Capítulo I
— você não vai voltar tarde? — Havia ansiedade na voz de Marjorie Carling, qualquer coisa que parecia uma súplica.
— Não, eu não voltarei tarde — respondeu Walter, com a certeza infeliz e criminosa de que não estava dizendo a verdade. A voz dela o aborrecia. Era um pouco arrastada, tinha um refinamento excessivo, mesmo na dor.
— Não passe da meia-noite.
Marjorie podia ter-lhe lembrado o tempo em que nunca saía à noite sem ela. Podia ter feito isso; mas não queria; era contra os seus princípios; não pretendia forçar de nenhum modo o amor de Walter.
— Bem, digamos uma hora... Você sabe o que são estas reuniões...
Na realidade Marjorie não sabia, pela boa razão de que, não sendo esposa dele, não era convidada para tais festas. Tinha deixado o marido para viver com Walter Bidlake; e Carling, que aliava a seus escrúpulos cristãos um frouxo sadismo, desejando vingar-se, negava a ela o divórcio. Havia então dois anos que viviam juntos. Apenas dois anos; e já Walter tinha deixado de amá-la, principiava a amar outra. O pecado ia perdendo a sua única desculpa, e os dissabores de ordem social o seu único paliativo. E, além de tudo, Marjorie estava grávida.
— Meia hora depois da meia-noite — implorou ela, embora sabendo que a sua insistência importuna conseguiria apenas aborrecê-lo e fazer com que ele a amasse ainda menos. Mas não podia deixar de falar; amava-o muitíssimo e estava torturada pelo ciúme. As palavras lhe escapavam a despeito de seus princípios. Teria sido melhor para Marjorie e talvez para Walter que ela tivesse menos princípios, que desse aos seus sentimentos a expressão violenta que eles exigiam. Mas Marjorie tinha sido educada na prática do mais estrito autodomínio. Sabia que só as pessoas sem educação fazem “cenas”. Aquele implorativo “Meia hora depois da meia-noite, Walter” foi tudo quanto conseguiu romper a barreira de seus princípios. Demasiadamente fraco para o comover, o tíbio protesto não faria mais do que aborrecê-lo. Ela o sabia, e mesmo assim não se podia calar.
— Se for possível... — Ali estava o que ela tinha feito. Havia exasperação na voz dele. — Mas não posso garantir; não me espere com muita certeza.
“Porque, sem dúvida nenhuma”, pensava Walter, assediado pela inexorcizável imagem de Lucy Tantamount, “não voltaria meia hora depois da meia-noite.”
Deu os toques finais na gravata branca. Bem junto do rosto dele, dentro do espelho, o rosto de Marjorie o vigiava. Era uma face pálida e tão magra, que a luz que tombava da lâmpada elétrica suspensa por cima deles fazia uma sombra nas cavidades abaixo das maçãs. Os olhos estavam cercados de círculos escuros. O nariz reto, que ela sempre tivera um tanto longo, mesmo no maior viço da sua beleza, sobressaía agora duramente na face descarnada. Marjorie dava uma impressão de fealdade, de cansaço e de doença. Dentro de seis meses nasceria o bebê. Algo que tinha sido uma célula única, um grupo de células, um saquinho de tecidos, uma espécie de verme, um peixe em potência, com guelras, agitava-se-lhe no ventre e um dia viria a ser um homem — homem adulto, que sofre e goza, que ama e odeia, que pensa, que recorda, que imagina. E o que tinha sido uma ampola gelatinosa dentro de seu corpo inventaria, mais tarde, um deus e o adoraria; o que tinha sido uma espécie de peixe haveria de criar e, tendo criado, se transformaria num campo de batalha entre o bem e o mal; o que tinha vivido nas trevas dentro dela, como um verme parasita, haveria de olhar para as estrelas, escutar música e ler poesia. Uma coisa se transformaria numa pessoa, uma massa minúscula de matéria se converteria num corpo humano, num humano espírito. O maravilhoso processo da criação progredia nas suas entranhas, mas Marjorie só tinha consciência da doença e da lassitude; o mistério para ela nada significava senão fadiga, fealdade e uma ansiedade crônica em relação ao futuro: era a tortura do espírito aliada ao mal-estar do corpo. Ao sentir os primeiros sintomas da gravidez, tinha ficado ou pelo menos procurara ficar alegre, a despeito dos seus temores obsessivos quanto às consequências físicas e sociais de tal acontecimento. O bebê, julgava Marjorie, faria com que Walter voltasse para ela — ele já começava então a andar arredio. Faria nascer nele novos sentimentos que poderiam compensar o que parecia faltar no seu amor para com a companheira. Ela temia a dor, temia as dificuldades e embaraços inevitáveis. Mas as dores e as dificuldades ficariam bem pagas se no fim das contas lhe valessem um renovamento, um reavivamento do amor de Walter. A despeito de tudo Marjorie estava contente. E a princípio suas previsões pareceram justificar-se. A notícia de que ia nascer um bebê estimulara a ternura de Walter. Durante duas ou três semanas ela foi feliz: reconciliou-se com as dores e os incômodos. Foi então que, de um dia para outro, tudo mudou; Walter encontrara a outra mulher. Nos momentos em que não andava a perseguir Lucy, ele ainda fazia o possível para guardar uma aparência de solicitude. Mas Marjorie percebia nessa solicitude um certo rancor; compreendia que ele era terno e atencioso por um sentimento de dever e que odiava o filho porque este o compelia a fazer-se gentil com a mãe. E porque Walter odiasse a criatura que ia nascer, ela começava a odiá-la também. Os seus temores, que a felicidade não mais conseguia apagar, vieram à tona, encheram-lhe o espírito. Dor e desconforto — eis o que o futuro lhe reservava. E por enquanto: fealdade, doença e fadiga. Como poderia ela lutar em tal estado?
— Você me ama, Walter? — perguntou Marjorie subitamente.
Walter desviou por um momento os olhos castanhos da imagem da gravata que o espelho refletia e olhou para a imagem dos olhos dela, cinzentos e tristes, contemplativamente fixos. Sorriu. “Quem me dera que ela me deixasse em paz!”, pensou consigo. Franziu os lábios e abriu-os de novo, na sugestão de um beijo. Mas Marjorie não lhe retribuiu o sorriso. Seu rosto permaneceu impassivelmente triste, fixo numa ansiedade intensa. Os olhos ganharam um brilho trêmulo e de repente lhe apareceram lágrimas nos olhos.
— Você não podia ficar comigo esta noite? — implorou, a despeito de todas as suas resoluções heroicas de não exercer nenhuma coação exasperante sobre o amor dele, de deixá-lo livre para fazer o que quisesse.
À vista daquelas lágrimas, ao som daquela voz trêmula e cheia de censura, Walter foi invadido por uma emoção que era ao mesmo tempo remorso e ressentimento; ódio, piedade e vergonha.
“Mas então você não compreende”, era o que ele tinha vontade de dizer, o que realmente diria se não lhe faltasse coragem, “não compreende que as coisas não são nem podem ser mais como eram? E mesmo, para falar a verdade, elas nunca chegaram a ser o que você acreditava que fossem — refiro-me ao nosso amor —, nunca foram o que eu procurei fingir que fossem. Sejamos amigos, sejamos companheiros. Gosto de você, tenho muita afeição. Mas, pelo amor de Deus, não me envolva em amor como faz agora; não me queira impingir o amor à força. Se soubesse que coisa terrível é o amor para quem não quer amar, que violação, que ultraje...”
Mas ela estava chorando. Por entre as suas pálpebras cerradas as lágrimas brotavam, gota a gota. Seu rosto tremia no esgar da angústia. E o carrasco era ele. Walter se odiou. “Mas por que hei de me deixar levar pela chantagem dessas lágrimas?”, perguntava-se ele; e, perguntando, odiava-a também. Uma lágrima rolou ao longo do comprido nariz de Marjorie. “Ela não tem o direito de fazer isso, não tem o direito de ser tão pouco razoável. E por que não pode ser razoável?”
“Porque me ama.”
“Mas eu não quero o amor dela, não quero.” — Walter sentiu que a cólera se avolumava dentro dele. Marjorie não tinha o direito de amá-lo daquela maneira; pelo menos agora. “É uma chantagem”, repetia interiormente, “uma chantagem. Por que hei de ser vítima do amor dela e do fato de já tê-la amado também um dia... mas será que cheguei a amá-la de verdade?”
Marjorie tomou de um lenço e começou a enxugar os olhos. Walter sentiu-se envergonhado de seus pensamentos odiosos. Mas ela era a causa de sua vergonha; a culpa era dela. Marjorie devia ter ficado com o marido. Poderiam manter uma ligação. Entrevistas à tarde num estúdio. Teria sido romântico.
“Mas no fim das contas fui eu quem insisti para que ela viesse comigo.”
“Mas ela devia ter tido o bom senso de recusar. Devia saber que isso não podia durar para sempre.”
Marjorie, no entanto, fizera o que ele lhe havia pedido; tinha abandonado tudo, tinha aceito os dissabores sociais por amor a ele. Outra espécie de chantagem. Walter ressentia-se do apelo em que os sacrifícios dela importavam para os seus sentimentos de decência e honra.
“Mas se ela tivesse um pouco de decência e de honra”, pensava, “não haveria de explorar os meus sentimentos.”
Mas lá estava o bebê...
“Por que diabo permite ela que a criança venha ao mundo?”
Odiou o filho. Ele fazia crescer a sua responsabilidade para com a mãe, tornava-o ainda mais culpado por fazê-la sofrer. Walter olhou para o rosto de Marjorie, úmido de lágrimas. A gravidez fazia-a tão feia, tão velha... Como podia uma mulher esperar...? Mas não, não! Walter fechou os olhos, balançou a cabeça num estremecimento quase imperceptível. O pensamento ignóbil devia ser repudiado, definitivamente afastado.
“Como posso pensar em tais coisas?”, perguntava a si mesmo.
Ouviu-lhe repetir: “Não vá!”. Como aquela voz fininha, refinada e arrastada lhe exasperava os nervos! “Por favor, Walter, não vá.”
Sentia-se um soluço na voz de Marjorie. Mais chantagem. Ali, como ela podia ser tão baixa? Entretanto, a despeito de sua vergonha e, de certo modo, por causa mesmo dessa vergonha, Walter continuou a sentir as emoções ignominiosas com uma intensidade que mais parecia aumentar do que diminuir. O seu desamor por Marjorie crescia porque ele se envergonhava desse sentimento; as sensações dolorosas de vergonha e de ódio de si mesmo, que ela o fazia experimentar, constituíam para Walter outra fonte de desafeto. O rancor gerava a vergonha, e a vergonha, por sua vez, criava mais rancor.
“Oh, por que ela não me deixa em paz?” — Desejava isso furiosa, intensamente, com uma exasperação que era tanto mais selvagem quanto mais contida. (Porque lhe faltava a coragem brutal para dar expressão a esse desejo; tinha pena dela, queria-lhe bem apesar de tudo; era incapaz de ser aberta e francamente cruel — era cruel apenas por fraqueza, contra a sua vontade.)
“Por que será que ela não me pode deixar em paz? Havia de querê-la muito mais se simplesmente me deixasse em paz; e Marjorie mesma se sentiria muito mais feliz. Muito, muito mais feliz. Seria para o seu próprio bem...” Mas de súbito Walter se deu conta da própria hipocrisia. “Afinal de contas, que diabo!, por que é que ela não me deixa fazer o que eu quero?”
O que ele queria? Mas o que ele queria era Lucy Tantamount. Queria-a contra a razão, contra todos os seus ideais e princípios, loucamente, contra os seus próprios desejos, mesmo contra os seus próprios sentimentos, porque ele não gostava de Lucy; na verdade, odiava-a. Um fim nobre pode justificar meios vegonhosos. Mas quando se trata de um fim vergonhoso?... Era por causa de Lucy que ele estava fazendo Marjorie sofrer — Marjorie que o amava, que tinha feito sacrifícios por amor a ele, que era infeliz. Mas essa infelicidade redundava em uma chantagem.
— Fica comigo esta noite — implorou ela mais uma vez.
Havia uma parte do espírito de Walter que recebia bem as súplicas da amante, que queria que ele desistisse da festa e ficasse em casa. Mas a outra parte era mais forte. Walter respondeu a Marjorie com mentiras — meias mentiras que, em virtude do elemento de verdade que encerravam, justificativo mas hipócrita, eram mais graves que mentiras inteiras e francas.
Walter passou o braço em torno do corpo de Marjorie. Esse gesto era em si uma falsidade.
— Mas, minha querida — protestou ele no tom de adulação de quem pede a uma criança que se comporte razoavelmente —, eu realmente preciso ir. Como você sabe, meu pai estará presente. — Era verdade. O velho Bidlake ia sempre às festas dos Tantamount. — Preciso ter uma conversa com ele. Negócios — acrescentou vagamente e com importância, interpondo, com essa palavra mágica, uma espécie de cortina de fumo de interesses masculinos entre a sua pessoa e a de Marjorie. “Mas a mentira”, pensou ele, “devia estar transparentemente visível através da fumaça.”
— Não podias conversar com ele em outra ocasião?
— É importante — respondeu Walter, balançando a cabeça. — Além disso — acrescentou, esquecendo-se de que várias desculpas às vezes são menos convincentes do que uma única —, lady Edward convidou o diretor de um jornal americano especialmente por minha causa. O homem me pode ser útil; você sabe que eles pagam como nababos. — O que lady Edward lhe dissera era que convidaria o jornalista se ele já não tivesse voltado para a América, como ela supunha. — Realmente, pagam muito bem — continuou Walter, engrossando a cortina de fumo com particularidades fúteis de ordem impessoal. — É o único lugar do mundo onde é possível a um escritor ser pago em excesso. — Tentou rir. — E eu na verdade preciso desse regime para compensar o nosso: dois guinéus por mil palavras. — Apertou Marjorie com mais força, inclinou a cabeça para beijá-la. Ela, porém, desviou o rosto. — Marjorie — implorou —, não chore. Por favor.
Sentiu-se culpado e infeliz. Mas, oh!, por que ela não o deixava em paz, em paz?
— Não estou chorando.
Mas os lábios de Walter tocaram uma face úmida e fria.
— Marjorie, não vou se você não quiser que eu vá.
— Mas eu quero que você vá — retorquiu ela, conservando ainda o rosto virado.
— Não quer. Eu fico.
— Não deve ficar. — Marjorie olhou para o companheiro e fez um esforço para sorrir. — É uma tolice minha. Seria absurdo você deixar de falar com o seu pai e com o jornalista americano.
Os seus próprios pretextos, que lhe eram devolvidos daquela maneira, pareceram-lhe particularmente vãos e pouco convincentes. Walter fez um gesto que traduzia uma espécie de repugnância.
— Eles podem esperar — respondeu. Havia uma nota de cólera em sua voz. Cólera para consigo mesmo, por ter apresentado desculpas tão mentirosas (por que não lhe podia dizer a crua, a brutal verdade sem rebuços? Afinal de contas ela já sabia); e Walter irritou-se contra Marjorie porque ela lhe lembrava das suas mentiras. Desejava que elas caíssem no poço do esquecimento e ali ficassem como se nunca tivessem sido proferidas.
— Não, não; faço questão... Foi uma tolice. Desculpe.
A princípio Walter resistiu, recusou partir, insistiu em ficar. Agora que não havia o perigo de ser obrigado a fazê-lo, ele podia insistir. Porque Marjorie, naturalmente, estava firme na resolução de deixá-lo ir. Era uma oportunidade que ele tinha para mostrar-se nobre e disposto ao sacrifício: custava-lhe pouco, era mesmo grátis. Que comédia odiosa! Mas representou o seu papel. Ao cabo concordou em ir, como se, por não ficar, fizesse à amante um favor especial. Marjorie atou-lhe no pescoço o lenço de seda, trouxe-lhe o chapéu alto e as luvas e deu-lhe um beijo leve de despedida, mantendo uma corajosa aparência de contentamento. Tinha o seu orgulho e o seu código de honra no amor; e, a despeito da infelicidade, a despeito do ciúme, conservava-se fiel a seus princípios — ele devia ser livre; não tinha direito de se intrometer na vida de Walter. De resto, a melhor política era mesmo não intervir nos assuntos dele. Pelo menos era o que lhe parecia...
Walter fechou a porta atrás de si e pôs-se a caminhar dentro da frescura da noite. Um criminoso que fugisse do local do seu crime, que fugisse ao espetáculo da vítima, que fugisse à compaixão e ao remorso, não poderia sentir-se mais profundamente aliviado. Na rua, respirou profundamente. Estava livre. Livre de recordações, livre de antecipações. Livre: por uma hora ou duas podia recusar-se a admitir a existência do passado e do futuro. Livre de viver apenas no tempo e no lugar presente, no lugar onde acontecesse achar-se o seu corpo. Livre — mas o alarde era vão; ele continuava a recordar. Fugir não era coisa tão fácil. A voz dela o perseguia. “Insisto que você vá.” O seu crime era ao mesmo tempo fraude e assassínio. “Faço questão.” Com que nobreza ele havia protestado! E, por fim, com que magnanimidade tinha cedido! Era a trapaça a coroar a crueldade.
— Meu Deus! — disse Walter quase em voz alta. — Como pude fazer isso? — Estava assombrado, além de revoltado contra si mesmo. — Mas se ao menos ela me deixasse em paz! Por que não pode ser razoável? — A cólera fraca e fútil explodiu de novo dentro dele.
Pensou no tempo em que seus desejos eram diferentes. A sua ambição toda era não ser deixado em paz por ela. Tinha encorajado a devoção de Marjorie. Lembrou-se da vivenda em que ambos tinham morado, a sós um com o outro, mês após mês, entre as colinas solitárias. Que vista, a de Berkshire! Mas uma milha e meia os separava da aldeia mais próxima. Oh! — o peso daquele bornal cheio de provisões! A lama, quando chovia! E o balde que era preciso içar do poço por meio da manivela. Um poço de mais de trinta metros de profundidade. Mas, fora das obrigações penosas, como a de puxar o balde, tinha aquela temporada sido realmente satisfatória? Teria ele sido verdadeiramente feliz com Marjorie — tão feliz, pelo menos, como imaginara que havia de ser, que devia ser em tais circunstâncias? Aquilo podia ter sido como o “Epipsychidion”;[1] mas não fora... talvez porque ele desejara demasiado conscientemente que assim fosse, porque procurara com deliberação modelar os seus sentimentos e a vida de ambos de acordo com a poesia de Shelley.
— Não devemos tomar a arte muito ao pé da letra. — Lembrava-se Walter do que o seu cunhado, Philip Quarles, lhe dissera uma noite em que falaram de poesia. — E especialmente no que diz respeito ao amor.
— Nem mesmo quando é verdadeira? — perguntara ele.
— A poesia pode ser demasiadamente verdadeira. Pura como água destilada. Quando a verdade não é nada senão a verdade, ela é antinatural; uma abstração que não se parece em nada com o mundo real. Na natureza há sempre tantas coisas estranhas misturadas à verdade essencial! Eis por que a arte nos comove — precisamente porque está depurada de todas as impurezas da vida real. As orgias verdadeiras nunca são tão excitantes como os livros pornográficos. Num volume de Pierre Louys todas as raparigas são jovens e têm formas perfeitas; não há soluços de bebedeira, nem mau hálito, nem fadiga, nem tédio, nem lembranças súbitas de contas a pagar ou de cartas comerciais a responder; nada disso para interromper os arrebatamentos. A arte nos dá a sensação, o pensamento, o sentimento absolutamente puros, isto é: quimicamente puros. — E acrescentara com uma risada: — Não moralmente.
— Mas o Epipsychidion não é pornografia — objetara Walter.
— Não, mas é igualmente puro sob o ponto de vista químico. Como é aquele soneto de Shakespeare?
My mistress’s eyes are nothing like the sun;
Coral is far more red than her lips’ red:
If snow be white, why then her breasts are dun;
If hairs be wires, black wires grow on her head.
I have seen roses damasked, red and white,
But no such roses see I in her cheeks;
And in some perfumes is there more delight
Than in the breath that from my mistress reeks...[2]
— E assim por diante. Ele tinha tomado os poetas muito ao pé da letra e estava reagindo. Que isso te sirva de advertência!
Philip tinha razão, era claro. Aqueles meses na vivenda não tinham sido absolutamente como o Epipsychidion ou “La Maison du Berger”.[3] Havia o poço e a caminhada até a aldeia... Mas ainda que não houvesse o poço nem a caminhada, ainda que ele tivesse Marjorie absolutamente pura, aquilo tudo teria sido melhor? Talvez fosse até pior. Marjorie quimicamente pura podia ter sido pior do que Marjorie temperada pelas impurezas.
Aquele refinamento dela, por exemplo, aquela virtude fria, espiritual e sem sangue eram coisas que ele admirava a distância e teoricamente. Mas na prática e de perto? Fora por aquela virtude, por aquela espiritualidade refinada, cultivada e sem ardor que ele se apaixonara; por aquela virtude e pela infelicidade de Marjorie; porque Carling era um sujeito inqualificável. A piedade transformara Walter num cavaleiro andante. Amar, pensava ele então (porque tinha apenas vinte e dois anos naquele tempo, era ardentemente puro, dessa pureza adolescente dos desejos sexuais virados pelo avesso; acabara de deixar Oxford, abarrotado de poesia e das lucubrações de filósofos e místicos), amar era trocar ideias, o amor era comunhão espiritual e camaradagem. Esse era o amor verdadeiro. A parte sexual era apenas uma coisa acessória — inevitável, porque infelizmente os seres humanos tinham corpos; mas uma impureza que devia ser conservada tanto quanto possível em último plano. Ardentemente puro, com a chama dos desejos moços artificialmente ensinada a arder no plano angélico, ele admirara aquela pureza refinada e serena que, em Marjorie, era o produto de uma frieza natural, de uma vitalidade congenitamente pobre.
— Você é tão boa — dissera-lhe. — Parece que tudo isso te vem tão naturalmente... quisera ser bom como você.
Isso era o mesmo — e ele não o percebia — que desejar ser meio morto. Sob aquela aparência de timidez hesitante, Walter, muito sensível, era ardentemente vivo. Para ele era na verdade difícil ser bom da maneira como Marjorie. Esforçou-se por sê-lo, contudo. Enquanto isso, admirava a bondade e a pureza dela. E ficou sensibilizado — pelo menos até o momento em que começou o aborrecimento e a exasperação — pela devoção daquela criatura; sentia-se lisonjeado pela admiração que lhe inspirava.
Enquanto se dirigia agora para a estação de Chalk Farm, Walter lembrou-se subitamente da história que seu pai costumava contar a respeito de um chofer italiano com o qual um dia falara sobre o amor. (O velho tinha verdadeiro gênio para puxar as pessoas pela língua; toda espécie de gente, mesmo criados, mesmo operários. Walter invejava-lhe esse talento.) Algumas mulheres, segundo o chofer, eram como guarda-roupas. Sono come cassettoni. Com que graça o velho costumava contar a anedota! Elas podem ser bonitas como a gente quiser; mas de que nos serve ter um belo guarda-roupa nos braços? De que nos serve? (“E Marjorie”, refletia Walter, “nem mesmo chegava a ser realmente bonita.”) “Deem-me”, dizia o chofer, “mulheres da outra espécie, mesmo que sejam feias. A minha pequena”, confessava, “é da outra espécie. E’ un frullino, proprio un frullino — um verdadeiro batedor de ovos.” Por trás do monóculo, John Bidlake piscava o olho, como um velho sátiro perverso e jovial. A rigidez de um guarda-roupa ou a vivacidade de um batedor de ovos? Walter tinha de confessar que suas preferências eram idênticas às do chofer. Pelo menos sabia por experiência pessoal que (cada vez que o amor “verdadeiro” era temperado pelos acessórios sexuais) ele não apreciava muito as mulheres do tipo guarda-roupa.
À distância, teoricamente, a pureza, a bondade e a espiritualidade refinada são coisas admiráveis. Mas de perto e na prática são menos atraentes. E, vindas de uma pessoa por quem não nos sentimos atraídos, até a devoção, até mesmo a lisonja da admiração são insuportáveis. Confusa e simultaneamente, Walter odiava Marjorie por causa de sua frieza paciente de mártir e acusava-se de sensualidade bestial. Seu amor por Lucy era uma coisa louca e vergonhosa, mas Marjorie não tinha sangue, era um ser semimorto. Via-se justificado e ao mesmo tempo sem desculpa... Mas principalmente sem desculpa, apesar de tudo; principalmente sem desculpa. Aqueles sentimentos sensuais eram vis; eram ignóbeis. Batedor de ovos e guarda-roupa — podia-se conceber coisa mais baixa e sórdida do que tal classificação? Walter ouvia em imaginação a risada sonora e gorda do pai. Horrível! Toda a vida consciente de Walter havia sido orientada em oposição à do pai, em oposição à sensualidade jovial e descuidada do velho Bidlake. Conscientemente, sempre se colocara do lado da mãe, do lado da pureza, do refinamento, do espírito. Mas o seu sangue, pelo menos em metade, era o mesmo do pai. E agora, os dois anos de convívio com Marjorie tinham-no enchido de repugnância pela virtude fria. Walter lhe tinha um horror consciente, se bem que ao mesmo tempo sentisse vergonha desse horror, vergonha daquilo que ele chamava os seus desejos bestiais, vergonha de seu amor por Lucy. Mas se ao menos Marjorie o deixasse em paz! Se ao menos se abstivesse de reclamar a volta ao amor indesejável que ela insistia em lhe impor à força! Se ao menos cessasse de ser tão terrivelmente dedicada! Ele lhe podia dar amizade — porque gostava dela sinceramente; tinha tão bom coração, era tão boa, tão leal e devotada... Walter seria feliz por ter em troca a amizade da companheira. Mas amor... — isso era sufocante.
E quando, ao imaginar que estava combatendo a outra mulher com as suas próprias armas, Marjorie violentava a sua própria frieza virtuosa e tentava reconquistá-lo pelo ardor de suas carícias — oh! como isso era terrível, verdadeiramente terrível!
“E depois”, continuava Walter a refletir, “Marjorie era no fundo uma criatura maçante, com a sua seriedade pesada e sem sensibilidade. Uma verdadeira tola, apesar da sua cultura — ou talvez por causa disso mesmo. Essa cultura era autêntica, não havia dúvida. Ela tinha lido livros e lembrava-se deles. Mas tê-los-ia compreendido? Podia ela compreendê-los? As observações com que quebrava os seus longos, longos silêncios — observações sérias e cultas —, como eram pesadas, como eram sem graça e falhas de compreensão!” Fazia bem em ser tão calada; o silêncio está cheio de espírito e sabedoria em potência, assim como o mármore não trabalhado está cheio de grandes esculturas. Os silenciosos nunca depõem contra si mesmos. Marjorie sabia escutar bem e com simpatia. E quando quebrava o silêncio, a metade das coisas que dizia eram citações. Porque tinha boa memória e adquirira o hábito de aprender de cor os grandes pensamentos e as passagens brilhantes. Walter levara algum tempo para descobrir a estupidez espessa e dramaticamente desprovida de compreensão que se escondia debaixo daquele silêncio e daquelas citações. Quando chegou a descobrir, era tarde demais.
Pensou em Carling. Bêbedo e religioso. Sempre tagarelando a respeito de casulas, de santos e da Imaculada Conceição, e ao mesmo tempo um beberrão indecente. Se ele não fosse tão detestável, tão repugnante, se não tivesse tornado Marjorie tão desgraçada — que se teria passado então? Walter imaginava-se livre. Não teria sentido piedade, não teria amado. Lembrou-se dos olhos vermelhos e inchados de Marjorie, após uma daquelas cenas desagradáveis com Carling. Que brutalhão asqueroso!
“E eu?”, pensou ele subitamente.
Sabia que no momento em que a porta se lhe fechara às costas, Marjorie começara a chorar. Carling pelo menos tinha a desculpa do uísque. Perdoai-lhes, porque eles não sabem o que fazem. Ele sempre fora temperante. E naquele momento — Walter tinha certeza — ela estava chorando.
“Devo voltar”, disse ele para si mesmo. Mas em vez disso acelerou o passo até que se achou quase a correr rua abaixo. Era uma fuga de sua consciência e ao mesmo tempo uma corrida rumo ao objeto de seu desejo.
“Devo voltar para casa, devo.”
E apressava-se, odiando Marjorie só porque a tornava assim tão infeliz.
Um homem que estava olhando a vitrine de uma tabacaria deu de repente um passo atrás, no momento em que Walter passava. Houve uma colisão violenta.
— Perdão! — disse o jovem Bidlake automaticamente, acelerando a marcha sem olhar para o lado.
— Aonde vai, seu? — gritou-lhe o homem às costas, com raiva. — Quem é que você pensa que é? Algum felizardo que ganhou no Derby?
Dois gaiatos explodiram em uma gargalhada feroz, dando expansão à sua alegria irreverente.
— Oh, seu cartola de chaminé! — continuou o homem em tom de mofa, tomado de raiva pelo cavalheiro vestido de gala.
O mais acertado seria virar-se e devolver os desaforos ao sujeito. O velho Bidlake o teria esmagado com uma palavra. Mas para Walter a única solução que se apresentava era a fuga. Ele temia encontros daquela natureza, as classes inferiores o enchiam de medo. O ruído dos vitupérios do desconhecido apagou-se-lhe nos ouvidos.
Era odioso! Walter sentiu um calafrio. Seus pensamentos voltaram para Marjorie.
“Por que ela não pode ser razoável?”, perguntou mentalmente. “Simplesmente razoável. Se ao menos ela tivesse algo que fazer, algo que a mantivesse ocupada...”
O seu mal era ter tempo demais para pensar. Tempo demais para pensar nele. No entanto, o culpado disso era o próprio Walter; fora ele que lhe roubara a sua ocupação, fazendo com que a criatura concentrasse o seu espírito exclusivamente nele. Marjorie havia entrado como sócia em uma loja de arte decorativa ao tempo em que ele a conhecera; era um desses estabelecimentos artísticos de amadores, que existem em Kensington, muito ao sabor das damas da sociedade. Os quebra-luzes, a companhia das mulheres jovens que os pintavam e sobretudo a devoção a mrs. Cole, a sócia principal, compensavam para Marjorie o seu casamento infeliz. Tinha criado um pequeno mundo seu, à parte do de Carling; um mundo feminino, com algo de internato de meninas, um mundo em que Marjorie podia falar a respeito de vestidos e lojas, ouvir mexericos, e entregar-se ao que as raparigas colegiais chamam uma “paixa” por uma mulher mais velha, e imaginar, nos intervalos, que ela estava participando do trabalho universal e favorecendo a causa da arte.
Walter a tinha persuadido a renunciar a tudo aquilo — não sem dificuldade, entretanto. Porque a felicidade que lhe trazia o seu devotamento para com mrs. Cole, a sua “paixa” sentimental por ela, constituíam quase uma compensação às suas misérias com Carling. Mas Carling se revelara de tal maneira abominável que até mrs. Cole se tornou insuficiente como elemento compensador. Walter oferecia o que esta provavelmente não podia e positivamente não queria dar — refúgio, proteção e auxílio financeiro. Ademais, Walter era um homem, e um homem deve, por tradição, ser amado mesmo quando uma mulher, no fundo, não goste dos homens e se sinta naturalmente melhor na companhia das outras mulheres (conclusão a que o jovem Bidlake chegara a respeito de Marjorie). (Outra vez o efeito da literatura! Walter lembrou-se dos comentários de Philip Quarles a respeito da desastrosa influência que a arte pode exercer sobre a vida.) Sim, ele era um homem; mas “era diferente dos outros”, como Marjorie não se cansava de lhe dizer. E ele aceitara então essa “diferença” como uma distinção lisonjeira. Mas seria lisonjeira? Punha-se a fazer conjecturas. Fosse como fosse, ela o achava “diferente dos outros”, de sorte que podia auferir dois proveitos ao mesmo tempo: possuía um homem que, entretanto, não era homem. Encantada pelas palavras persuasivas de Walter, impelida pelas brutalidades de Carling, Marjorie tinha consentido em abandonar a loja e com ela mrs. Cole, que Walter detestava como sendo a encarnação tirânica, autoritária e vampiresca da vontade feminina.
— Você tem aptidões para ser muito mais que uma estofadora diletante.
Dizendo-lhe isto, ele a lisonjeara, movido pela confiança sincera que tinha então nas capacidades intelectuais de Marjorie.
Ela podia ajudá-lo, de uma maneira ainda indeterminada, em seus trabalhos literários; ela mesma poderia escrever também. Sob a influência do novo companheiro pusera-se Marjorie a escrever ensaios, novelas. Mas, positivamente, eles não valiam nada. Depois de a ter encorajado, Walter se tornou reticente; não falou mais em tal coisa. Ao cabo de pouco tempo, Marjorie abandonou aquela ocupação antinatural e fútil. Depois disso nada lhe restara além de Walter. Ele se tornou a razão de ser de sua existência, a base sobre a qual toda a sua vida repousava. E essa base agora cedia sob os seus pés...
“Se ao menos”, pensava Walter, “ela me deixasse em paz!”
Entrou na estação do metrô. Na entrada um homem vendia os jornais da noite. os socialistas e o seu projeto de roubo. primeira leitura. As palavras destacavam-se, vivas, em um cartaz. Contente com esse pretexto para distrair o espírito, Walter comprou um jornal. O projeto de lei do governo liberal-trabalhista sobre a nacionalização das minas tinha sido aceito à primeira leitura, pela maioria de costume. Walter leu a notícia com prazer. Tinha ideias políticas avançadas. O que não acontecia com o redator do jornal da noite. A linguagem do artigo de fundo era de uma violência feroz.
“Que patifes!”, pensou Walter ao lê-lo. O artigo despertou nele um entusiasmo vivificante por tudo o que o jornalista atacava, um delicioso ódio aos capitalistas e aos reacionários. As barreiras de sua individualidade se viram momentaneamente derribadas, abolidas as complicações pessoais. Possuído pela alegria da luta política, ultrapassou suas limitações, tornou-se de algum modo maior do que ele mesmo — maior e mais simples.
— Que patifes! — repetiu, pensando nos opressores, nos detentores dos monopólios.
Na estação de Camden Town, um velhinho encarquilhado, com um lenço vermelho amarrado ao pescoço, sentou-se ao lado dele. O fedor do cachimbo do homem era de tal maneira sufocante que Walter passeou o olhar pelo carro, à procura de um lugar vago. Achou um; mas, refletindo num segundo, decidiu não se mover. Fugir ao cheiro pestilencial seria agir de uma maneira ofensiva, demasiadamente visível, e poderia ocasionar comentários da parte do malcheiroso... A fumaça acre lhe irritava a garganta. Walter tossiu.
“Devemos ser leais para com os nossos gostos e instintos”, dizia Philip Quarles. “Para que serve uma filosofia cuja premissa maior não é a expressão racional de nossos sentimentos? Se nunca tivemos um acesso de fervor religioso, é loucura crer em Deus. Da mesma maneira que será loucura crer na excelência das ostras, se não as podemos comer sem sentir náuseas.”
Veio às narinas de Walter, com os vapores de nicotina, uma baforada de suor azedo. Walter voltou à leitura do jornal: “Os socialistas chamam a isso nacionalização; mas nós outros temos um nome mais curto e mais simples para o que eles se propõem fazer. Chamamos a isso — roubo”. Mas era ao menos um roubo infligido a ladrões, e em proveito de suas vítimas. O velhinho se inclinou para a frente e cuspiu, cuidadosa e verticalmente, entre os dois pés. Com o salto da botina espalhou o cuspe sobre o soalho. Walter desviou os olhos; quisera poder amar pessoalmente os oprimidos, e pessoalmente odiar os ricos opressores. “Devemos ser leais para com os nossos gostos e instintos.” Mas os nossos gostos e instintos são acidentes. Há princípios eternos. Mas se acontece que os princípios axiomáticos não são a nossa premissa pessoal maior?...
E subitamente Walter se reviu aos nove anos de idade. Passeava com a mãe pelos campos que havia perto de Gattenden. Cada um deles levava um buquê de primaveras. Com certeza tinham ido a Batt’s Corner; era o único lugar onde havia primaveras nas redondezas.
— Vamos parar um minuto para ver o nobre Wetherington — disse a mãe. — Ele está muito doente.
Bateu à porta da cabana.
Wetherington fora segundo jardineiro na herdade; mas não trabalhava desde o mês anterior. Walter tinha lembrança de que ele era um homem pálido e magro que tossia, um homem nada comunicativo. Wetherington não o interessava muito. Uma mulher abriu a porta.
— Boa tarde, mr. Wetherington.
Entraram.
Wetherington estava deitado na cama, escorado por travesseiros. O seu rosto era terrível. Um par de olhos enormes, de pupilas dilatadas, olhavam fixamente do fundo de órbitas cavernosas. Esticada sobre os ossos salientes, a pele estava branca e viscosa de suor. Mais aterrador, porém, do que o rosto, era o pescoço, incrivelmente delgado. E das mangas da camisa de dormir emergiam duas estacas nodosas, os braços, com imensas mãos esqueléticas presas na ponta, como ancinhos na extremidade dos cabos finos. E, depois, o cheiro daquele quarto de doente! As janelas se achavam hermeticamente fechadas, havia fogo na pequena lareira. O ar estava quente e carregado de um horrível bafo rançoso e doentio, misturado às exalações do corpo enfermo — um cheiro antigo que, parecia, se tornara pestilencialmente adocicado à força de amadurecer tanto tempo dentro do calor fechado. Um cheiro novo, fresco, por mais forte e desagradável que fosse, seria menos horrível. Era a velhice, a decomposição adocicada daquele cheiro de quarto de doente que o tornava particularmente insuportável. Walter sentia arrepios até agora, pensando naquilo. Acendeu um cigarro para desinfetar a memória. Fora educado no hábito dos banhos e das janelas abertas. A primeira vez que o levaram, criança ainda, à igreja, o abafamento e o cheiro de humanidade o deixaram mareado. Teve de ser conduzido para fora às pressas. A mãe nunca mais o levou à igreja. “Talvez sejamos educados de maneira demasiadamente higiênica, demasiadamente asséptica”, pensou ele. Uma educação cujo resultado é sentirmos náuseas na companhia de nossos semelhantes, de nossos irmãos, pode ser boa? Walter quisera amá-lo. Mas o amor não floresce numa atmosfera que infunde ao que ama uma repugnância incoercível.
No quarto em que Wetherington jazia doente, até mesmo a piedade era difícil florescer. Walter, enquanto a mãe conversava com o moribundo e com sua esposa, se deixou ficar sentado a contemplar, malgrado seu, mas arrastado pela fascinação do horror, o apavorante esqueleto sentado na cama, e respirar por meio de seu ramalhete de primaveras o ar quente e nauseabundo. De mistura com o perfume fresco e delicioso das flores ele sentia os miasmas persistentes do quarto do doente. Não chegava quase a sentir piedade, apenas horror, medo e desgosto. E mesmo quando mrs. Wetherington se pôs a chorar, desviando o rosto a fim de que o doente não lhe visse as lágrimas, Walter sentiu ainda menos compaixão do que mal-estar e embaraço. O espetáculo dessa dor fê-lo somente desejar a fuga com mais ardor ainda: sair daquele horrível quarto para o ar infinito e puro, para o sol...
Walter teve vergonha dessas emoções, recordando-as. No entanto, era bem o que tinha sentido, o que sentia ainda. “Devemos ser leais para com nossos instintos.” Não, não para com todos, não para com os maus: era preciso resistir a estes últimos. Mas eles não se deixavam vencer com facilidade.
O velhinho que estava sentado a seu lado tornou a acender o cachimbo. Walter lembrou-se de que tinha contido a respiração o maior tempo possível, para não ter de inalar muito repetidamente o ar pestilencial do quarto do doente. Respirava profundamente por meio das primaveras; depois contava até quarenta antes de expirar e de absorver o ar de novo. O velho se inclinou outra vez para cuspir. “A ideia de que a nacionalização fará crescer a prosperidade dos trabalhadores é absolutamente ilusória. Durante os últimos anos o contribuinte aprendeu à sua custa a significação do controle burocrático. Se os trabalhadores imaginam...” Walter fechou os olhos e reviu o quarto de Wetherington. Chegara o momento da despedida: ele apertou na sua a mão esquelética do doente, a mão que jazia inerte sobre a coberta. Walter deslizou os seus dedos sob aqueles dedos mortos e descarnados; levantou a mão por um instante e deixou-a cair de novo. O contato era frio e úmido. Walter virou-se e esfregou dissimuladamente a palma da mão no sobretudo. Deixou escapar, num suspiro explosivo, o fôlego por muito tempo contido e encheu de novo os pulmões daquele ar nauseante. Foi a última vez que teve de inalá-lo; sua mãe já se dirigia para a porta. O pequeno pequinês saltitava em torno dela, latindo.
— Sossega, T’ang! — disse ela com a sua linda voz clara. “Era sem dúvida a única pessoa na Inglaterra”, pensava Walter agora, “que pronunciava regularmente o apóstrofo na palavra T’ang.”
Voltaram para casa pela senda que cortava os campos. Fantástico e inverossímil como um pequeno dragão chinês, T’ang corria diante deles, saltava levemente para vencer o que, para ele, eram obstáculos enormes. Sua cauda peluda flutuava ao vento. Algumas vezes, quando a relva era muito alta, ele se sentava sobre o pequeno traseiro chato, como se estivesse pedindo açúcar, e, olhando com os olhos redondos e bojudos por cima dos tufos de relva, procurava orientar-se.
Sob o claro céu multicolorido Walter se sentira como um prisioneiro libertado. Corria, gritava. A mãe caminhava devagar, sem nada dizer. A cada instante se detinha um momento e fechava os olhos. Era um hábito que tinha, quando estava pensativa ou perplexa. E ficava perplexa com muita frequência — pensava agora Walter, sorrindo interiormente com ternura. O pobre Wetherington, sem dúvida, lhe dera bastante que refletir. Ele se lembrava de tê-la visto parar diversas vezes no caminho de volta para casa.
— Apressa-te, mamãe — gritava com impaciência. — Vamos chegar tarde para o chá.
A cozinheira tinha assado bolos na chapa, para o chá, e havia ainda uma torta de ameixas do dia anterior e um pote recém-aberto de geleia de cerejas de Tiptree.
“Devemos ser leais para com nossos gostos e instintos.” Mas um acidente de nascimento havia determinado nele esses gostos e instintos. A justiça era eterna; a caridade e o amor fraterno eram belos, malgrado o cachimbo do velhote e o quarto de Wetherington; belos precisamente por causa de tais coisas. O trem diminuía a marcha. Leicester Square. Walter desceu à plataforma e caminhou para os elevadores. Mas, ia pensando, é difícil negar a premissa maior pessoal; e é bem difícil acreditar em uma premissa maior não pessoal, por melhor que ela seja. A honra e a fidelidade eram boas coisas. Mas a premissa maior pessoal de sua filosofia presente se resumia no seguinte: Lucy Tantamount era a mais bela, a mais desejável...
— Todos os bilhetes, façam o favor!
O debate ameaçava recomeçar. Deliberadamente, Walter pôs-lhe uma pedra em cima. O ascensorista bateu as portas, o elevador subiu. Na rua, Walter tomou um táxi.
— Tantamount House, Pall Mall.