece principalmente nessa grande divisão de papéis. Logo aos quatro ou cinco anos, o menino recebe do pai um pequeno arco adaptado ao seu tamanho; a partir de então ele começará a se exercitar na arte de lançar com perfeição uma flecha. Alguns anos mais tarde, oferecem-lhe um arco muito maior, flechas já eficazes, e os pássaros que ele traz para sua mãe são a prova de que ele é um rapaz sério e a promessa de que será um bom caçador. Passam-se ainda alguns anos e vem a época da iniciação; o lábio inferior do jovem de cerca de quinze anos é perfurado; ele tem o direito de usar o ornamento labial, o beta, e é então considerado um verdadeiro caçador, um kybuchuété. Isso significa que um pouco mais tarde ele poderá ter uma mulher e deverá conseqüentemente prover as necessidades do novo lar. Por isso, o seu primeiro cuidado, logo que se integra na comunidade dos homens é fabricar para si um arco; de agora em diante membro “produtor” do bando, ele caçará com uma arma feita por suas próprias mãos e apenas a morte ou a velhice o separarão de seu arco. Complementar e paralelo é o destino da mulher. Menina de nove ou dez anos, recebe de sua mãe uma miniatura de cesto, cuja confecção ela acompanha atentamente. Ele nada transporta, certamente; mas o gesto gratuito de sua marcha – cabeça baixa e pescoço estendido nessa antecipação do seu esforço futuro – a prepara para seu futuro próximo. Pois o aparecimento, por volta dos doze ou treze anos, da primeira menstruação e o ritual que sanciona a chegada da sua feminilidade fazem da jovem virgem uma daré, uma mulher que será logo esposa de um caçador. Primeira tarefa do seu novo estado e marca da sua condição definitiva, ela fabrica então o seu próprio cesto. E cada um dos dois, o jovem e a jovem, tanto senhores como prisioneiros, um do seu cesto, o outro do seu arco, ascendem dessa forma à idade adulta. Enfim, quando morre um caçador, seu arco e suas flechas são ritualmente queimados, como o é também o último cesto de uma mulher: pois, como símbolos das pessoas, não pode riam sobreviver a elas.

Os Guayaki apreendem essa grande oposição, segundo a qual funciona sua sociedade, por meio de um sistema de proibições recíprocas: uma proíbe as mulheres de tocarem o arco dos caçadores; outra impede os homens de manipularem o cesto. De um modo geral, os utensílios e instrumentos são sexualmente neutros, se se pode dizer: o homem e a mulher podem utilizá-los indiferentemente; só o arco e o cesto escapam a essa neutralidade. Esse tabu sobre o contato físico com as insígnias mais evidentes do sexo oposto permite evitar assim toda transgressão da ordem sócio-sexual que regulamenta a vida do grupo. Ele é escrupulosamente respeitado e nunca se assiste à estranha conjunção de uma mulher e um arco nem àquela, mais que ridícula, de um caçador e um cesto. Os sentimentos que cada sexo experimenta com relação ao objeto privilegiado do outro são muito diferentes: um caçador não suportaria a vergonha de transportar um cesto, ao passo que sua esposa temeria tocar seu arco. É que o contato da mulher com o arco é muito mais grave que o do homem com o cesto. Se uma mulher pensasse em pegar um arco, ela atrairia, certamente, sobre seu proprietário o pane, quer dizer, o azar na caça, o que seria desastroso para a economia dos Guayaki. Quanto ao caçador, o que ele vê e recusa no cesto é precisamente a possível ameaça do que ele teme acima de tudo, o pane. Pois, quando um homem é vítima dessa verdadeira maldição, sendo incapaz de preencher sua função de caçador, perde por isso mesmo a sua própria natureza e a sua substância lhe escapa: obrigado a abandonar um arco doravante inútil, não lhe resta senão renunciar à sua masculinidade e, trágico e resignado, encarregar-se de um cesto. A dura lei dos Guayaki não lhe deixa alternativa. Os homens só existem como caçadores, e eles mantêm a certeza de seu ser preservando o seu arco do contato da mulher. Inversamente, se um indivíduo não consegue mais se realizar como caçador, ele deixa ao mesmo tempo de ser um homem: passando do arco para o cesto, metaforicamente ele se torna uma mulher. Com efeito, a conjunção do homem e do arco não se pode romper sem transformar-se no seu inverso e complementar: aquela da mulher e do cesto.

Ora, a lógica desse sistema fechado, constituído de quatro termos agrupados em dois pares opostos, ficou provada: havia entre os Guayaki dois homens que carregavam cestos: um, Chachubutawachugi, era pane. Não possuía arco e a única caça à qual podia entregar-se de vez em quando era a captura a mão de tatus e quatis: tipo de caça que, embora correntemente praticada por todos os Guayaki, está bem longe de apresentar a seus olhos a mesma dignidade que a caça com arco, o jyvondy. Por outro lado, Chachubutawachugi era viúvo; e, como era pane, nenhuma mulher queria saber dele, mesmo que a título de marido secundário. Ele tampouco procurava integrar-se à família de um de seus parentes: estes teriam julgado indesejável a presença permanente de um homem que agravasse sua incompetência técnica com um excelente apetite. Sem esposa porque sem arco, só lhe restava aceitar sua triste sorte. Nunca acompanhava os outros homens em suas expedições de caça, mas partia, só ou em companhia das mulheres, em busca de larvas, mel ou dos frutos que ele havia antes localizado. E, para poder transportar o produto de sua coleta, munia-se de um cesto que uma mulher lhe havia dado de presente. Como o azar na caça lhe obstruía o acesso às mulheres, ele perdia, ao menos parcialmente, sua qualidade de homem e se achava assim lançado ao campo simbólico do cesto.

O segundo caso é um pouco diferente. Krembegi era na verdade um sodomita. Ele vivia como as mulheres e, à semelhança delas, mantinha em geral os cabelos nitidamente mais longos que os outros homens, e só executava trabalhos femininos: ele sabia “tecer” e fabricava, com os dentes de animais que os caçadores lhe ofereciam, colares que demonstravam um gosto e disposições artísticos muito melhor expressos do que nas obras das mulheres. Enfim, ele era evidentemente proprietário de um cesto. Em suma, Krembegi atestava assim no seio da cultura guayaki a existência inesperada de um refinamento habitualmente reservado a sociedades menos rústicas. Esse pederasta incompreensível vivia como uma mulher e havia adotado as atitudes e comportamentos próprios desse sexo. Ele recusava por exemplo tão seguramente o contato de um arco como um caçador o do cesto; ele considerava que seu lugar natural era o mundo das mulheres. Krembegi era homossexual porque era pane. Talvez também seu azar na caça proviesse de ser ele, anteriormente, um invertido inconsciente. Em todo o caso, as confidências de seus companheiros revelavam que a sua homossexualidade se tornara oficial, quer dizer, socialmente reconhecida, quando ficara evidente a sua incapacidade em se servir de um arco: para os próprios Guayaki ele era um kyrypy-meno (ânus-fazer amor) porque era pane.

Os Aché mantinham aliás uma atitude muito diferente com relação a cada um dos dois carregadores de cesto que acabamos de evocar. O primeiro, Chachubutawachugi, era objeto de caçoada geral, se bem que desprovida de verdadeira maldade: os homens o des prezavam bastante nitidamente, as mulheres riam dele à socapa, e as crianças tinham por ele um respeito muito menor do que pelos outros adultos. Krembegi ao contrário não despertava nenhuma atenção especial; consideravam-se evidentes e adquiridas a sua incapacidade como caçador e a sua homossexualidade. De tempos em tempos, certos caçadores faziam dele seu parceiro sexual, manifestando nesses jogos eróticos mais libertinagem – ao que parece – do que perversão. Mas não ocorreu nunca por parte deles qualquer sentimento de des prezo para com ele. Inversamente e se conformando nesse aspecto à imagem que deles fazia sua própria sociedade, esses dois Guayaki se mostravam desigualmente adaptados ao seu respectivo estatuto. Krem begi estava tão à vontade, tranqüilo e sereno em seu papel de homem tornado mulher, quanto Chachubutawachugi parecia in quie to, nervoso e freqüentemente descontente. Como se explica essa diferença introduzida pelos Aché no tratamento reservado a dois indivíduos que, ao menos no plano formal, eram negativamente idênticos? É que, ocupando ambos uma mesma posição em relação aos outros homens, uma vez que os dois eram pane, seu estatuto positivo deixaria de ser equivalente, pois um deles, Chachubutawachugi, embora obrigado a renunciar parcialmente às determinações masculinas, permanecera um homem, enquanto o outro, Krembegi, assumira até as últimas conseqüências sua condição de homem não-caçador, “tornando-se” uma mulher. Ou, em outros termos, Krembegi havia encontrado, por meio de sua homossexualidade, o topos ao qual o destinava logicamente sua incapacidade de ocupar o espaço dos homens; o outro, em compensação, recusando o movimento dessa mesma lógica, estava eliminado do círculo dos homens sem, entretanto, com isso integrar-se ao das mulheres. O que significa dizer que, literalmente, ele não estava em lugar algum, e que sua situação era muito mais incômoda que a de Krembegi. Este último ocupava aos olhos dos Aché um lugar definido, embora paradoxal; e desprovida, em certo sentido, de toda ambigüidade, sua posição no grupo resultava normal, mesmo que essa nova norma fosse a das mulheres. Chachubutawachugi, ao contrário, constituía por si mesmo uma espécie de escândalo lógico; não se situando em nenhum lugar nitidamente identificável, ele escapava do sistema e introduzia nele um fator de desordem: o anormal, sob certo ponto de vista, não era o outro, mas ele. Daí sem dúvida a agressividade secreta dos Guayaki com relação a ele, que se manifestava por vezes nas caçoadas. Daí também provavelmente as dificuldades psicológicas que ele experimentava e um sentimento agudo de abandono: tão difícil é manter a conjunção de um homem e de um cesto. Chachubutawachugi queria pateticamente permanecer um homem sem ser um caçador: ele se expunha assim ao ridículo e, portanto, às caçoadas, pois era o ponto de contato entre duas regiões normalmente separadas.

Pode-se supor que esses dois homens mantivessem na esfera de seu cesto a diferença das relações que tinham com sua masculinidade. De fato, Krembegi carregava seu cesto como as mulheres, isto é, com a tira do suporte sobre a testa. Quanto a Chachubutawachugi, colocava a tira sobre o peito e nunca sobre a testa. Era claramente uma maneira inconfortável, e muito mais fatigante do que a outra, de transportar o cesto; mas era também para ele o único meio de mostrar que, mesmo sem arco, continuava sendo um homem.

Central por sua posição e potente em seus efeitos, a grande oposição dos homens e das mulheres impõe então sua marca a todos os aspectos da vida dos Guayaki. Também é ela que funda a diferença entre o canto dos homens e o das mulheres. O prerä masculino e o chengaruvara feminino se opõem totalmente por seu estilo e por seu conteúdo; eles exprimem dois modos de existência, duas presenças no mundo, dois sistemas de valores bem diferentes uns dos outros. Dificilmente aliás pode-se falar de canto a propósito das mulheres; trata-se em realidade de uma “saudação chorosa” generalizada; mesmo quando não saúdam ritualmente um estrangeiro ou um parente há muito tempo ausente, as mulheres “cantam” chorando. Num tom queixoso, mas com uma voz forte, agachadas e com o rosto escondido nas mãos, elas pontuam cada frase de sua melopéia com soluços estridentes. Freqüentemente as mulheres cantam todas juntas e o alarido de seus gemidos conjugados exerce sobre o ouvinte desprevenido uma impressão de mal-estar. Ficamos tanto mais surpresos ao ver, depois de tudo terminado, o rosto tranqüilo das chorosas e olhos perfeitamente secos. Convém por outro lado frisar que o canto das mulheres intervém sempre em circunstâncias rituais: seja durante as principais cerimônias da sociedade guayaki, seja no decorrer das múltiplas ocasiões propiciadas pela vida cotidiana. Por exemplo, quando um caçador traz para o acampamento algum animal, uma mulher o “saúda” chorando, pois ele evoca um determinado parente desaparecido; ou, ainda, quando uma criança se fere brincando, sua mãe logo entoa um chengaruvara de modo exatamente semelhante a todos os outros. O canto das mulheres, diferentemente do que se poderia esperar, jamais é alegre. Os temas são sempre a morte, a doença, a violência dos brancos; as mulheres assumem assim na tristeza de seu canto toda a infelicidade e toda a angústia dos Aché.

O contraste que ele forma com o canto dos homens é sensível. Parece haver entre os Guayaki como que uma divisão sexual do trabalho lingüístico segundo a qual todos os aspectos negativos da existência são assumidos pelas mulheres, ao passo que os homens se dedicam sobretudo a celebrar se não os seus prazeres, pelo menos os valores que a tornam suportável. Enquanto nos seus próprios gestos a mulher se esconde e parece humilhar-se para cantar ou antes para chorar, o caçador, ao contrário, cabeça erguida e corpo ereto, se exalta no seu canto. A voz é poderosa, quase brutal, simulando às vezes irritação. Na extrema virilidade que o caçador investe em seu canto se afirmam uma total certeza de si, e um acordo consigo mesmo que nada pode desmentir. A linguagem do canto masculino é aliás extremamente deformada. À medida em que sua improvisação se torna mais fácil e mais rica e em que as palavras jorram por si mesmas, o cantor lhes impõe uma transformação tal que, logo, se acreditaria escutar uma outra língua: para um não-Aché, esses cantos são rigorosamente incompreensíveis. Quanto à sua temática, ela consiste essencialmente numa louvação enfática que o cantor endereça a si mesmo. O conteúdo do discurso é com efeito estritamente pessoal e tudo se diz na primeira pessoa. O homem fala quase que exclusivamente sobre suas aventuras de caçador, sobre os animais que encontrou, as feridas que recebeu, sua habilidade em manejar a flecha. Leitmotiv indefinidamente repetido, ouve-se proclamar de modo quase obsessivo: cho rö bretete, cho rö jyvondy, cho rö yma wachu, yma chija: “Eu sou um grande caçador, eu costumo matar com minhas flechas, eu sou uma natureza poderosa, uma natureza irritada e agressiva!”. E freqüentemente, como para marcar melhor a que ponto sua glória é indiscutível, ele pontua a frase prolongando-a com um vigoroso Cho, cho, cho: “Eu, eu, eu”.[2]

A diferença dos cantos traduz admiravelmente a oposição dos sexos. O canto das mulheres é uma lamentação mais freqüentemente coral, ouvida apenas durante o dia; o dos homens ocorre quase sempre durante a noite, e, se suas vozes por vezes simultâneas podem dar a impressão de um coro, é uma falsa aparência, já que cada caçador é de fato um solista. Além disso, o chengaruvara feminino parece consistir em fórmulas mecanicamente repetidas, adaptadas às diversas circunstâncias rituais. Por oposição, o prerä dos caçadores só de pende do seu humor e só se organiza em função da sua individualidade; é uma pura improvisação pessoal que autoriza, por outro lado, a procura de efeitos artísticos no jogo da voz. Essa determinação coletiva do canto das mulheres, individual do canto dos homens, nos remete assim à oposição da qual partimos: único elemento realmente “produtivo” da sociedade guayaki, o caçador tem no plano da linguagem uma liberdade de criação que a situação de “grupo consumidor” proíbe às mulheres.

Ora, essa liberdade que os homens vivem e dizem enquanto caçadores não se refere somente à natureza da relação que como grupo os liga às mulheres e delas os separa. Pois, através do canto dos homens, se descobre, secreta, uma outra oposição, não menos potente que a primeira mas inconsciente: aquela dos caçadores entre eles. E para melhor escutar seu canto e compreender o que realmente se diz, nos é necessário voltar ainda à etnologia dos Guayaki e às dimensões fundamentais da sua cultura.

Existe para o caçador aché um tabu alimentar que formalmente o proíbe de consumir a carne de suas próprias presas: bai jyvombre já uemere: “Os animais que matamos não devem ser comidos por nós mesmos”. De modo que, quando um homem chega ao acampamento, divide o produto de sua caça entre sua família (mulher e filhos) e os outros membros do bando; naturalmente, ele não provará a carne preparada por sua esposa. Ora, como vimos, a caça ocupa o lugar mais importante na alimentação guayaki. Disso resulta que cada homem passa sua vida caçando para os outros e recebendo deles sua própria alimentação. Essa proibição é estritamente respeitada mesmo pelos rapazes não-iniciados, quando matam pássaros. Uma de suas conseqüências mais importantes é que ela impede ipso facto a dispersão dos índios em famílias elementares: o homem morreria de fome, a menos que renunciasse ao tabu. É preciso portanto se deslocar em grupo. Os Guayaki, para explicar essa atitude, afirmam que comer os animais abatidos por eles próprios é a forma mais segura de atrair o pane. Esse temor maior dos caçadores basta para impor o respeito da proibição que ela funda: se se deseja continuar a matar animais, é necessário não comê-los. A teoria indígena apóia-se simplesmente na idéia de que a conjunção entre o caçador e os animais mortos, no plano do consumo, implicaria uma disjunção entre o caçador e os animais vivos, no plano da “produção”. Ela tem portanto um alcance explícito sobretudo negativo, uma vez que se resume na interdição dessa conjunção.

Na realidade, essa proibição alimentar possui também um valor positivo, já que opera como um princípio estruturante que funda a sociedade guayaki como tal. Estabelecendo uma relação negativa entre cada caçador e o produto de sua caça, ela coloca todos os homens na mesma posição, uns com relação aos outros, e a reciprocidade do dom da alimentação se mostra a partir daí não apenas possível, mas necessária: todo caçador é ao mesmo tempo doador e recebedor de carne. O tabu sobre a caça aparece então como o ato fundador da troca de alimentos entre os Guayaki, isto é, como um fundamento da sua própria sociedade. Outras tribos conhecem sem dúvida esse mesmo tabu. Mas ele se reveste, entre os Aché, de uma importância particularmente grande pelo fato de que remete justamente à sua fonte principal de alimentação. Obrigando o indivíduo a se separar de sua caça, ele o obriga a confiar nos outros, permitindo assim que o laço social se ligue de maneira definitiva; a interdependência dos caçadores garante a solidez e a permanência desse laço e a sociedade ganha em força o que os indivíduos perdem em autonomia. A disjunção do caçador e de sua caça funda a conjunção dos caçadores entre si, quer dizer, o contrato que rege a sociedade guayaki. E mais, a disjunção no plano do consumo entre caçadores e animais mortos assegura, protegendo aqueles do pane, a repetição futura da conjunção entre caçadores e animais vivos, ou seja, o sucesso da caça e portanto a sobrevivência da sociedade.

Rejeitando do lado da Natureza o contato direto entre o caçador e sua própria caça, o tabu alimentar se situa no coração mesmo da Cultura: entre o caçador e seu alimento, ele impõe a mediação dos outros caçadores. Vemos assim a troca da caça, que circunscreve em grande parte o plano da vida econômica entre os Guayaki, transformar, por seu caráter obrigatório, cada caçador individual em uma relação. Entre o caçador e seu “produto” abre-se o espaço perigoso da proibição e da transgressão; o medo do pane funda a troca, privando o caçador de todo direito sobre sua caça: esse direi to só se exerce sobre a dos outros. Ora, é impressionante constatar que essa mesma estrutura relacional, pela qual se definem rigorosamente os homens no plano da circulação dos bens, se repete no plano das instituições matrimoniais.

Desde o começo do século XVII, os primeiros missionários jesuítas tentaram em vão entrar em contato com os Guayaki. Puderam entretanto recolher numerosas informações sobre essa misteriosa tribo e aprenderam, muito surpresos, que ao contrário do que se passava entre os outros selvagens existia entre os Guayaki um excesso de homens em relação ao número de mulheres. Eles não estavam enganados, pois, quase quatrocentos anos depois, pudemos observar o mesmo desequilíbrio do sex ratio: em um dos dois grupos meridionais, por exemplo, existia exatamente uma mulher para dois homens. Não é necessário estudar aqui as causas dessa anomalia,[3] mas é importante examinar suas conseqüências. Qualquer que seja o tipo de casamento preferido por uma sociedade, há quase sempre um número mais ou menos equivalente de esposas e de maridos potenciais. A sociedade guayaki podia escolher entre várias soluções para igualar esses dois números. Uma vez que era impossível a solução-suicida, que consistia em renunciar à proibição do incesto, ela poderia inicialmente admitir o assassinato dos recém-nascidos de sexo masculino. Mas toda criança macho é um futuro caçador, isto é, um membro essencial da comunidade: teria sido então contraditório desembaraçar-se dela. Podia-se também aceitar a existência de um número relativamente importante de celibatários; mas essa escolha era ainda mais arriscada que a precedente, pois, em sociedades tão reduzidas demograficamente, não existe nada mais perigoso para o equilíbrio do grupo que um celibatário. Ao invés de diminuir artificialmente o número de esposos possíveis, não restava senão aumentar, para cada mulher, o número de maridos reais, isto é, instituir um sistema de casamento poliândrico. E de fato todo excedente de homens é absorvido pelas mulheres sob a forma de maridos secundários, de jepetyva, que ocuparão ao lado da esposa comum um lugar quase tão invejável como o do imete ou marido principal.

A sociedade guayaki soube portanto se preservar de um perigo mortal, adaptando a família conjugal a essa demografia completamente desequilibrada. O que resulta disso, do ponto de vista dos homens? Praticamente, nenhum deles pode conjugar, se se pode dizer, sua mulher no singular, uma vez que não é o único marido e que a divide com um e às vezes até dois outros homens. Poderíamos pensar que, por ser a norma da cultura na e pela qual eles se determinam, os homens não são afetados por essa situação e não reagem, diante dela de maneira especialmente forte. Na realidade, a relação entre a cultura e os indivíduos que nela vivem não é mecânica, e os maridos guayaki, mesmo aceitando a única solução possível ao problema que lhes foi apresentado, não ficam conformados diante dele. Os lares poliândricos têm sem dúvida uma existência tranqüila e os três termos do triângulo conjugal vivem em bom entendimento. Isso não impede que, quase sempre, os homens tenham em segredo – pois entre eles nunca falam sobre isso – sentimentos de irritação, por vezes de agressividade com relação ao co-proprietário de sua esposa. Durante nossa estada entre os Guayaki, uma mulher casada teve um caso amoroso com um jovem solteiro. Furioso, o marido inicialmente bateu no rival; depois, diante da insistência e da chantagem de sua mulher, acabou concordando em legalizar a situação, deixando o amante clandestino se tornar o marido secundário oficial de sua esposa. Aliás, ele não tinha escolha; se recusasse esse arranjo, sua mulher talvez o tivesse abandonado, condenando-o assim ao celibato, pois não existia na tribo nenhuma outra mulher disponível. Por outro lado, a pressão do grupo, cioso de eliminar todo fator de desordem, cedo ou tarde o teria obrigado a se conformar a uma instituição precisamente destinada a resolver esse tipo de problema. Ele resignou-se então a dividir sua mulher com outro, embora a contragosto. Mais ou menos na mesma época morreu o esposo secundário de uma outra mulher. Suas relações com o marido principal tinham sempre sido boas: se não eram marcadas por uma extrema cordialidade, eram pelo menos extremamente polidas. Mas o imete sobrevivente não demonstrou, no entanto, uma tristeza excessiva ao ver desaparecer o japetyva. Ele não dissimulou sua satisfação: “Eu estou contente”, diz ele “agora sou o único marido de minha mulher”.

Os exemplos poderiam multiplicar-se. Os dois casos que acabamos de evocar bastam entretanto para mostrar que, muito embora os homens guayaki aceitem a poliandria, estão longe de se sentir à vontade. Existe uma espécie de “defasagem” entre essa instituição matrimonial que protege – eficazmente – a integridade do grupo[4] e os indivíduos que ela envolve. Os homens aprovam a poliandria porque ela é necessária em virtude do déficit de mulheres, mas suportam-na como uma obrigação muito desagradável. Numerosos maridos guayaki têm de dividir sua mulher com um outro homem, e quanto àqueles que exercem sozinhos seus direitos conjugais, arriscam-se a ver a qualquer momento esse monopólio raro e frágil suprimido pela concorrência de um celibatário ou de um viúvo. As esposas guayaki têm por conseguinte um papel mediador entre os doadores e os tomadores de mulheres, e também entre os próprios tomadores. A troca pela qual um homem dá a outro sua filha ou irmã não faz com que termine aí – com licença da expressão – a circulação dessa mulher: o recebedor dessa “mensagem” deverá num prazo mais ou menos longo dividir a “leitura” com um outro homem. A troca de mulheres é em si mesma criadora de aliança entre famílias; mas a poliandria, sob sua forma guayaki, acaba sobrepondo-se a ela para preencher uma função bem determinada: ela permite preservar como cultura a vida social a que chega o grupo me diante a troca de mulheres. No limite, o casamento entre os Guayaki só pode ser poliândrico, uma vez que apenas sob essa forma ele adquire o valor e o alcance de uma instituição que cria e mantém a cada instante a sociedade como tal. Se os Guayaki rejeitassem a poliandria, sua sociedade não sobreviveria; não podendo, por causa de sua fraqueza numérica, obter mulheres atacando outras tribos, eles se veriam colocados diante da perspectiva de uma guerra civil entre solteiros e possuidores de mulheres, isto é, diante de um suicídio coletivo da tribo. A poliandria elimina assim a oposição suscitada entre os desejos dos homens pela raridade dos bens que são as mulheres.

É então uma espécie de razão de Estado que faz com que os maridos guayaki aceitem a poliandria. Cada um deles renuncia ao uso exclusivo de sua esposa em proveito de um solteiro qualquer da tribo, a fim de que esta possa subsistir como unidade social. Alienando a metade de seus direitos matrimoniais, os maridos aché tornam possíveis a vida em comum e a sobrevivência da sociedade. Mas isso não impede, como as narrativas acima evocadas o mostram, sentimentos latentes de frustração e descontentamento: aceita-se no final das contas partilhar sua mulher com outro homem porque não há outro jeito, mas com um evidente mau humor. Todo homem guayaki é, potencialmente, um tomador e um doador de esposa, pois, muito antes de compensar a mulher que ele terá recebido pela filha que ela lhe dará, ele deverá oferecer a um outro homem sua própria esposa sem que se estabeleça uma reciprocidade impossível: antes de dar a filha, é preciso dar também a mãe. Isso significa que, entre os Guayaki, um homem só é um marido se aceitar sê-lo pela metade, e a superioridade do marido principal sobre o marido secundário em nada modifica o fato de que o primeiro deve levar em conta os direitos do segundo. Não é entre cunhados que as relações pessoais são as mais marcadas, mas entre os maridos de uma mesma mulher, e, o mais das vezes, como vimos, de maneira negativa.

Pode-se descobrir agora uma analogia de estrutura entre a relação do caçador com sua caça e a do marido com sua esposa? Constata-se inicialmente que, em relação ao homem como caçador e como esposo, os animais e as mulheres ocupam um lugar equivalente. Em um caso, o homem se vê radicalmente separado do produto de sua caça, uma vez que não deve consumi-la; no outro, ele não é nunca completamente marido, mas, na melhor das hipóteses, um semimarido: entre um homem e sua mulher vem interpor-se o terceiro termo: o marido secundário. Assim como um homem, para se alimentar, depende da caça realizada pelos outros, assim um marido, para “consumir” sua esposa,[5] depende do outro esposo, cujos desejos, sob pena de tornar a coexistência impossível, deve também respeitar. O sistema poliândrico limita, pois, duplamente os direitos matrimoniais de cada marido: ao nível dos homens que, com licença da expressão, se neutralizam uns aos outros, e ao da mulher que, sabendo muito bem tirar partido dessa situação, não deixa de dividir seus maridos para melhor reinar sobre eles.

Conseqüentemente, de um ponto de vista formal, a caça é para o caçador o que a mulher é para o marido, pelo fato de que uma e outra mantêm com o homem uma relação apenas mediatizada: para cada caçador guayaki, a relação com o alimento animal e com as mulheres passa pelos outros homens. As circunstâncias muito particulares de sua vida obrigam os Guayaki a dotarem a troca e a reciprocidade de um coeficiente de rigor muito mais forte que em outros lugares, e as exigências dessa hipertroca são bastante esmagadoras para surgir na consciência dos índios e suscitar às vezes conflitos ocasionados pela necessidade da poliandria. É preciso com efeito frisar que, para os índios, a obrigação de dar a caça não é absolutamente vivida como tal, ao passo que a de dividir a esposa é experimentada como alienação. Mas, é essa identidade formal da dupla relação caçador-caça, marido-esposa que devemos reter aqui. O tabu alimentar e o déficit de mulheres exercem, cada um em seu plano próprio, funções paralelas: garantir a existência da sociedade pela interdependência dos caçadores, assegurar sua permanência pela partilha de mulheres. Positivas por criarem e recriarem a cada instante a própria estrutura social, essas funções se desdobram também em uma dimensão negativa por introduzirem, entre o homem por um lado e, por outro, sua caça e sua mulher, toda a distância que virá precisamente habitar o social. Aqui se determina a relação estrutural do homem com a essência do grupo, isto é, com a troca. Com efeito, a doação da caça e a partilha das esposas remetem respectivamente a dois dos três suportes fundamentais sobre os quais repousa o edifício da cultura: a troca de bens e a troca de mulheres.

Essa relação dupla e idêntica dos homens com a sua sociedade, mesmo que nunca surja em sua consciência, não é entretanto inerte. Ao contrário, mais ativa por subsistir inconsciente, é ela que define a relação singular dos caçadores com a terceira ordem de realidade na qual e pela qual a sociedade existe: a linguagem como troca de mensagens. Pois, em seu canto, os homens exprimem ao mesmo tempo o saber impensado de seu destino de caçadores e esposos e o protesto contra esse destino. Assim se ordena a figura completa da tripla ligação dos homens com a troca: o caçador individual nela ocupa o centro, ao passo que o simbolismo dos bens, das mulheres e das palavras traça a sua periferia. Mas enquanto a relação do homem com a caça e com as mulheres consiste em uma disjunção que funda a sociedade, sua relação com a linguagem se condensa no canto em uma conjunção bastante radical para negar justamente a função de comunicação da linguagem e, ainda mais, a própria troca. Conseqüentemente, o canto dos caçadores ocupa uma posição simétrica e inversa à do tabu alimentar e da poliandria, dos quais ele marca, por sua forma e por seu conteúdo, que os homens querem negá-los como caçadores e como maridos.

Lembramo-nos com efeito de que o conteúdo dos cantos masculinos é eminentemente pessoal, sempre articulado na primeira pessoa e estritamente consagrado ao louvor do cantor enquanto bom caça dor. Por que é assim? O canto dos homens, se é seguramente linguagem, já não é mais entretanto a linguagem corrente da vida cotidiana, o que permite a troca dos grupos lingüísticos. Ele é na verdade o oposto. Se falar é emitir uma mensagem destinada a um receptor, então o canto dos homens aché se situa fora da linguagem. Pois quem escuta o canto de um caçador, além do próprio cantor, e a quem se destina a mensagem senão àquele mesmo que a emite? Objeto e sujeito de seu canto, o caçador dedica apenas a si mesmo o recitativo lírico. Prisioneiros de uma troca que os determina apenas como elementos de um sistema, os Guayaki aspiram a se libertar de suas exigências, mas sem poderem recusá-lo no próprio plano em que o realizam e o sofrem. Como, a partir de então, separar os termos sem quebrar as relações? Só se oferecia o recurso à linguagem. Os caçadores guayaki encontraram em seu canto o truque inocente e profundo que lhes permite recusar no plano da linguagem a troca que eles não podem abolir nas esferas dos bens e das mulheres.

Não é certamente em vão que os homens escolhem para hino de sua liberdade o solo noturno de seu canto. Apenas ali pode articular-se uma experiência sem a qual eles talvez não pudessem suportar a tensão permanente que as necessidades da vida social impõem à sua vida cotidiana. O canto do caçador, essa endolinguagem, é assim para ele o momento de seu verdadeiro repouso no qual vem se abrigar a liberdade de sua solidão. Eis porque, caída a noite, cada homem toma posse do prestigioso reino, reservado exclusivamente a ele, onde pode enfim, reconciliado consigo mesmo, sonhar nas palavras o impossível “tête-à-tête com sua própria pessoa”. Mas os cantores aché, poetas nus e selvagens que dão à sua linguagem uma nova santidade, não sabem que o fato de todos dominarem uma igual magia das palavras – não são seus cantos simultâneos a mesma canção emocionante e ingênua de seu próprio gesto? – dissipa-se então para cada um a esperança de conseguir sua diferença. Aliás, o que lhes importa? Eles cantam, segundo dizem, ury vwä, “para ficarem contentes”. E se repetem assim, ao longo das horas, estes desafios cem vezes declamados: “Eu sou um grande caçador, eu mato muito com minhas flechas, eu sou uma natureza forte”. Mas eles são lançados para não serem notados, e, se seu canto dá ao caçador o orgulho de uma vitória, é porque ele quer o esquecimento de todo combate. Precisemos que não é nossa intenção sugerir aqui nenhuma biologia da cultura; a vida social não é a vida, e a troca não é uma luta. A observação de uma sociedade primitiva mostra-nos o contrário; se a troca como essência do social pode assumir a forma dramática de uma competição entre aqueles que trocam, esta está condenada a permanecer estática, pois a permanência do “contrato social” exige que não haja nem vencedor nem vencido e que os ganhos e as perdas se equilibrem constantemente para cada um. Poder-se-ia dizer, em resumo, que a vida social é um “combate” que exclui toda vitória e que, inversamente, quando se pode falar de “vitória”, é que se está fora de todo combate, isto é, fora da vida social. Finalmente, o que os cantos dos índios Guayaki nos lembram é que não se pode ganhar em todos os planos, que não se pode deixar de respeitar as regras do jogo social, e que a fascinação de não participar dele conduz a uma grande ilusão.

Por sua natureza e função, esses cantos ilustram de modo exemplar a relação geral do homem com a linguagem, tema sobre o qual essas vozes longínquas nos chamam a meditar. Elas nos convidam a tomar um caminho já quase apagado, e o pensamento dos selvagens, por repousar numa linguagem ainda primeira, se dirige somente ao pensamento. Vimos na verdade que, além do contentamento, o canto proporciona aos caçadores – e sem que eles saibam – o meio de escapar à vida social recusando a troca que a funda. O mesmo movimento pelo qual ele se separa do homem social que é leva o cantor a se saber e a se dizer enquanto individualidade concreta absolutamente fechada sobre si. O mesmo homem existe, portanto, como pura relação no plano da troca de bens e de mulheres e como mônada, se se pode dizer, no plano da linguagem. É pelo canto que ele chega à consciência de si mesmo como Eu e ao uso desde então legítimo desse pronome pessoal. O homem existe para si em e por seu canto, ele mesmo é o seu próprio canto: eu canto, logo existo. Ora, é evidente que se a linguagem, sob a forma do canto, se designa ao homem como o lugar verdadeiro de seu ser, não se trata mais da linguagem como arquétipo da troca, uma vez que é precisamente disso que se quer liberar. Em outros termos, o próprio modelo do universo da comunicação é também o meio de escapar dele. Uma palavra pode ser ao mesmo tempo uma mensagem trocada e a negação de toda mensagem, ela pode se pronunciar como signo e como o contrário de um signo. O canto dos Guayaki nos remete então a uma natureza dupla e essencial da linguagem que se manifesta ora em sua função aberta de comunicação, ora em sua função fechada de constituição de um Ego: essa capacidade da linguagem de exercer funções inversas repousa sobre a possibilidade de seu desdobramento em signo e valor.

Longe de ser inocente como uma distração ou uma simples recreação, o canto dos caçadores guayaki mostra a vigorosa in tenção que o anima a escapar da sujeição do homem à rede geral dos signos (da qual as palavras são aqui apenas a metáfora privilegiada) por uma agressão contra a linguagem sob a forma de uma transgressão de sua função. O que se torna uma palavra quando cessamos de utilizá-la como um meio de comunicação, quando ela é desviada de seu fim “natural”, que é a relação com o Outro? Separadas de sua natureza de signos, as palavras não se destinam a nenhuma escuta, são elas mesmas seu próprio fim, e, para quem as pronuncia, se convertem em valores. Por outro lado, transformando-se de sistema de signos móveis entre emissores e receptores em pura posição de valor para um Ego, a linguagem não deixa no entanto de ser o lugar do sentido: o meta-social não é absolutamente o infra-individual, o canto solitário do caçador não é o discurso de um louco e suas palavras não são gritos. O sentido subsiste, des provido de toda mensagem, e é em sua permanência absoluta que repousa o valer da palavra como valor. A linguagem pode não ser mais a linguagem sem por isso se anular no que não tem sentido, e cada um pode compreender o canto dos Aché, embora de fato nele nada se diga. Ou antes, o que ele nos convida a escutar é que falar não é sempre colocar o outro em jogo, que a linguagem pode ser manejada por si mesma e que ela não se reduz à função que exerce: o canto guayaki é a reflexão em si da linguagem, abolindo o universo social dos signos para dar lugar à eclosão do sentido como valor absoluto. Não há portanto paradoxo no fato de que o mais inconsciente e o mais coletivo do homem – a sua linguagem – possam ser também a consciência mais transparente e a dimensão mais liberada. À disjunção da palavra e do signo no canto responde a disjunção do homem e do social para o cantor, e a conversão do sentido em valor é a de um indivíduo em sujeito de sua solidão.

O homem é um animal político, a sociedade não equivale à soma de seus indivíduos, e a diferença entre a adição que ela não é e o sistema que a define consiste na troca e na reciprocidade pelas quais os homens se ligam. Seria inútil lembrar essas trivialidades se não quiséssemos frisar que se indica o contrário. A saber, precisamente, que se o homem é um “animal doente” é porque ele não é apenas um “animal político”, e que da sua inquietude nasce o grande desejo que o habita: o de escapar a uma necessidade apenas vivida como destino e de rejeitar a obrigação da troca, o de recusar seu ser social para se libertar de sua condição. Pois é exatamente no fato de se saberem os homens atravessados e levados pela realidade do social que se originam o desejo de não se reduzir a ele e a nostalgia de evadir-se dele. A audição atenta do canto de alguns selvagens nos ensina que em verdade se trata de um canto geral e que nele é despertado o sonho universal de não mais sermos o que somos.

Situado no próprio âmago da condição humana, o desejo de aboli-la se realiza apenas como um sonho que se pode traduzir de múltiplas maneiras, ora como um mito, ora, como entre os Guayaki, como um canto. Talvez o canto dos caçadores aché não seja senão seu mito individual. Em todo o caso, o desejo secreto dos homens de monstra sua impossibilidade pelo fato de que só podem sonhá-lo, e é apenas no espaço da linguagem que ele se vem realizar. Ora, essa vizinhança entre sonho e palavra, se bem marca o fracasso dos homens em renunciar ao que eles são, significa ao mesmo tempo o triunfo da linguagem. Apenas ela na verdade pode preencher a dupla missão de reunir os homens e de quebrar os laços que os unem. Possibilidade única para eles de transcender sua condição, a linguagem coloca-se então como seu mais-além e as palavras ditas pelo que valem são a terra natal dos deuses.

Apesar das aparências, é ainda o canto dos Guayaki que escutamos. Se chegamos a duvidar disso, não será justamente porque não compreendemos mais a linguagem? Sem dúvida, não se trata mais aqui de tradução. No final das contas, o canto dos caçadores aché nos designa um certo parentesco entre o homem e sua linguagem: mais precisamente, um parentesco tal que parece subsistir apenas no homem primitivo. Isso equivale a dizer que, bem distante de todo exotismo, o discurso ingênuo dos selvagens nos obriga a considerar o que poetas e pensadores são os únicos a não esquecer: que a linguagem não é um simples instrumento, que o homem pode caminhar com ela, e que o Ocidente moderno perde o sentido de seu valor pelo excesso de uso a que a submete. A linguagem do homem civilizado tornou-se completamente exterior a ele, pois é para ele apenas um puro meio de comunicação e informação. A qualidade do sentido e a quantidade dos signos variam em sentido inverso. As culturas primitivas, ao contrário, mais preocupadas em celebrar a linguagem do que em servir-se dela, souberam manter com ela essa relação interior que é já em si mesma aliança com o sagrado. Não há, para o homem primitivo, linguagem poética, pois sua linguagem já é, em si mesma, um poema natural em que repousa o valor das palavras. E se falamos do canto dos Guayaki como de uma agressão à linguagem, é antes como o abrigo que a protege que devemos doravante ouvi-la. Mas será que se pode ainda escutar a lição demasiado forte de miseráveis selvagens errantes sobre o bom uso da linguagem?

Assim vão os índios Guayaki: de dia andam juntos pela floresta, homens e mulheres, o arco na frente, o cesto atrás. A vinda da noite os separa, cada um dedicado a seu sonho. As mulheres dormem e os caçadores cantam às vezes, solitários. Pagãos e bárbaros, apenas a morte os salva do resto.

* Inicialmente publicado em L’Homme, VI, n. 2, 1966.

1. Aché é a autodenominação dos Guayaki.

2. Como se poderia esperar, os dois homens pane de que tratamos mantinham em relação ao canto uma atitude bem diferente: Chachubutawachugi só cantava por ocasião de certas cerimônias a que estava diretamente ligado, como, por exemplo, o nascimento de uma criança. Krembegi jamais cantava.

3. Clastres, Chronique des Indiens Guayaki (Paris: Plon, 1972). [Ed. bras.: Crônica dos índios Guayaki, trad. Tânia Stolze Lima e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34, 1995.]

4. Uma dezena de anos antes uma cisão havia dividido a tribo dos Aché-gatu. A esposa do chefe mantinha relações culposas com um jovem. O marido, muito irritado, se separara do grupo levando consigo uma parte dos Guayaki. Ele chegou a ameaçar massacrar com flechadas aqueles que não o seguissem. Apenas ao fim de alguns meses foi que o medo de perder sua mulher e a pressão coletiva dos Achégatu o levaram a reconhecer o amante de sua mulher como seu japetyva.

5. Não se trata de um jogo de palavras: em guayaki um mesmo verbo designa a ação de alimentar-se e a de fazer amor (tyku).