PROFETAS NA SELVA
Profetas na selva*
A América indígena não cessa de desconcertar aqueles que tentam decifrar sua grande face. Vê-la colocar por vezes a sua verdade em locais imprevistos nos obriga a reexaminar a imagem pacífica que dela temos, e sua esperteza talvez consista justamente em se conformar a ela. A tradição nos legou do continente sul-americano e dos povos que o habitavam uma geografia sumária e superficialmente verídica: de um lado, as Altas Culturas andinas e todo o prestígio de seus refinamentos; de outro, as culturas ditas da Floresta Tropical, tenebroso reino de tribos errantes através de savanas e selvas. Revelaremos aqui o etnocentrismo dessa ordem que coloca em oposição, de maneira familiar ao Ocidente, de um lado, a civilização e, do outro, a barbárie. Complementar a esse arranjo exprime-se em seguida a convicção mais sábia de que a vida do espírito atinge suas formas nobres somente quando a sustenta o solo julgado mais rico de uma grande civilização: em suma, que o espírito dos selvagens permaneça espírito selvagem.
Ora, que isso não é verdade e que o mundo indígena se revela capaz de surpreender o espectador ocidental de uma linguagem que outrora não teria ficado sem eco é o que nos ensinam os Mbyá-Guarani. Pois o pensamento religioso desses índios está carregado da densidade de uma meditação rigorosa e liberta, desenvolvendo-se na pureza inicial de um mundo em que ainda são vizinhos deuses e viventes. Os Tupi-Guarani, dos quais os Mbyá são uma das últimas tribos, propõem à etnologia americanista o enigma de uma singularidade que, desde antes da Conquista, os levava à inquietude de procurar sem descanso o além prometido por seus mitos, ywy mara ey, a Terra sem Mal. Dessa busca maior e certamente excepcional junto aos índios sul-americanos, conhecemos a mais espetacular conseqüência: as grandes migrações religiosas de que falam os relatos dos primeiros cronistas. Guiadas por xamãs inspirados, as tribos se movimentavam e, por meio de jejuns e danças, tentavam atingir as ricas moradas dos deuses, situadas no levante. Mas então surgia o obstáculo aterrorizante, o limite doloroso, o grande oceano, mais terrível ainda por confirmar aos índios sua certeza de que em sua margem oposta estava a terra eterna. É por isso que permanecia a esperança de alcançá-la um dia, e os xamãs, atribuindo seu fracasso à falta de fervor e ao nãorespeito às regras do jejum, esperavam sem impa ciência a vinda de um sinal ou mensagem do alto para recomeçar sua tentativa.
Os xamãs tupi-guarani exerciam pois sobre as tribos uma influência considerável, sobretudo os maiores dentre eles, os karai, cuja palavra, queixavam-se os missionários, continha em si todo o poder do demônio. Seus textos não dão infelizmente nenhuma indicação sobre o conteúdo dos discursos dos karai: pela simples razão, sem dúvida, de que os jesuítas tinham pouca vontade de tornar-se cúmplices do diabo, reproduzindo por escrito o que Satã sugeria a seus sequazes índios. Mas, Thevet, Nóbrega, Anchieta, Montoya etc., traíam sem querer seu silêncio censor, reconhecendo a capacidade de sedução da palavra dos feiticeiros, principal obstáculo, dizem eles, para a evangelização dos selvagens. Aí se introduzia à sua revelia a confissão de que o cristianismo encontrava no universo espiritual dos Tupi-Guarani, isto é, de homens “primitivos”, algo de fortemente articulado para se opor com sucesso, e como em plano de igualdade, à intenção missionária. Surpresos e amargurados, os jesuítas zelosos descobriam, sem compreendê-las, na dificuldade de sua pregação, a finitude de seu mundo e a derrizão de sua linguagem: eles constatavam com estupor que as superstições diabólicas dos índios podiam ascender às regiões supremas daquilo que quer ser chamado de religião.
Assim ocultado, todo esse antigo saber corria o risco de perder-se para sempre se, atentos a seu apelo e respeitando sua memória, os últimos índios Guarani não o tivessem silenciosamente mantido vivo. Poderosos povos de outrora, eles não são mais que pequenos bandos a sobreviver nas florestas do Leste paraguaio. Admiráveis em sua perseverança de não renunciarem a si mesmos, os Mbyá, que quatro séculos de ofensas não puderam forçar a humilhar-se, persistem estranhamente em habitar a sua velha terra segundo o exemplo dos ancestrais, em fiel acordo com as normas que os deuses estabeleceram antes de abandonar a morada que concediam aos homens. Os Mbyá conseguiram conservar sua identidade tribal contra todas as circunstâncias e provações de seu passado. No século XVIII, os jesuítas fracassaram em convencê-los a renunciar à idolatria e a reunir-se aos outros índios nas missões. O que os Mbyá sabiam e que os fortalecia em sua recusa eram a vergonha e a dor de ver aquilo que eles desprezavam ameaçar sua própria substância, seu ponto de honra e sua ética: seus deuses e o discurso de seus deuses, pouco a pouco aniquilados pelos recém-chegados. É nessa recusa que reside a originalidade dos Guarani, que se delimita o lugar muito especial que eles ocupam entre as outras culturas indígenas, que se impõe o interesse que eles apresentam para a etnologia. É raro com efeito ver uma cultura indígena persistir na existência conforme as normas de seu próprio sistema de crenças, e conseguir conservar quase isento de empréstimos esse domínio particular. Do contato entre mundo branco e mundo índio resulta na maior parte das vezes um sincretismo empobrecedor onde, sob um cristianismo sempre superficial, o pensamento indígena procura somente adiar sua morte. Precisamente, isso não se verificou com os Mbyá, que, até o presente, continuam a destinar ao fracasso toda tentativa missionária.
Essa secular resistência dos Guarani em ceder diante da religião dos juru’a, dos brancos, se fortalece na convicção dos índios de que seu destino está ordenado pela promessa dos antigos deuses: que, vivendo sobre a terra má, ywy mba’é megua, no respeito às normas, eles receberão daqueles lá do alto os sinais favoráveis à abertura do caminho que, além do temor do mar, os levará à terra eterna. Poder-se-ia ficar surpreso com o que parece quase uma loucura: a saber, a constância dessa rígida certeza capaz de atravessar a história sem parecer afetada por esta. Seria desconhecer a incidência sociológica do fervor religioso. Com efeito, se os Mbyá atuais se pensam ainda como tribo, isto é, como unidade social que visa a preservar sua diferença, é essencialmente sobre um fundo religioso que se projeta essa intenção: os Mbyá são uma tribo porque são uma minoria religiosa não-cristã, porque o cimento da sua unidade é a comunidade da fé. O sistema das crenças e dos valores constitui pois o grupo como tal, e, reciprocamente, esse fechamento decidido sobre seu eu leva o grupo, cioso depositário de um saber honrado até o mais humilde ser, a permanecer o fiel protetor de seus deuses e o guardião de sua lei.
Certamente, o conhecimento da temática religiosa se distribui desigualmente entre os membros da tribo. A maioria dos índios se contenta, como é normal, em participar com aplicação das danças rituais, em respeitar as normas tradicionais da vida e em escutar com recolhimento as exortações de seus pa’i, de seu xamãs. Pois eles são os verdadeiros sábios que, assim como os karai dos tempos antigos, tomados pela mesma paixão, se entregam à exaltação de interrogar seus deuses. Lá se redescobre o gosto dos índios pela palavra, ao mesmo tempo como oradores e como ouvintes: senhores das palavras e inflamados ao pronunciá-las, os caciques-xamãs encontram sempre no resto dos índios um público pronto para ouvi-los.
Trata-se quase sempre nesses discursos de abordar os temas que literalmente obcecam os Mbyá: seu destino sobre a terra, a necessidade de respeitar as normas fixadas pelos deuses, a esperança de conquistar o estado de perfeição, o estado de aguyje, que é o único que permite aos que o atingem ter o caminho da Terra sem Mal, aberto pelos habitantes do céu. A natureza das preocupações dos xamãs, sua significação, seu alcance e a maneira pela qual eles a expõem nos ensinam justamente que o termo xamã qualifica mal a verdadeira personalidade desses homens capazes de embriaguez verbal quando os toca o espírito dos deuses. Às vezes médicos, mas não necessariamente, eles se preocupam muito menos em restituir a saúde ao corpo doente do que em adquirir, através de danças, discursos e meditações, essa força interior, essa firmeza de coração, só elas capazes de agradar a Ñamandu, a Karai Ru Ete, a todas as figuras do panteão guarani. Mais do que praticantes, pois, os pa’i mbya são meditantes. Apoiados no sólido terreno dos mitos e das tradições, eles se entregam a esses textos, cada um por si, a um verdadeiro trabalho de glosa. Encontram-se, pois, entre os Mbyá duas sedimentações, poder-se-ia dizer, de sua “literatura” oral: uma, profana, que compreende o conjunto da mitologia e especialmente o grande mito dos gêmeos; a outra, sagrada, isto é, secreta para os brancos, que se compõe das orações, dos cantos religiosos, de todas as improvisações, enfim, que arranca os pa’i o seu fervor inflamado quando sentem que neles um deus deseja fazer-se ouvir. À surpreendente profundidade de seus discursos, esses pa’i, a quem somos tentados a chamar de profetas e não mais de xamãs, impõem a forma de uma linguagem notável por sua riqueza poética. Aí, aliás, se indica claramente a preocupação dos índios de definir uma esfera de sagrado tal que a linguagem que o enuncia seja ela própria uma negação da linguagem profana. A criação verbal, proveniente da preocupação de nomear seres e coisas conforme sua dimensão mascarada, segundo seu ser divino, resulta assim em uma transmutação lingüística do universo cotidiano, em uma Grande Fala [Grand Parler]que se chegou a pensar que era uma língua secreta. Assim, os Mbyá falam da “flor do arco” para designar a flecha, do “esqueleto da bruma” para citar o cachimbo, e das “ramagens floridas” para evocar os dedos de Ñamandu. Transfiguração admirável para abolir a confusão e o ressentimento das aparências em que não se quer reter a paixão dos últimos homens: assim se diz o verdadeiro nome dos Mbyá, índios decididos a não sobreviver a seus deuses.
O primeiro alvor da madrugada recorta o cimo das grandes árvores. Acorda ao mesmo tempo no coração dos índios Guarani o tormento, rebelde à tranqüilização da noite, de seu tekoachy, da existência doente que de novo a luz do astro vem clarear, lembrando-lhes assim sua condição de habitantes da Terra. Não é raro então ver elevar-se um pa’i. Voz inspirada pelos invisíveis, lugar de espera do diálogo entre os humanos e os deuses, ele concede ao rigor de seus logos o arrebatamento da fé que anima as belas formas do saber. Matinas selvagens na selva, as palavras graves de sua lamentação se dirigem para o leste, ao encontro do sol, mensageiro visível de Ñamandu, o poderoso senhor dos lá do alto: a ele se destina essa oração exemplar.
Desmentindo o primeiro e legítimo movimento de esperança, as palavras que inspira ao recitante o aparecimento do astro o fecham pouco a pouco no círculo da angústia em que o abandona o silêncio dos deuses. Os esforços dos homens para escapar à sua morada parecem inúteis, pois não comovem aqueles a quem se destinam suas súplicas. Mas, tendo assim chegado ao limite extremo de sua dúvida e de sua angústia, voltam àquele que as experimenta e as recita a memória do passado, a lembrança dos ancestrais: destes, as danças, os jejuns e as orações acaso não foram outrora recompensados, e não lhes foi concedido atravessar o mar, descobrindo-lhe a passagem? Isso significa que os homens têm acesso aos deuses, que tudo é ainda possível. Então se afirma a confiança em um destino semelhante para os homens de agora, para os últimos Jeguakava: sua espera das Palavras não será em vão, os deuses se farão ouvir por aqueles que se inclinam à sua escuta.
Assim se constrói o movimento da súplica tardia e pronta chegada. Ñamandu, deixando brotar de novo sua luz, consente pois em deixar os homens viverem: seu sono noturno é uma morte da qual a aurora os arranca. Mas viver, para os Jeguakava, para os portadores do jeguaka, para aqueles adornados pela cabeleira ritual masculina, não é somente despertar para a neutralidade das coisas. Os Mbyá habitam a Terra no espaço do questionamento, e o Pai aceita pois escutar o lamento de seus adornados. Mas, ao mesmo tempo em que surge a esperança ou em que se enraíza a própria possibilidade de questionar, a fadiga terrena trabalha para diminuir seu alento: medem-na o sangue e a carne e podem sobrepujá-las a oração e a dança, a dança sobretudo, cujo ritmo preciso alivia o corpo de sua carga terrestre. Que ausência indica essa procura tão urgente que inaugura o dia? A das ñe’e porä tenonde, as belas palavras originais, linguagem divina em que se abriga a salvação dos homens. Pausa no limiar da sua verdadeira morada: assim é o habitar dos Jeguakava sobre a terra má. A imperfeição dos corpos e das almas impede de desertá-la, só ela os retém do lado de cá da fronteira, do metafórico mar, menos assustador em sua realidade mais freqüentemente desconhecida pelos índios do que por levá-los a pressentir a talvez definitiva divisão entre o humano e o divino, cada um preso à sua própria margem. Agradar aos deuses, merecer deles as Palavras que abrem o caminho da terra eterna, as Palavras que ensinam aos homens as normas de sua futura existência: tal é entretanto o desejo dos Mbyá. Que falem, pois, os deuses! Que reconheçam o esforço dos homens, seus jejuns, suas danças, suas preces! Não menos ricos em méritos que seus pais, os Jeguakava tenonde porängue’i, os últimos dentre os que foram os primeiros adornados, aspiram a deixar a terra: seu destino será portanto cumprido.
Eis, trágica no silêncio matinal de uma floresta, a prece meditativa de um índio: a clareza de seu apelo não se altera pelo fato de subterraneamente aí aparecerem o senso e o gosto da morte, para a qual a extrema sabedoria dos Guarani é de saber encaminhar-se:
Meu pai! Ñamandu! Tu fazes com que novamente eu me levante!
Da mesma forma, fazes com que novamente se levantem os Jeguakava, os adornados em sua totalidade.
E as Jachukava, as adornadas, tu fazes com que novamente elas também se levantem em sua totalidade.
E quanto a todos os que não dotaste de jeguaka, eles também tu fazes com que de novo se levantem em sua totalidade.
E aqui está: a propósito dos adornados, a propósito dos que não são teus adornados, a propósito deles todos, eu questiono.
E entretanto, quanto a tudo isso,
as palavras, tu não as pronuncias, Karai Ru Ete:
nem para mim, nem para teus filhos destinados à terra indestrutível, à terra eterna que nenhuma pequenez altera.
Tu não as pronuncias as palavras em que se encontram as normas futuras de nossa força, as normas futuras de nosso fervor.
Pois, em verdade,
eu existo de maneira imperfeita.
Ele é de natureza imperfeita, o meu sangue,
ela é de natureza imperfeita, a minha carne,
ela é assustadora, desprovida de toda qualidade.
As coisas estando assim dispostas,
a fim de que meu sangue de natureza imperfeita,
a fim de que minha carne de natureza imperfeita,
se mexam e rejeitem longe deles sua imperfeição:
joelhos dobrados, eu me inclino,[1] na esperança de ter um coração valoroso.
E, entretanto, aqui está: tu não pronuncias as palavras.
Por causa de tudo isso,
não é certamente em vão que, no que me concerne, necessito de tuas palavras:
as das normas futuras da força,
as das normas futuras de um coração valioso,
as das normas futuras do fervor.
Nada mais, dentre a totalidade das coisas, inspira valor ao meu coração.
Nada mais me dirige às normas futuras de minha existência.
E o mar maléfico, o mar maléfico,
tu não fizeste com que eu o atravessasse,
É por isso, em verdade, é por isso que eles só permanecem em pequeno número, os meus irmãos, que elas, as minhas irmãs, só permanecem em pequeno número.
Aqui está: a propósito dos pouco numerosos que permanecem, eu faço ouvir minha lamentação.
A propósito desses, de novo eu questiono:
Pois Ñamandu faz com que eles se levantem.
Estando as coisas assim dispostas,
quanto aos que se levantam, em sua totalidade,
é para seu alimento futuro que dirigem a atenção de seu olhar, todos eles;
e porque a atenção de seu olhar se dirige para seu alimento futuro,
são eles então que existem, todos eles.
Tu fazes com que suas palavras tomem impulsos,
inspiras seu questionamento,
fazes com que de todos eles se eleve uma grande lamentação.
Mas aqui está: eu me levanto em meu esforço,
e entretanto tu não pronuncias as palavras, não, em verdade, tu não pronuncias as palavras.
Em conseqüência, eis o que sou levado a dizer,
Karai Ru Ete, Karai Chy Ete:
os que não eram pouco numerosos,
os destinados à terra indestrutível, à terra eterna que nenhuma
pequenez altera,
todos esses, tu fizestes com que em verdade eles questionassem,
outrora, a propósito das normas futuras de sua própria existência.
E certamente, eles as conheceram em sua perfeição, outrora.
E se, quanto a mim, minha natureza se liberta de sua costumeira imperfeição,
se o sangue se liberta de sua costumeira imperfeição de antanho:
então, certamente, isso não provém de todas as coisas más,
mas de que meu sangue de natureza imperfeita, minha carne de natureza
imperfeita, se mexam e expulsem para longe deles sua imperfeição.
É por isso que tu as pronunciarás em abundância, as palavras, as palavras da alma excelente,
para aquele cuja face não apresenta nenhum sinal.[2]
Tu as pronunciarás em abundância, as palavras,
Oh! Tu, Karai Ru Ete, e tu, Karai Chy Ete,
para todos os destinados à terra indestrutível, à terra eterna,
que nenhuma pequenez altera,
Tu, Vós![3]
* Inicialmente publicado em Jean Pouillon e Pierre Maranda (éds.), Echanges et communications [Coletânea de estudos oferecida a Claude Lévi-Strauss por ocasião de seu 60º aniversário] (Paris-Haia: Mouton, 1970).
1. Descrição do movimento da dança ritual.
2. Isto é, para aquele que recusa o batismo cristão.
3. Texto recolhido em junho de 1966 no leste do Paraguai. Foi gravado em língua indígena e traduzido com a ajuda de Léon Cadogan. A ele nossos agradecimentos.