Capítulo VII
walter tinha se livrado de mrs. betterton; acenara de longe para o pai e para lady Edward, evitando-os; podia, pois, continuar em sua busca. E por fim achou o que procurava. Lucy Tantamount havia justamente surgido da sala de jantar e ficara imóvel sob as arcadas, olhando com indecisão de um lado para outro. O contraste com o luto do vestido tornava a sua pele luminosamente branca. Trazia no corpete um buquê de gardênias. Ergueu uma das mãos para tocar os cabelos negros e lisos, e a esmeralda do anel enviou a Walter um sinal verde através da sala. Com olho crítico, com uma espécie de frio ódio intelectual, Walter olhava para ela e perguntava a si mesmo por que a amava. Por quê? Não havia razão, não havia justificativa. Todas as razões eram contra aquele amor.
De repente Lucy se moveu, desapareceu-lhe da vista. Walter a seguiu. Passando diante da entrada da sala de jantar, deu com Burlap, que já não era mais o anacoreta: bebia agora champanhe e ouvia a conversação da condessa D’Exergillod. “Bolas”, pensou Walter, lembrando-se de suas próprias aventuras com Molly d’Exergillod. “Mas Burlap provavelmente a adora. É capaz disso... Ele...” Mas lá estava ela de novo, falando, maldição!, com o general Knoyle. Walter ficou atento, sem se afastar deles, esperando com impaciência a oportunidade de se dirigir a Lucy.
— Apanhada finalmente! — disse o general, batendo na mão da jovem. — Procurei você por toda a noite.
Meio sátiro, meio titio, o general tinha uma fraqueza de velho por Lucy. “Que pequena encantadora!”, afirmava ele a todos os que queriam ouvi-lo. “Que figurinha encantadora! Que olhos!” De uma maneira geral ele preferia raparigas mais jovens. “Não há nada como a mocidade!”, gostava de dizer. Os preconceitos que o velho militar alimentara toda a sua vida contra a América e os americanos tinham se transformado em admiração entusiástica desde que, na idade de sessenta e cinco anos, ele visitara a Califórnia e vira as flappers de Hollywood e as lindas banhistas das praias do Pacífico. Lucy estava perto dos trinta, mas o general a conhecia havia anos; continuava a tratá-la como se ela fosse ainda a menina dos primeiros tempos. Para ele Lucy andava ainda pelos dezessete. Bateu-lhe na mão novamente e disse: — Vamos ter uma boa palestra.
— Será divertido — afirmou Lucy com uma polidez sarcástica.
De seu posto de observação Walter contemplava a cena. O general fora um homem bonito, em tempos passados. Espartilhado, o seu corpo alto ainda conservava a postura militar. E ele sorria, galante oficial da guarda; cofiava o bigode branco. Volvido um momento, já se transformava no velho titio brincalhão, protetor e confidencial. Sorrindo levemente, Lucy fitava nele os olhos de um cinzento-pálido, com um ar de divertimento, desprendido e impiedoso... Walter a estudava. Nem mesmo era bonita. Então por que, por quê? Ele queria razões, queria uma justificativa. Por quê? A pergunta se repetia com insistência. Não havia resposta. Ele simplesmente tinha se apaixonado por ela loucamente, a primeira vez que lhe pusera os olhos.
Voltando a cabeça, Lucy deu pela presença dele. Acenou-lhe e chamou-o pelo nome. Walter fingiu-se admirado e encantado pelo encontro.
— Espero que não tenhas esquecido o nosso compromisso — disse.
— Mas quando é que esqueço? Salvo às vezes, de propósito... — precisou ela com uma risadinha. Voltou-se para o general. — Walter e eu vamos ver o seu enteado esta noite — anunciou, com o tom de voz e com o sorriso que a gente emprega quando fala às pessoas a respeito dos que lhes são caros. Mas entre Spandrell e o padrasto havia uma desavença que a jovem bem sabia mortal. Lucy tinha herdado da mãe todo o seu amor às indiscrições sociais propositadas, e a isso misturava um toque de desprendida curiosidade científica, que lhe vinha do pai. Gostava de fazer experiências, não com rãs e cobaias, mas com seres humanos. Podem-se obter efeitos inesperados com as pessoas; pô-las em situações curiosas e esperar para ver o que acontece depois. Era o método de Darwin e Pasteur.
O que aconteceu dessa vez foi que o rosto do general Knoyle ficou extremamente vermelho.
— Há muito que não o vejo — respondeu com dureza.
“Bom”, disse ela para si mesma, “o homem está reagindo.”
E, em voz alta:
— Mas Spandrell é tão bom companheiro!
O general ficou mais vermelho ainda e franziu a sobrancelha. Quanto havia feito por aquele rapaz! E como ele tinha se mostrado ingrato, de que maneira abominável se tinha portado sempre! Era despedido de todos os empregos que o general lhe arranjava. Um pródigo, um ocioso; beberrão e boêmio. Fazia a mãe infeliz, vivia do que lhe podia extorquir, desonrava o nome da família. E a insolência do sujeito, as coisas que ele tivera o topete de dizer a última vez que encontrara o padrasto, por ocasião da cena habitual! Era lá possível o general Knoyle se esquecer de que lhe tinha chamado “velho impotente e trapalhão”?
— E tão inteligente! — continuou Lucy. Com um sorriso interior ela relembrou o resumo que Spandrell fazia da carreira do padrasto. “Reformado compulsoriamente em Harrow”, começava o resumo, “saído de Sandhurst no rabo da lista, teve uma carreira distinguida no Exército, atingindo durante a guerra um alto posto no Military Intelligence Department.” A maneira como Spandrell desenrolava aquela notícia necrológica antecipada era realmente magnífica. Era o próprio Times que se fazia audível. E depois as suas observações sobre a Inteligência Militar em geral! “Se procurarmos a palavra inteligência na nova edição da Enciclopédia Britânica”, dizia o rapaz, achá-la-emos classificada sob três rubricas, a saber: Inteligência Humana; Inteligência Animal; Inteligência Militar. Meu padrasto é um espécime consumado da Inteligência Militar.
— Tão inteligente... — repetia Lucy.
— Há quem pense assim, eu sei — tornou o general Knoyle com muita aspereza. — Mas pessoalmente...
Pigarreou com violência. Aquela era a sua opinião pessoal.
Um instante mais tarde, ainda rígido, ainda colericamente digno, afastou-se de Lucy e Walter. Sentia que a rapariga o ofendera. Nem mesmo a sua juventude, nem mesmo aqueles ombros nus compensavam para ele as referências laudatórias a Maurice Spandrell. Aquele moleque insolente! Sua existência era constante motivo de ressentimento do general para com a esposa. Uma mulher não tinha direito de ter um filho como aquele, não tinha direito. A pobre mrs. Knoyle havia expiado muitas vezes diante do marido as faltas do filho. Ela estava presente, podia ser punida, era fraca demais para resistir. E o general, exasperado, punia na mãe os pecados do filho.
Lucy lançou um olhar rápido para o vulto que se afastava e voltou-se em seguida para Walter.
— Não posso correr o risco de ver reproduzir-se de novo uma coisa como esta... O caso em si já seria bastante desagradável, mesmo que ele não cheirasse tão mal. Vamos?
Walter não desejava nada melhor.
— Mas... e sua mãe, e os deveres sociais? — perguntou.
Lucy deu de ombros.
— No fim das contas mamãe pode cuidar sozinha da sua jaula de ursos...
— Eis a palavra: jaula de ursos — disse Walter, sentindo-se subitamente cheio de esperança. — Vamos sair furtivamente para algum lugar onde haja sossego.
— Meu pobre Walter! — Os olhos dela estavam cheios de zombaria. — Nunca vi ninguém que tenha como você essa mania de sossego. Mas acontece que eu não quero sossego.
A esperança do rapaz se evaporou, deixando uma pequena amargura débil, uma cólera impotente.
— Por que não ficar em casa, então? — perguntou, numa tentativa de sarcasmo. — Isto aqui não está suficientemente barulhento?
— Ah! mas este não é o barulho de que gosto — explicou ela.
— Não há nada que eu odeie mais do que o barulho de pessoas eminentes, respeitáveis e cultas como as criaturas que aqui estão. — Balançou a mão num gesto que abrangia toda a sala. As palavras evocavam em Walter a lembrança de noitadas horrendas passadas com Lucy na companhia de gente pouco educada, de má reputação, ainda por cima embriagada. Os convivas de lady Edward eram já bastante maus. Mas os outros eram seguramente piores. Como ela os podia tolerar?
Lucy pareceu adivinhar os pensamentos do companheiro. Sorrindo, segurou-lhe o braço num gesto tranquilizador.
— Ânimo! — fez ela. — Desta vez não vou te levar para más companhias. Lá teremos Spandrell...
— Spandrell... — repetiu Walter, fazendo uma careta.
— E se Spandrell não é bastante distinto para você, acharemos provavelmente Mark Rampion e a esposa, se não chegarmos tarde demais.
Ao ouvir o nome do pintor e escritor, Walter fez um gesto de aprovação.
— Não, não ponho objeção a escutar a barulheira do Rampion — disse. E, a seguir, fazendo um esforço para vencer a timidez que sempre o emudecia quando chegava o momento de dar expressão aos seus sentimentos: — Mas eu preferia antes — acrescentou jovialmente, como para temperar a afoiteza de suas palavras —, eu preferia antes escutar em particular o ruído que você faz.
Lucy sorriu, mas não disse nada. Walter fugiu do olhar dela, com uma espécie de terror. Aqueles olhos o consideravam de forma calma, fria, como se já tivessem visto tudo e já não se interessassem muito. Eram apenas levemente irônicos, muito leve e friamente irônicos.
— Está bem — disse ele —, partamos.
O tom de sua voz era resignado e infeliz.
— Vamos sair na surdina — propôs Lucy. — Sejamos furtivos. Será ruim se nos surpreendem e nos fazem ficar...
Mas não conseguiram escapar inteiramente despercebidos. Já se aproximavam da porta quando se ouviu atrás deles um sussurro e um som de passos apressados. Uma voz pronunciou o nome de Lucy. Ambos se voltaram e viram mrs. Knoyle, a esposa do general. Ela pousou uma das mãos no braço de Lucy.
— Acabo de saber que você vai ver Maurice esta noite — disse, sem contudo explicar que o general lhe contara aquilo unicamente porque queria desafogar a ira dizendo algo de desagradável a alguém que lhe não pudesse retribuir a grosseria. — Você daria um recado meu? — Inclinou-se para a frente, implorativa. — Daria? — Havia qualquer coisa de pateticamente jovem e desamparado naquele modo de falar, qualquer coisa muito moça e suave naquelas feições de mulher madura. Diante de Lucy, que podia ser sua filha, ela implorava como se se dirigisse a uma pessoa mais velha e mais forte. — Por favor!
— Mas claro que sim — respondeu Lucy.
Mrs. Knoyle sorriu cheia de gratidão.
— Diga a ele que eu irei vê-lo amanhã à tarde.
— Amanhã à tarde.
— Entre quatro e quatro e meia. E não conte isso a ninguém mais... — acrescentou, após um momento de hesitação embaraçosa.
— Está visto que não contarei.
— Eu fico tão agradecida... — disse mrs. Knoyle. E, numa repentina impulsividade tímida, inclinou-se para a frente e beijou Lucy Tantamount. — Boa noite, minha querida.
E desapareceu no meio da multidão.
— Poderia dizer — comentou Lucy, quando atravessava o vestíbulo em companhia de Walter — que ela estava marcando um encontro com o amante, e não com o filho...
Dois lacaios lhes abriram a porta, obsequiosamente automáti-cos. Ao fechá-la, um piscou o olho para o outro, significativamente.
Pelo espaço de um instante as duas máquinas se revelaram sob o aspecto perturbador de seres humanos.
Walter deu o endereço do Sbisa’s Restaurant ao condutor e penetrou nas trevas fechadas do táxi. Lucy já tinha se instalado em seu canto.
Enquanto isso, na sala de jantar, Molly d’Exergillod ainda falava. Sentia-se orgulhosa de sua palestra. A conversação era um dom de família. Sua mãe tinha sido uma das célebres Misses Geoghegans de Dublim. O pai era aquele juiz Brabant, tão conhecido pela sua conversa à mesa e por suas frases áticas no tribunal. Além do mais ela havia feito um casamento de conveniência. D’Exergillod fora discípulo de Robert de Montesquiou e merecera a distinção de ser mencionado em Sodoma e Gomorra, de Marcel Proust. Molly teria de forçosamente ser conversadora pelo casamento, se já não o fosse de nascença. A natureza e o meio tinham conspirado para fazer dela uma atleta profissional da língua. Como todos os profissionais conscientes, ela não se contentava em ter apenas talento. Era industriosa, trabalhava assiduamente para desenvolver o dom natural. Amigos maliciosos diziam que Molly era ouvida a estudar os seus paradoxos na cama, de manhã, antes de se levantar. Ela própria não negava que tinha diários nos quais anotava, com a história complexa de seus próprios sentimentos e sensações, todas as figuras de retórica, todas as anedotas e todos os ditos espirituosos que lhe tinham caído em graça. Refrescaria ela a memória passando os olhos por aquelas notas cada vez que se vestia para ir a um jantar? Os mesmos amigos que a tinham ouvido a cultivar paradoxos na cama também a tinham descoberto, como estudante em véspera de exame, decorando laboriosamente os epigramas de Jean Cocteau sobre arte; as histórias de contar à sobremesa, de mr. Birrell; as anedotas de W. B. Yeats a respeito de George Moore e o que Charlie Chaplin tinha dito a ela e dela por ocasião de sua última viagem a Hollywood. Como todos os conversadores profissionais, Molly era muito econômica com o seu espírito e com a sua sabedoria. Não existem bons mots em quantidade suficiente para prover um conversador industrioso de um novo sortimento a cada ocasião mundana. Se bem que extenso, o repertório de Molly era, como o de outros conversadores mais célebres, limitado. Como boa dona de casa ela sabia utilizar as migalhas sobradas da palestra do jantar da noite anterior para prover o lanche da manhã. Os assados do funeral de segunda-feira serviam para as bodas de terça.
Para Dennis Burlap, Molly estava servindo a conversa que já tinha sido servida e apreciada no lunch party de lady Benger, pelos convidados do weekend em Gobley; por Tommy Fitton, que era um de seus jovens galãs; por Vladimir Pavloff, que era outro; pelo embaixador americano e pelo barão Benito Cohen. A conversa girava em torno do tópico favorito de Molly.
— Sabe o que Jean disse de mim? — perguntava ela (Jean era o marido). — Sabes? — repetiu com insistência, porque tinha o curioso hábito de exigir respostas a perguntas meramente retóricas. Inclinou-se para Burlap, oferecendo os seus olhos negros, os seus dentes, o seu decote.
Burlap respondeu devidamente que não sabia.
— Pois ele disse que eu não era inteiramente humana. Que eu parecia mais um espírito dos elementos do que uma mulher. Uma espécie de fada. Acha que é um elogio ou um insulto?
— Isso depende do gosto de cada um — disse Burlap, dando ao próprio rosto um ar malicioso e sutil, como se tivesse dito uma coisa um tanto ousada, cheia de espírito e ao mesmo tempo profunda.
— Mas eu nem mesmo acho que isso seja verdade — prosseguiu Molly. — Não tenho em absoluto a impressão de ser um espírito dos elementos ou uma fada. Sempre me considerei como uma filha da natureza, perfeitamente simples e franca. Uma espécie de camponesa, mesmo. — Neste ponto da representação de Molly todos os outros ouvintes tinham rompido num coro de protestos cheios de risadas. O barão Benito Cohen declarara com veemência que ela era “uma das imperratrrizess romanass da natureza”.
A reação de Burlap foi inesperadamente diversa da dos outros. Balançou a cabeça, sorriu com uma espécie de expressão longínqua e extravagante.
— Sim — disse —, acho que é verdade. Uma filha da natureza, malgré tout. Você usa disfarces, mas a criatura sincera e simples se mostra por meio desses disfarces.
Molly ficou deliciada com o que julgava ser o mais alto elogio que Burlap lhe podia fazer. Tinha ficado igualmente deliciada com as negações dos outros quanto à sua qualidade de campônia. Aquelas negações e protestos eram também o melhor elogio. A intenção lisonjeira, o interesse pela sua personalidade eram o que importava. Pouco a preocupavam as opiniões reais de seus admiradores.
Burlap, no entanto, estava desenvolvendo a antítese de Rousseau entre o homem e o cidadão. Molly cortou-lhe bruscamente a palavra e trouxe a conversação de volta para o tema original.
— Seres humanos e fadas: eis uma classificação muito boa, não acha? — Inclinou-se para a frente, oferecendo o seu rosto e o seu seio, numa intimidade. — Não acha? — insistiu ela, repetindo a pergunta retórica.
— Talvez. — Burlap aborrecera-se por ter sido interrompido.
— O ser humano vulgar, sim, admitamo-lo, o que é demasia- damente humano, de um lado. E o espírito dos elementos do outro. Um, todo entravado, envolvido num sem-número de coisas sentimentais — eu sou terrivelmente sentimental, diga-se de passagem. (“Mais ou menos tão sentimenal como as serreis na Odisseia” — segundo o comentário clássico do barão Benito.) O outro, o elemento da natureza, absolutamente livre e desligado das coisas, como um gato; um gato que vai e vem, que vai tão alegremente como veio; encantador, mas nunca encantado; fazendo os outros sentir, mas nunca realmente sentindo ele próprio. Ah! Eu lhes invejo essa liberdade aérea!
— Podias do mesmo modo invejar um balão — disse Burlap gravemente. O redator do Mundo Literário sempre tomava o partido do coração.
— Mas eles se divertem tanto...
— Eles não têm sentimento suficiente para poderem se divertir. Pelo menos é o que me quer parecer...
— Para poderem se divertir têm... — precisou ela —, mas talvez não tenham sentimento suficiente para serem felizes. E, na certa, não o têm também bastante para serem infelizes. Eis a razão pela qual são tão invejáveis. Sobretudo quando inteligentes. Veja Philip Quarles, por exemplo. Eis um homem-fada, se é que existem homens assim. — Molly se lançou na sua descrição clássica de Philip. “Zoólogo da ficção”, “elfo instruído”, “Puck científico” — eram algumas de suas frases. Mas a melhor delas lhe tinha fugido da memória. Desesperadamente Molly pôs-se a dar-lhe caça; mas a frase zombava das suas tentativas. Aquele retrato à maneira de Teofrasto teve de vir à luz despojado, dessa vez, do seu efeito mais brilhante, e um tanto desfigurado, do todo, pela consciência que Molly tinha da particularidade esquecida e pelos esforços desesperados que ela fazia para reparar a falta, enquanto despejava o discurso.
— Ao passo que a mulher — concluiu ela, sentindo dolorosamente que Burlap não tinha sorrido tantas vezes como devia — é absolutamente o oposto de uma fada. Nem elfo, nem instruída, nem particularmente inteligente. — Molly sorria com um ar um pouco superior. — Um homem como Philip deve achá-la às vezes um tanto insuficiente... e isto é o menos que se pode dizer. — O sorriso persistia, transformado agora em sorriso de quem está satisfeito consigo mesmo. Philip tinha tido um fraco por ela; e continuava a ter ainda. Escrevia cartas tão divertidas, quase tão divertidas como as dela. (“Quand je veux briller dans le monde” — Molly gostava de repetir os elogios do marido — “je cite des phrases de tes lettres”.) — Pobre Elinor! Às vezes ela é um pouquinho cacete — continuou Molly. — Mas notem bem, fora isso é uma criatura extremamente encantadora. Conheço-a desde quando éramos meninas. Encantadora, mas não se parece em absoluto com uma Hipatia. — Elinor era tola demais para compreender que Philip teria de se sentir fatalmente atraído para uma mulher que tivesse a mesma estatura mental que ele, uma mulher a quem ele pudesse falar em pé de igualdade. Tola demais para perceber, quando os reunira, o quanto ele tinha ficado impressionado. Tola demais para ser ciumenta. Molly sentira a ausência de ciúme, da parte da mulher de Philip, como uma espécie de insulto. Não que ela tivesse dado motivo real para ciúmes. Não dormia com os maridos das outras; apenas palestrava com eles. No entanto, palestrava muito, quanto a isto não havia dúvida. E certas esposas tinham se mostrado ciumentas. As maneiras cheias de confiança ingênua de Elinor a tinham picado a ponto de fazer que ela se mostrasse mais gentil que de ordinário para com Philip. Mas o escritor se ausentara para fazer uma viagem ao redor do mundo, e isso antes que a camaradagem deles pudesse se desenvolver. A palestra — antecipava Molly — seria agradavelmente renovada quando ele voltasse. “Pobre Elinor!”, pensou ela com piedade. Seus sentimentos podiam ter sido um pouco menos cristãos se ela soubesse que a pobre Elinor tinha percebido a expressão de admiração nos olhos do marido, ainda antes que Molly desse por ela, e que, percebendo-a, se pusera a representar conscientemente o papel de dragomano e de intermediário. Não que tivesse muita esperança ou temor de que Molly lograsse operar o milagre transformador. Ninguém se apaixona com desespero por um alto-falante, por mais bonito, por mais rijamente carnudo (porque os gostos de Philip eram um tanto fora de moda) e por mais convidativamente calipígio que seja... A única esperança de Elinor era que as paixões despertadas por essas qualidades de beleza e de carnosidade seriam tão inadequadamente satisfeitas pela conversação (porque, de acordo com os boatos, a conversação era tudo quanto Molly concedia...) que o pobre Philip ficaria reduzido a um estado de raiva e desespero muito propício ao trabalho literário.
— Mas está claro — continuou Molly — que a inteligência nunca deve se casar com a inteligência. Eis por que Jean está sempre me ameaçando com o divórcio. Diz que sou por demais estimulante. Tu ne m’ennuies pas assez,[7] diz ele; e o de que ele necessita é une femme sédative.[8] E eu julgo que meu marido realmente tem razão. Philip Quarles foi sábio. Imagine-se um homem-fada inteligente como Philip casado com uma mulher igualmente inteligente do mesmo reino, Lucy Tantamount, por exemplo. Seria um desastre, não acham?
— Mas Lucy não seria um desastre para qualquer homem, fada ou não?
— Não, devo confessar que gosto de Lucy — Molly voltou-se para o seu armazém interior de frases teofrásticas. — Gosto da maneira como ela passa pela vida: flutua em vez de rastejar. Gosto do modo como ela volita de flor em flor, o que é talvez uma descrição demasiadamente botânica e poética de Bentley, Jim Conklin, desse pobre Reggie Tantamount, de Maurice Spandrell, de Tom Trivet, de Poniatovsky, daquele jovem francês que escreve peças de teatro — como é mesmo que ele se chama? — e de vários outros de quem a gente se esqueceu ou de quem nunca ouviu falar.
Burlap sorriu; todos sorriam neste ponto. Molly continuou:
— Seja como for, ela volita... Causando grandes estragos nas flores, devo admitir... Mas não tirando para si mesma nada mais além do prazer. Confesso que a invejo um pouco. Eu quisera ser uma fada e poder flutuar...
— Mais razão tem ela de invejar a ti — observou Burlap, outra vez com um ar profundo, sutil e cristão, meneando a cabeça.
— Invejar-me por eu ser infeliz?
— Quem é infeliz? — perguntou lady Edward, irrompendo no meio do grupo naquele instante. — Boa noite, mr. Burlap — continuou ela sem esperar resposta. Burlap lhe disse o quanto tinha apreciado a música.
— Estávamos justamente falando de Lucy — disse Molly d’Exergillod, interrompendo-o. — Estávamos de acordo em que ela é como uma fada. Tão leve e tão livre...
— Uma fada! — repetiu lady Edward. — Ela é como um leprechaun. O senhor não imagina, mr. Burlap, como é difícil educar um leprechaun. — lady Edward balançou a cabeça. — Houve momentos em que a pequena chegava a me dar verdadeiros sustos.
— Sim? — perguntou Molly. — Mas quer me parecer que a senhora também tem alguma coisa de fada, lady Edward.
— Um bocadinho — concordou lady Edward. — Mas não a ponto de ser um leprechaun.
*
— Então? — disse Lucy, quando Walter se sentou ao lado dela no táxi. Parecia estar lhe lançando uma espécie de desafio. — Então?
O carro arrancou. Walter tomou a mão dela e levou-a aos lábios. Era a resposta ao desafio.
— Eu te amo. Eis tudo.
— Você me ama, Walter?
Lucy voltou-se para o rapaz e, tomando o rosto dele entre ambas as mãos, encarou-o intensamente na semiobscuridade. E repetiu:
— Você me ama? — E, enquanto falava, balançava a cabeça lenta-mente e sorria. Depois, inclinando-se para a frente, beijou-o na boca. Walter enlaçou-a com os braços; mas Lucy se livrou do abraço. — Não, não — protestava ela, afastando-se para o seu canto. — Não.
Walter obedeceu e deixou-a. Houve um silêncio. O perfume de Lucy era de gardênia; doce e tropical, o símbolo perfumado daquela mulher o envolvia.
“Eu devia ter insistido”, pensava Walter. Brutalmente. Devia tê-la beijado muito e muito. Devia tê-la obrigado a me amar. Por que não o fiz? Por quê? Não sabia tampouco por que ela lhe tinha dado aquele beijo, se não fora justamente para o provocar, para fazer que ele a desejasse com mais violência, para torná-lo ainda mais irremediavelmente seu escravo. Por que, sabendo disto, ele ainda a amava? “Por quê? Por quê?”, continuava a repetir mentalmente. E, como um eco sonoro de seus pensamentos, a voz dela subitamente se fez ouvir.
— Por que você me ama? — perguntou Lucy de seu canto.
Walter abriu os olhos. Passavam naquele instante por um combustor da rua. Pela janela do veículo em movimento a luz do foco caiu sobre o rosto de Lucy, o qual se recortou por um momento, branco contra a escuridão, volvendo depois à invisibilidade — máscara pálida que já tinha visto tudo e que trazia uma expressão de indiferença irônica, um langor duro, um pouco cansado.
— Eu estava justamente a perguntar isso a mim mesmo — respondeu Walter. — E também achando que seria melhor não te amar...
— Eu podia dizer o mesmo, você sabe. Você não é lá muito especialmente divertido quando se porta assim...
“Como são enfadonhos”, refletia ela, “os homens que imaginam que ninguém nunca amou antes de os ver!” Apesar de tudo gostava de Walter. Ele era atraente. Não, “atraente” não era o termo exato. Atraente, como um amante possível, eis justamente o que ele não era. “Convidativo” era palavra que convinha melhor. Um amante convidativo. Não era precisamente o seu gênero. Mas Lucy gostava de Walter. Havia nele algo que agradava muito. Além do mais, o rapaz era inteligente, sabia ser um companheiro agradável. Por mais aborrecível que fosse, aquela sua doença de amor o tornava pelo menos muito fiel. Isto, para Lucy, era importante. Ela temia a solidão e necessitava ter os seus “cavaliers servants” constantemente a seu lado para atendê-la. Walter a servia com a fidelidade de um cão. Mas por que motivo tinha ele algumas vezes a aparência de um cão chicoteado? Era abjeto. Que imbecil! Lucy se sentiu subitamente enfadada diante da abjeção dele.
— Bem, Walter — disse ela, trocista, pousando a sua mão na do rapaz —, por que não me fala?
Walter não respondeu.
— Bico calado, hein? — Seus dedos esfregaram numa carícia elétrica o dorso da mão dele e se lhe fecharam em torno do pulso. — Onde está o seu pulso? — tornou a perguntar ao cabo de um momento. — Não o sinto em parte alguma. — Lucy tateava a pele macia à procura das pulsações da artéria. Walter sentia a carícia da ponta daqueles dedos, leves e palpitantes, um pouco frios, contra o seu pulso. — Acho que você nem tem pulso... Creio que o seu sangue está estagnado. — O tom da voz dela era desdenhoso. “Que tolo!”, pensava Lucy. “Que desprezível bobalhão!” — Completamente estagnado — repetiu. E subitamente, com uma malícia repentina, cravou-lhe na carne as unhas pontudas e afiadas a lima. Walter soltou um grito de surpresa e de dor. — Você merece isto — disse a moça. E riu-lhe na cara.
Walter segurou-a pelos ombros e começou a beijá-la selvagemente. A cólera tinha exacerbado seu desejo: seus beijos eram uma vingança. Lucy fechou os olhos e se abandonou facilmente, sem resistência. Sentiu brotar-lhe na epiderme toda, em pequenas antecipações de gozo, um formigamento bom que era como o adejar de mariposas tomadas de pânico. E de súbito dedos pontudos pareceram dedilhar, em pizicato, as cordas de seus nervos. Walter sentiu todo o corpo dela estremecer involuntariamente em seus braços, estremecer como se tivesse sido subitamente ferido. Beijando-a, ele ficou a pensar se Lucy esperava ou não que ele reagisse daquela maneira à sua provocação. Com ambas as mãos tomou-lhe do pescoço frágil. Seus polegares tocavam-lhe a traqueia. Walter fez uma pressão suave.
— Um dia — disse por entre os dentes cerrados — eu hei de te estrangular.
Lucy limitou-se a rir. Walter inclinou-se e beijou-lhe a boca que ria. O contato dos lábios do rapaz contra os seus produziu nela uma sensação fina, aguda, quase uma dor que trespassasse insuportavelmente. As mariposas agitadas esvoaçaram por sobre o seu corpo todo. Lucy não esperava de Walter aqueles ardores tão brutais e selvagens. Estava agradavelmente surpreendida.
O táxi chegou a Soho Square; diminuiu a marcha, parou. Tinham chegado. Walter deixou cair as mãos e afastou-se de Lucy.
A moça abriu os olhos e olhou para ele.
— Então? — perguntou, no segundo desafio daquela noite. Houve um momento de silêncio.
— Lucy — disse ele —, vamos para alguma outra parte... Não aqui, para este lugar horrível. Outra parte em que possamos ficar a sós. — Sua voz tremia, seus olhos imploravam. A brutalidade tinha desaparecido de seu desejo; ele se tornava outra vez abjeto, como um cão. — Vamos dizer ao chofer que continue — suplicou.
Lucy sorriu e balançou a cabeça. Por que implorava ele daquela maneira? Por que era tão abjeto? Imbecil, cão chicoteado!
— Por favor, por favor! — implorava ele.
Mas devia ter ordenado. Devia simplesmente ter ordenado ao chofer que continuasse, devia ter tomado Lucy de novo nos braços.
— Impossível — disse ela descendo do táxi. Se o rapaz se portava como um cão escorraçado, como tal devia ser tratado.
Walter a seguiu, submisso e infeliz.
Sbisa em pessoa recebeu-os à porta. Curvou-se, agitou as gordas mãos brancas e o seu sorriso expansivo gerou uma sucessão de ondas na carne de suas enormes bochechas. Quando Lucy chegava, o consumo de champanhe tendia a aumentar. Era uma cliente distinta.
— Mr. Spandrell está aqui? — perguntou ela. — E o casal Rampion?
— Ooh! Si, si... — repetia o velho Sbisa com uma insistência napo-litana, quase oriental. Subentendia-se que não somente aquelas pessoas estavam lá, mas também, se estivesse dentro de suas forças, Sbisa teria fornecido até dois exemplares de cada uma delas, só para servir a freguesa. — E a signora? Molto bene, spero... Temos lagosta questa noite, ma que lagosta!
Falando sempre, conduziu-os ao interior do restaurante.