DA TORTURA NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS
Da tortura nas sociedades primitivas*
1. A LEI, A ESCRITA
Supõe-se que ninguém deixe de pensar na dureza da lei. Dura lex sed lex. Diversos meios foram inventados, segundo as épocas e as sociedades, a fim de conservar sempre fresca a recordação dessa dureza. Entre nós, o mais simples e recente foi a generalização da escola, gratuita e obrigatória. A partir do momento em que a instrução se impôs a todos, a ninguém mais se dava o direito de, sem mentira – sem transgressão –, alegar o seu desconhecimento. Pois, sendo dura, a lei é ao mesmo tempo escrita. A escrita existe em função da lei, a lei habita a escrita; e conhecer uma é não poder mais desconhecer a outra. Toda lei é portanto escrita, toda escrita é índice de lei. Os grandes déspotas que servem de marcos para a história no-lo ensinam, assim como todos os reis, imperadores, faraós, todos os Sóis, em suma, que souberam impor aos povos a sua Lei: sempre e por toda a parte, a escrita reinventada proclama de pronto o poder da lei, gravada na pedra, pinta da sobre as cascas das árvores, desenhada nos papiros. Até mesmo os quipos dos Incas podem ser considerados uma escrita. Longe de se reduzirem a simples processos mnemotécnicos de contabilidade, as cordinhas amarradas eram de antemão, necessariamente, uma escrita que afirmava a legitimidade da lei imperial, e o terror que ela devia inspirar.
Que a lei encontre uma forma de se inscrever em espaços inesperados é o que nos pode ensinar esta ou aquela obra literária. O funcionário de A colônia penal[1] explica minuciosamente ao visitante o funcionamento da máquina de escrever a lei:
Nossa sentença não é severa. Grava-se simplesmente, com auxílio do rastelo, o parágrafo transgredido sobre a pele do culpado. Vai-se, por exemplo, escrever no corpo desse condenado – e o funcionário apontava para o homem: “Respeite o seu superior”.
E, ao visitante que se surpreende ao saber que o condenado desconhece a sentença que o atinge, o funcionário, cheio de bom senso, responde:
Seria inútil levá-la ao conhecimento dele, uma vez que vai aprendê-la no próprio corpo.
E, mais adiante:
Você viu que não é fácil ler esse texto com os olhos; pois bem, o homem a decodifica com suas feridas. É sem dúvida um enorme trabalho: são necessárias seis horas para terminar.
Kafka designa aqui o corpo como superfície de escrita, como superfície apta para receber o texto legível da lei.
E se alguém objetar que é impossível adaptar ao plano dos fatos sociais o que não passa de imaginação de escritor, poder-se-á responder que o delírio kafkiano aparece, no caso, mais como uma antecipação, e que a ficção literária anuncia a mais contemporânea das realidades. O testemunho de Martchenko[2] ilustra com sobriedade a tríplice aliança, entrevista por Kafka, entre a lei, a escrita e o corpo:
E então nascem as tatuagens.
Conheci dois antigos prisioneiros comuns transformados em “prisioneiros políticos”; um respondia ao cognome Moussa, o outro a Mazai. Eles tinham a testa e as faces tatuadas: “Comunistas = Carrascos”, “Os comunistas sugam o sangue do povo”. Mais tarde, eu iria encontrar muitos deportados trazendo máximas desse tipo gravadas sobre os seus rostos. Na maioria das vezes, suas testas apresentavam, em letras garrafais: “ESCRAVOS DE KRUCHTCHEV”, “ESCRAVO DO P.C.U.S”.
Mas alguma coisa na realidade dos campos da URSS no decorrer da década de 60, ultrapassa até a ficção da colônia penal. É que, aqui, o sistema da lei precisa de uma máquina para escrever o seu texto sobre o corpo do prisioneiro que suporta passivamente a prova, enquanto, no campo real, a tríplice aliança, levada até o seu ponto extremo de estreitamento, elimina a própria necessidade da máquina: ou antes, é o prisioneiro em pessoa que se transforma em máquina de escrever a lei, e que a inscreve sobre seu próprio corpo. Nas colônias penais da Moldávia, a dureza da lei encontra, como meio para se enunciar, a mão, o próprio corpo do culpado-vítima. O limite é alcançado, o prisioneiro está inteiramente fora da lei: quem o diz é o seu corpo escrito.
3. O CORPO, O RITO
É muito extenso o número de sociedades primitivas que mostram a importância por elas atribuída ao ingresso dos jovens na idade adulta através da instituição dos chamados ritos de passagem. Esses rituais de iniciação constituem muitas vezes um eixo essencial, em relação ao qual se ordena, em sua totalidade, a vida social e religiosa da comunidade. Ora, quase sempre o rito iniciático considera a utilização do corpo dos iniciados. É, sem qualquer intermediário, o corpo que a sociedade designa como único espaço propício a conter o sinal de um tempo, o traço de uma passagem, a determinação de um destino. Em qual segredo inicia o rito que, por um momento, toma completa posse do corpo do iniciado? Proximidade, cumplicidade do corpo e do segredo, do corpo e da verdade revelada pela iniciação: o reconhecimento disso leva a precisar a interrogação. Por que é necessário que o corpo individual seja o ponto de encontro do éthos tribal, por que o segredo só pode ser comunicado mediante a operação social do rito sobre o corpo dos jovens? O corpo mediatiza a aquisição de um saber, e esse saber é inscrito no corpo. Natureza desse saber transmitido pelo rito, função do corpo no desenrolar do rito: dupla questão em que se resolve o problema do sentido da iniciação.
4. O RITO, A TORTURA
Oh! Horribile visu, et mirabile dictu! Graças a Deus, terminou, e eu vou poder lhes contar tudo aquilo que vi.
George Catlin[3] acaba de assistir, durante quatro dias, à grande cerimônia anual dos índios Mandan. Na descrição que dela nos oferece, de finesse exemplar, como os desenhos que a ilustram, a testemunha não pode deixar, apesar da admiração que sente por esses grandes guerreiros das Planícies, de manifestar o seu espanto e horror diante do espetáculo do rito. O fato é que, se, através do cerimonial, a sociedade se apodera do corpo, ela não o faz de qualquer maneira: quase que de modo constante – e é isso que aterroriza Catlin – o ritual submete o corpo à tortura:
Um a um, os jovens, já atingidos por quatro dias de completo jejum e por três noites insones, avançaram em direção aos seus carrascos. Chegara a hora.
Com furos pelo corpo e estiletes enterrados nas chagas, enforcamento, amputação, a derradeira corrida, carnes rasgadas: parecem inesgotáveis os recursos da crueldade. E, no entanto:
A impassibilidade, eu poderia até mesmo dizer a serenidade com que esses jovens suportavam o martírio, era ainda mais extraordinária do que o próprio suplício… Alguns deles, ao perceberem que eu estava desenhando, fixaram seus olhos nos meus e sorriram; mas, ouvindo a faca arranhar-lhes a carne, eu não conseguia conter as lágrimas.
De uma tribo a outra, de uma a outra região, diferem as técnicas, os meios, os objetivos explicitamente afirmados da crueldade; mas a meta é sempre a mesma: provocar o sofrimento. Em outra obra,[4] tivemos a oportunidade de descrever a iniciação dos jovens guayaki, cujos dorsos, em toda a sua superfície, são escavados e revolvidos. A dor acaba sempre se tornando insuportável: sem proferir palavra, o torturado desmaia. Entre os famosos Mbayá-Guaykuru do Chaco paraguaio, os jovens, ao alcançarem a idade de admissão na classe dos guerreiros, deviam passar pela prova do sofrimento. Com um afiado osso de jaguar, perfuravam-lhes o pênis e outras partes do corpo. O preço da iniciação, também ali, era o silêncio.
Poder-se-iam multiplicar ao infinito os exemplos que seriam unânimes em nos ensinar uma única e mesma coisa: nas sociedades primitivas, a tortura é a essência do ritual de iniciação. Mas essa crueldade imposta ao corpo, será que ela não visa a avaliar a capacidade de resistência física dos jovens, a tornar a sociedade confiante na qualidade dos seus membros? Seria o objetivo da tortura no rito apenas fornecer a oportunidade de demonstração de um valor individual? Catlin exprime perfeitamente esse ponto de vista clássico:
Meu coração padeceu com tais espetáculos, e costumes tão abomináveis encheram-me de desgosto: estou, porém, pronto – e de todo o coração – a desculpar os índios, a perdoar-lhes as superstições que os levam a atos de tal selvageria, em virtude da coragem que demonstram, do seu notável poder de resistência, do seu excepcional estoicismo, em suma.
Entretanto, se nos limitarmos a essa interpretação, estaremos condenados a desconhecer a função do sofrimento, a reduzir infinitamente o alcance de seu propósito, a esquecer que a tribo, através dele, ensina alguma coisa ao indivíduo.
5. A TORTURA, A MEMÓRIA
Os responsáveis pela iniciação procuram estar seguros de que a intensidade do sofrimento chegou ao seu limite máximo. Uma faca de bambu seria mais do que suficiente, entre os Guayaki, para cortar a pele dos iniciados. Mas isso não seria bastante doloroso. É necessário, pois, utilizar uma pedra que afiada, mas não muito, em vez de cortar, dilacere. Por isso, um homem conhecedor do assunto vai procurar, no leito de certos riachos, essas pedras que se prestam à tortura.
George Catlin constata entre os Mandan uma igual preocupação com a intensidade de sofrimento:
[…] O primeiro médico levantava entre os dedos cerca de dois centímetros de carne, que ele perfurava de um lado a outro com a sua faca de escalpar, cuidadosamente morsegada, a fim de tornar a operação mais dolorosa.
E, à semelhança do escarificador guayaki, o xamã dos Mandan não manifesta a menor compaixão:
Os carrascos aproximavam-se; examinavam-lhe o corpo, escrupulosamente. Para que o suplício cessasse, era preciso que ele estivesse, segundo dizem, inteiramente morto, isto é, desmaiado.
Na exata medida em que a iniciação é, inegavelmente, uma comprovação da coragem pessoal, esta se exprime – se é que podemos dizê-lo – no silêncio oposto ao sofrimento. Entretanto, depois da iniciação, já esquecido todo o sofrimento, ainda subsiste algo, um saldo irrevogável, os sulcos deixados no corpo pela operação executada com a faca ou a pedra, as cicatrizes das feridas recebidas. Um homem iniciado é um homem marcado. O objetivo da iniciação, em seu momento de tortura, é marcar o corpo: no ritual iniciático, a sociedade imprime a sua marca no corpo dos jovens. Ora, uma cicatriz, um sulco, uma marca são indeléveis. Inscritos na profundidade da pele, atestarão para sempre que, se por um lado a dor pode não ser mais do que uma recordação desagradável, ela foi sentida num contexto de medo e de terror. A marca é um obstáculo ao esquecimento, o próprio corpo traz impressos em si os sulcos da lembrança – o corpo é uma memória.
Pois o problema é não perder a memória do segredo confiado pela tribo, a memória desse saber de que doravante são depositários os jovens iniciados. Que sabem agora o jovem caçador guayaki, o jovem guerreiro mandan? A marca proclama com segurança o seu pertencimento ao grupo: “És um dos nossos e não te esquecerás disso.” Ao missionário jesuíta Martin Dobrizhoffer[5] faltam palavras para qualificar os ritos dos Abipones, que tatuam cruelmente o rosto das jovens, quando se verifica a sua primeira menstruação. E, a uma delas que não consegue evitar um gemido diante das espetadelas, eis que, furiosa, grita a anciã que a tortura:
Basta de insolência! Não fazes jus à nossa raça! Monstruoso ser para quem uma leve cócega produzida pelo espinho se torna insuportável! Porventura não sabes que pertences à raça daqueles que consigo trazem as feridas e que se enfileiram entre os vencedores? Tu cobres os teus de vergonha, frágil mulherzinha! Pareces mais mole do que o algodão. Não há dúvida de que morrerás solteira. Por acaso algum de nossos heróis te julgará digna, ó medrosa, de te unires a ele?
E lembramo-nos como, certo dia, em 1963, os Guayaki se certificaram da verdadeira “nacionalidade” de uma jovem paraguaia: arrancando-lhe todas as roupas, descobriram-lhes nos braços as tatuagens tribais. Os brancos tinham-na capturado quando era criança.
Avaliar a resistência pessoal, significar um pertencimento social: tais são as duas funções evidentes da iniciação como inscrição de marcas sobre o corpo. Mas estará realmente aí tudo o que a memória adquirida na dor deve guardar? Será de fato preciso passar pela tortura para que haja sempre a lembrança do valor do eu e da consciência tribal, étnica, nacional? Onde está o segredo transmitido, onde se encontra o saber revelado?
6. A MEMÓRIA, A LEI
O ritual de iniciação é uma pedagogia que vai do grupo ao indivíduo, da tribo aos jovens. Pedagogia de afirmação, e não diálogo: é por isso que os iniciados devem permanecer silenciosos quando torturados. Quem cala consente. Em que consentem os jovens? Consentem em aceitar-se no papel que passaram a ter: o de membros integrais de comunidade. Nada falta, nada sobra. E estão irreversivelmente marcados como tais. Eis, portanto, o segredo que, na iniciação do grupo, é revelado aos jovens: “Sois um dos nossos. Cada um de vós é semelhante a nós, cada um de vós é semelhante aos outros. Tendes o mesmo nome e não o trocareis. Cada um de vós ocupa entre nós o mesmo espaço e o mesmo lugar: conservá-lo-eis. Nenhum de vós nos é inferior, nem superior. E não vos podereis esquecer disso. As mesmas marcas que deixamos sobre o vosso corpo vos servirão sempre como uma lembrança disso.”
Ou, em outros termos, a sociedade dita a sua lei aos seus membros, inscreve o texto da lei sobre a superfície dos corpos. Supõe-se, pois, que ninguém se esquece da lei que serve de fundamento à vida social da tribo.
Os primeiros cronistas diziam, no século XVI, que os índios brasileiros eram pessoas sem fé, sem rei, sem lei. É certo que essas tribos ignoravam a dura lei separada, aquela que, numa sociedade dividida, impõe o poder de alguns sobre todos os demais. Tal lei, lei de rei, lei do Estado, os Mandan, os Guaykuru, os Guayaki e os Abipones a ignoram. A lei que eles aprendem a conhecer na dor é a lei da sociedade primitiva, que diz a cada um: Tu não és menos importante nem mais importante do que ninguém. A lei, inscrita sobre os corpos, afirma a recusa da sociedade primitiva em correr o risco da divisão, o risco de um poder separado dela mesma, de um poder que lhe escaparia. A lei primitiva, cruelmente ensinada, é uma proibição à desigualdade de que todos se lembrarão. Substância inerente ao grupo, a lei primitiva faz-se substância do indivíduo, vontade pessoal de cumprir a lei. Ouçamos mais uma vez George Catlin:
Aquele dia, uma das danças em círculo parecia interminável. Um infeliz, que trazia um crânio de alce enganchado a uma das pernas, era indefinidamente arrastado em torno do círculo e fazia inúteis esforços para livrar-se da carga: nem esta se soltava nem a carne se rasgava. O pobre rapaz corria um perigo de tal monta que clamores de clemência elevaram-se da multidão. Mas a dança continuava, e prosseguiu até que o mestre-de-cerimônia, em pessoa, deu ordem para parar.
Era um jovem particularmente belo. Logo recuperou os sentidos e, não sei como, as forças lhe voltaram. Examinou calmamente a perna dilacerada e sangrenta e a carga ainda enganchada à carne; depois, com um sorriso de desafio, arrastou-se através da multidão que se abria diante dele até a Campina (em nenhuma hipótese os iniciados têm o direito de andar enquanto os seus membros não se virem livres de todos os estiletes). Logrou percorrer mais de um quilômetro, até um sítio afastado onde permaneceria sozinho por três dias e três noites, sem socorro ou comida, implorando o Grande Espírito. Esgotado esse tempo, a supuração libertou-o do estilete e ele voltou à aldeia, andando sobre as mãos e os joelhos, pois se encontrava num tal estado de esgotamento que não podia levantar-se. Cuidaram-lhe as feridas, deram-lhe de comer, e ele em breve se restabeleceu.
Que força empurrava o jovem mandan? Não era, por certo, uma pulsão masoquista, mas o desejo de fidelidade à lei, a vontade de ser, sem tirar nem pôr, igual aos outros iniciados.
Toda lei, dizíamos, é escrita. Eis que se reconstitui, de certa maneira, a tríplice aliança já identificada: corpo, escrita, lei. As cicatrizes desenhadas sobre o corpo são o texto inscrito da lei primitiva, é nesse sentido, uma escrita sobre o corpo. As sociedades primitivas são, dizem-no com veemência os autores do Anti-Édipo, sociedades da marcação. E, nessa medida, as sociedades primitivas são, de fato, sociedades sem escrita, mas, na medida em que a escrita indica antes de tudo a lei separada, distante, despótica, a lei do Estado, que escrevem sobre os seus corpos, os co-detentos de Martchenko. E, precisamente, nunca o afirmaremos com suficiente ênfase, é para conjurar essa lei, lei que institui e garante a desigualdade, é contra a lei do Estado que se coloca a lei primitiva. As sociedades arcaicas, sociedades da marca, são sociedades sem Estado, sociedades contra o Estado. A marca sobre o corpo, igual sobre todos os corpos, enuncia: “Tu não terás o desejo do poder, nem desejarás ser submisso”. E essa lei não-separada só pode ser inscrita num espaço não-separado: o próprio corpo.
Admirável profundidade dos selvagens, que de antemão sabiam tudo isso, e procuravam, ao preço de uma terrível crueldade, impedir o surgimento de uma crueldade ainda mais terrível: a lei escrita sobre o corpo é uma lembrança inesquecível.
* Estudo inicialmente publicado em L’Homme, XIII, n. 3, 1973.
1. Franz Kafka, La Colonie pénitentiaire (Paris: Le livre de poche, 1971).
2. Anatoli Martchenko, Mon témoignage, trad. François Olivier (Paris: Seuil, Col. Combats, 1971).
3. George Catlin, Les Indiens de la prairie, trad. francesa Fance Franck e Alain Gheerbrant (Club des Libraires de France, 1959).
4. Clastres, 1972, op. cit.
5. Martin Dobrizhoffer, Historia de los Abipones (Resistencia [Chaco]: Facultad de Humanidades/Universidad Nacional del Nordeste, 1967), 3 vols.