Capítulo XI

na vizinhança de Lucy a vida sempre tendia a tornar-se excessivamente pública. “Quantos mais somos, mais alegres ficamos” era o seu princípio; ou pelo menos, se “mais alegres” não fosse o termo apropriado, mais barulhentos, mais tumultuosamente perturbadores.

Dentro de cinco minutos a contar de sua chegada, o canto no qual Spandrell e os Rampions tinham estado sentados toda a noite, na intimidade de uma conversação tranquila, foi invadido e num piscar de olhos devastado por um bando gritalhão e avinhado que surgira do salão particular. Cuthbert Arkwright era o mais ruidoso e o mais embriagado — por princípio e por amor à arte, não menos que por amor ao álcool. Tinha a ideia de que por berrar e por se portar de maneira revoltante ele defendia a arte contra os filisteus. Ébrio, sentia-se alinhado ao lado dos anjos, de Baudelaire, de Edgar Allan Poe, de De Quincey, contra a massa amorfa e sem espiritualidade. E se se vangloriava de suas libertinagens era porque as pessoas respeitáveis haviam tratado Blake de louco, porque Bowdler tinha revisado Shakespeare, porque o autor de Madame Bovary fora processado e porque, quando a gente pede a Sodoma do conde de Rochester na Biblioteca Bodleiana, os bibliotecários não na entregam senão diante de um atestado de que estamos empenhados numa pesquisa literária séria. Arkwright ganhava a sua vida, e fazendo isso ele se convencia de que estava servindo às artes, imprimindo edições limitadas e caras dos mais escabrosos espécimes da literatura nacional e estrangeira. Louro, de um vermelho de bife sangrento, com olhos verdes e saltados, um grande rosto reluzente, ele se aproximou, vociferando saudações. Willie Weaver o seguia airosamente, homenzinho de sorriso perpétuo, óculos escarranchados no nariz comprido, borbulhante de bom humor e de verbosidade inexaurível. Atrás dele, seu gêmeo na altura e também munido de óculos, mas grisalho, apagado, encolhido e silencioso, vinha Peter Slipe.

— Parecem um reclame de especialidade farmacêutica — disse Spandrell ao ver o grupo que se aproximava. — Slipe é o doente antes, Weaver é o mesmo depois do primeiro frasco e Cuthbert Arkwright ilustra os resultados aterradores do tratamento completo.

Lucy ria ainda da brincadeira quando Cuthbert lhe tomou da mão.

— Lucy! — exclamou ele. — Meu anjo! Mas por que, em nome do céu, você escreve sempre a lápis? Eu simplesmente não posso ler o que escreve. É por mero acaso que estou aqui esta noite.

“Então ela tinha escrito para dizer-lhe que a esperasse ali?”, pensou Walter. “Aquele tipo vulgar e tolo, aquele alarve...”

Willie Weaver apertou as mãos de Mary Rampion e de Mark.

— Eu não tinha a menor ideia de que ia encontrar aqui os grandes — disse ele. — Para não falar nas belas... — Fez uma reverência a Mary, que explodiu numa risada estrepitosa e masculina. Willie Weaver ficou mais satisfeito do que ofendido. — Positivamente, isto é a Mermaid Tavern![10]

— Sempre ocupado com o bricabraque? — perguntou Spandrell, inclinando-se sobre a mesa para interpelar Peter Slipe, que se tinha sentado junto de Walter. Peter era assiriólogo e trabalhava no British Museum.

— Mas por que a lápis, por que a lápis? — rugia Cuthbert.

— Fico com os dedos tão sujos quando uso pena...

— Pois eu havia de fazer que a tinta desaparecesse a beijos — protestou Cuthbert, e, inclinando-se sobre a mão que mantinha presa à sua, começou a beijar-lhe os dedos finos.

Lucy pôs-se a rir:

— Prefiro antes comprar uma caneta estilográfica — disse.

Walter observava a cena, abatido. Seria possível? Um palhaço estúpido e odioso como aquele?

— Ingrata! — disse Cuthbert. — Mas é preciso que eu fale com Rampion.

E, afastando-se dela, deu uma palmada no ombro de Mark e simultaneamente acenou para Mary com a outra mão.

— Que ágape! — continuou Willie Weaver na sua efervescência, como uma chaleira. O bico estava voltado para Lucy. — Que festim! Que... — Hesitou um momento à procura da expressão justa, da expressão verdadeiramente contundente. — Que efusões atenienses! Que orgia mais do que platônica!

— Que vem a ser “efusões atenienses”? — perguntou Lucy.

Willie sentou-se e começou a explicar.

— Com “efusões” quero me referir ao contraste com a nossa estreita respeitabilidade burguesa, à Pecksniff...

— Por que você não me dá algum trabalho seu para publicar? — perguntava Cuthbert em tom persuasivo.

Rampion olhou para ele com animosidade.

— Julga que eu tenha a ambição de ver meus livros à venda nas lojas que vendem artigos de borracha?

— Estariam em boa companhia — disse Spandrell. — As obras de Aristóteles... — Cuthbert rugiu um protesto.

— Comparem um eminente vitoriano com um grande homem da época de Péricles — disse Willie Weaver. Sorriu; estava feliz e eloquente.

O borgonha tinha produzido em Peter Slipe um efeito deprimente e não estimulante. O vinho apenas lograva dar realce à sua falta de brilho e à sua melancolia.

— E que me diz de Beatrice? — perguntou ele a Walter. — Beatrice Gilray? — Veio-lhe um soluço e procurou fingir que tinha tossido. — Você a vê frequentemente, acho, agora que ela trabalha no Mundo Literário...

Walter a via três vezes por semana e sempre a encontrava de boa saúde.

— Dê-lhe lembranças quando a vir — pediu Slipe.

— Os borborigmos estertorosos de Carlyle, o dispéptico! — declamou Willie Weaver. E seus olhos brilharam de alegria através das lentes dos óculos. — Le mot — lisonjeava-se ele —, dificilmente poderia ser mais esquisitamente juste. — Weaver tossiu aquela tossezinha que era o seu comentário invariável às melhores de suas frases.“Eu quisera rir, eu quisera aplaudir”, assim se podia interpretar a tossezinha, “mas a modéstia o impede.”

— Estertoroso... quê? — perguntou Lucy. — Lembre-se bem de que não recebi instrução de espécie alguma...

— Você gorjeia naturalmente as suas agrestes canções nativas! — disse Willie. — Posso servir-me de um pouco desta nobre aguardente? A rubra Hipocrene.

— Beatrice me tratou mal, extremamente mal. — Peter Slipe estava lamuriento. — Mas não quero que ela pense que eu guardo rancor...

Willie Weaver estalou a língua depois de provar um gole de brandy.

— As alegrias sólidas e os prazeres líquidos são conhecidos apenas dos filhos de Sião — citou ele erroneamente, repetindo a tossezinha satisfeita.

— O mal de Cuthbert — estava Spandrell dizendo — é que ele nunca aprendeu bem a distinguir a arte da pornografia.

— Está claro — continuou Peter Slipe — que ela tem perfeitamente o direito de fazer o que quer em sua própria casa. Mas botar-me para fora daquela maneira, de uma hora para outra...

Em qualquer outro momento Walter teria escutado com delícia a versão que o pobre Slipe dava daquela curiosa história. Mas, com Lucy ali ao seu lado, ele achava difícil tomar interesse na narrativa.

— Mas às vezes eu pergunto a mim mesma se os vitorianos não se divertiam mais do que nós — dizia ela. — Quanto mais restrições, mais prazer. Se quisermos ver as pessoas beberem com uma alegria verdadeira, é preciso ir à América. A Inglaterra da época vitoriana conheceu o regime seco em todos os setores. Por exemplo, havia uma décima nona emenda[11] a respeito do amor. Devem ter-se atirado a ele tão entusiasticamente como os americanos se atiram ao uísque. Não sei se no fundo sou partidária das efusões atenienses, isto é, se nós representamos...

— Você prefere Pecksniff a Alcibíades — concluiu Willie Weaver.

Lucy deu de ombros.

— Não tenho nenhuma experiência de Pecksniff — confessou.

— Não sei — disse Peter Slipe — se você já foi alguma vez bicado por um ganso.

— Se fui o quê? — inquiriu Walter, fazendo um esforço para fixar a atenção.

— Bicado por um ganso.

— Nunca, que me lembre...

— É uma sensação dura, seca. — Slipe fisgou o ar com o indicador amarelado pelo fumo. — Beatrice é assim. Ela bica; gosta de bicar... Mas sabe também mostrar-se muito boa. Faz questão cerrada de mostrar-se boa à sua maneira, e se põe a dar bicadas se a gente não gosta da coisa. Bicar faz parte de sua bondade; pelo menos foi o que sempre achei. Nunca lhe fiz objeções... Mas, por que motivo me expulsar de casa como se eu fosse um criminoso? E é tão difícil achar um apartamento agora... Tive de ficar numa casa de pensão durante três semanas. A comida...

Teve um calafrio.

Walter não pôde deixar de sorrir.

— Beatrice decerto tinha muita pressa de instalar Burlap no teu lugar...

— Mas por que uma pressa assim?

— Quando se trata de se desfazer do amor velho para acolher o novo...

— Mas que é que o amor tem a ver com isso, no caso de Beatrice?

— Tem muita coisa — interrompeu Willie Weaver. — Tem tudo. Essas virgens que estão caindo na compulsória são sempre as mais apaixonadas.

— Mas ela nunca teve um caso amoroso na sua vida.

— Daí a violência — concluiu Willie triunfantemente. — Beatrice tem uma pedra em cima da válvula de segurança. E minha mulher afirma que suas roupas de baixo são verdadeiramente frineanas.[12] Isso é pra lá de sinistro...

— Talvez ela goste de andar bem vestida — sugeriu Lucy.

Willie Weaver balançou a cabeça. A hipótese era demasiada-mente simples.

— O inconsciente daquela mulher é um buraco negro. — Willie hesitou por um instante. — Cheio de abraços batraquiais na treva — concluiu ele. E tossiu modestamente para comemorar a sua façanha.

*

Beatrice Gilray estava consertando um corpete de baixo, de seda cor-de-rosa. Tinha trinta e cinco anos, mas parecia mais jovem ou, melhor, parecia não ter idade. Uma pele fresca e clara. Os olhos brilhantes engastavam-se nas órbitas pouco fundas e sem rugas. O rosto tinha qualquer coisa de vivo e de voluntário, e não era destituído de beleza; mas com algo intrinsecamente cômico na forma do nariz, havia um quê de ligeiramente absurdo no brilho de miçanga dos olhos, na boca amuada, no queixo redondo e cheio de desafio. Mas a gente ria com ela não menos que dela; porque a postura de seus lábios era humorística e a expressão de seus olhos redondos e espantados, trocista e maliciosamente curiosa.

Beatrice cosia. O relógio tiquetaqueava. O instante em movimento que, segundo sir Isaac Newton, separa o passado infinito do infinito futuro, avançava inexoravelmente através da dimensão do tempo. Ou, a crer em Aristóteles, um pouco mais do possível a cada instante se tornava real; o presente imobilizava-se e ia incorporando a si o futuro, como um homem que ficasse engolindo para sempre um fio de macarrão sem fim. De quando em quando Beatrice tornava real um bocejo em potência. Num cesto ao lado do fogo uma gata preta estava deitada de lado e dava de mamar a quatro gatinhos cegos e mosqueados. As paredes do quarto eram de um amarelo de pétalas de primavera. Na prateleira superior da biblioteca a poeira engrossava sobre os manuais de assiriologia que Miss Gilray tinha comprado quando Peter Slipe era locatário do seu andar inferior. Um volume dos Pensamentos de Pascal, com anotações a lápis feitas por Burlap, jazia aberto sobre a mesa. O relógio continuava a tiquetaquear.

De súbito a porta da frente bateu. Beatrice largou o corpete de seda cor-de-rosa e ergueu-se num salto.

— Não esqueça que você tem de beber todo o seu leite quente, Denis — disse ela, olhando para o hall. Sua voz era clara, aguda e imperativa.

Burlap pendurou o sobretudo e chegou à porta:

— Você não devia levantar por minha causa — observou, numa reprimenda terna, sorrindo para ela um de seus graves e sutis sorrisos à Sodoma.

— Eu tinha um trabalho que fazia questão de terminar — mentiu Beatrice.

— Ora, você foi mesmo muitíssimo camarada...

Estas pequenas expressões familiares com que Burlap gostava de apimentar a sua conversação tinham, para os ouvidos sensíveis, a mais curiosa das ressonâncias.

“Ele fala gíria”, dissera uma vez Mary Rampion, “como um estrangeiro que dominasse perfeitamente o inglês, mas dominasse como estrangeiro. Não sei se já ouviram um hindu dizer ‘um sujeito macanudo’. A gíria de Burlap me lembra isso.”

Para Beatrice, no entanto, aquele “muitíssimo camarada” parecia inteiramente natural e sem nada de estrangeiro. Ela corou com um prazer tímido de donzela. Mas:

— Entre e feche a porta — disse num tom seco de comando. Sobre aquela jovem e delicada timidez havia uma rígida casca exterior; havia uma parte de seu ser que dava bicadas e que era essencial-mente prática. — Sente-se ali — ordenou; e, enquanto se punha a lidar vivazmente com o pote de leite, com a caçarola e com a torneira do gás, ela perguntou a Burlap se tinha gostado da festa.

Burlap balançou a cabeça:

Fascinatio nugacitatis — disse ele. — Fascinatio nugacitatis.

Tinha estado a ruminar a fascinação da futilidade durante todo o caminho, desde Piccadilly Circus.

Beatrice não entendia latim; mas podia ver pelo rosto de Burlap que aquelas palavras exprimiam desaprovação.

— As reuniões sociais, no fundo, são uma perda de tempo, não é mesmo? — disse ela.

Burlap balançou a cabeça num sinal afirmativo.

— Uma perda de tempo — repetiu num eco, com a sua lenta voz de ruminante, fixando os olhos vagos e preocupados no demônio familiar invisível que se achava um pouco à esquerda de Beatrice. — Chegamos aos quarenta, deixamos para trás mais de metade da vida, o mundo é maravilhoso e misterioso. E no entanto ainda passamos quatro horas a palestrar a respeito de coisa nenhuma em Tantamount House.Como se explica que a trivialidade seja tão atraente? Ou existe alguma outra coisa atrás da trivialidade, alguma outra coisa que nos atrai? Será alguma vaga e fantástica esperança de que se possa encontrar o ser messiânico que sempre estivemos procurando, ou ouvir a palavra reveladora?

Burlap balançava a cabeça enquanto falava, com um curioso movimento desconjuntado, como se os músculos de seu pescoço estivessem perdendo a elasticidade. Beatrice estava de tal maneira familiarizada com aquele movimento que já não via nele nada de estranho. Esperando que o leite fervesse, ela escutava com admi-ração, contemplava Burlap com uma cara séria de quem está na igreja. Um homem cujas excursões aos salões dos ricos eram como simples episódios numa vida toda dedicada às pesquisas espirituais, podia razoavelmente ser considerado como equivalente ao ofício divino das manhãs de domingo.

— Apesar de tudo — acrescentou Burlap, levantando subitamente os olhos para a interlocutora, com um riso gaiato e muito arreganhado, surpreendentemente diverso do sorriso à Sodoma do momento anterior —, o champanhe e o caviar estavam realmente maravilhosos. — Era o demônio familiar que tinha bruscamente interrompido as ruminações filosóficas do anjo. Burlap lhe permitira falar em voz alta. Por que não? Achava divertido ser desconcertante. Olhou para Beatrice.

Beatrice estava devidamente desconcertada.

— Não tenho dúvidas a esse respeito — disse ela, modificando a expressão de seu rosto de fiel na igreja para harmonizá-lo com o riso garoto de Burlap. Riu um pouco nervosamente e se afastou para colocar o leite em uma xícara. — Está aqui o seu leite — ofereceu ela num tom seco, refugiando-se na imperiosidade cheia de solicitude para fugir ao seu embaraço. — Beba enquanto está quente.

Houve um longo silêncio. Burlap bebericava devagar o leite fumegante e Beatrice, sentada num tamborete diante da lareira apa-gada, esperava, ofegando um pouco, esperava nem ela mesmo sabia o quê...

— Você parece a pequena Miss Muffett[13] sentada no seu banquinho — disse por fim Burlap, numa alusão à velha poesia infantil.

Beatrice sorriu.

— Felizmente não está aqui a aranha grande...

— Obrigado pelo elogio, se é que isso é elogio...

— Sim, é — afirmou Beatrice.

“Ali estava”, pensou ela, “o que havia de verdadeiramente encantador em Denis; era uma pessoa tão digna de confiança! Com os outros homens havia o perigo dos agarramentos, das apalpadelas, dos beijos... E aquilo era horrível, verdadeiramente horrível. Beatrice nunca se refizera completamente do choque que tinha recebido quando, sendo ainda menina, o cunhado de sua tia Maggie, um homem que ela considerara sempre como um tio, pusera-se um dia a dar-lhe apertões dentro de um táxi. O incidente de tal maneira a assustara e revoltara que, quando Tom Field, de quem ela verdadeiramente gostava, a pediu em casamento, Beatrice o repeliu, simplesmente porque ele era um homem, como aquele horrível tio Ben, porque ficava apavorada à simples ideia de que pudessem cortejá-la, porque tinha um terror pânico de qualquer contato. Beatrice estava com mais de trinta anos e jamais permitira que pessoa alguma a tocasse. A suave e trêmula mocinha que havia nela, debaixo da casca de mulher prática, tinha se apaixonado muitas vezes. Mas o terror de ser apalpada, de ser tocada mesmo, fora sempre mais forte do que o amor. Ao primeiro sinal de perigo, Beatrice se punha desesperadamente a dar bicadas, enrijava a casca, fugia... Quando afinal se via a salvo, a mocinha aterrada soltava um longo suspiro. Graças aos céus! Mas um pequeno suspiro de desapontamento estava sempre incluído no grande suspiro de alívio. Beatrice quisera não ter medo, quisera que a camaradagem feliz que existia antes das apalpadelas tivesse podido continuar para sempre, indefinidamente. Algumas vezes ela se enchia de ódio contra si mesma; com mais frequência pensava que havia no amor algo de fundamentalmente mau, e algo de fundamentalmente assustador nos homens. Eis o lado admirável de Denis Burlap: era era uma criatura tão tranquilizadora... Não pensava em tomar familiaridades, em apalpar. Beatrice podia adorá-lo sem a menor sombra de receio.

— Susan também costumava sentar-se em tamboretes, como a pequena Miss Muffett — continuou Burlap depois de uma pausa. A sua voz era melancólica. Tinha passado os últimos minutos a ruminar o tema de sua mulher morta. Havia quase dois anos que Susan fora levada por uma epidemia de influenza. Perto de dois anos; mas a sua dor — Burlap garantia a si mesmo — não tinha diminuído; o sentimento de sua perda permanecia tão avassalador como sempre. Susan, Susan, Susan — repetira o nome dela muitas e muitas vezes. Nunca mais a veria, ainda que vivesse um milhão de anos. Um milhão de anos, um milhão de anos. Abriam-se abismos em torno destas palavras. — Ou no chão — prosseguiu Burlap em voz alta, reconstruindo a imagem da mulher o mais vividamente possível. — Acho que ela preferia sentar-se no chão. Como uma criança. “Uma criança, uma criança”, repetiu ele interiormente. “Tão jovem!”

Beatrice continuava sentada em silêncio, contemplando a lareira vazia. Seria indiscreto, sentia ela, quase indecente, olhar para Burlap. Pobre criatura! Quando por fim se voltou para ele, notou que tinha lágrimas nas faces. À vista dessas lágrimas, Beatrice sentiu-se invadida por uma onda súbita de piedade maternal. “Como uma criança”, dissera ele. Mas ele, Denis, ele próprio era como uma criança! Como uma pobre criança infeliz.

Inclinando-se para a frente, Beatrice afagou com os dedos o dorso da mão que Burlap deixava pender molemente...

*

— Abraços batraquiais! — repetiu Lucy. E pôs-se a rir. — Essa foi uma faísca de gênio, Willie.

— Todas as minhas faíscas são faíscas de gênio — disse Willie modestamente. Estava representando; era Willie Weaver no papel célebre de Willie Weaver. Explorava artisticamente aquele amor da eloquência, aquela paixão da frase bem redonda e retumbante com a qual nascera, num atraso de três séculos. Na época da mocidade de Shakespeare ele teria sido uma celebridade da literatura. Entre seus contemporâneos, os eufuísmos de Willie provocavam apenas o riso. Mas ele apreciava os aplausos, mesmo que estes fossem escar-ninhos. Além do mais, as risadas nunca traduziam malícia; porque Willie Weaver era tão bom rapaz e tão obsequioso que toda a gente gostava dele. Era, pois, diante de um auditório jocosamente apro-vador que ele representava agora o seu papel; e, sentindo a aprovação por meio da hilaridade, representava-o com toda a alma.

— Todas as minhas faíscas são de gênio — repetiu.

A observação harmonizava-se admiravelmente com o papel. E era verdadeira, quem sabe?! Willie gracejava, mas com uma convicção secreta.

— Tomem nota de minhas palavras — acrescentou —: dia desses os batráquios se insurgem e saltam para fora.

— Mas por que batráquios? — perguntou Slipe. — Nada menos parecido com um batráquio do que Beatrice...

— E por que eles hão de saltar para fora? — inquiriu Spandrell.

— As rãs não dão bicadas.

Mas a voz fina de Slipe foi afogada pela de Mary Rampion.

— Porque as coisas encerradas acabam sempre por saltar para fora — exclamou ela. — Saltam mesmo.

— Moral da história — concluiu Cuthbert —: nunca encerre coisa alguma. Eu nunca o faço.

— Mas talvez a graça esteja no salto dos batráquios — filosofou Lucy.

— Que proibicionista perversa e paradoxal!

— Mas é lógico — falou Rampion — que se produzam revoluções internas não menos que externas. No estado, são os pobres contra os ricos. No indivíduo, é o corpo e os instintos oprimidos contra o intelecto. O intelecto foi exaltado, como as classes superiores, no domínio do espírito; as classes inferiores no mesmo domínio se revoltam.

— Apoiado! Muito bem! — gritou Cuthbert, batendo na mesa.

Rampion franziu a sobrancelha. A aprovação de Cuthbert era-lhe um insulto pessoal.

— Eu cá sou contrarrevolucionário — disse Spandrell. — Coloquem-se as classes inferiores espirituais nos seus lugares.

— Menos no seu próprio caso, hein? — disse Cuthbert, arrega-nhando os dentes.

— Não se pode expor uma teoria?

— Há séculos que nós as vimos reprimindo, à força — disse Rampion — e vejam o resultado. Você, entre outras coisas. — Olhou para Spandrell, que jogou a cabeça para trás e riu afonicamente. — Olhem o resultado — repetiu. — A revolução pessoal interior, e, em consequência dela, a revolução exterior e social.

— Vamos, vamos! — disse Willie Weaver. — Você fala como se as carretas de Termidor já andassem estrondando na rua. A Inglaterra continua mais ou menos no mesmo lugar.

— Mas o que você sabe da Inglaterra e dos ingleses? — retorquiu Rampion. — Nunca saiu de Londres, nem da sua classe social. Vá para o Norte...

— Deus me livre! — exclamou Willie, fervorosamente.

— Vai ver o país do carvão e do ferro. Converse um pouco com os operários metalúrgicos. Não é a revolução por uma causa. É a revolução como um fim em si. A demolição pelo amor à demolição.

— Isso me parece bastante simpático — disse Lucy.

— É espantoso. É simplesmente inumano! Extraiu-se-lhes toda a humanidade sob a pressão da vida civilizada, sob o peso do carvão e do ferro. Não será uma revolta de homens. Será uma revolução de seres elementares, de monstros, de monstros pré-humanos... E você se contenta em fechar os olhos e fingir que tudo isso é absolutamente perfeito.

*

— Pense só na desproporção — dizia lord Edward, enquanto fumava o seu cachimbo. — E positivamente... — A voz lhe faltou. — Tome o carvão, por exemplo. O homem o consome hoje cento e dez vezes mais do que consumia em 1800. Mas a população atual é apenas duas vezes e meia o que era naquele tempo. Com os outros animais... Certamente é bem diverso. O consumo é proporcional ao número de indivíduos.

Illidge apresentou algumas objeções.

— Mas quando os animais dispõem de um excesso sobre aquilo que lhes é necessário para subsistir, eles não o rejeitam, não é mesmo? Quando há uma batalha ou uma peste, as hienas e os abutres tiram proveito da abundância para comer mais do que a sua fome exige, para se superalimentar. Não se passa o mesmo conosco? Morreram florestas em grandes quantidades, há alguns milhões de anos. O homem exumou-lhes os cadáveres, descobriu que os podia usar, e se está dando o luxo de um farto banquete enquanto dura a carniça. Quando a provisão se exaurir, ele voltará às rações reduzidas, como fazem as hienas nos intervalos entre as guerras e as epidemias. — Illidge falava com volúpia. Discorrer sobre seres humanos como se não fosse possível distingui-los dos macacos enchia-o de uma satisfação particular. — Descobre-se uma jazida carbonífera, um poço de petróleo. Brotam cidades, constroem-se estradas de ferro, navios vêm e vão. Para um observador experimentado que morasse na Lua, esse enxamear, esse vaivém deveria parecer uma pululação de formigas e de moscas em torno de um cão morto. O salitre do Chile, o petróleo do México, os fosfatos da Tunísia — a cada descobrimento, um novo formigar de insetos. É possível imaginar os comentários dos astrônomos lunares: “Aquelas criaturas têm um tropismo notável e talvez único para as carniças fossilizadas”.

*

— Como avestruzes — disse Mary Rampion. — Vocês vivem como avestruzes.

— E não é somente no que diz respeito às revoluções — acrescentou Spandrell, ao mesmo tempo em que se ouvia Willie Weaver dizer algo sobre “as filosofias estrutiocamelinas”. — Mas no que diz respeito a todas as coisas importantes que porventura sejam desagradáveis. Houve um tempo em que não se andava por aí a fingir que a morte e o pecado não existem. “Au détour d’un sentier une charogne infâme” — citou ele. — Baudelaire foi o último poeta da Idade Média, ao mesmo tempo que o primeiro poeta moderno. “Et pourtant” — continuou ele, olhando para Lucy com um sorriso e erguendo o copo:

Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,

À cette horrible infection,

Etoile de mes yeux, soleil de ma nature.

Vous, mon ange et ma passion!

Alors, ô ma beauté, dites à la vermine

Qui vous mangera de baisers...

— Meu caro Spandrell! — Lucy levantou a mão num sinal de protesto.

— Realmente, é necrófilo demais! — objetou Willie Weaver.

“Sempre o mesmo ódio da vida”, pensava Rampion. “Diferentes gêneros de morte: as únicas alternativas.” Olhou para o rosto de Spandrell escrutadoramente.

*

— E pensando bem — dizia Illidge —, o tempo que foi preciso para formar as jazidas de carvão, dividido pela duração da vida humana, não difere tão enormemente da vida de uma sequoia dividida por uma geração de bactérias de fermentação pútrida.

*

Cuthbert olhou para o relógio:

— Mas meu Deus! — exclamou —, faltam vinte e cinco para uma hora. — Ergueu-se num salto. — Prometi que apareceríamos na festa dos Widdicombe. Peter, Willie! Acelerado, marche!

— Mas vocês não podem ir — protestou Lucy. — Não podem ir assim tão absurdamente cedo...

— É o chamado do dever — explicou Willie Weaver. — Austero Filho do Verbo Divino. — Soltou a sua tossezinha de autoaprovação.

— Mas é ridículo, é inadmissível.

Lucy olhou de um para outro com uma espécie de ansiedade colérica. O pavor da solidão era nela um sentimento crônico. Era sempre possível, se eles ficassem sentados cinco minutos mais, que acontecesse algo verdadeiramente divertido. De resto, era insuportável que as pessoas fizessem coisas contra a sua vontade.

— E nós também, parece-me... — disse Mary Rampion, erguendo-se da cadeira.

“Graças aos céus!”, pensou Walter. Esperava que Spandrell seguisse o exemplo geral.

— Mas é impossível! — gritou Lucy. — Rampion, eu não posso permitir isso!

Mark Rampion limitou-se a sorrir. “Estas sereias profissionais!”, pensou.

Lucy o deixava completamente frio, causava-lhe horror. Desesperada, a moça apelou para a outra mulher que havia no grupo.

— Mrs. Rampion, a senhora deve ficar. Mais cinco minutos. Apenas cinco minutos — pediu com uma voz cheia de adulação.

Tudo debalde. O criado abriu a porta lateral. Furtivamente, eles deslizaram para a escuridão.

— Mas por que insistem em ir embora? — perguntou Lucy, num queixume.

— Por que insistimos nós em ficar? — perguntou Spandrell. Walter descoroçoou; aquilo significava que o homem não pretendia ir embora com os outros. — Pois isso é muito mais incompreensível...

Absolutamente incompreensível! O calor e o álcool produziam em Walter o efeito habitual. Ele se sentia doente e ao mesmo tempo desgraçado. Para que ficar ali, sem nenhuma esperança, naquele ar envenenado? Por que não voltar logo para casa? Marjorie ficaria contente.

— Você pelo menos é fiel, Walter.

Lucy sorriu para ele. Walter decidiu retardar a partida. Fez-se um silêncio.

*

Cuthbert e os companheiros tinham tomado um táxi. Recusando todos os convites, os Rampion preferiram seguir a pé.

— Graças a Deus! — disse Mary, quando o taxi arrancou. — Esse medonho Arkwright!

— Sim, mas a mulher ainda é mais atroz — contrapôs Rampion. — Ela me dá arrepios. Aquele pobre menino, o tolinho do Bidlake! Está lá como um coelho diante de uma fuinha.

— Isso é sindicalismo masculino. Eu chego a gostar dela, porque Lucy faz que vocês homens se agitem um pouquinho. E é bem-feito.

— É o mesmo que gostar de uma cobra-capelo.

A zoologia de Rampion era inteiramente simbólica.

— E Spandrell, então, já que estamos tratando de horrores? Parece uma gárgula, um demônio...

— Parece um colegial bobo — afirmou Rampion com ênfase.

— Esse nunca cresceu, nunca ficou adulto. Não percebeste ainda? É um adolescente eterno. Torturando o cérebro com todas essas coisas que preocupam os adolescentes. É incapaz de viver, porque anda por demais ocupado em pensar na morte e em Deus e na verdade e no misticismo e em tudo mais que segue; demasiadamente ocupado em pensar nos pecados e em tentar cometê-los, para no fim ficar decepcionado porque não o consegue. É deplorável. Spandrell é uma espécie de Peter Pan — até mesmo muito pior do que esse repugnante abortinho de Barrie, porque está acorrentado a uma época mais néscia. É um Peter Pan à Dostoiévski mais Musset, mais a década de 1890, mais Bunyan, mais Byron e mais o Marquês de Sade. Verdadeiramente deplorável. Tanto mais deplorável quanto há nele, em potência, um ser humano muito decente.

Mary pôs-se a rir.

— Acho que terei de fiar-me na sua palavra...

*

— A propósito — disse Lucy, voltando-se para Spandrell — eu tenho um recado de sua mãe.

Deu-o. Spandrell balançou a cabeça afirmativamente, mas não fez comentários.

— E o general? — inquiriu ele, logo que Lucy terminou de falar. Não queria que se falasse mais na mãe.

— Oh, o general! — Lucy fez uma careta. — Tive pelo menos meia hora de Inteligência Militar esta noite. Para falar a verdade, eu não lhe devia permitir isso. Que me dizes de uma “Sociedade Contra os Generais”?

— Inscrevo-me como membro fundador e honorário.

— Ou por que não uma sociedade para a abolição dos velhos, já que estamos no assunto — continuou Lucy. — Os velhos realmente são impossíveis. Exceto o seu pai, Walter. Ele é perfeito. Perfeito mesmo. O único velho possível.

— É justamente um dos raros que são completamente impos-síveis, você é que não sabe. — Entre os Bidlake da geração de Walter a impossibilidade do velho John era quase axiomática. — Você não o acharia tão perfeito se fosse mulher ou filha dele.

Ao pronunciar estas palavras, Walter subitamente lembrou-se de Marjorie. O sangue subiu-lhe as faces.

— Oh! naturalmente, se o vamos escolher como marido ou como pai — retorquiu Lucy — que poderemos esperar? Pois ele é possível como velho justamente porque é assim impossível como marido e como pai. A maior parte das pessoas velhas ficou com a vida esmagada sob o peso de suas responsabilidades. O teu pai nunca se deixou esmagar. Teve mulheres e filhos e o resto... Mas viveu sempre como um garoto na gandaia. Coisa que não é lá muito agradável para as mulheres e os filhos, concordo... Mas como é agradável para nós outras!

— Admito... — disse Walter. Julgara-se sempre em tudo diferente do pai. Mas estava procedendo bem como o pai procedera.

— Pensa nele fazendo abstração do sentimento filial.

— Vou tentar...

Que devia ele pensar de si mesmo?

— Pois tenta e hás de ver que tenho razão. Teu pai é um dos poucos velhos possíveis. Compara-o com os outros. — Lucy balançou a cabeça. — Inútil; não se pode tratar com eles.

Spandrell riu.

— Vocês falam dos velhos como se fossem pigmeus ou esquimós.

— Bem, e eles não são mais ou menos isso? Corações de ouro e tudo mais que segue... E maravilhosamente inteligentes, à sua maneira, e levadas em conta as circunstâncias. Mas acontece que os velhos não pertencem à nossa civilização. São estranhos. Hei de me lembrar sempre daquela vez que fui tomar chá em casa de umas senhoras árabes, na Tunísia. Eram tão amáveis, tão hospitaleiras... Mas fizeram questão de que eu comesse uns bolos intragáveis... Falavam mal o francês... E eu não tinha absolutamente nada para dizer-lhes... E estavam tão horrorizadas com as minhas saias curtas e com o fato de eu não ter filhos... As pessoas velhas sempre me fazem lembrar aquele chá árabe. Vocês acham que nós seremos um chá árabe quando ficarmos velhos?

— Sim, e provavelmente um memento mori ainda por cima — disse Spandrell. — É uma questão de arteriosclerose.

— Mas o que torna os velhos tão parecidos com um chá árabe são as suas ideias. Eu simplesmente não posso conceber que a arteriosclerose me faça um dia acreditar em Deus, na moral e no mais que segue... Saí do meu casulo durante a guerra, quando tudo estava fora dos eixos. Não vejo como nossos netos possam fazer uma derrubada mais completa do que a que se fez naquela época. Então, por que haveria de vir o desentendimento?

— Talvez eles tenham posto tudo de novo nos seus lugares... — sugeriu Spandrell.

Lucy ficou silenciosa por um momento.

— Nunca pensei nisso...

— Ou então você mesma poderá ter feito isso. Botar as coisas de novo nos lugares é uma das ocupações tradicionais dos velhos...

*

O relógio bateu uma hora e, como um cuco libertado pela badalada, Simmons apareceu na biblioteca trazendo uma bandeja. Simmons era um homem maduro e tinha aquela dignidade ministerial de postura que a necessidade de refrear a língua e de manter a calma, de nunca dizer o que verdadeiramente se pensa e de guardar as aparências tende sempre a produzir nos diplomatas, nas personagens reais, nos altos funcionários públicos e nos mordomos. Sem o menor ruído, pôs a mesa para dois e, anunciando que a ceia de milord estava servida, retirou-se. Era numa quarta-feira: duas costeletas de carneiro assadas na grelha revelaram-se à luz quando lord Edward levantou a tampa de prata. Segundas, quartas e sextas-feiras eram dias de costeletas. Às terças e às quintas havia entrecôte com batatas fritas cortadas em aparas finas. Aos sábados, à maneira de banquete, Simmons preparava um mixed-grill. Aos domingos, saía; lord Edward tinha de se contentar com presunto frio e língua com salada.

— Curioso — disse lord Edward, servindo uma costeleta a Illidge —, curioso que o número de carneiros não aumente. Não com a mesma rapidez que a população humana. Era de se esperar... visto que a simbiose é tão íntima.

Ficou a mastigar em silêncio.

— É que o carneiro deve estar saindo de moda — disse IIlidge. — Como Deus — acrescentou, provocador — e como a imortalidade da alma. — Lord Edward não caía no laço. — Para não falar nos romancistas da época vitoriana — continuou Illidge. Ele tinha escorregado na escada; e a única literatura que lord Edward lera em toda a sua vida fora a de Dickens e Thackeray. Mas o velho mastigava calmamente. — E as donzelas inocentes. — Lord Edward tomava um interesse científico pelas atividades sexuais dos axolotles e dos frangos, das cobaias e das rãs; mas qualquer referência às atividades correspondentes dos humanos dava-lhe um doloroso mal-estar. — E a pureza — continuava Illidge, olhando fixamente para o rosto do velho e a virginite, e...

O assistente foi interrompido, e lord Edward salvo do resto daquela perseguição, pelo tilintar da campainha do telefone.

— Eu atendo — disse Illidge, erguendo-se num salto de seu lugar.

Pôs o fone no ouvido.

— Alô!

— Edward, é você? — perguntou uma voz profunda, não diferente da do próprio lord Edward. — Sou eu. Edward, acabo justamente de descobrir uma prova matemática das mais extraordinárias da existência de Deus ou, melhor, da...

— Mas eu não sou lord Edward — gritou Illidge. — Espere. Vou chamá-lo.

Voltou-se para o Velho:

— É lord Gattenden. Acaba de descobrir uma nova prova da existência de Deus.

Não sorriu ao dizer isto: o tom de sua voz era grave. A gravidade em tais circunstâncias era o escárnio mais feroz. A participação em si mesma era uma zombaria. Qualquer comentário acompanhado de riso havia de torná-la menos e não mais ridícula. Que velho admirável de imbecilidade! Illidge se sentiu vingado de todas as humilhações.

E, mais sério do que nunca, acrescentou:

— Uma prova matemática.

— Oh, meu Deus! — exclamou lord Edward, como se algo deplorável tivesse acontecido. Falar ao telefone deixava-o sempre nervoso. Correu para o aparelho. — Charles, será que...

— Ah, Edward! — gritou a voz sem corpo do chefe da família, a voz que partia de Gattenden, distante dali quarenta milhas. — Um descobrimento verdadeiramente notável. Eu quero a sua opinião a respeito. Trata-se de Deus. Você conhece a fórmula: m sobre zero é igual ao infinito, sendo m um número positivo. Pois bem: por que não reduzir a equação a uma forma mais simples multiplicando os dois membros por zero? Nesse caso teríamos m igual ao infinito multiplicado por zero. O que vale dizer que um número positivo é o produto de zero pelo infinito. Será que isto não demonstra a criação do universo por um poder infinito, a partir do nada? Não demonstra? — O diafragma do receptor estava contaminado pela superexcitação de lord Gattenden, que vinha de quarenta milhas de distância. O homem falava rapidamente, sem tomar fôlego; suas perguntas eram ardentes e insistentes. — Não demonstra, Edward? — O quinto marquês passara toda a sua vida à procura do absoluto. Era a única caça que se permitia a um inválido. Durante cinquenta anos ele havia rolado, na sua cadeira de rodas, atrás da presa arisca. Seria possível que a tivesse apanhado agora, tão facilmente, e num lugar tão improvável como um manual de classe elementar sobre a teoria dos limites? Era algo que justificava a excitação. — Qual é a sua opinião, Edward?

— Ora... — começou lord Edward.

E da outra extremidade do fio elétrico, quarenta milhas distante, o mais velho dos Tantamount ficou sabendo, pelo tom com que aquela simples palavra fora pronunciada, que sua prova não prestava. A cauda do Absoluto ainda estava virgem de sal.

*

— A propósito dos mais velhos — disse Lucy —, eu já contei a algum de vocês aquela história, que é verdadeiramente maravilhosa, a respeito de meu pai?

— Que história?

— Aquela do jardim de inverno. — A simples lembrança do caso fazia-a sorrir.

— Não, não me lembro de ter ouvido nada a respeito do jardim de inverno — disse Spandrell. Walter também balançou a cabeça negativamente.

— Foi durante a guerra — principiou Lucy. — Eu estava beirando os dezoito, parece. Recém-lançada ao mar... E, diga-se de passagem, alguém quase me quebrou literalmente uma garrafa de champanhe no corpo... Naquela época a gente se divertia de maneira um tanto febril, vocês devem estar lembrados.

Spandrell fez um sinal afirmativo, se bem que ao tempo da guerra ele de fato não passasse de um menino de escola. Walter também meneou a cabeça, cheio de experiência.

— Um dia — continuou Lucy —, deram-me um recado: queria eu ter a bondade de subir e ver milord? Era um pedido sem precedentes. Fiquei um tanto alarmada. Vocês sabem como os velhos imaginam que nós vivemos. E como ficam desconcertados quando descobrem que se enganam. É o mesmo caso do chá com as senhoras árabes. — Pôs-se a rir e, para Walter, aquele riso devastou todos os anos que Lucy tinha vivido antes de ele a conhecer. Urdir as histórias de seus amores juvenis e inocentes tinha sido uma das consolações permanentes de Walter. Lucy tinha rido; daquele momento em diante, a imaginação mesma não podia achar prazer naquele romance consolador.

Spandrell balançava a cabeça, concordando.

— Então subiste até o Velho com a sensação de quem sobe para o cadafalso...

— E achei meu pai na sua biblioteca, fingindo que estava lendo. Minha chegada realmente o aterrorizou. Pobre homem! Nunca vi ninguém tão horrivelmente embaraçado e abatido. Vocês podem imaginar como os terrores dele fizeram crescer os meus. Sentimentos assim poderosos deviam ter uma causa também forte. Que seria? Ali, o velho sofria agonias. Se o seu sentimento do dever não fosse forte, creio que ele me teria dito que voltasse para baixo e imediatamente. Vocês deviam ter visto a cara dele!

As lembranças cômicas eram irresistíveis para ela. Desatou a rir.

Com os cotovelos fincados na mesa, a cabeça nas mãos, Walter olhava fixamente para o seu cálice. As pequenas borbulhas brilhan-tes subiam precipitadamente à superfície, uma a uma, com um pro-pósito determinado, como se estivessem resolvidas a ser livres e felizes a todo o custo. Walter não ousava erguer os olhos. A vista do rosto de Lucy retorcido pelo riso, temia ele, poderia obrigá-lo a fazer algo de ridículo — gritar com toda a força ou desfazer-se em lágrimas.

— Pobre homem! — repetia Lucy. E suas palavras saíam numa lufada de júbilo explosivo. — O terror mal o deixava falar. — De súbito, mudando o tom de voz, ela imitou a fala profunda e surda de lord Edward que a mandava sentar-se, declarando-lhe (gaguejante e cheio de hesitações dolorosas) que tinha algo a lhe dizer. A mímica era admirável. O fantasma embaraçado de lord Edward estava ali sentado à mesa de Walter e Spandrell.

— Admirável! — aplaudiu este último. E mesmo Walter teve de rir; mas as profundezas de sua infelicidade permaneceram inalteradas.

— O velho levou possivelmente uns bons cinco minutos — continuou Lucy — para se reanimar e ficar em condições de falar. Eu estava agoniada, como se pode bem imaginar. Mas adivinhem o que ele queria dizer...

— Que era?

— Adivinhem. — E de repente Lucy começou a rir de novo, sem poder se conter. Cobriu o rosto com as mãos. Todo o seu corpo se sacudia, como se ela estivesse soluçando perdidamente. — Esta é boa demais... — continuou ela, ofegante, deixando cair as mãos e incli-nando-se para trás na cadeira. Seu rosto ainda estava agitado com o riso; tinha lágrimas nas faces. — Boa demais. — Lucy abriu a bolsinha de contas que jazia sobre a mesa na sua frente e, tirando de dentro um lenço, começou a enxugar os olhos. Uma rajada de perfume saiu com o lenço, reforçando as lembranças desmaiadas de gardênias que cercavam Lucy, que se moviam com ela para onde quer que fosse, como uma segunda personalidade espectral. Walter alçou os olhos; o perfume forte de gardênia encheu-lhe as narinas; e o rapaz ficou a respirar o que para ele era a essência mesma daquele ser amado, o símbolo de seu poder e dos desejos insanos dele, Walter. Olhou para Lucy com uma espécie de terror.

— O velho me disse — prosseguiu ela, ainda rindo espasmodicamente, ainda enxugando os olhos —, me disse que tinha ouvido dizer que eu às vezes permitia que os rapazes me beijassem no baile, nos jardins de inverno. Nos jardins de inverno! — repetiu. — Que rasgo admirável! Tão de acordo com a época! 1880. O velho príncipe de Gales. As novelas de Zola. Jardins de inverno. Meu pobre pai querido! Disse esperar que eu não deixasse aquilo acontecer de novo. Minha mãe haveria de ficar terrivemente aborrecida se soubesse da história. Oh Deus, oh Deus!

Lucy tomou um fôlego profundo. O riso finalmente se acabou. Walter olhou para ela e respirou-lhe o perfume, respirou os seus próprios desejos e o terrível poder da atração daquela criatura. E pareceu-lhe que estava a vê-la pela primeira vez. Agora, pela primeira vez, com o cálice meio vazio na sua frente, a garrafa, o cinzeiro sujo; agora que ela se inclinava para trás na sua cadeira, exausta de tanto rir, enxugando os olhos cheios das lágrimas do riso.

— Jardins de inverno — repetia Spandrell. — Jardins de inverno. Sim, essa é muito boa. Essa é mesmo muito boa!

— Maravilhosos! — disse Lucy. — Os velhos são realmente maravilhosos. Mas mal e mal chegam a ser possíveis, vocês devem admitir... Exceto, está claro, o pai de Walter.

*

John Bidlake subia vagarosamente a escada. Estava muito cansado.

“Que festas pavorosas!”, pensava ele. Acendeu a luz de seu quarto. Em cima do consolo da lareira uma das mulheres do realismo pouco sedutor de Degas estava sentada na sua banheira redonda de lata, tentando esfregar as costas. Na parede fronteira uma rapariga de Renoir tocava piano entre uma paisagem do próprio Bidlake e uma das visões de Dieppe, de Walter Sickert. Acima da cama estavam penduradas duas caricaturas que Max Beerdohm fizera dele, e uma outra de Rouveyre. Havia uma garrafa de brandy sobre a mesa, com um sifão e um copo. Duas cartas se achavam encostadas de modo visível contra as bordas da bandeja. John Bidlake abriu-as. A primeira continha recortes de jornais que falavam de sua última exposição. O Daily Mail chamava-lhe o veterano da arte inglesa” e assegurava aos seus leitores “que a mão dele nada perdeu da sua destreza”. John amarrotou o recorte e jogou-o raivosamente na lareira.

O outro recorte era de um dos hebdomadários superiores. O tom da crônica era quase de desdém. Julgavam-lhe a última exibição, condenando-a. “É difícil acreditar que trabalhos tão baratos e superficiais — e superficiais sem produzir efeito, note-se — como os colecionados na presente exposição tenham sido produzidos pelo pintor das Viradoras de Feno, da Tate Gallery, e das Banhistas, mais magníficas ainda, que se acham atualmente em Tantamount House. Nestas pinturas triviais e vazias buscamos em vão aquelas qualidades de equilíbrio harmonioso, de caligrafia rítmica, de plasticidade tridimensional que...” Que tagarelice! Que verborragia! Bidlake jogou todo o maço de recortes onde tinha lançado o primeiro. Mas seu desprezo em relação aos cronistas foi impotente para neutralizar os efeitos daquelas críticas. “Veterano da arte inglesa” equivalia a “esse pobre velho Bidlake”. E quando eles o cumprimentavam porque a sua mão não perdera nada da antiga destreza, estavam a dar-lhe em tom protetor a certeza de que, para um velho caduco que se achava na segunda infância, ele ainda pintava admiravelmente bem. A única diferença entre o crítico hostil e o crítico favorável era que um dissera brutalmente e em termos explícitos o que o outro deixara entrever com um elogio protetor. Bidlake chegou quase a desejar que nunca tivesse pintado as Banhistas...

Abriu o outro envelope. Continha uma carta de sua filha Elinor. Estava datada de Lahore.

Os bazares são bem o artigo autêntico: mofados. Com as suas pululações e com os seus cheiros, dão a impressão de que, atravessando-os, estamos furando um queijo. Sob o ponto de vista artístico, o que há de entristecedor em toda esta atmosfera oriental é que ela se parece em absoluto com aquelas pinturas de cenas do Oriente que se faziam na França em meados do século passado. Você conhece o gênero: polidas e brilhantes, como as imagens que costumavam vir impressas nas caixas de chá. Quando estamos aqui é que vemos que o estilo é necessário. A tez parda torna as caras uniformes e o suor dá um verniz à pele. Seria preciso pintar com uma superfície pelo menos tão lisa quanto um Ingres.

Bidlake continuou a ler com delícia. A filha tinha sempre algo de divertido a dizer em suas cartas. Via as coisas com os olhos com que elas se deviam ver. Mas de súbito franziu a sobrancelha.

Ontem, imagine quem nos veio ver... Pois foi John Bidlake Júnior. Nós achávamos que ele estava em Waziristan; mas estava aqui, de licença. Eu não o via desde o tempo em que era menina. Pode imaginar a minha surpresa quando um enorme cavalheiro de postura militar e bigode grisalho chegou e me chamou pelo primeiro nome. Ele, está claro, nunca tinha visto Phil. Imolamos os bezerros gordos de que o hotel dispunha, em honra do irmão pródigo.

John Bidlake inclinou-se para trás na cadeira e fechou os olhos. O enorme cavalheiro de postura militar e bigode grisalho era seu filho. John Bidlake filho tinha cinquenta anos. Cinquenta. Houvera um tempo em que cinquenta anos pareciam uma idade de Matusalém. “Se Manet não tivesse morrido prematuramente...” Lembrou-se das palavras de seu velho mestre na escola de arte de Paris. “Mas Manet morreu assim tão jovem?” O velho mestre balançara a cabeça. (“Velho?”, refletiu John Bidlake. Ele lhe parecera muito velho àquela época. Mas provavelmente não tinha mais de sessenta anos.) “Manet tinha apenas cinquenta e um”, respondeu o professor, e Bidlake a custo reprimiu uma risada. E agora o seu próprio filho tinha a idade com que Manet morrera. Um enorme cavalheiro de postura militar e bigode grisalho. E o irmão dele estava morto e enterrado no outro lado do mundo, na Califórnia. Câncer no intestino. Elinor encontrara-lhe o filho em Santa Bárbara — um rapaz casado com uma mulher jovem e rica e que iludia a lei seca na proporção de uma garrafa de gim consumida diariamente entre ambos...

John Bidlake pensou na primeira mulher, a mãe do cavalheiro de aspecto militar e do californiano que morrera de câncer no intestino. Tinha apenas vinte e dois anos quando se casara pela primeira vez. Rose ainda não completara vinte. Amaram-se um ao outro freneticamente, com uma paixão tigrina. O casal altercava, também, de uma maneira um tanto divertida a princípio, quando as disputas se podiam conciliar por meio de efusões de sensualidade tão violentas como as próprias fúrias que elas apaziguavam. Mas o encanto começou a se apagar quando vieram os filhos, os primeiros dois dentro de vinte e cinco meses. Não havia dinheiro suficiente para conservar os fedelhos a distância e pagar profissionais para fazer os trabalhos penosos e menos limpos... A paternidade de John Bidlake nada tinha de sinecura. O seu estúdio se transformou em um berçário. Bem depressa os resultados da paixão — os berreiros e as fraldas molhadas, os sonos interrompidos, os cheiros — tornaram-no desgostoso da paixão. Além disso, o objeto dessa paixão não era mais o mesmo. Depois do nascimento dos bebês, Rose começou a engordar. Seu rosto fez-se balofo; o corpo engrossava e as carnes se tornavam flácidas. As disputas não se resolviam mais tão facilmente, agora. Ao mesmo tempo tornavam-se mais frequentes; a paternidade irritava os nervos de John Bidlake. A sua arte lhe fornecia pretextos para ir a Paris. Uma vez partiu por quinze dias e ficou ausente quatro meses. As disputas recomeçaram à sua volta. Rose, agora, desgostava-o francamente. As modelos lhe ofereciam consolações fáceis; John teve um caso amoroso extremamente sério com uma senhora casada que tinha vindo à casa dele para que o pintor lhe fizesse um retrato. A vida na casa era um aborrecimento contínuo, temperado por cenas de escândalo. Depois de um atrito particularmente violento, Rose fez as malas e foi morar na casa dos pais. Levou consigo os filhos; John Bidlake não podia deixar de ficar deliciadíssimo por se ver livre do bando. O mais velho dos berradores e molhadores de cueiros era agora um cavalheiro enorme de ar militar e bigode grisalho. E o outro tinha morrido de câncer no intestino. John Bidlake não os vira mais, desde que os rapazes tinham vinte e cinco anos. Os filhos tinham permanecido fiéis à mãe. Ela também tinha morrido, estava na sepultura já havia quinze anos.

Gato escaldado... Depois do divórcio, John Bidlake prometera a si mesmo que nunca mais haveria de casar-se de novo. Mas quando a gente se apaixona desesperadamente por uma jovem criatura virtuosa e de boa família, que é que pode fazer? John casou-se outra vez, e aqueles dois breves anos passados com Isabel tinham sido os mais extraordinários, os mais belos, os mais felizes de toda a sua vida. Depois ela morrera de parto, estupidamente. John fazia o possível para nunca pensar nela. A recordação era-lhe demasiadamente dolorosa. Entre a imagem rememorada e o momento da recordação, os abismos do tempo e da separação eram mais vastos do que qualquer outro precipício entre o presente e o passado. E, em comparação com o passado que ele tinha partilhado com Isabel, todo o presente, fosse ele qual fosse, parecia pálido; além disso, aquela morte era uma horrível advertência do futuro. Bidlake nunca falava nela, e tudo quanto podia trazer-lhe recordações da morta — suas cartas, seus livros, os móveis de seu quarto —, tudo fora por ele destruído ou vendido. John Bidlake queria ignorar tudo quanto não fosse o lugar e o momento presentes, queria ter a impressão de que acabava de chegar ao mundo e estava destinado a ser eterno. Mas a memória sobrevivia, embora ele nunca procurasse avivá-la deliberadamente; e embora os objetos que haviam pertencido a Isabel estivessem destruídos, Bidlake não se podia acautelar contra as recordações fortuitas. O acaso tinha descoberto muitas brechas em suas defesas, aquela noite. A mais larga foi aberta pela carta de Elinor. Mergulhado na sua poltrona, John Bidlake deixou-se ficar sentado por muito tempo, imóvel.

*

Polly Logan estava sentada diante do seu espelho. Passava o pente pelos cabelos, produzindo pequenas crepitações finas de faíscas elétricas.

— Minúsculas faíscas, como minúscula batalha, minúsculos, minúsculos espectros trepidantes. Minúscula batalha, minúsculo espectro da metralha da batalha.

Polly pronunciava estas palavras com uma monotonia sonora, como se as recitasse diante de um auditório. Ela as prolongava amorosamente, carregando nos rr, sibilando nos ss, zumbindo como uma abelha nos mm, espichando as vogais longas e fazendo-as redondas e puras. “Metralhar espectral de espectrais metralhas, canhoneio espectral, in-fi-ni-te-si-mal.” Lindas palavras! Ela experimentava uma satisfação especial em fazê-las rolar daquela maneira, em escutar com um ouvido apreciador, positivamente glutão, o retroar das sílabas que eram absorvidas pelo silêncio. Polly sempre gostara de falar sozinha. Era um hábito infantil do qual não se queria desfazer. “Mas se isso me diverte”, protestava ela quando os outros riam, ridicularizando-lhe o hábito, “por que não hei de fazê-lo? Não faz mal a ninguém.”

E recusava-se a deixar que lhe tirassem o vezo à força de rirem dele.

— Elétrica, elétrica — continuou, baixando a voz e falando num sussurro dramático. — Fuzilaria elétrica, biscoitaria métrica. Ui! — O pente se lhe havia enredado em um tufo de cabelos emaranhados. Polly inclinou-se para a frente a fim de ver melhor no espelho o que estava fazendo. O rosto refletido se aproximou. — Ma chère — exclamou ela em outra língua — tu as l’air fatigué. Tu es vieille. Você devia envergonhar-se de si mesma. Tz, tz! — Fez estalar a língua nos dentes num ar de desaprovação e balançou a cabeça. — Assim não serve, assim não serve! Enfim você não estava mal esta noite! “Minha querida, como fica deliciosa de branco!” — Imitou a voz enfática de mrs. Betterton. — O mesmo lhe desejo e muito mais ainda. Acha que hei de ser parecida com um elefante quando tiver sessenta anos? Enfim suponho que a gente deve ficar agradecida mesmo pelos elogios de um elefante. “Conte as suas bênçãos, conte-as com amor”, cantarolou Polly docemente. “E verá com surpresa quanto por você fez o Senhor.” Oh céus! — Largou o pente, estremeceu violentamente e cobriu o rosto com as mãos. — Céus! — Polly sentiu que o sangue lhe subia às faces. — A gafe! Que “rata” enorme e fantástica! — Tinha pensado subitamente em lady Edward. Estava claro que ela ouvira tudo. — Mas como foi que eu me arrisquei a fazer aquela referência ao fato de ela ser canadense. — Polly lamentou-se, afogada de vergonha retrospectiva e de embaraço. — É o que acontece a quem quer dizer a todo o custo coisas brilhantes... E quando penso que foi para Norah que eu desperdicei o meu latim... Norah! Oh Senhor! — Ergueu-se de um salto e, vestindo o seu roupão enquanto caminhava, precipitou-se corredor abaixo rumo ao quarto da mãe. Mrs. Logan estava já deitada e tinha apagado a luz. Polly abriu a porta e entrou na escuridão.

— Mamãe! — chamou ela. — Mamãe! — O tom de sua voz exprimia urgência e angústia.

— Que é que há? — respondeu mrs. Logan, inquieta, do fundo da sombra. Polly sentou-se na cama e procurou às apalpadelas o interruptor da cabeceira. — Que é que há? — A luz brotou com um clique. — Que é, minha querida?

Polly atirou-se sobre a cama e escondeu o rosto nos joelhos da mãe.

— Oh, mamãe, se você soubesse que gafe terrível eu cometi com lady Edward! Se você soubesse! Esqueci de te contar.

Mrs. Logan ficou quase zangada por se ter sentido ansiosa em pura perda. Quando pomos em jogo toda a nossa força para levantar o que nos parece ser um peso enorme, é desagradável perceber que se trata apenas de um halter de papelão, e que teria sido possível erguê-lo com dois dedos...

— Era necessário que você viesse me acordar do meu primeiro sono para contar essa história? — perguntou ela com irritação.

Polly ergueu os olhos para a mãe.

— Eu te peço perdão, mamãe — falou ela, arrependida. — Mas se você soubesse que rata espantosa eu dei!

Mrs. Logan não pôde deixar de rir.

— Eu não teria podido dormir sem primeiro te contar tudo — continuou Polly.

— E eu não poderei dormir enquanto não me contar a história. — Mrs. Logan tentou mostrar-se severa e sarcástica. Mas os olhos e o sorriso a traíram.

Polly tomou-lhe da mão e beijou-a.

— Eu sabia que não ficaria zangada.

— Fico. E muito.

— Não adianta tentar me dar trotes — disse Polly. — Mas agora é preciso que eu te conte a minha rata.

Mrs. Logan emitiu um simulacro de suspiro resignado e, fingindo estar cheia de sono, fechou os olhos. Polly falou. Eram mais de duas horas e meia e ela ainda não tinha voltado para o seu quarto. Haviam discutido não somente a gafe e lady Edward, mas também toda a festa, e todos os que nela haviam tomado parte. Ou melhor, Polly tinha discutido e mrs. Logan escutado, rido e protestado a rir quando os comentários da filha se tornavam demasiadamente ricos de exuberância mordaz.

— Mas, Polly, Polly — repreendeu ela —, você não devia dizer que as pessoas se parecem com elefantes.

— Mas mrs. Betterton parece mesmo um elefante — replicou Polly. — É a verdade. — E com o seu dramático sussurro teatral acrescentou, elevando-se de uma fantasia para outra ainda mais surpreendente: — Até o nariz dela parece uma tromba...

— Mas mrs. Betterton tem nariz curto.

O murmúrio de Polly tornou-se ainda mais dramático:

— É uma tromba amputada. Cortaram-lhe a ponta quando ela era bebê. Como se faz com a cauda dos cachorrinhos...