Capítulo X
— uma técnica uniforme — repetiu Spandrell. — Escolhem-se as infelizes, ou as descontentes, ou as que querem entrar para o teatro, ou as que procuram escrever para as revistas e, como são rejeitadas, passam consequentemente a julgar-se âmes incomprises. — Ele generalizava, gabola, o caso da pobre Harriet Watkins. Se tivesse contado, ainda que mal, o seu caso com a rapariga, não teria dado a impressão de uma façanha muito grande. Harriet era uma criaturinha tão sentimental, tão abandonada... Qualquer um a poderia ter conquistado. Mas generalizada daquela maneira, como se o caso dela fosse apenas um dentre centenas, contada numa linguagem de livro de receitas culinárias — “escolhem-se as infelizes”: era como uma das receitas de mrs. Beeton[9] — a história, julgava Spandrell, pareceria cinicamente impressionante.
— Principia-se sendo muito, muito bondoso — continuou ele — e muito prudente, e perfeitamente puro: uma espécie de irmão mais velho, em suma. E elas nos acham verdadeiramente admiráveis porque, está claro, nunca encontraram ninguém que não fosse homem de cidade, com ideias e ambições citadinas. Acham-nos simplesmente admiráveis porque conhecemos todas as coisas de arte, fomos apresentados a todas as celebridades e não pensamos exclusivamente em dinheiro nem com os mesmos termos que emprega o jornal da manhã.
— E elas também nos votam certo temor respeitoso — acrescentou Spandrell, lembrando-se da expressão de admiração assustada que vira no rosto da pequena Harriet. — Somos tão sem-cerimônia e ao mesmo tempo tão “classe superior”... Tão desembaraçados e tão familiarizados com as grandes obras e os grandes homens... Tão perversos, mas ao mesmo tempo tão extraordinariamente bons... Tão instruídos, tão viajados, tão brilhantemente cosmopolitas e West-End (já ouviram um morador de subúrbio falar do West-End?). Somos bem como aquele cavalheiro condecorado com o Tosão de Ouro que se vê nos anúncios dos cigarros de Rezske. Sim, elas nos temem um pouco, mas ao mesmo tempo nos adoram. Nós as compreendemos tão bem, conhecemos tanto a vida em geral e as almas delas em particular... E não somos nem um pouquinho amigos do flerte, nem atrevidos como os homens vulgares, nem um pouquinho... Elas sentem que podem confiar em nós absolutamente; e com efeito podem... nas primeiras semanas. Temos de habituá-las à armadilha; é preciso que elas fiquem de tal maneira mansas e confiantes que não se assustem das palmadinhas inocentes que lhes damos nas costas ao passar, ou dos beijos castos de titio que lhes damos na testa, também ocasionalmente. E enquanto isso, por meio da lisonja, lhes vamos arrancando as confianças pequeninas; fazemo-las falar de amor, falamo-lhes a respeito de nós mesmos da mesma maneira como se estivéssemos falando de homem para homem, como se elas tivessem a mesma idade que nós e fossem tão tristonhamente desiludidas e tão amargamente sabidas quanto nós mesmos; e elas acham isto terrivelmente chocante (embora não o confessem) mas, ah! — como ficam lisonjeadas, palpitante e formidavelmente lisonjeadas! E passam simplesmente a nos amar por isso. Pois bem: afinal, quando o momento nos parece maduro, quando elas já se acham integralmente domesticadas e não se assustam mais, pomos em cena o desenlace. Chá no nosso apartamento — nós as habituamos tão completamente a vir com absoluta impunidade à nossa casa... — e elas vão depois jantar fora conosco, de modo que não há pressa. O crepúsculo se acentua, falamos num tom desiludido, mas ainda sentimentais com relação aos mistérios do amor: trazemos coquetéis bem fortes — e continuamos a falar, de maneira que elas nos devorem as palavras, abstratas, sem refletir. E, sentando no soalho a seus pés, começamos com muita ternura a acariciar-lhes os tornozelos de uma maneira inteiramente platônica, ainda falando sobre a filosofia amorosa, como se em absoluto não tivéssemos consciência do que estamos fazendo. Se elas não se zangam e o coquetel fez o seu trabalho, o resto não será difícil. Assim pelo menos sempre achei eu...
Spandrell encheu o seu cálice de brandy e bebeu...
— Mas é então — prosseguiu —, uma vez que elas se tornam nos-sas amantes, que começa verdadeiramente a brincadeira. É quando temos de pôr em ação todos os nossos talentos socráticos. Nós lhes desenvolvemos os pequenos temperamentos, domesticamo-las e inicia-mo-las — sempre de forma sábia, suave, paciente — em todos os excessos da sensualidade. Isso se pode fazer, garanto-lhe; e, quanto mais inocentes forem elas, mais fácil será a tarefa. Essas criaturinhas podem ser trazidas, em perfeita ingenuidade, ao grau mais espantoso da depravação.
— Não tenho dúvidas a esse respeito — disse Mary, indignada. — Mas qual é o proveito disso tudo?
— É um divertimento — tornou Spandrell com um cinismo teatral. — Faz passar o tempo e dá-nos um pequeno alívio ao tédio.
— E acima de tudo — interveio Mark Rampion, sem erguer os olhos da xícara de café —, acima de tudo, é uma vingança. É uma maneira de nos desforrarmos das mulheres, é uma maneira de puni-las por serem mulheres e por serem tão atraentes, é uma maneira de exprimir o nosso ódio para com elas e para com o que elas representam, é uma maneira de exprimir ódio contra nós mesmos. O seu mal, Spandrell — continuou Mark, levantando de súbito, acusadoramente, os olhos claros e brilhantes para o rosto do outro —, é que no fundo você odeia a si mesmo. Você odeia a fonte mesma da sua vida, a sua base derradeira porque, não há como negar, o sexo é uma coisa fundamental. E você o odeia, você o odeia.
— Eu?
Era uma acusação inédita. Spandrell estava acostumado a ouvir censuras por causa de seu excessivo amor às mulheres e aos prazeres sensuais.
— Não somente você. Todos estes... — Com um gesto brusco de cabeça Rampion indicou os outros convivas. — E todas essas pessoas que se dizem respeitáveis, também. Quase toda a gente. É a doença do homem moderno. Eu lhe chamo “mal de Jesus” por analogia com o mal de Bright. Ou melhor: mal de Jesus e de Newton; porque os cientistas são tão responsáveis quanto os cristãos. Da mesma forma os homens de negócios, pensando bem. É o mal de Jesus, de Newton e de Henry Ford. Os três juntos nos liquidaram completamente. Arrancaram a vida de nossos corpos e nos entulharam de ódio.
Rampion estava impregnado do assunto. Passara o dia todo ocupado com um desenho que o ilustrava simbolicamente. Jesus, com a tanga da manhã da execução, e um cirurgião de avental eram representados a empunhar escalpelos, a um lado e outro de uma mesa de operação na qual, em perspectiva, com as solas dos pés voltadas para o espectador, jazia crucificado um homem meio dissecado. De um talho terrível no ventre se lhe escapavam em novelo as entranhas, que caíam por terra, onde se misturavam com as da mulher acutilada que jazia sangrando no primeiro plano, e se transformavam a seguir, em uma metamorfose alegórica, em todo um povo de serpentes vivas. No fundo se esfumava uma paisagem de colinas, pontilhada de vultos negros de instalações de minas de carvão e de chaminés. De um lado do desenho, atrás do corpo de Jesus, dois anjos — produto espiritual das mutilações dos vivissectores — estavam tentando erguer-se, com as asas estendidas. Em vão, porque seus pés se achavam presos no emaranhado de serpentes. A despeito de todos os esforços, não podiam deixar a terra.
— Jesus e os cientistas nos estão vivissectando — continuou Mark Rampion, que pensava no seu desenho —, picando os nossos corpos em pedacinhos.
— Mas, no fim das contas, por que não? — objetou Spandrell. — Talvez eles tenham sido criados para isso mesmo. O fato da nossa vergonha é significativo. Temos espontaneamente vergonha do nosso corpo e de suas atividades. Isso é um sinal da inferioridade absoluta e natural do corpo.
— Besteira absoluta e natural! — disse Rampion, indignado. Para principiar, a vergonha nada tem de espontânea. Podemos fazer uma pessoa ter vergonha de tudo: ter uma vergonha agoniante de usar sapatos amarelos com casaco preto ou de falar com pronúncia defeituosa, ou de ter uma gota pendurada na ponta do nariz. Ter vergonha de tudo sem exceção, inclusive do corpo e de suas funções. Mas essa espécie de vergonha é tão artificial como qualquer outra. Os cristãos a inventaram, assim como os alfaiates de Savile Row inventaram a vergonha de usar sapatos amarelos com casaco preto. Ela estava muitíssimo pouco divulgada antes da era cristã. Veja os gregos, os etruscos.
Os nomes antigos transportaram Mary para as charnecas de Stanton. Mark era sempre o mesmo. Mais forte agora. Que ar de doente tinha naquele dia! Mary sentira vergonha de ser rica e sã. Acaso o amaria mais naquela época do que agora?
Spandrell erguera uma de suas mãos longas e ossudas.
— Eu sei, eu sei. Nobres, nus e antigos. Mas julgo que eles são uma invenção inteiramente moderna, esses pagãos de ginástica sueca. Nós os trazemos à baila cada vez que desejamos agastar os cristãos. Mas será mesmo que eles existiram? Tenho as minhas dúvidas.
— Mas veja-se a arte deles — disse Mary por sua vez, pensando nas pinturas de Tarquínia. Ela as tinha tornado a ver em companhia de Mark, e dessa vez as vira realmente.
— Sim, e veja-se também a nossa — retorquiu Spandrell. — Quando a sala de escultura da Royal Academy for desenterrada daqui a milênios, hão de dizer que as londrinas do século xx usavam folhas de parreira, davam de mamar aos bebês em público e se abraçavam umas às outras completamente nuas nos jardins.
— Pois eu quisera que fosse assim! — disse Rampion.
— Mas não é. E depois — deixando de parte por um momento essa questão de vergonha —, o que você me diz do ascetismo como condição preliminar da experiência mística?
Rampion bateu as mãos uma de encontro à outra e, inclinando-se para trás na cadeira, ergueu os olhos para o alto.
— Ai, minha madrinha! Então já chegamos a isso, hein? Expe-riência mística e ascetismo. O ódio que o fornicador nutre pela vida, sob uma nova forma.
— Não, mas falando sério... — começou o outro.
— Sim, falando sério, já leu a Thais, de Anatole France?
Spandrell negou com a cabeça.
— Pois leia — aconselhou Rampion. — Leia. É elementar, está claro. Um livro para meninos. Mas ninguém deve crescer sem primeiro ter lido todos os livros para meninos. Pois leia Thais. Depois venha me falar a respeito de ascetismo e de experiências místicas.
— Hei de lê-lo — disse Spandrell. — Por ora, tudo quanto quero dizer é que há certos estados de consciência conhecidos dos ascetas que são desconhecidos para aqueles que não são ascetas.
— Sem dúvida alguma. E se você trata o seu corpo da maneira como a natureza quis que o tratasse, com igualdade, haverá de atingir estados de consciência desconhecidos para os ascetas vivissectores.
— Mas o estado de consciência dos vivissectores é melhor do que o dos gozadores.
— Em outras palavras, os lunáticos são superiores aos homens sensatos. O que eu nego. O grego saudável e harmonioso tira tudo quanto pode de ambos esses estados. Não é bastante idiota para desejar matar uma parte do seu próprio eu. Conserva o equilíbrio. Não é fácil, naturalmente: é até difícil como o diabo. As forças a reconciliar são intrinsecamente hostis. A alma consciente quer mal às atividades da parte inconsciente, física e instintiva do ser total. A vida de uma é a morte de outra e vice-versa. Mas o homem são de espírito pelo menos procura guardar o equilíbrio. Os cristãos, que não eram sãos de espírito, disseram às gentes que elas deviam lançar uma metade de si mesmas na lata do lixo. E agora os cientistas e os homens de negócio vieram para nos dizer que devemos jogar fora a metade que os cristãos nos deixaram. Prefiro ficar vivo, inteiramente vivo. É tempo de fazer uma revolta a favor da vida e da plenitude.
— Mas, de acordo com o seu ponto de vista — disse Spandrell —, parece que a nossa época não precisa de nenhuma reforma. É a idade áurea da intemperança, do esporte e do amor em público.
— Mas se você soubesse como Mark é puritano, no fundo! — riu Mary Rampion. — Um velho puritano clássico!
— Nada de puritano — disse o marido. — Simplesmente são de espírito. Você é como toda a gente — continuou ele, dirigindo-se a Spandrell. — Você parece imaginar que a lascívia fria, moderna e civilizada é a mesma coisa que aquele saudável, como direi?, aquele saudável falismo (esta palavra exprime bem a qualidade religiosa do velho modo de existência; já leu os Acarneanos?), aquele falismo, pois, dos antigos.
Spandrell gemeu e balançou a cabeça.
— Poupe-nos aos exercícios de ginástica sueca.
— Mas não é a mesma coisa — continuou o outro. — É preci-samente o cristianismo às avessas. O desdém do asceta pelo corpo exprimido de maneira diferente. Desdém e ódio. Era o que eu estava dizendo há pouco. Vocês odeiam a vocês mesmos, vocês odeiam a vida. As suas únicas alternativas são a promiscuidade ou o ascetismo, duas formas de morte. Ora, os próprios cristãos compreendiam o falismo muito melhor do que esta geração sem Deus. Como é aquela frase do ritual do casamento? “Com meu corpo vos hei de adorar.” Adorar com o corpo, eis o falismo autêntico. E se imagina que isso tem algo que ver com a promiscuidade civilizada e sem paixão dos nossos jovens mais avançados, está na verdade muitíssimo enganado.
— Oh! estou pronto a admitir o caráter mortal dos nossos divertimentos civilizados — respondeu Spandrell. — Há um certo cheiro — continuou ele a falar sincopadamente, entre chupadas no charuto meio consumido que estava procurando reacender — de perfume barato... e de imundície rançosa... Eu muitas vezes penso... que a atmosfera do inferno... deve ser composta disso. — Jogou fora o fósforo. — Mas a outra alternativa nada tem de mortal. Não há nada de mortal em Jesus ou são Francisco, por exemplo.
— Em certos pontos — disse Rampion. — Eles estavam mortos em certos pontos. Muitíssimo vivos em outros, estou absolutamente de acordo. Mas deixaram simplesmente metade da existência fora de jogo. Não, não, isso é que não! Já era tempo de deixarem de falar deles. Estou cansado de Jesus e de são Francisco, terrivelmente cansado deles.
— Pois bem, e os poetas? — perguntou Spandrell. — Não pode dizer que Shelley seja um cadáver!
— Shelley? — exclamou Rampion. — Não me fale de Shelley. — Balançou a cabeça com convicção. — Não, não. Shelley tem qualquer coisa de verdadeiramente assustador. Não é humano, não é um homem. E um misto de fada e de lesma branca.
— Ora, por favor... — protestou Spandrell.
— Oh! Esquisito, não há dúvida, e tudo mais que você quiser... Mas cheio de um muco viscoso e sem sangue! Nada de sangue, nada de ossos verdadeiros ou de entranhas. Apenas polpa e sumo branco. E depois, aquela mentira tremenda da alma. Aquela maneira que ele tinha sempre de mentir, de fingir, em benefício próprio e em bene-fício dos outros, que o mundo não era realmente o mundo, mas sim céu ou inferno. E que dormir com mulheres não era realmente dormir com elas, mas simplesmente dois anjos que se davam as mãos. Ah! Lembre-se de como ele tratava as mulheres; é escandaloso, verdadeiramente escandaloso. As mulheres adoraram isso, está claro, durante algum tempo. Dava-lhes um tal sentimento de espiritualidade... Durava pelo menos até o dia em que lhes vinha a vontade de suicidar-se tão espiritual... E durante toda a vida ele não passou de um jovem colegial que tinha desejos sensuais iguais aos de todos os outros, mas que se persuadia a si mesmo e aos outros de que ele era Dante e Beatriz feitos um ser único, e muito mais ainda. Tremendo, tremendo! A única desculpa, suponho, é que ele não podia deixar de ser assim. Não nasceu homem; era apenas uma espécie de lesma-fada com os apetites sexuais de um menino de escola. E depois, pensa naquela formidável incapacidade de chamar gato a um gato. Era-lhe preciso sempre fingir que se tratava de um gênio doméstico ou de uma ideia platônica. Você se lembra da ode “A uma cotovia”? “Salve, espírito jucundo! Pássaro jamais foste!” — Rampion recitava fazendo uma paródia ridícula da “expressão” de um declamador. — Fingindo, apenas fingindo e mentindo a si mesmo como sempre. Ele não podia permitir que a cotovia fosse um simples pássaro, com sangue e penas e um ninho e um apetite de comer lagartas. Oh não! isso não seria bastante poético, seria demasiado grosseiro. A cotovia tinha de ser um espírito desencarnado... Privado de sangue e de ossos. Uma espécie de lesma etérea e volante. Não se podia esperar outra coisa. O próprio Shelley era uma espécie de lesma volante; e, no fim das contas, ninguém pode verdadeiramente escrever sobre coisa alguma que não seja o próprio eu... Quando somos lesmas, é preciso que escrevamos sobre lesmas, ainda que o nosso assunto pareça ser uma cotovia. Mas, por Deus, eu quisera — acrescentou Rampion, com uma explosão súbita de fúria extravagante —, eu quisera que essa cotovia tivesse tanto espírito como os pardais do livro de Tobias e deixasse cair no olho de Shelley uma cataplasma bem grande! Seria bem-feito para o poeta não andar dizendo que a cotovia não era pássaro. Espírito jucundo, essa é boa! Espírito jucundo!