Capítulo IV
pongileoni excedeu-se a si mesmo na Badinerie final. Os axiomas euclidianos, de mãos dadas com as fórmulas da estática elementar, proclamaram feriado. A aritmética celebrou uma bárbara saturnal; a álgebra fez cabriolas. A música findou numa orgia de folguedos matemáticos. Houve aplausos. Tolley inclinou-se num cumprimento, com toda a sua graça habitual; Pongileoni inclinou-se; até os músicos anônimos se inclinaram. O auditório afastou as cadeiras e levantou-se. Toda a tagarelice contida explodiu em torrentes.
— Você não acha que o Velho estava maravilhosamente engraçado?
Polly Logan encontrara uma amiga.
— Sim. E também o homenzinho de cabelos cor de cenoura.
— Pareciam Mutt e Jeff.
— Eu julguei que ia morrer de tanto rir — disse Norah.
— Que feiticeiro! — Polly falava agora num cochicho vibrante de emoção, inclinando-se para a frente e arregalando os olhos, como para exprimir em pantomima dramática, ao mesmo tempo que em palavras, o mistério do velho mágico. — Um bruxo!
— Mas que é que ele faz lá em cima?
— Corta em pedaços sapos e lagartixas e o que mais aparece... — respondeu Polly.
Olho de rato, rabo de arraia.
Perna de pato, pé de cobaia.
Recitou com delícia, embriagada pelas palavras. E continuou:
— Pois ele pega as cobaias e cruza-as com serpentes. Podes imaginar isto: uma cruza entre uma cobra e uma cobaia?
— Ui! — gritou a outra, sentindo um calafrio. — Mas se o Velho só se interessa por coisas dessa ordem, por que foi então que se casou com Hilda? Isto é o que sempre desejei saber...
— Por que foi que ela casou-se com ele? — Aqui a voz de Polly desceu de novo a um murmúrio teatral. Gostava de dar a todas as coisas um sabor sensacional, excitante — tão excitante e sensacional como o que tinham ainda para ela. Contava apenas vinte anos. — Havia muito boas razões para isso.
— Sim, é o que acho.
— E lembra-te de que ela era canadense, o que torna as razões ainda mais fortes.
— A gente se admira é de como Lucy...
— Sst!
A outra se voltou.
— Mas não estava mesmo esplêndido o Pongileoni? — exclamou ela em voz muito alta e com uma presença de espírito supinamente exagerada.
— Admirabilíssimo! — respondeu Polly, gritando como se estivesse em um palco de Drury Lane. — Ah! Aí vem lady Edward. — Ambas se mostraram enormemente surpreendidas e encantadas. — Estávamos justamente falando da maneira maravilhosa como Pongileoni tocou.
— Estavam? — disse lady Edward, sorridente, olhando ora para uma, ora para outra.
Tinha uma voz profunda e cheia; falava vagarosamente, como se tudo quanto dizia fosse sério e importante.
— Vocês são verdadeiramente amáveis — continuou, carregando vigorosamente nos rr. — Pongileoni é italiano — acrescentou, enquanto o seu rosto, onde o sorriso se apagara, assumia um ar grave. — E é o que o torna ainda mais admirável.
Dito isto passou adiante, deixando as duas moças a se entreolharem, atarantadas e vermelhas.
Lady Edward era uma mulher pequena e delgada; tinha uma elegância de linhas que, em vestido decotado, começava visivelmente a tender para a angulosidade óssea, da mesma maneira que os belos traços aquilinos de seu rosto alongado e fino. Uma mãe francesa e talvez, nos últimos tempos, a arte do cabeleireiro explicavam o negrume de azeviche da sua cabeleira. Tinha a pele branca e opaca. Os seus olhos, debaixo de sobrancelhas negras e arqueadas, possuíam aquele desassombro, aquela insistência no olhar que é a característica de todos os olhos muito sombrios num rosto pálido. A esse desassombro genérico lady Edward juntava certa insolência cândida do olhar fixo e da expressão de vivacidade ingênua que era muito sua. Eram olhos de criança — “mais d’un enfant terrible” como John Bidlake tinha prevenido um amigo francês que levara para vê-la. Esse colega francês teve ocasião de fazer a descoberta por conta própria. Na mesa do almoço viu-se sentado ao lado do crítico que, referindo-se aos seus quadros, escrevera que eles eram obra de um imbecil ou de um gaiato. Lady Edward, com ar inocente, os olhos arregalados, entabulara uma discussão sobre arte... John Bidlake ficou furioso. Chamou-a à parte, findo o repasto, e lhe disse francamente o que pensava:
— Diabos levem tudo isso! O homem é meu amigo. Trago-o para te ver. E é assim que você o trata! Esta é forte demais!
Nunca os olhos vivos e negros de lady Edward brilharam com um brilho mais cândido, nem sua voz revelou um timbre franco-canadense mais desconcertante — porque ela sabia modificar seu acento à vontade, tornando-o mais ou menos colonial, segundo lhe conviesse ser a menina ingênua da estepe norte-americana ou a aristocrata inglesa.
— Mas o que é forte demais? Que foi que eu fiz desta vez?
— Não me venha com as tuas comédias...
— Mas não se trata de comédia. Não sei a que te referes, não tenho a menor ideia.
Bidlake lhe explicou o caso do crítico.
— Você sabia tão bem como eu. E agora, pensando bem no assunto, lembro-me de que falamos do artigo dele não faz ainda uma semana!
Lady Edward franziu as sobrancelhas, como se tentasse recapturar uma lembrança apagada.
— É verdade! — exclamou por fim, olhando para o amigo com uma expressão de horror e arrependimento. — Que desgraça! Mas você sabe que minha memória é um caso perdido...
— De todas as pessoas que conheço, a que tem melhor memória é você.
— Mas eu me esqueço sempre — protestou ela.
— Você só esquece o que sabe que deve lembrar. Estas coisas acontecem de uma maneira excessivamente regular para serem acidentais... É que você resolve voluntariamente esquecer.
— Que insensatez!
— Se tivesse má memória — prosseguiu Bidlake —, poderia de vez em quando esquecer que os maridos não devem ser convidados para encontros com os amantes notórios de suas mulheres; podia esquecer algumas vezes que os anarquistas e os autores dos artigos de fundo do Morning Post não podem ser lá muito bons amigos, e que os católicos piedosos não têm muito prazer em ouvir blasfêmias da boca de ateus profissionais. Podia acidentalmente esquecer tudo isto, se a sua memória fosse ruim. Mas, eu te garanto, é preciso uma memória de primeira ordem para esquecer sempre e sempre. Uma memória de primeira ordem e também um grande desejo de fazer travessuras.
Pela primeira vez desde o início da conversação lady Edward abandonou o ar sério e ingênuo. Pôs-se a rir:
— Realmente, meu caro John, você é notadamente ridículo!
Bidlake, enquanto falava, tinha recobrado o bom humor; por sua vez, pôs-se também a rir.
— Tome nota — disse —, eu não ponho a menor objeção a que você faça brincadeiras com outras pessoas. Divirto-me com elas. Mas que você as faça comigo, isso é que não!
— Farei o possível para me lembrar disso na próxima vez — disse Hilda com uma voz submissa, olhando para o interlocutor com uma ingenuidade tão impertinente que Bidlake não pôde deixar de rir.
Isso se passara havia muitos anos; ela tinha cumprido a palavra e não pregara mais peças no amante. Mas com os outros continuava a mostrar-se tão embaraçosamente inocente e esquecida como sempre. Nas rodas em que ela se movia, suas façanhas eram legendárias. Os outros riam. Mas havia vítimas demais; ela era temida, mas não amada. No entanto, as suas festas eram muito concorridas; seu cozinheiro, seu provador de vinhos e seu fornecedor eram de primeira classe. O muito que se lhe perdoava era por causa do dinheiro do marido. De resto, a sociedade de Tantamount House era variadamente e algumas vezes excentricamente ilustre. Aceitavam os convites de lady Edward e tiravam desforra falando mal dela pelas costas. Entre muitas coisas chamavam-lhe esnobe e caçadora de celebridades. Mas uma esnobe — tinham de conceder aos defensores dela — que ria das pompas e das grandezas em que vivia. Uma caçadora que colecionava celebridades com o fim de atormentá-las. Num meio em que uma inglesa da classe média se haveria de mostrar séria e servil, lady Edward se mostrava gaiatamente irreverente. Vinha do Novo Mundo; para ela as hierarquias tradicionais eram uma brincadeira, mas uma brincadeira pitoresca, pela qual valia a pena viver.
— Ela poderia ser muito bem a heroína daquela anedota do americano e dos dois pares de ingleses — dissera um dia o velho Bidlake. — Lembram-se? O americano entabulou conversação com os dois ingleses no trem, achou-os encantadores e, desejando renovar mais tarde a camaradagem, perguntou-lhes os nomes. “Meu nome”, diz um deles, “é duque de Hampshire e este é o meu amigo o senhor de Ballantrae.” “Muito prazer em conhecê-los”, diz o americano. “Permitam-me que lhes apresente meu filho Jesus Cristo.” É Hilda sem tirar nem pôr. E acontece ainda que ela passa a vida precisamente a convidar pessoas cujos títulos lhe parecem assim cômicos e a se fazer convidar por elas. É estranho. — Bidlake balançou a cabeça. — Realmente muito estranho.
Abandonando as duas moças desconcertadas, lady Edward foi quase derrubada por um homem muito grande e corpulento, que atravessava com velocidade perigosa o salão cheio de gente.
— Perdão! — disse ele, sem baixar o olhar para ver quem estivera prestes a jogar ao chão.
Seus olhos seguiam os movimentos de alguém que se achava na outra extremidade do salão; o homem tinha consciência somente de um pequeno obstáculo, presumivelmente humano, visto que todos os obstáculos das redondezas eram humanos. Diminuiu a velocidade da marcha e deu um passo para o lado, de maneira a contornar o obstáculo. Mas o obstáculo não era dos que se podem evitar facilmente.
Lady Edward alongou o braço e apanhou o homenzarrão pela manga.
— Webley! — gritou.
Everard Webley, fingindo não ter sentido a mão que lhe segurava a manga e não ter ouvido a voz que pronunciava o seu nome, continuou a caminhar; não tinha prazer nem vagar para falar com lady Edward. Mas ela não admitia que sua presença fosse esquecida: deixou-se arrastar ao lado do homem, sempre agarrada a ele.
— Webley! — repetiu. — Para! Epa!
E soube imitar o carroceiro do campo com tanto escândalo e de um modo tão verossimilmente rústico que Webley foi obrigado a escutá-la, com medo de atrair a atenção e a hilaridade dos outros convidados.
Baixou o olhar para a dona da casa.
— Oh, é você — disse ele com dureza. — Desculpe-me, eu não tinha prestado atenção.
O aborrecimento que ele exprimia com o franzir das sobrancelhas e com as palavras pouco corteses era metade sincero, metade fingido. Webley achava que muita gente tem medo da cólera alheia; cultivava por isso a sua ferocidade natural. E essa ferocidade conservava os outros a grande distância, evitando-lhe aborrecimentos.
— Meu Deus! — gritou lady Edward com uma expressão de terror que era francamente uma caricatura.
— Deseja alguma coisa? — perguntou ele no tom de voz que teria usado para se dirigir a um mendigo de rua que o importunasse.
— Você parece muito mal-humorado.
— Se é tudo o que me queria dizer, julgo então que posso...
Lady Edward, enquanto isso, estivera a examiná-lo com espírito crítico cravando nele os seus olhos candidamente impertinentes.
— Você sabe — continuou ela, interrompendo-o no meio da frase, como se não pudesse protelar um momento mais a proclamação de sua grande e súbita descoberta — que devia representar o papel de capitão Hook, no Peter Pan? Pois é verdade. Tens a cara ideal para fazer o rei pirata. Não é mesmo, mr. Babbage?
Dirigiu-se por acaso a Illidge, que passava no momento, desconsoladamente solitário no meio da multidão de estranhos.
— Boa noite — disse o homenzinho. A cordialidade do sorriso de lady Edward não chegava a compensar de todo o insulto do esquecimento de seu nome.
— Webley, este é mr. Babbage, que auxilia o meu marido em seus trabalhos.
Webley, numa inclinação de cabeça, tomou remotamente conhecimento da existência de Illidge.
— Mas não acha o senhor, mr. Babbage, que ele se parece com um rei pirata? — insistiu lady Edward. — Examine-o bem.
Illidge riu, constrangido.
— É que... não tenho visto muitos reis piratas...
— Está claro — exclamou lady Edward —, eu tinha me esquecido de explicar; ele é mesmo um rei pirata. Na vida real. Não é, Webley?
Everard Webley riu dessa vez.
— Sim, porque este — explicou lady Edward, voltando-se confidencialmente para Illidge —, este é mr. Everard Webley. O chefe dos Ingleses Livres. O senhor já viu esses homens que usam uniforme verde, como os coristas das operetas?
Illidge sorriu maliciosamente, inclinando a cabeça. “Aquele, pois”, pensava o assistente de lord Edward, “era Everard Webley.” O fundador e chefe da Confraternidade dos Ingleses Livres — a bbf, Brotherhood of British Freemen ou os Bloody Buggering Fools,[5] como lhe chamavam os inimigos. Uma denominação inevitável; porque, como observara certa vez, em artigo dedicado aos Ingleses Livres, o extremamente bem informado correspondente do Fígaro — “les initiales bbf ont, pour le public anglais, une signification plutôt péjorative”. Webley não tinha pensado naquilo quando dera tal nome a seu bloco. Illidge sentiu prazer em refletir que ele agora era obrigado a lembrar-se da sua distração com muita frequência.
— Se voê já terminou os seus gracejos — disse Everard —, eu me retiro.
“Mussolini de meia-tigela!”, pensava Illidge. “E foi feito mesmo para representar esse papel.” (Illidge tinha um ódio especial e pessoal a quem quer que fosse alto e belo, ou a quem parecesse distinguir-se de uma maneira ou de outra. Quanto a ele, era pessoalmente um homem pequeno, parecia um garoto da rua crescido.) “Grande asno!”
— Espero que não tenha ficado ofendido por nada do que eu disse. Ficou?
Lady Edward formulou a pergunta com um ar de ansiedade e contrição.
Illidge recordou-se de uma caricatura política do Daily Herald. “Os Ingleses Livres, Webley tivera a insolência de dizer, existem para garantir a posição da inteligência no mundo.” A caricatura mostrava Webley e meia dúzia de seus bandidos fardados matando um operário a pontapés e cacetadas. Atrás do bando, um capitalista de cartola olhava a cena com ar de aprovação. E sobre o seu ventre enorme se lia a palavra “inteligência”.
— Não está ofendido, Webley? — repetiu lady Edward.
— Nem por sombra. Acontece apenas que tenho um pouco de pressa... Você compreende — explicou ele com a sua voz mais acetinada —, tenho o que fazer. Trabalho, se é que você sabe o que isso significa...
Illidge desejou que a alfinetada tivesse sido dada por outro qualquer. Tipo abjeto! Illidge era comunista.
Webley deixou-os. Lady Edward viu-o abrir caminho através da multidão.
— Parece uma máquina a vapor. Que energia! Mas tão suscetível... Estes políticos são piores do que atrizes. Que vaidade! E o meu caro Webley não tem lá muito senso de humor. Quer ser tratado como se fosse já a sua própria estátua colossal, erguida por uma nação cheia de admiração reconhecida. — Os rr de lady Edward rugiam como leões. — De uma maneira póstuma, se é que me faço entender. Como uma grande figura histórica. Acontece que quando o vejo, nunca me lembro de que ele é na realidade Alexandre Magno. Sempre me engano, tomando-o simplesmente por Webley.
Illidge riu. Descobria agora que tinha uma simpatia real por lady Edward. Aquela criatura sentia as coisas como elas devem ser sentidas. Parecia mesmo estar, em matéria de política, do lado da razão.
A dona da casa continuou:
— Não que esses Ingleses Livres não sejam coisa muito boa... — A simpatia de Illidge começou a dissipar-se com a mesma rapidez com que brotara. — Não acha, mr. Babbage?
O homenzinho fez uma careta.
— Para falar a verdade... — começou.
— A propósito — disse lady Edward, interrompendo o que teria sido um comentário admiravelmente sarcástico sobre os Ingleses Livres de Webley —, o senhor deve ter mais prudência ao descer aquela escada. Porque ela é terrivelmente escorregadia.
Illidge corou.
— Oh!... de modo nenhum... — murmurou ele, corando ainda mais, transformando-se numa verdadeira beterraba até a raiz dos cabelos cor de cenoura, ao perceber a imbecilidade do que tinha dito. A sua simpatia baixou ainda mais de nível.
— Sim, bastante escorregadia em todo caso — insistiu polidamente lady Edward, carregando enfaticamente nos rr. — Quais foram os trabalhos que o senhor fez esta noite com Edward? — continuou. — Nem imagina como isso me interessa.
Illidge sorriu.
— Bem, se a senhora realmente quer saber, estivemos trabalhando na regeneração das partes desaparecidas das lagartixas. — Entre as lagartixas ele se sentia mais à vontade: um pouco da sua simpatia por lady Edward voltou.
— Lagartixas? Esses bichinhos que andam pelas paredes? — Illidge fez com a cabeça um sinal afirmativo. — Mas como é que eles perdem as partes de que o senhor falou?
— No laboratório — explicou o outro. — E perdem porque nós as cortamos.
— E elas crescem de novo?
— Sim, crescem de novo.
— Deus meu! — fez lady Edward. — E dizer que eu não sabia disso! Como são fascinantes essas coisas! Conte-me algo mais.
No fim das contas ela não era tão má... Illidge começou a explicar. Entusiasmando-se pelo assunto, entusiasmava-se também por lady Edward. Tinha justamente chegado ao ponto decisivo, ao ponto verdadeiramente importante e significativo das experiências — a transformação da cauda transplantada em pata do rebento —, quando lady Edward, cujos olhos tinham ficado a errar de um lado para outro, pousou uma das mãos no braço do interlocutor.
— Venha comigo, que quero apresentá-lo ao general Knoyle. É um homem muito divertido... se bem que, às vezes, sem querer!
A exposição de Illidge morreu-lhe subitamente na garganta. Compreendeu que a dona da casa não tinha tomado o menor interesse no que ele lhe havia explicado — e que nem mesmo se dera o trabalho de prestar-lhe a menor atenção. Odiando-a por isso, seguiu-a num silêncio cheio de ressentimento.
O general Knoyle conversava com outro senhor de aspecto militar. Tinha uma voz marcial e asmática.
— Meu caro, disse-lhe eu — lady Edward e Illidge ouviam o general à medida que se aproximavam —, meu caro, não faça esse cavalo correr agora. Seria um crime, disse eu. Seria uma rematada loucura. Retire-o do páreo, retire-o, disse eu. E ele o retirou.
Lady Edward fez notada a sua presença. Os dois militares se mostraram exageradamente polidos; tinham passado um sarau maravilhoso.
— Foi para o senhor que eu escolhi especialmente Bach, general — disse lady Edward, com um pouco da encantadora confusão de uma rapariga que confessa um pecado amoroso.
— Oh!... sim... realmente, foi muito amável da sua parte.
A confusão do general Knoyle era verdadeira; não sabia que fazer do presente musical que a dona da casa lhe dera.
— Hesitei — continuou lady Edward no mesmo tom deliberadamente íntimo — entre a barcarola de Haendel e a “Suíte em si menor”, com Pongileoni. Foi então que pensei no senhor e me decidi por Bach. — Seus olhos observavam o embaraço que se estampava no rosto vermelho do general.
— Foi muito amável de sua parte — protestou ele. — Não é que eu tenha a pretensão de entender muito de música. Mas sei do que gosto, sei do que gosto. — A frase pareceu dar-lhe um sentimento de segurança. Pigarreou e retomou a palavra. — O que sempre digo é que...
— E agora — interveio lady Edward, concluindo triunfalmente — quero apresentar-lhe mr. Babbage, que auxilia Edward em seus trabalhos e que é um verdadeiro perito em matéria de lagartixas. Mr. Babbage, este é o general Knoyle e este o coronel Pilchard.
Sorriu um último sorriso e saiu.
— Bem, é esta? — exclamou o general. — O coronel disse que ela era de amargar.
— Oh! se é... — concordou Illidge, vivamente.
Os dois militares olharam-no por um momento e decidiram que aquela observação, partindo como partira de quem se achava tão manifestamente abaixo, tão fora de seu mundo, era uma impertinência. Os bons católicos podem bem permitir-se pequenas brincadeiras sobre os santos e os hábitos dos padres; mas levam muito a mal as mesmas facécias quando elas brotam dos lábios de um ímpio. O general não fez nenhum comentário verbal, e o coronel se limitou a expressar a sua desaprovação com o olhar. Mas a maneira como eles se voltaram um para o outro e continuaram a sua discussão interrompida sobre corridas de cavalos, como se estivessem sós, foi tão intencionalmente ofensiva que Illidge teve vontade de dar-lhes uns pontapés.
*
— Lucy, minha pequena!
— Tio John!
Lucy Tantamount voltou-se e sorriu para o tio adotivo. Era uma criatura magra e de estatura mediana, como a mãe: tinha os cabelos curtos e escuros untados de óleo, o que lhes dava um negrume completo, e penteados para trás, a partir da testa. Naturalmente pálida, não usava ruge. Somente os lábios finos estavam pintados e havia um pouco de azul em torno dos olhos. Um vestido negro acentuava a brancura dos braços e das espáduas. Havia então mais de dois anos que Henry Tantamount morrera — porque Lucy havia se casado com um primo em segundo grau. Mas ainda usava luto, pelo menos à noite, à luz artificial. O negro lhe ficava tão bem!
— Como está? — perguntou ela, notando, ao pronunciar estas palavras, que o tio começava a ficar com uma forte aparência de velhice.
— Estou morrendo de fome — disse John Bidlake. Tomou-lhe do braço familiarmente, segurando-o logo acima do cotovelo, com a sua grande mão estriada de veias azuis. — Quero que me sirvas de pretexto para ir cear. Estou com uma fome canina.
— Pois eu não...
— Não importa. A minha necessidade é maior do que a sua, como tão justamente observou sir Philip Sidney.
— Mas eu não quero comer. — Ela não admitia que o velho a dominasse, que fosse conduzida em vez de conduzir. Mas tio John não cedeu.
— Eu sozinho me encarrego de comer — declarou ele. — Comerei pelos dois.
E, rindo jovialmente, continuou a puxá-la em direção à sala de jantar.
Lucy abandonou a luta. Abriram caminho através da multidão. A orquídea que John Bidlake tinha à botoeira, de um amarelo esverdeado e cheio de pintas, parecia a cabeça de uma serpente com a boca aberta em um bocejo. Brilhava-lhe o monóculo no olho.
— Quem é esse velho que vai ali com Lucy? — perguntou Polly Logan quando eles passaram.
— É o velho Bidlake.
— Bidlake? Aquele que... que pintou os quadros? — Polly falava com hesitação, num tom de quem, conhecendo as lacunas da própria educação, teme cometer erros ridículos. — Você está dizendo que aquele é Bidlake? — A companheira fez um sinal afirmativo. Ela se sentiu consideravelmente aliviada. — Essa é muito boa — continuou, arqueando as sobrancelhas e abrindo muito os olhos —, sempre julguei que ele fosse um daqueles pintores da Renascença. Mas ele deve ter hoje mais ou menos uns cem anos, não é assim?
— Não anda longe disso. — Norah tinha também menos de vinte anos.
— É preciso confessar — admitiu Polly elegantemente — que o homem não mostra ter essa idade. Ele tem ainda um ar de leão, de pirata ou de Belo Brummel, enfim, de qualquer dessas coisas que a gente costuma ser na mocidade.
— Teve pelo menos quinze esposas — afirmou Norah.
Foi nesse momento que Hugo Brockle achou coragem para se apresentar.
— A senhorita não se lembra de mim. Fomos apresentados nos nossos carrinhos de bebês. — Como aquilo parecia idiota! O rapaz sentiu que ficava todo vermelho.
O terceiro e o mais bonito quadro das Banhistas de John Bidlake estava pendurado por cima da chaminé da sala de jantar de Tantamount House. Era uma pintura alegre e vistosa, de tons muito claros, de coloração muito pura e brilhante. Oito banhistas de carnes fartas e nacaradas se agrupavam na água e nas margens de um arroio, de maneira a formar, com os corpos e os membros em movimento, uma espécie de grinalda (completada por cima pela folhagem de uma árvore) ao redor do centro da tela. Através daquela coroa de carne nacarada (porque os próprios rostos das banhistas eram apenas carne sorridente, sem um traço de espiritualidade que pudesse distrair o observador da contemplação das belas formas e do que com elas se relacionava), o olho se alongava rumo a uma pálida paisagem brilhante de dunas, de ondulações moles e de nuvens.
Com um prato na mão, mastigando sanduíches de caviar, o velho Bidlake, ao lado da companheira, contemplava a sua obra. Sentiu-se presa de uma emoção em que se misturavam orgulho e tristeza.
— Está bem — disse ele —, está admiravelmente bem. Olha só a maneira como foi composto. Perfeito equilíbrio, e no entanto não há traço de repetição ou de arranjo artificial. — Deixou inexprimidos outros pensamentos e sensações que o quadro tinha evocado em seu espírito. Eram tão numerosos e confusos que não seria fácil enunciá-los. E sobretudo muito melancólicos; não gostava de insistir neles. Estendeu um dedo e tocou o aparador; era de mogno, madeira legítima. — Olha o corpo da direita, ali, com os braços erguidos. — Prosseguiu na sua exposição técnica a fim de poder reprimir, de poder espantar os pensamentos indesejáveis. — Vê como ele está em equilíbrio com o grande corpo nu e curvado da esquerda. Dir-se-ia uma alavanca longa erguendo pesada carga. — Mas o corpo de braços erguidos era Jenny Smith, a mais bela modelo que ele já tivera. Encarnação da beleza, encarnação da estupidez e da vulgaridade. Uma deusa enquanto estava nua e mantinha a boca fechada; ou quando se lhe fechava a boca com beijos; mas — ah! —, uma vez que ela descerrasse os lábios, uma vez que se vestisse e enfiasse aqueles chapéus assustadores!... John Bidlake se recordou da época em que a levara a Paris. Teve de mandá-la de volta em oito dias. — “Você devia andar amordaçada, Jenny!”, disse a ela. Jenny chorou. “Foi um erro ir a Paris”, continuou ele. “Em Paris há sol demais, luzes artificiais em demasia. Na próxima vez iremos a Spitzberg... no inverno. Lá as noites duram seis meses.” Isso fizera com que Jenny chorasse com ainda mais força. Aquela rapariga possuía tesouros de sensualidade assim como tesouros de beleza. Mais tarde dera para beber e decaíra, vinha mendigar-lhe dinheiro que gastava em bebida. Finalmente o que restava dela havia morrido. Mas a Jenny verdadeira permanecia ali, na tela, com os braços alçados e os músculos peitorais soerguendo os seios pequeninos. O que restava de John Bidlake, do John Bidlake de vinte e cinco anos atrás, achava-se também ali na tela. Um outro John Bidlake existia ainda para contemplar o seu próprio fantasma. Em breve, este mesmo haveria de desaparecer. E no fim das contas seria ele o verdadeiro Bidlake — quando a mulher avinhada e balofa que havia morrido não era a verdadeira Jenny? A verdadeira Jenny vivia entre as banhistas de nácar. E o verdadeiro Bidlake, seu criador, existia implicitamente nas suas criaturas.
— Sim, é uma boa tela — repetiu ele, ao acabar a exposição; e o tom de sua voz era doloroso; o rosto que olhava o quadro estava triste. — Mas no fim das contas — acrescentou, depois de uma pequena pausa, com uma explosão repentina de riso voluntário —, no fim das contas, tudo o que é meu é bom, formidavelmente bom mesmo.
Era um desafio aos críticos estúpidos que tinham visto sinais de decadência em suas telas recentes; era um desafio ao seu próprio passado, ao tempo e à velhice, ao verdadeiro John Bidlake, que tinha pintado a verdadeira Jenny e que a tinha feito silenciar ao peso de seus beijos.
— Não há dúvida de que é uma boa tela — disse Lucy, perguntando a si mesma por que as pinturas do velho tinham piorado tanto nos últimos tempos. A última exposição fora deplorável. Ele próprio, afinal de contas, conservava-se tão jovem, relativamente falando. “Isto, entretanto, não impede”, pensava a moça, olhando para o pintor, “que ele tenha envelhecido bastante nestes últimos meses.”
— Não há dúvida — repetiu ele. — Esse é o ponto de vista verdadeiro.
— Devo confessar, entretanto — acrescentou Lucy, para mudar de assunto —, que, na minha opinião, as suas banhistas são de certo modo um insulto.
— Um insulto?
— Falo como mulher, compreenda. Acha, na realidade, que somos tão profundamente tolas como nos pinta?
— Sim, sim — perguntou uma outra voz —, acha-nos verdadeiramente assim tão tolas?
Era uma voz insistente, enfática, e as palavras saíam em jorros, explosivamente, como se estivessem passando à força através de uma abertura estreita, debaixo de uma pressão emocional.
Lucy e John Bidlake se voltaram e viram mrs. Betterton, maciça no seu vestido cinzento-pomba, com braços (pensou o velho Bidlake) que pareciam coxas, e cabelos que eram, em proporção às bochechas e às múltiplas papadas carnudas, ridiculamente curtos, encaracolados e castanhos. Seu nariz, que se arrebitava de maneira tão encantadora nos dias em que Bidlake montava o cavalo negro e ela o cavalo baio, era agora absurdo, uma coisa grotescamente fora de propósito naquele rosto de mulher madura. O verdadeiro Bidlake andara passeando a cavalo em companhia dela, um pouco antes de pintar aquelas banhistas. Mrs. Betterton tinha falado de arte com uma seriedade ingênua de colegial que o pintor achara encantadora. Bidlake a curara — recordava-se disso — de uma paixão por Burne-Jones, mas não conseguira, ai! livrá-la do seu preconceito de virtude. Era com toda a seriedade de outrora, à qual se unia certa sentimentalidade significativa, como a de quem se recorda do passado e deseja fazer uma troca não só de ideias gerais, mas também de reminiscências, que ela falava naquele momento a John Bidlake. Ele teve de fingir que estava contente por tornar a vê-la depois de tantos anos. “É extraordinário”, pensava ao lhe apertar a mão, “como consegui evitá-la totalmente.” Não se lembrava de lhe ter falado mais do que duas ou quatro vezes durante o quarto dc século que transformara Mary Betterton num memento mori.
— Querida mrs. Betterton! — exclamou o velho. — É um encontro agradabilíssimo.
Mas Bidlake disfarçava muito mal a sua aversão.
Mrs. Betterton chamou-o pelo primeiro nome:
— Vamos, John — disse —, é preciso que responda à nossa pergunta... — pousou a mão no braço de Lucy, associando-a assim à sua exigência.
O velho Bidlake ficou literalmente indignado. Aquela familiaridade da parte de um memento mori era intolerável. Havia de dar-lhe uma lição. Achou que a pergunta fora bem escolhida para o fim que ele agora tinha em vista; aquela mulher fazia jus a uma resposta descortês. Mary Betterton tinha pretensões intelectuais e era muito ciosa de tudo quanto dizia respeito à alma. Recordando-se disto, o velho Bidlake afirmou que jamais conhecera mulher que possuísse coisa de valor além de um corpo e de um par de pernas. E algumas, acrescentou ele com ênfase, nem chegavam a ter esses atributos indispensáveis. Sem dúvida, muitas dentre elas tinham um rosto interessante; mas isso não significava nada. Os cães policiais, explicou, têm um ar de juiz cheio de sabedoria: os bois, quando ruminam, parecem meditar sobre os problemas da metafísica: um louva-a-deus dá a impressão de estar rezando, mas estas aparências são totalmente enganosas. O mesmo acontecia com as mulheres. Ele preferira pintar suas banhistas sem máscaras e sem roupas; preferira dar-lhes rostos que eram simplesmente o prolongamento de seus corpos encantadores, e não símbolos enganadores de uma espiritualidade que não existia. Isso lhe parecia mais verdadeiro, mais de acordo com os fatos fundamentais. John Bidlake sentiu que lhe voltava o bom humor à medida que ia falando, e, com a volta do bom humor, a sua antipatia por Mary Betterton parecia dissipar-se. Quando estamos espiritualmente bem-dispostos, os memento mori deixam de nos trazer recordações.
— John, você é incorrigível — disse mrs. Betterton com indulgência. Voltou-se para Lucy, sorrindo: — Mas ele não leva a sério sequer uma palavra do que disse.
— Quer me parecer, pelo contrário, que ele está absolutamente convencido de tudo quanto disse. Noto que os homens que gostam muito das mulheres são precisamente os que exprimem o maior desprezo por elas.
O velho Bidlake se pôs a rir.
— Porque são os que as conhecem mais intimamente — replicou.
— Ou talvez porque os desgoste o poder que temos sobre eles... Mas eu te garanto — insistiu mrs. Betterton — que John não pensa assim. Eu o conheci no tempo em que você nem era ainda nascida, minha querida.
A alegria desapareceu do rosto de John Bidlake. O memento mori tornava a sorrir escancaradamente por trás da máscara flácida de Mary Betterton.
— Naquele tempo talvez ele fosse diferente — concordou Lucy. — Devia estar contagiado pelo cinismo da geração jovem. Somos má companhia, tio John. Você deve tomar cuidado.
Tinha levantado uma das lebres favoritas de mrs. Betterton. Esta lançou-se numa perseguição encarniçada.
— É a educação — explicou ela. — As crianças são educadas hoje em dia de uma maneira estúpida. Não é de admirar que saiam cínicas. — Continuou a falar com eloquência. — Dão-se muitas coisas às crianças, e muito cedo. Saturam-nas de distrações, acostumam-nas a todos os prazeres desde o berço. Pois eu nunca entrei num teatro senão depois dos dezoito anos — declarou com orgulho.
— Minha pobre senhora!
— Comecei a frequentar os teatros aos seis anos — confessou Lucy.
— E os bailes, então! — prosseguiu mrs. Betterton. — O baile da temporada de caça, que acontecimento! Era porque só havia uma dessas festas durante o ano.
Citou Shakespeare:
Portanto festas há, lindas e raras,
Por escassas e no tempo separadas
Como engaste frugal de pedras caras...
— Nos dias de hoje as festas são rosários de pérolas.
— E falsas, ainda por cima... — disse Lucy.
Mrs. Betterton estava triunfante.
— Falsas... está vendo? — mas para nós eram verdadeiras, porque raras. Nós não costumávamos “gastar a fina ponta do prazer infrequente” pelo uso cotidiano. Hoje em dia os moços estão entediados e cansados do mundo antes de chegarem à maioridade. Um prazer demasiadamente repetido produz a insensibilidade; não o sentimos mais como prazer.
— E qual é o seu remédio? — inquiriu John Bidlake. — Se é que um membro da congregação tem licença de fazer perguntas — acrescentou ironicamente.
— Maroto! — gritou mrs. Betterton com um tom apavorante de brincadeira. Depois, ficando novamente séria: — O remédio — continuou — é: menos diversões.
— Mas eu não quero ter menos diversões — objetou John Bidlake.
— Nesse caso — disse Lucy —, é preciso que elas sejam mais fortes, progressivamente.
— Progressivamente? — repetiu mrs. Betterton. — Mas onde iria terminar essa espécie de progressão?
— Nas corridas de touros? — sugeriu John Bidlake. — Ou em combates de gladiadores? Em execuções públicas, então? Ou nos divertimentos do marquês de Sade? Onde?
Lucy deu de ombros.
— Quem sabe?
*
Hugo Brockle e Polly já estavam em disputa.
— Pois eu acho detestável — dizia Polly, com o rosto vermelho de cólera — mover guerra aos pobres.
— Mas os Ingleses Livres não fazem guerra aos pobres.
— Fazem, sim.
— Não fazem — afirmou Hugo. — Leia os discursos de Webley.
— Só leio o que se escreve a respeito do que ele faz.
— Mas o que ele faz está de acordo com as suas palavras.
— Não está.
— Está. A única coisa contra a qual ele se opõe é a ditadura de uma classe.
— Sim, da classe pobre.
— De qualquer classe — insistiu Hugo com ardor. — Este é o fundo de sua doutrina. E preciso que as classes sejam igualmente fortes. Uma classe operária forte, que reclama salários altos, mantém ativa a classe média das profissões liberais.
— Como as pulgas num cão — sugeriu Polly, pondo-se a rir, numa volta ao bom humor. Quando uma ideia cômica se lhe apresentava, ela não podia deixar de exprimi-la, mesmo que se tratasse de coisa séria, mesmo que ela estivesse, como naquele caso, encolerizada.
— As profissões liberais? É preciso a todo custo que elas sejam inventivas e progressivas — continuou Hugo, lutando com as dificuldades da exposição clara. — Sem isso elas não poderiam pagar aos trabalhadores o que eles exigem, e realizar lucros para si mesmas. E ao mesmo tempo, uma classe média forte e inteligente é proveitosa para os trabalhadores, porque estes ganham assim uma boa liderança e uma boa organização. O que signifca salários mais elevados, paz e felicidade.
— Amém.
— De sorte que a ditadura de uma classe é um absurdo — continuou Hugo. — Webley quer conservar todas as classes e torná-las fortes. Quer que elas vivam num estado de tensão, de tal maneira que o Estado possa tirar o seu equilíbrio do fato de cada uma puxar com todas as forças para o seu lado. Os cientistas dizem que os diferentes órgãos do corpo são assim. Vivem num estado... — hesitou, corou — ... de simbiose hostil.
— Cruzes!
— Peço perdão — disse Hugo com humildade.
— Não obstante, ele não quer permitir que os homens façam greve.
— Porque as greves são imbecis.
— Ele é contra a democracia.
— Porque a democracia permite que criaturas abomináveis conquistem o poder. Webley quer que os melhores governem.
— Os melhores? Ele, por exemplo... — tornou Polly, sarcástica.
— Pois bem: e por que não? Se você soubesse que tipo admirável ele é! — Hugo entusiasmou-se. Havia três meses que vinha atuando como um dos ajudantes de campo de Webley. — Nunca encontrei ninguém como ele.
Polly escutava essas efusões com um sorriso. Ela se sentia velha e superior. Na escola tinha passado pelos mesmos entusiasmos, falando naquele mesmo tom a respeito da professora de economia doméstica. Apesar de tudo, gostou da lealdade do rapaz.