Capítulo V
uma selva de inúmeras árvores e trepadeiras pendentes — eis o aspecto sob o qual as reuniões sociais se apresentavam sempre à imaginação de Walter Bidlake. Uma selva de ruídos; e ele se achava agora perdido na selva, procurava abrir caminho por meio de seu emaranhamento luxuriante. As pessoas eram as raízes das árvores, e as suas vozes eram os troncos e os ramos flexíveis e as grinaldas de cipó, sim, e também os papagaios e os macacos tagarelas.
As árvores se elevavam até o teto e do teto, como mangues, encurvavam-se de novo para o chão. Mas neste salão singular, pensava Walter, nesta extravagante combinação de átrio romano e da estufa de palmeiras do Jardim Botânico de Kew, as ondas de som que cresciam, ininterruptamente, até a altura de três andares, poderiam ganhar, unidas, uma força viva suficiente para romper o fraco telhado de vidro que as separava da noite exterior. Walter pintou-as mentalmente a subir cada vez mais alto, como o pé de feijão mágico da história de João e o Pé de Feijão, a subir em pleno céu, elevando-se mais e mais, carregadas de orquídeas e de cacatuas coloridas a subir através da névoa persistente de Londres até a luz transparente do luar, além da fumaça. Ele as imaginou a ondular lá no alto, na luz da lua, derradeiros ramículos de ruídos tênues e aéreos. O riso estrepitoso, por exemplo, esta gargalhada explosiva do homem gordo da esquerda — haveria de subir e subir, diminuindo à medida que subisse, até que lá em cima não fosse mais do que um tinir delicado sob o luar. E todas estas vozes (que estavam elas dizendo ”... fez um excelente discurso...”; ”... só depois de experimentar um destes cintos de borracha poderá ter uma ideia de como são cômodos...”; ”... que aborrecimento...”; ”... fugiu com o chofer...”), todas estas vozes, como seriam esquisitas e minúsculas lá no alto! Mas, no entanto, ali embaixo, no matagal... Ah! Eram estridentes, tolas, vulgares, cheias de fatuidade!
Olhando por cima das cabeças das pessoas que o cercavam, Walter viu Frank Illidge, sozinho, encostado a um pilar. Sua atitude e seu sorriso, ao mesmo tempo cansados do mundo e desdenhosos, eram byronianos; lançava em torno um olhar languidamente divertido, como se estivesse a observar as travessuras de um bando de macacos. “Infelizmente”, refletia Walter, enquanto abria caminho por entre os convidados, na direção de Illidge, aquele pobre rapaz não tinha o direito físico de ser byronianamente superior. Os românticos satíricos devem ser esguios, de movimentos lentos, graciosos e belos. Illidge era pequeno, vivo e saltitante. E que cara cômica! Era como a de um moleque — nariz arrebitado, boca largamente rasgada; uma cara de moleque muito inteligente e ladino, mas uma cara, enfim, que não autorizava precisamente aquele ar de languidez desdenhosa. De resto, quem é que pode ser superior quando tem sardas? O rosto de Illidge era pintalgado delas. Os olhos castanhos, as sobrancelhas cor de laranja e as pestanas tinham uma tonalidade protetora — esse vermelho-amarelado da areia; vistos a pequena distância, sumiam-se na pele, como um leão se dissolve no deserto. Olhada da outra extremidade do salão, aquela face parecia despida de feições e de olhar, como o rosto de uma estátua esculpida em um bloco de grés. Pobre Illidge! A atitude byroniana dava-lhe antes uma aparência ridícula.
— Olá! — fez Bidlake, logo que chegou a distância de poder ser ouvido pelo outro. Apertaram-se as mãos. — Como vai a ciência? — (“Que pergunta tola!”, pensou Walter ao pronunciar estas palavras.)
Illidge deu de ombros.
— Menos na moda do que as artes, a julgar por esta festa. — Olhou em torno. — Esta noite tenho visto aqui a metade dos notáveis que aparecem na seção de literatura e pintura do Who’s Who. O ambiente fede a arte.
— E não é isso antes um consolo para a ciência? — perguntou Walter. — A arte não gosta de andar na moda.
— Acha? Então por que motivo você veio?
— Realmente, por quê?
Walter aparou a pergunta com uma risada. Correu os olhos em torno, perguntando a si mesmo onde estaria Lucy. Não a via desde que a música cessara.
— Você veio para mostrar as suas habilidades e receber afagos na cabeça... — disse Illidge, procurando tirar uma pequena desforra; ainda tinha viva a lembrança da escorregadela na escada, da falta de interesse de lady Edward para com as lagartixas e da insolência dos dois militares. — Olhe só — continuou ele — para aquela moça de cabelos escuros e crespos que lá vai vestida de prata. Aquela que parece uma negrinha branca. Que me diz dela, por exemplo? Seria bem agradável a gente sentir a cabeça afagada por uma uvinha dessas, hein?
— Bem... quem sabe?
Illidge pôs-se a rir.
— Você assume uma atitude superior e filosófica, não é mesmo? Mas, meu caro, reconheça que tudo isso é impostura. Eu sei, porque assumo a mesma atitude. Para falar-lhe honestamente a verdade, invejo o sucesso de vocês que traficam com a arte. Fico verdadeiramente furioso quando vejo certos escritorezinhos tolos e meio idiotas...
— Como eu, por exemplo.
— Não, você está um ponto acima da maioria deles — concedeu Illidge. — Mas quando vejo esses malditos escribas, que não têm um décimo da minha inteligência, a fazer dinheiro e a ser cortejados, ao passo que ninguém me dá importância, chego às vezes a ficar furioso.
— Você devia encarar esse fato como uma homenagem. Se eles nos cortejam é porque podem entender mais ou menos o que fazemos. Mas não entendem você; você está acima deles. A indiferença dessa gente é uma homenagem ao seu espírito.
— Talvez; mas é um terrível insulto ao meu corpo. — Illidge tinha dolorosamente consciência do seu físico. Sabia que era feio e de uma aparência absolutamente despida de distinção. E, sabendo-o, gostava de lembrar a si mesmo esse fato desagradável: era como um homem que, tendo um dente que dói, está volta e meia a meter o dedo no ponto dolorido, simplesmente para ter certeza de que a dor continua. — Se eu fosse um brutalhão como esse Webley, eles não me desprezariam, mesmo que eu tivesse o espírito de Newton. A verdade é — prosseguiu, dando dessa vez um valente puxão no dente nevrálgico — que eu tenho uma aparência de anarquista. Você tem sorte, e bem sabe disso. Tem o ar de um gentleman, ou pelo menos de um artista. Nem imagina que coisa molesta é ter a aparência de um intelectual das classes inferiores. — O dente respondia à exploração de maneira pungente. Puxou-o com mais força ainda. — Não se trata apenas do desprezo das mulheres, destas mulheres, pelo menos. Isto por si só já é bastante desagradável. Mas acontece que a polícia se recusa a não fazer caso da gente; ela toma um interesse abominavelmente curioso por mim. Acredite que já fui preso duas vezes, simplesmente porque me pareço com esses tipos que fabricam máquinas infernais.
— A história é boa — disse Walter com ceticismo.
— Mas é verdadeira, juro. A primeira vez foi aqui mesmo no nosso país. Perto de Chesterfield. Havia uma greve de mineiros. Acontece que eu estava, como mero espectador, olhando uma luta entre grevistas e operários que tinham furado a greve. A polícia não gostou da minha cara e me deitou a unha. Levei horas para me livrar dela. A outra vez foi na Itália. Algum petardeiro havia atentado contra a vida de Mussolini, segundo parece. Seja como for, um bando de malfeitores de camisa preta obrigou-me a descer do trem em Gênova e me revistou da cabeça aos pés. Intolerável! E isso tudo simplesmente por causa de minha cara subversiva.
— A qual, afinal de contas, corresponde às suas ideias.
— Sim, mas uma cara não é uma prova, não é um crime. Bem, sem dúvida — acrescentou Illidge num parênteses —, algumas caras são talvez crimes. Conhece o general Knoyle? — Walter fez com a cabeça que sim. — Pois a dele é um crime capital. Um homem como aquele merece nada menos que a forca. Meu Deus! Que prazer eu teria em matá-los todos! — Não tinha ele escorregado na escada e sofrido a desfeita de um imbecil carniceiro de homens? — Como eu detesto os ricos! Detesto-os! Não acha você que eles são horríveis?
— Mais horríveis do que os pobres? — A lembrança do quarto em que Wetherington jazia doente fez logo com que Walter sentisse vergonha da pergunta.
— Sim, sim. Existe algo de particularmente vil, ignóbil e mór-bido nos ricos. O dinheiro produz uma espécie de insensibilidade de gangrena. É inevitável. Jesus compreendeu isso. Aquela passagem a respeito do camelo e o buraco da agulha é a simples exposição de um fato. E lembre-se daquele outro trecho a respeito do amor ao próximo. Se eu continuar a fazer citações bíblicas, você ficará pensando que sou cristão — acrescentou Illidge num parênteses, à guisa de desculpa. — Mas é preciso dar a César o que é de César. O homem tinha bom senso; sabia compreender as coisas. As boas relações entre vizinhos são a pedra de toque que revela os ricos. Os ricos simplesmente não têm vizinhos.
— Mas, que diabo!, eles não são anacoretas!
— Mas não têm vizinhos no mesmo sentido em que os pobres os têm. Quando minha mãe se via obrigada a sair, era mrs. Cradock, a vizinha da direita, que ficava olhando por nós. E minha mãe fazia o mesmo para mrs. Cradock quando chegava a vez de ela sair. E quando alguém quebrava uma perna, ou perdia o emprego, a gente o ajudava com dinheiro e comida. E como me lembro bem de, quando eu era menino, me terem mandado um dia correr até a aldeia em busca de uma enfermeira, porque a jovem mrs. Foster, a vizinha da esquerda, tinha sido subitamente atacada das dores do parto, mais cedo do que esperava! Quando a gente vive com menos de quatro libras por semana, há uma necessidade atroz de se portar como cristão, de amar o próximo. Para começar, você não pode fugir dele: o próximo, por assim dizer, mora no seu quintal. Ignorar a sua presença de uma maneira refinadamente filosófica? Não é possível. É necessário odiar ou amar; não há meio-termo; e em suma é preferível você procurar amar o vizinho, porque pode precisar do auxílio dele assim como ele pode precisar do seu — e isso de uma maneira tão urgente e tão repetida que não há lugar para recusas. E desde que você seja obrigado a dar, desde que, como ser humano, não possa deixar de dar, é melhor que trate de amar a pessoa a quem de qualquer modo você terá de dar.
Walter fez um sinal de aprovação.
— Evidentemente.
— Mas vocês, os ricos — continuou Illidge —, não têm vizinhos verdadeiros. Nunca praticam um ato de boa vizinhança e nunca pedem aos vizinhos que lhes façam uma gentileza como retribuição. É desnecessário. Vocês pagam pessoas para atenderem às suas necessidades. Podem alugar criados que hão de simular dedicação a três libras por mês e mais a comida. Não precisam que mrs. Cradock, a vizinha, venha olhar pelos seus bebês, quando vocês saem. Há babás e governantas que fazem isso por dinheiro. Não, em geral vocês nem mesmo chegam a ter consciência da existência dos vizinhos. Vivem longe deles. Cada um fica isolado na sua casa secreta. Pode haver tragédias atrás dos postigos; mas os vizinhos do lado não ficam sabendo de nada.
— Graças a Deus! — exclamou Walter.
— Não há dúvida: vocês podem dar graças a Deus. O isolamento é um grande luxo. Muito agradável, concordo. Mas o luxo se paga. Ninguém se comove com as desgraças que não conhece. A ignorância é felicidade que nada sente... Numa rua pobre a desgraça não pode ser escondida. A vida é demasiadamente pública. Os sentimentos de boa vizinhança estão em exercício constante. Mas os ricos nunca têm um ensejo de se mostrarem bons vizinhos para com os seus iguais. O mais que podem fazer é ficar sentimentais diante dos sofrimentos de seus inferiores — sofrimentos que eles não podem de forma alguma compreender — e mostrar-se condescendentemente compadecidos. Horrível! E isso ainda são os ricos sob o seu melhor aspecto. Quanto ao pior aspecto, aí o tem você... — Apontou para o salão cheio de gente. — São como lady Edward, o último círculo do inferno! São como aquela filha dela... — Aqui Illidge fez uma careta e deu de ombros.
Walter o escutava com uma atenção dolorosa e tensa.
— Maldita, perdida, irremediavelmente corrupta — continuou Illidge, como um profeta acusador. Tinha falado uma vez a Lucy Tantamount, casualmente, e por um breve momento. E a moça parecia mal ter dado pela presença dele.
“Era verdade”, pensava Walter. Lucy era tudo o que dela se dizia por inveja ou censura; no entanto, era também a mais esquisita e maravilhosa das criaturas. Sabendo de tudo, ele podia escutar todas as coisas que a respeito dela se dissessem. E quanto mais atrozes eram os vitupérios, mais desesperadamente ele a amava. Credo quia absurdum. Amo quia turpe, quia indignum.[6]
— Que podridão! — prosseguiu Illidge, grandiloquente. — A flor consumada desta nossa encantadora civilização — eis o que ela é. Uma imitação refinada e perfumada de selvagem ou de animal. Eis a que chega logicamente a maioria das pessoas que têm dinheiro e lazer.
Walter o escutava, de olhos fechados, pensando em Lucy... “Uma imitação perfumada de selvagem ou de animal.” As palavras eram verdadeiras e torturantes; mas ele a amava com mais força por causa do tormento e por causa da verdade odiosa.
— Bem — fez Illidge, num tom de voz diferente —, preciso ir ver se o Velho quer continuar o trabalho esta noite. Em geral trabalhamos até uma e meia ou duas horas. É de certa maneira agradável viver assim às avessas. Dormindo até a hora do almoço, começando o trabalho depois do chá. Na verdade é muito agradável. — Estendeu a mão. — Até breve.
— Precisamos jantar juntos uma destas noites — lembrou Walter, sem muita convicção.
Illidge balançou a cabeça afirmativamente.
— Vamos escolher um destes dias. — E saiu.
Walter abriu caminho através da multidão, procurando...
Everard Webley tinha levado lord Edward para um canto e estava tentando persuadi-lo a dar o seu apoio aos Ingleses Livres.
— Mas eu não me interesso pela política — protestava o Velho com voz rouca. — Não me interesso pela política... — e repetia a frase obstinadamente, com uma teimosia muar, a cada coisa que Webley dizia, fosse o que fosse.
Webley estava eloquente. Os homens de boa vontade, os homens que tinham interesses no país deviam unir-se para resistir às forças de destruição. Não era apenas a propriedade que estava ameaçada, não eram apenas os interesses materiais de uma classe; era a tradição inglesa, era a iniciativa pessoal, era a inteligência, era toda a distinção natural, de qualquer gênero que fosse. Os Ingleses Livres tinham se unido para resistir à ditadura dos néscios; estavam armados para proteger a individualidade contra o homem das massas, contra a turba; estavam lutando pelo reconhecimento da superioridade natural em todas as esferas. Os inimigos eram numerosos e ativos.
Mas um homem prevenido vale por dois; quando a gente vê que os bandidos se aproximam, forma em ordem de batalha e arranca da espada. (Webley tinha um fraco pelas espadas; usava uma quando os Ingleses Livres faziam parada; os seus discursos eram cheios de espadas; a sua casa estava eriçada de panóplias.) A organização, a disciplina e a força eram necessárias. A luta não se podia travar mais no terreno constitucional. Os métodos parlamentares eram perfeitamente adequados quando os dois partidos concordavam sobre os princípios fundamentais e discordavam apenas no que dizia respeito a detalhes insignificantes. Mas quando estavam em jogo os princípios fundamentais, não se podia permitir que a política continuasse a ser tratada como um jogo parlamentar. Era preciso recorrer à ação direta, ou pelo menos à ameaça de uma ação direta.
— Estive cinco anos no Parlamento — disse Webley —, tempo suficiente para ficar convencido de que hoje em dia nada se pode fazer por meio do parlamentarismo. A Inglaterra só pode ser salva pela ação direta. E só depois que ela estiver salva é que poderemos começar a pensar outra vez no Parlamento, que deverá ser então algo muito diferente da atual coleção ridícula de ricaços eleitos pelo populacho. Enquanto esperamos isso, devemos preparar-nos para a luta. E, graças a essa preparação para a luta, poderemos conquistar uma vitória pacífica. É a única esperança. Creia-me, lord Edward, é a única esperança.
Fatigado, como um urso acossado por cães, lord Edward oscilava pesadamente de um lado para outro, fazendo girar o corpo curvado a partir da cintura.
— Mas eu não me interesso pela pol... — Estava agitado demais para poder terminar a palavra.
— Mas, ainda que o senhor não se interesse pela política — continuou Webley em um tom persuasivo —, deve interessar-se pelos seus bens, pela sua posição, pelo futuro da sua família. Lembre-se: tudo virá abaixo na destruição geral.
— Sim, mas... Não... — lord Edward ia ficando desesperado. — Eu... eu não me interesso por dinheiro.
Um dia, havia anos, o chefe da firma de procuradores, a que ele entregara toda a administração de seus negócios, tinha vindo procurá-lo — a despeito das ordens expressas de lord Edward, que proibia em absoluto que o viessem aborrecer com assuntos de negócios — para consultar o cliente a respeito de um emprego de capitais. Tratava-se de umas oitenta mil libras que estavam em disponibilidade. Lord Edward foi arrancado às equações fundamentais da estática dos organismos vivos. Quando tomou conhecimento da causa frívola da interrupção, o Velho, que de ordinário era manso, ficou irreconhecivelmente furioso. Mr. Figgis, cuja voz era forte e cuja maneira era cheia de confiança, estava acostumado, em entrevistas anteriores, a levar as coisas a seu modo. A fúria de lord Edward o surpreendeu e apavorou. Era como se, em sua cólera, o Velho tivesse voltado por atavismo ao fundo do passado feudal, recordando-se de que era um Tantamount que estava falando a um servidor assalariado. Havia dado ordens; estas tinham sido infringidas e a sua solidão violada de maneira injustificável. Era inadmissível. Se fato semelhante tornasse a se reproduzir, ele havia de confiar os seus negócios a outro procurador. E com isso desejou muito boa-tarde a mr. Figgis.
— Eu não me interesso por dinheiro... — repetia agora o Velho.
Illidge, que se aproximara dos interlocutores, mantendo-se nas proximidades à espera de um ensejo para se dirigir ao Velho, ouviu esta declaração e explodiu numa gargalhada interior.
“Estes ricos!”, pensou. “Estes porcalhões dos ricos!” Eram todos os mesmos.
— Mas se não é pelo senhor — insistiu Webley, atacando de outro setor —, que seja pela causa da civilização, do progresso.
Lord Edward sobressaltou-se a esta palavra. Ela tocara num gatilho, libertara uma torrente de energia.
— O progresso! — repetiu ele. E o tom de sofrimento e embaraço de sua voz cedeu o lugar a um acento de firmeza. — O progresso! Os senhores, os políticos, estão sempre falando nele. Como se fosse uma coisa destinada a durar indefinidamente. Mais motores, mais filhos, mais alimentos, mais anúncios, mais dinheiro, mais tudo... e para sempre. Os senhores deviam era tomar algumas lições da matéria de minha especialidade. Biofísica. O progresso, é boa! Que é, por exemplo, que os senhores propõem fazer com relação ao fósforo?
Esta pergunta valia por uma acusação pessoal.
— Mas tudo isto está completamente fora do assunto — disse Webley com impaciência.
— Ao contrário — retorquiu lord Edward —, toda a questão reside nisto. — Sua voz agora era forte e severa. E ele falava com um grau de coerência muito maior que de ordinário. O fósforo transformara-o em um homem novo; ele se sentia forte na matéria que discutia agora, e, sentindo-se forte, ficava realmente forte. O urso atacado transformava-se em atacante. — Com essa agricultura intensiva — continuou —, os senhores estão simplesmente roubando ao solo o seu fósforo. Mais de meio por cento ao ano. Ele vai desaparecendo completamente da circulação. Depois, basta ver como os senhores deitam fora centenas de milhares de toneladas de anidrido fosfórico nesses esgotos! Derramando-o dentro do mar. E a isso os senhores chamam progresso. Esses sistemas modernos de esgotos! — O tom de sua voz agora estava cheio de um desdém fulminante. — Os senhores deviam era repô-lo no lugar de onde ele saiu. Na terra. — Lord Edward balançou um dedo esticado em sinal de advertência. Franziu a sobrancelha e repetiu: — Na terra, é o que lhe digo.
— Mas eu nada tenho a ver com isso — protestou Webley.
— Pois devia ter — replicou lord Edward severamente. — Eis o mal dos senhores, os políticos. Nem mesmo chegam a pensar em coisas importantes. Vivem a falar do progresso e do bolchevismo e deixam que todos os anos milhões de toneladas de anidrido fosfórico corram para o mar. É idiota, é criminoso, é... é o mesmo que tanger a lira enquanto Roma arde. — Lord Edward viu Webley abrir a boca para falar e apressou-se a antecipar uma resposta à possível objeção do outro. — Sem dúvida — disse — os senhores julgam que essa perda pode ser compensada por meio das rochas fosfatadas. Mas que é que vão fazer quando se exaurirem os depósitos? — Bateu com o dedo no peito da camisa de Everard. — Então, que diz? Mais duzentos anos apenas, e os depósitos se extinguirão. Os senhores julgam que estamos em progresso porque vivemos do nosso capital. Fosfatos, carvão, petróleo, salitre — esbanje-se tudo! Eis a política dos senhores. E enquanto isso andam por aí tentando fazer-nos arrepiar a pele com essas conversas sobre revoluções.
— Mas que diabo! — disse Webley entre zangado e divertido —, o seu fósforo pode esperar. Este outro perigo está iminente. O senhor quer uma revolução política e social?
— Essa revolução vai reduzir a população e restringir a produção?
— Naturalmente.
— Pois então não há dúvida: eu quero uma revolução. — Os pensamentos do Velho estavam dentro da escala geológica; ele não temia as conclusões lógicas. — Não há dúvida!
Illidge a custo continha o riso.
— Pois bem, se essa é a sua opinião... — principiou Webley; mas lord Edward o interrompeu:
— O único resultado desse progresso dos senhores será que dentro de algumas gerações há de vir uma revolução verdadeira, uma revolução natural, cósmica. Os senhores estão transtornando o equilíbrio. Ao cabo, a natureza o há de restabelecer. E o processo será muito desagradável para os senhores. A queda será tão rápida como o foi a ascensão. Mais rápida até, porque os senhores estarão falidos, terão desperdiçado todo o seu capital. Um homem rico gasta algum tempo para angariar todos os seus recursos. Mas, uma vez feito isso, um instante é suficiente para chegar à miséria.
Webley deu de ombros.
“Velho imbecil e lunático!”, disse para si mesmo. E, em voz alta: — As linhas retas paralelas nunca se encontram, lord Edward. Assim, eu lhe desejo uma boa noite.
Afastou-se.
Um minuto depois o Velho e o assistente subiam a escadaria triunfal, rumo a seu mundo à parte.
— Que alívio! — disse lord Edward ao abrir a porta do laboratório. Aspirou voluptuosamente o odor leve do álcool absoluto em que estavam conservados os seus espécimes. — Estas festas! A gente sente-se feliz em poder voltar para a ciência. No entanto, a música estava realmente... — Faltaram-lhe as palavras para exprimir a sua admiração.
lllidge deu de ombros.
— Festas, música, ciência, diversões alternadas para os ociosos. Quem paga pode escolher. O essencial é ter dinheiro para pagar.
Riu de uma maneira desagradável.
Illidge sentia-se muito mais ultrajado pelas virtudes dos ricos do que pelos seus vícios. A glutoneria, a preguiça, a sensualidade e todos os produtos menos elegantes do lazer e da renda certa podiam ser perdoados, precisamente porque eram vergonhosos. Mas o desinteresse, a espiritualidade, a incorruptibilidade, a sensibilidade refinada, o requinte do gosto — tudo isso eram qualidades tidas comumente como dignas de admiração; eis a razão pela qual ele as detestava tão particularmente. Porque essas virtudes, segundo Illidge, eram um produto tão fatal da riqueza como a sede crônica e o desjejum às onze.
— Esses burgueses — criticou o homenzinho — vivem a condecorar-se mutuamente por serem tão desinteressados, isto é, por terem o bastante para viver sem serem forçados a trabalhar e sem se preocupar com dinheiro. Depois, outra condecoração por poderem permitir-se o luxo de recusar gorjetas. E mais uma por terem dinheiro bastante para comprar todo o aparato da cultura refinada. E ainda outra por terem tempo de consagrar-se à arte, à leitura, à galanteria complicada e prolongada. Por que não têm eles a franqueza de dizer abertamente o que estão constantemente dando a entender, isto é, que a raiz de todas as suas virtudes é um bom emprego de capital, bem seguro, a cinco por cento?
A afeição divertida que Illidge sentia por lord Edward era temperada por uma contrariedade crônica que lhe vinha de pensar que todas as virtudes intelectuais e morais do Velho, todas as suas excentricidades e absurdos encantadores, só eram possíveis graças às proporções verdadeiramente escandalosas de sua conta bancária. E esta desaprovação latente tornava-se aguda toda vez que ouvia os outros elogiarem lord Edward, admirem-no ou mesmo rirem dele. O riso, o elogio e a admiração eram permitidos a ele, Illidge, porque compreendia e podia perdoar. As outras pessoas nem sequer compreendiam que havia alguma coisa a perdoar. Illidge sempre se apressava a esclarecê-las.
— Se o Velho não fosse descendente de espoliadores de mosteiros — costumava dizer aos elogiadores e admiradores —, estaria hoje num asilo de mendigos ou num hospital de alienados.
E apesar de tudo Illidge gostava sinceramente do Velho, admirava verdadeiramente seu talento e seu caráter. Que o mundo não percebesse isso, no entanto, era perdoável.
“Desagradável” era a palavra que geralmente se empregava para comentar sobre o assistente de lord Edward.
Mas o fato de ser desagradável aos ricos e de achá-los também desagradáveis constituía, aos olhos de Illidge, não somente um prazer, mas também um dever sagrado. Ele devia isso à sua classe, à sociedade em geral, ao futuro, à causa da justiça. Nem mesmo o Velho era poupado. Bastava-lhe exalar uma palavra em favor da alma (porque lord Edward tinha o que o seu assistente não podia considerar senão como uma paixão vergonhosa e adúltera pela metafísica idealista) para que Illidge logo saltasse sobre ele com comentários sarcásticos a respeito da filosofia capitalista e da religião burguesa. Uma expressão de antipatia pelos homens de negócio de cabeça sólida, de simpatia pelos pobres, de indiferença pelos interesses materiais, provocava uma referência imediata, mais ou menos velada, mas sempre sarcástica, aos milhões dos Tantamount. Havia dias (e aquele era um deles, por causa da escorregadela na escada e da descortesia do general) em que até uma referência à ciência pura suscitava um comentário irônico. Illidge era um entusiasta da biologia; mas, como cidadão dotado de consciência de classe, tinha de admitir que a ciência pura, como o bom gosto e o tédio, a perversidade e o amor platônico, é um produto da riqueza e do ócio. Não tinha medo de ser lógico nem de ridicularizar o seu próprio ídolo.
— Ter dinheiro para pagar! — repetiu. — Eis o essencial.
O Velho olhou para o assistente com o ar de quem se sente culpado. Aquelas censuras veladas causavam-lhe certo mal-estar. Tentou mudar de assunto.
— E os nossos girinos? — perguntou. — Os assimétricos.
Tinham uma ninhada de girinos saídos de ovos que haviam sido conservados numa temperatura anormalmente quente de um lado e anormalmente fria de outro. Lord Edward dirigiu-se para o tanque de vidro onde mantinham os espécimes. Illidge o seguiu.
— Girinos assimétricos! — repetia ele. — Girinos assimétricos! Que requinte! Quase tão bom como tocar Bach na flauta ou ser conhecedor de vinhos!
Pensou no seu irmão Tom, que tinha os pulmões fracos e que trabalhava numa máquina de mandrilar em certa fábrica de automóveis de Manchester. Lembrou-se dos dias de lavagem em sua casa e da pele vermelha e enrugada das mãos de sua mãe, amolecidas à força de permanecerem na água.
— Girinos assimétricos! — repetiu mais uma vez. E pôs-se a rir.
*
— É estranho — disse mrs. Betterton —, é estranho que um grande artista possa ser tão cínico.
Na companhia de Burlap ela preferia acreditar que John Bidlake levava realmente a sério tudo quanto tinha dito. Burlap, discorrendo sobre o cinismo, emitia pensamentos edificantes, e mrs. Betterton gostava de ser edificada. Não menos edificantes eram as ideias dele sobre a grandeza, para não mencionar as que tinha sobre a arte.
— Porque é preciso admitir — acrescentou ela — que Bidlake é um grande artista.
Burlap meneou a cabeça num gesto lento de aprovação. Não estava olhando diretamente para mrs. Betterton, mas mantinha os olhos desviados dela e voltados para baixo, como se estivesse a falar com alguma pequena personagem invisível para todos, menos para ele, uma personagem que se achasse situada ao lado da interlocutora — talvez o seu demônio familiar; uma emanação de seu próprio eu, um pequeno Doppelgänger. Burlap era um homem de estatura mediana, curvado e um tanto desajeitado no andar. Tinha cabelos escuros, espessos e crespos, com uma tonsura natural do tamanho de uma medalha, recortada em rosa na coroa da cabeça. Seus olhos cinzentos eram muito profundamente metidos nas órbitas; o nariz e o queixo, proeminentes mas bem formados; boca de lábios carnudos e um tanto larga. Segundo o velho Bidlake, que sabia tão bem fazer caricaturas com palavras como com o lápis, o diretor do Mundo Literário era uma mistura de vilão de cinema e de um santo Antônio de Pádua feito por um pintor barroco, de um Lotário trapaceiro e de um devoto extático.
— Sim, um grande artista — concordou ele —, mas não dos maiores. — Falava lentamente, ruminando, como se falasse para dentro. Toda essa conversação era um diálogo com o seu próprio eu ou com aquele Doppelgänger que ali se achava invisivelmente ao lado da pessoa com quem se supunha que ele estava conversando; Burlap tinha uma consciência permanente e exclusiva de sua própria importância. — Não dos maiores — repetiu devagar. Casualmente ele tinha estado a escrever um artigo em torno de um tema de arte para o próximo número do Mundo Literário. — Precisamente por causa daquele cinismo.
“Devia citar-se a si mesmo?”, pensou ele.
— Quanta verdade há nisso! — O aplauso de mrs. Betterton explodiu talvez um pouco prematuramente; o seu entusiasmo estava sempre em ebulição. Ela juntou as mãos. — Quanta verdade! — Olhou para o rosto voltado de Burlap e o achou tão espiritual, tão belo no seu gênero...
— Como pode um cínico ser um grande artista? — continuou ele, decidido já a despejar o artigo em cima da interlocutora, enfrentando, apesar disso, o risco de ela o reconhecer quando o visse impresso na terça-feira seguinte. Mesmo que mrs. Betterton o reconhecesse, isso não apagaria a impressão pessoal que ele havia de lhe dar, recitando-o. — Mas por que queres produzir-lhe impressão? — interviera um diabo brincalhão. — Se não é porque ela é rica e te pode ser útil, só Deus sabe por que é! — O diabo foi violentamente empurrado, com um golpe de forcado, para o lugar de onde viera. — A gente tem as suas responsabilidades — explicou apressadamente um anjo. — A lâmpada não deve ser escondida debaixo de um alqueire. É preciso deixar que ela brilhe, especialmente para as pessoas de boa vontade. — Mrs. Betterton estava do lado dos anjos; a sua lealdade merecia ser consolidada. — Um grande artista — continuou Burlap em voz alta — é um homem que sintetiza toda a experiência. O cínico começa por negar a metade dos fatos: — o fato da alma, o fato dos ideais, o fato de Deus. E, no entanto, temos consciência dos fatos espirituais de maneira tão direta e indubitável como temos consciência dos fatos físicos.
— Naturalmente, naturalmente! — exclamou mrs. Betterton.
— É absurdo negar uma ou outra classe de fatos. “É absurdo negar-me”, disse o demônio familiar, metendo a cabeça na realidade consciente de Burlap.
— É absurdo!
— O cínico se limita a uma só metade da experiência possível. Menos da metade. Porque há mais experiências espirituais do que corporais.
— Infinitamente mais!
— O cínico pode tratar muito bem o seu tema limitado. E Bidlake, concordo, o faz. Extraordinariamente bem. Ele tem todo o talento puro dos artistas mais consumados. Tem, ou pelo menos tinha.
— Tinha — suspirou mrs. Betterton — quando o conheci. — Esta observação trazia implícita a ideia de que fora a sua influência que fizera Bidlake pintar tão bem.
— Mas ele sempre aplicou suas forças a coisas pequenas. O que ele sintetizou na sua arte era limitado, relativamente sem importância.
— Isso foi o que eu sempre lhe disse — fez mrs. Betterton, interpretando os argumentos de sua juventude a respeito do pré-rafaelismo, a uma luz nova e favorável à sua própria reputação. — “Considera Burne-Jones”, eu costumava dizer-lhe. — A lembrança da enorme risada rabelaiseana de John Bidlake repercutiu-lhe aos ouvidos. — Não que Burne-Jones fosse particularmente um bom pintor — apressou-se a acrescentar. (“Ele pintava”, dissera John Bidlake, e como ela tinha ficado chocada, profundamente ofendida,“como se nunca tivesse visto em toda a sua vida um par de nádegas.”) — Mas os seus assuntos eram nobres. “Se tu tivesses os sonhos dele”, eu dizia sempre a John Bidlake, “se tu tivesses os ideais dele, então serias verdadeiramente um grande artista.”
Burlap inclinou a cabeça, exprimindo o seu assentimento num sorriso. “Sim, ela está do lado dos anjos”, pensou; “ela precisa de encorajamento. A gente tem a sua responsabilidade.” O demônio piscou o olho. “Havia algo no sorriso de Burlap”, refletia mrs. Betterton, “que lembrava um Leonardo ou um Sodoma”, algo de misterioso, de sutil, de interior.
— No entanto, tome nota — disse ele, expelindo o seu artigo lentamente, frase por frase —, o assunto não faz a obra de arte. Whittier e Longfellow estavam razoavelmente recheados de grandes pensamentos. Mas o que escreveram foi poesia muito pequena.
— Quanta verdade!
— A única generalização que podemos arriscar é que as maiores obras de arte têm tido grandes assuntos; e que obras em torno de assuntos pequenos, por mais bem acabadas que sejam, nunca são tão boas como...
— Olhe, ali está Walter — disse mrs. Betterton, interrompendo-o. — Errando como uma alma penada. Walter!
Ao som do seu nome, Walter voltou-se. “A Betterton — bom Deus! E Burlap!” Forçou um sorriso. Mas mrs. Betterton e o seu colega do Mundo Literário eram as últimas pessoas no mundo que ele desejava ver naquele momento.
— Estávamos justamente discutindo sobre a grandeza na arte — explicou mrs. Betterton. — Mr. Burlap estava dizendo coisas tão profundas!
E pôs-se a repetir as profundezas para proveito de Walter.
Ele, enquanto isso, perguntava a si mesmo por que a maneira de Burlap para com ele tinha sido tão fria, tão distante, tão fechada, hostil mesmo. A gente nunca sabia que atitude devia assumir diante de Burlap. Era o que havia de mau naquele homem. Ou bem ele amava ou bem odiava. A vida com ele era uma série de cenas — cenas de hostilidade ou, coisa ainda mais penosa na opinião de Walter, cenas de afeição. Num caso ou no outro, a emoção fluía sempre. Raras vezes havia intervalos de água agradavelmente calma. A maré estava sempre em movimento. Mas por que corria ela, agora, para o lado da hostilidade?
Mrs. Betterton continuou com a sua exposição das profundezas. Walter as achava curiosamente análogas a certos parágrafos daquele artigo de Burlap, cujas provas, naquela mesma manhã, ele estivera corrigindo para a impressão. Reproduzido — em sucessivas explosões entusiásticas — com base na reprodução verbal de Burlap, o artigo parecia um tanto ridículo. Uma luz alvoreceu. Seria aquela a razão? Walter olhou para Burlap. O rosto dele tinha uma impassibilidade de pedra.
— Acho que devo me retirar — disse Burlap abruptamente, quando mrs. Betterton fez uma pausa.
— Mas não — protestou ela. — E por quê?
Burlap fez um esforço e sorriu o seu sorriso à Sodoma.
— Está-se demais com o mundo — disse ele, numa citação misteriosa. Gostava de dizer coisas misteriosas: deixava-as cair de surpresa, no meio da conversação.
— Mas tu nunca estás bastante conosco — adulou mrs. Betterton.
— É a multidão — explicou ele. — Ao cabo de algum tempo fico presa de pânico. Tenho a sensação de que eles me esmagam mortalmente a alma. Eu me poria a dar gritos se ficasse.
Foi-se.
— Que homem admirável! — exclamou mrs. Betterton antes que Burlap estivesse fora do alcance de sua voz. — Deve ser uma coisa maravilhosa para ti trabalhar com ele.
— E um bom chefe de redação — disse Walter.
— Mas eu estava pensando na personalidade dele. Como hei de dizer? Na qualidade espiritual do homem.
Walter fez um aceno afirmativo com a cabeça e disse: “Sim”, de uma maneira muito vaga. A qualidade espiritual de Burlap era justamente o que não lhe despertava lá muito entusiasmo.
— Numa época como a nossa — continuou mrs. Betterton —, Burlap é um oásis no deserto da frivolidade tola e do cinismo.
— Algumas de suas ideias são de primeira ordem — concordou Walter, cauteloso.
Estava a perguntar a si mesmo qual seria o mínimo de tempo que precisaria para empreender uma fuga decente.
*
— Lá está o Walter — disse lady Edward.
— Walter de quê? — perguntou Bidlake. Levados pelas correntes mundanas, pai e filho tornavam a encontrar-se.
— O teu Walter.
— Ah! O meu...
O velho Bidlake não revelou muito interesse, mas seguiu a direção do olhar da interlocutora.
— Erva daninha! — disse ele.
Queria mal aos filhos pelo fato de terem crescido; crescendo, eles o empurravam para o passado, ano após ano, para trás, rumo ao abismo e às trevas. Ali estava Walter; nascera apenas ontem. No entanto, devia agora ter vinte e cinco anos, o patife!
— Pobre Walter; não está lá com muito boa aparência, não.
— Parece que está com vermes — disse Bidlake, feroz.
— Como vai aquele lamentável caso dele?
Bidlake deu de ombros.
— Como de costume, suponho.
— Nunca vi a mulher.
— Pois eu vi. É horrorosa.
— Como? Vulgar?
— Não, não. Eu gostaria que fosse — protestou Bidlake. — É requintada, terrivelmente requintada. E fala assim. — Aqui o velho começou a falar num falsete arrastado, que era a imitação da voz de Marjorie. — Como uma suave donzelinha inocente. E tão séria, tão superior... — Interrompeu a imitação com a sua risada profunda. — Sabes o que ela me disse uma vez? Devo explicar que ela sempre me fala a respeito de Arte. Arte com A maiúsculo. Ela disse (a voz do velho subiu de novo a um falsete de bebê): “Penso que há lugar para Fra Angelico e para Rubens”. — Bidlake tornou a soltar uma risada homérica. — Que imbecil! E tem um nariz de pelo menos dez centímetros de comprimento!
*
Marjorie tinha aberto a caixa em que guardava os seus papéis particulares. Todas as cartas de Walter. Desatou a fita e examinou-as uma por uma. “Prezada mrs. Carling, envio-lhe num invólucro separado o volume das Cartas de Keats de que lhe falei hoje. Não se dê o trabalho de mo devolver, peço-lhe. Tenho outro exemplar que hei de tornar a ler para ter o prazer de acompanhá-la, mesmo a distância, na mesma aventura espiritual.”
Era a primeira. Marjorie leu-a do princípio ao fim e recapturou na memória um pouco da surpresa agradável que aquela frase sobre a aventura espiritual evocara nela originalmente. Na conversação Walter tinha sempre parecido esquivar-se às aproximações diretas e pessoais: era dolorosamente tímido. Ela não esperara do rapaz uma carta como aquela. Mais tarde, quando ele já lhe havia escrito muitas vezes, Marjorie acostumou-se às suas singularidades. Supunha que Walter fosse mais afoito com a pena do que frente a frente. Todo o amor do jovem — pelo menos todo o amor que era exprimido, e todo o que, no tempo em que ele lhe fazia a corte, era mais ou menos ardente — estava em suas cartas. Aquela disposição convinha perfeitamente a Marjorie. Gostaria de continuar indefinidamente a cultivar um amor refinado e ardente pelo correio. Gostava da ideia do amor; não gostava era dos amantes, exceto a distância e em imaginação. Um curso de paixão por correspondência era, para ela, a forma perfeita e ideal das relações entre mulher e homem. Melhor ainda seria ter relações pessoais com mulheres; porque as mulheres têm todas as boas qualidades que os homens só apresentam a distância, com a vantagem de estarem efetivamente presentes. Podem ficar num quarto com a pessoa amada e no entanto não exigem dela nada mais do que exige um homem que está na outra extremidade de um sistema de correios. Com a sua timidez e com a sua liberdade e ardor epistolares, Walter tinha, aos olhos de Marjorie, parecido reunir as melhores vantagens de ambos os sexos. E depois o rapaz se mostrava interessado de uma maneira tão profunda e lisonjeira em tudo quanto ela fazia, pensava e sentia... A pobre Marjorie não estava acostumada a ter pessoas que se interessassem por ela.
“Esfinge”, lera ela na terceira das cartas de Walter. (Ele lhe chamara esfinge por causa de seus silêncios enigmáticos. Carling, pela mesma razão, lhe daria nomes menos poéticos.) “Esfinge, por que se esconde dentro de sua concha de silêncio? Dir-se-ia que você tem vergonha da sua bondade, da sua doçura e da sua inteligência. Mas todas estas qualidades põem a cabeça para fora da concha, apesar de você.”
As lágrimas brotaram nos olhos de Marjorie. Walter tinha sido tão bondoso para com ela, tão terno e gentil! E agora...
“O amor”, leu ela na carta seguinte, com o olhar turvo de lágrimas, “o amor pode transformar o desejo físico em desejo espiritual; ele tem o poder mágico de converter o corpo em pura alma...”
Sim, ele tivera aqueles desejos também. Também ele. Todos os homens tinham, supunha ela. Era horrível. Sentiu um calafrio lembrando-se de Carling, lembrando-se mesmo de Walter, com um pouco do mesmo horror. Sim, mesmo Walter, embora tivesse sido tão gentil e atencioso. Walter compreendera o que ela sentia. Era o que tornava ainda mais extraordinária a sua atitude atual. Era como se, subitamente, ele tivesse se transformado em outra pessoa, uma espécie de animal selvagem, com todas as crueldades e com todos os apetites animais.
“Como é que ele pode ser tão cruel?”, perguntava Marjorie a si mesma. “Como pode ele ser assim de um modo tão decidido? Ele, Walter?”
O seu Walter, o verdadeiro Walter, era tão gentil e tão cheio de compreensão e delicadezas, era tão maravilhosamente despido de egoísmo, tão bom! Fora por causa daquela bondade e daquela gentileza que ela o amara, a despeito de ele ser um homem que abrigava “aqueles” desejos; sua devoção era toda para aquele Walter atencioso, terno e altruísta que ela havia conhecido e admirado depois que tinham começado a morar juntos. Marjorie chegara a amar até as manifestações pouco admiráveis dessa suavidade de temperamento, quando ela raiava pela fraqueza; tinha amado Walter mesmo quando ele se deixava roubar pelos choferes de táxi e pelos carregadores de bagagens, quando ele dava esmolas generosas a vagabundos que lhe contavam histórias manifestamente falsas a respeito de empregos na outra extremidade do país e da necessidade de arranjar dinheiro para o transporte. A sua sensibilidade era exageradamente viva na compreensão do ponto de vista alheio. Na sua ansiedade de ser justo para com os outros, consentia muitas vezes em ser injusto para consigo mesmo. Estava sempre pronto a sacrificar os seus próprios direitos, preferivelmente a correr o menor risco de infringir os direitos do próximo. Era uma consideração, compreendera Marjorie, que se transformara em fraqueza, que estava a ponto de se tornar um vício; consideração, além disso, que se devia à sua timidez, àquele desejo melindroso de fugir a qualquer conflito, e também a todo contato desagradável. Apesar de tudo ela o amava por isso, amava-o mesmo quando esses sentimentos o levavam a tratá-la de uma maneira menos justa. Pelo fato de ter chegado a olhar Marjorie como um ser que estava aquém do limite que o separava do resto do mundo, Walter tinha algumas vezes, em sua excessiva deferência para com os direitos dos outros, sacrificado não só os seus próprios direitos, mas também os da companheira. Quantas vezes, por exemplo, Marjorie lhe objetara que ele estava sendo mal pago pelo trabalho que fazia no Mundo Literário! Marjorie pensou na última das conversas que tinham tido a respeito de um assunto, para ele o mais odioso de todos.
— Burlap está te explorando, Walter — dissera-lhe ela.
— Mas o jornal é muito pobre.
Walter sempre tinha desculpas para as negligências dos outros em relação a ele.
— Mas por que você se deixa explorar?
— Não estou sendo explorado. — Havia uma nota de exasperação na voz dele, a exasperação de um homem que sabe que está em erro. — E mesmo que estivesse, eu preferia continuar assim a regatear a minha libra de carne. Afinal de contas, este caso só diz respeito a mim: é um assunto meu.
— É meu! — Marjorie levantou o livro de contas com o qual se achava ocupada quando a conversação começara. — Se você soubesse dos preços das verduras!
Walter corara subitamente e deixara o compartimento sem dizer palavra. A conversação e o incidente eram típicos — semelhantes a muitos outros. Walter nunca tinha sido deliberadamente cruel para com ela; fora-o apenas por engano, por um excesso de consideração para com os outros, e ao mesmo passo que estava sendo cruel para consigo mesmo. Marjorie não lhe queria mal por aquelas injustiças. Elas provavam o quão estreitamente ele estava associado a ela. Mas, agora, agora não havia nada de acidental na crueldade dele. O Walter gentil e atencioso tinha desaparecido para dar lugar a outro —, outro que era implacável e cheio de ódio —, outro que, de uma maneira deliberada, a estava fazendo sofrer.
Lady Edward pôs-se a rir.
— Eu só queria saber o que Walter poderia ter achado nela, se a mulher é tão deplorável como tu a descreves.
— Mas que é que a gente pode achar em outra pessoa? — John Bidlake falava num tom de voz melancólico. Bruscamente, começara a sentir-se doente. Uma opressão no estômago, uma sensação de náusea, uma tendência para o soluço. Ultimamente isso acontecia com frequência. Sempre depois de comer. O bicarbonato não parecia fazer-lhe lá muito bem. — Nestes assuntos — acrescentou —, todos somos igualmente loucos.
— Obrigado! — fez lady Edward, rindo.
E o velho Bidlake, fazendo uma tentativa para ser galante:
— Exceto as pessoas presentes — disse com um sorriso e uma ligeira mesura. Abafou um novo soluço. Como estava se sentindo mal! — Você não repara se eu me sentar? Ficar todo esse tempo por aí de pé... — Deixou-se cair pesadamente sobre uma cadeira.
Lady Edward olhou para ele com uma certa solicitude, mas nada disse. Sabia o quanto Bidlake detestava qualquer referência à idade, à doença ou à fraqueza física.
“Deve ter sido aquele caviar”, pensava Bidlake. “Aquele maldito caviar.” — E odiou violentamente o caviar. Em cada esturjão do Mar Negro ele tinha agora um inimigo pessoal.
— Pobre Walter! — disse lady Edward, retomando a conversação no ponto em que fora interrompida. — E ele tem tanto talento!
John Bidlake bufou com desdém.
Lady Edward percebeu que tinha dito o que não devia — por engano, puramente por engano, desta vez. Mudou de assunto.
— E Elinor? Quando é que a tua Elinor estará de volta? Elinor e Quarles?
— Deixam Bombaim amanhã — respondeu John Bidlake em estilo telegráfico. Estava demasiadamente ocupado pensando no caviar e nas suas sensações viscerais para poder dar uma resposta mais explícita.