Capítulo XII
para os clientes privilegiados, Sbisa nunca fechava o seu restau-rante. Eles podiam ficar lá a despeito da lei, e consumir intoxicantes até horas bastante avançadas da madrugada, conforme lhes apetecesse. Um garçom suplementar chegava à meia-noite para servir esses clientes de valor que desejavam infringir a lei. O velho Sbisa tratava de fazer que o valor deles, para a casa, fosse muito alto. O álcool era mais barato no Ritz do que no estabelecimento de Sbisa.
Eram mais ou menos uma hora e meia — “apenas uma e meia”, gemera Lucy — quando ela, Walter e Spandrell deixaram o restaurante.
— É jovem ainda. — Foi assim que Spandrell comentou a noite. — Jovem e um pouco insípida. As noites são como seres humanos: só começam a interessar depois que ficam adultas. Lá pela meia-noite elas atingem a puberdade. Um pouco depois da uma hora chegam à maioridade. A sua plenitude está entre duas e duas e meia. Uma hora mais tarde elas vão ficando cada vez mais desesperadas, como essas mulheres devoradoras de homens e esses homens maduros em declínio que andam por aí a saltitar num pé só mais violentamente do que nunca, na esperança de convencerem a si mesmos de que não são velhos. Depois das quatro horas, as noites entram em plena decomposição. E a sua morte é horrível. Verdadeiramente horrível, ao nascer do sol, quando as garrafas estão vazias, as pessoas têm um aspecto de cadáveres e o desejo se desfaz em desgosto. Tenho um fraco pelas cenas de leito de morte, confesso — acrescentou Spandrell.
— Estou convencida disso... — disse Lucy.
— E é somente à luz dos fins que se podem julgar os princípios e os meios. A noite acaba de atingir a maioridade. Resta ver como há de morrer. Antes disso não podemos julgá-la.
Walter sabia como a noite ia morrer para ele: — no meio das lágrimas de Marjorie e de sua própria angústia complicada com exasperação, numa explosão de ódio contra si mesmo e de ódio à mulher para com a qual ele se mostrara cruel. Walter sabia disso, mas recusou admiti-lo; como também recusava admitir que já fossem uma e meia e que Marjorie estivesse acordada, perguntando a si mesma por que o companheiro não tinha voltado.
Quando faltavam cinco minutos para uma hora, Walter olhara o relógio e declarara que era tempo de partir. Ficar para quê? Spandrell não se mexia. Nenhuma esperança de ficar por um momento a sós com Lucy. Não lhe restava nem essa justificativa para fazer Marjorie sofrer. Ele a torturava, não para que pudesse ser feliz, mas sim apenas para se deixar ficar ali aborrecido, doente, exasperado, impacientemente infeliz.
— Eu tenho mesmo de ir — dissera ele, erguendo-se.
Mas Lucy protestara, pedira num tom bajulador, ordenara. No fim das contas, Walter tornara a se sentar. Isso acontecera havia mais de meia hora, e agora os três se achavam em Soho Square, e a noite, a crer em Lucy e Spandrell, mal havia começado.
— Acho que já é tempo de você ver que aspecto tem um comunista revolucionário — disse Spandrell a Lucy.
Lucy não queria outra coisa.
— Pertenço a uma espécie de clube — explicou Spandrell. Ofereceu-se para levá-los lá. — Hão de estar visíveis ainda alguns inimigos da sociedade, segundo espero — prosseguiu ele, logo que mergulharam na obscuridade refrescante. — Bons sujeitos, na maioria. Mas ridiculamente pueris. Alguns deles parecem acreditar sinceramente que uma revolução possa tornar o povo mais feliz. É encantador, é deveras tocante. — Emitiu a sua risada silenciosa. — Mas eu sou um esteta nessas matérias. Dinamite por amor à dinamite.
— Mas qual é a utilidade da dinamite, se não acreditas na utopia? — perguntou Lucy.
— A utilidade? Mas você não tem olhos?
Lucy olhou em torno.
— Não vejo nada de particularmente horrendo...
— Eles têm olhos e não veem... — Spandrell disse alto, tomou o braço dela com uma das mãos e com a outra apontou a praça. — A fábrica de conservas deserta, transformada em salão de bailes; a maternidade; a casa de Sbisa; os editores do Who’s Who. E outrora — acrescentou ele — o palácio do duque de Monmouth. Você pode imaginar os fantasmas...
Ou inspirado de um desejo mais divino
O pai o gera com requinte bem mais fino.
“E assim por diante. Conheces o retrato dele depois da execução: deitado sobre um leito, com o lençol puxado até o queixo, de maneira que não se possa ver o lugar em que o pescoço foi cortado? É de Kneller. Ou de Lely? Monmouth e conservas, as parturientes e o Who’s Who, a dança e o champanhe de Sbisa, pensa um pouco em tudo isso, pensa um pouco...
— Estou pensando — respondeu Lucy. — Intensamente.
— E você ainda pergunta qual é a utilidade da dinamite?
Continuaram a caminhar. Diante da porta de uma casinha da rua St. Giles, Spandrell fê-los parar.
— Esperem um momento — disse, fazendo aos outros um sinal para que mergulhassem na sombra. Tocou a campainha. A porta se abriu imediatamente. Houve um breve colóquio na obscuridade; depois Spandrell se voltou e chamou os companheiros. Estes o seguiram até um vestíbulo sombrio, subiram uma escada atrás dele e entraram numa peça brilhantemente iluminada do primeiro andar. Dois homens se achavam de pé junto da lareira, um hindu de turbante e um homenzinho de cabelos ruivos. Ao som de passos eles se voltaram. O homem de cabelos ruivos era Illidge.
— Spandrell? Bidlake? — Alçou as invisíveis sobrancelhas cor de areia num sinal de espanto. “E que andará fazendo por aqui essa mulher?”, pensou ele.
Lucy avançou com as mãos estendidas.
— Somos velhos conhecidos — disse ela com um sorriso cordial de quem reconhece um amigo.
Illidge, que se preparava para dar ao rosto uma expressão de frieza hostil, surpreendeu-se a retribuir o sorriso da moça.
*
Um táxi desembocou na rua, quebrando o silêncio num brusco sobressalto. Marjorie sentou-se na cama e pôs-se à escuta. O ronco da máquina ia ficando cada vez mais forte. Era o táxi de Walter; dessa vez ela tinha a certeza, ela sabia. O carro se aproximava cada vez mais. Ao pé da pequena elevação que ficava à direita da casa, o condutor engrenou a segunda; o motor roncou mais agudamente, como uma vespa assanhada. Cada vez mais e mais perto. Marjorie estava possuída por uma ansiedade que era ao mesmo tempo do corpo e do espírito. Arquejava, seu coração batia forte, irregularmente — batia, batia, batia, e depois parecia estacar: a batida esperada não se fazia ouvir; era como se sob os pés dela tivesse se aberto um alçapão sobre o vácuo; sentia o terror do vazio, da descida, da queda, e a batida seguinte, retardada, seria o impacto de seu corpo contra a terra dura. Mais perto, mais perto. Marjorie chegava quase a temer a volta de Walter, embora tivesse ansiado tão dolorosamente por ela. Temia as emoções que havia de sentir à vista dele, as lágrimas que havia de derramar, as censuras que não deixaria de lhe fazer, a despeito de si mesma. E que diria e faria Walter?, quais seriam os seus pensamentos? Marjorie tinha medo de imaginar... Mais perto ainda; o som passava justamente por baixo da sua janela; afastava-se, retirava-se, diminuía. E ela tinha tanta certeza de que era o táxi de Walter!
Deitou-se de novo. Se ao menos tivesse podido dormir! Mas aquela ansiedade física do corpo não o permitiria. O sangue martelava-lhe nos ouvidos. Tinha a pele quente e seca. Doíam-lhe os olhos. Ela se deixou ficar completamente imóvel, deitada de costas, com os braços cruzados sobre o peito, como uma morta pronta para a inumação. “Dorme, dorme”, sussurrava para si mesma; imaginava-se estendida, num relaxamento de músculos, sem crispações, adormecida. Mas de súbito uma mão maliciosa parecia dedilhar-lhe os nervos retesados. Um tique violento lhe contraía os músculos dos membros; ela sobressaltava-se, como que sob o choque do terror. E a reação física do medo evocava-lhe no espírito uma emoção de pavor, avivando e intensificando a ansiedade dolorosa que não cessara de acompanhar-lhe os esforços conscientes para atingir a tranquilidade. “Dorme, dorme, repousa o corpo” — era inútil continuar na tentativa de recuperar a calma, de esquecer, de dormir. Marjorie permitiu que a sua angústia viesse à tona. “Por que quererá ele fazer-me tão infeliz?” Voltou a cabeça. Os ponteiros luminosos do relógio, sobre a mesinha que havia ao lado da cama, indicavam quinze para as três. Quinze para as três. Walter sabia que ela nunca podia dormir antes do seu regresso.
— Walter sabe que estou doente — falou Marjorie em voz alta. — Ele não fará caso?
Um novo pensamento lhe ocorreu de súbito. “Talvez ele queira que eu morra.” Morrer, não ser, não ver nunca mais o rosto dele, deixá-lo com a outra mulher. Vieram-lhe lágrimas aos olhos. Talvez Walter estivesse procurando matá-la deliberadamente. Não era a despeito de seu estado de saúde que ele a tratava assim; era, antes, porque ela sofria muito e muito, era precisamente porque ela estava doente. Walter era cruel de propósito. Ele esperava, ele queria que ela morresse; que ela morresse e o deixasse em paz com a outra mulher. Marjorie escondeu o rosto no travesseiro e soluçou. Não tornar a vê-lo, nunca, nunca mais. Treva, solidão, morte, para sempre. Para sempre e sempre. E, ainda por cima, aquilo tudo era tão injusto. Seria ela culpada por não ter recursos para se vestir bem?
— Se eu tivesse dinheiro para comprar os vestidos que ela compra... Chanel, Lanvin. — As páginas da Vogue flutuavam-lhe diante dos olhos. — Molyneux, Groult... — Numa dessas casas onde a elegância se vendia barato, onde se vestiam as cocotes, numa rua que desembocava em Shaftesbury Avenue, havia um modelo de dezesseis guinéus.
— Ele gosta dela porque ela é atraente. Mas se eu tivesse o dinheiro necessário.
Não era justo. Walter não era rico: e quem sofria as consequências disso era ela, Marjorie. Tinha de sofrer porque ele não ganhava o bastante para lhe comprar bons vestidos.
E depois havia o bebê. Walter fazia-a também sofrer por ele... Filho dele. E Walter se entediava; porque ela estivesse sempre cansada e doente ele já não a amava mais. Era a maior de todas as injustiças.
Uma célula se multiplicara e se fizera verme, o verme se fizera peixe e o peixe estava se transformando no feto de um mamífero. Marjorie sentia-se nauseada e cheia de fadiga. Dali a quinze anos um rapaz haveria de receber a confirmação. Enorme em suas vestes, como um navio armado em galera, o bispo diria: “Renovais aqui, na presença de Deus e desta congregação, as promessas solenes e os votos que foram em vosso nome feitos no vosso batismo?”. E o ex-peixe responderia, com uma convicção apaixonada: “Sim”.
Pela milésima vez Marjorie lamentou a sua gravidez. Walter podia não conseguir matá-la agora. Mas isso havia de acontecer em qualquer caso quando o filho nascesse. O doutor dissera que seria difícil para ela ter um bebê. A pelve era estreita. A morte reapareceu diante de Marjorie, como um poço enorme que se lhe abria aos pés.
Um ruído fê-la estremecer violentamente. A porta de entrada do apartamento estava sendo aberta à surdina. Os gonzos guincharam. Ouviram-se passos abafados. Outro guincho, o clique mal perceptível do trinco de mola que era cuidadosamente reposto no lugar; depois um novo ruído de passos. Mais um pequeno ruído seco, e simultaneamente a luz surgiu numa tira amarela debaixo da porta que separava o quarto de Marjorie do de Walter. Tencionaria ele ir para a cama sem vir dar-lhe boa-noite? Ela se deixou ficar imóvel, desperta e palpitante, com os olhos escancarados, escutando os ruídos que vinham do outro compartimento e as batidas rápidas e terrificadas de seu próprio coração.
Walter sentou-se na cama para desatar os cordões dos sapatos. Estava a perguntar a si mesmo por que não entrara três horas mais cedo — e por que, mesmo, chegara a sair. Detestava as multidões; não podia suportar o álcool, e o ar duas vezes respirado, os cheiros, a fumaça dos restaurantes agiam sobre ele como um veneno deprimente. Walter tinha sofrido sem nenhum propósito; a não ser aqueles dolorosos e exasperantes momentos no táxi, não conseguira ficar a sós com Lucy aquela noite. As horas que passara com ela tinham sido de aborrecimento e impaciência — infindavelmente longas, minuto de tortura após minuto de tortura. E a tortura do desejo e do ciúme tinha sido reforçada pela torturada consciência de sua própria culpabilidade. Cada minuto de demora no restaurante de Sbisa, cada minuto passado entre os revolucionários era um minuto que retardava a consumação de seu desejo e que, fazendo crescer a infelicidade de Marjorie, fazia ao mesmo tempo crescer o seu próprio remorso e a sua própria vergonha. Eram mais de três horas quando eles deixaram finalmente o clube. Iria Lucy mandar Spandrell embora e deixar que ele, Walter, a conduzisse à casa? Olhou para ela: seus olhos eram eloquentes. Ele queria, ele ordenava.
— Teremos sanduíches e bebidas lá em casa — disse Lucy quando os três se viram na rua.
— Eis uma notícia muito bem-vinda — tornou Spandrell.
— Vem comigo, Walter querido.
Lucy tomou-lhe da mão, apertou-a afetuosamente.
Walter balançou a cabeça.
— Tenho de ir para casa.
Se a aflição matasse, ele teria morrido ali na rua.
— Mas não pode deixar-nos agora — protestou Lucy. — Já que veio até aqui, é indispensável que vá até o fim. Vamos.
Puxou-o pela mão.
— Não, não.
Mas o que ela dissera era verdade. Dificilmente Walter poderia fazer Marjorie mais desgraçada do que já tinha realmente feito. Se ela não existisse mais, refletiu, se acontecesse de ela morrer — um aborto, envenenamento do sangue...
Spandrell olhou para o relógio.
— Três e meia. A agonia está quase a principiar. — Walter escutava com horror; estaria o homem a ler-lhe os pensamentos? — Munie des conforts de notre sainte religion. O teu lugar é ao pé do leito, Walter. Não podes deixar que a noite morra sozinha, como um cão numa sarjeta.
Como um cão numa sarjeta. As palavras eram terríveis, condenavam-no.
— Eu tenho de ir.
Foi inflexível, com um atraso de três horas. Afastou-se a pé. Em Oxford Street achou um táxi. Esperando — ele sabia que era em vão — chegar à casa sem ser percebido, fez parar o táxi na estação de Chalk Farm e percorreu a pé as últimas centenas de metros que o separavam da porta da casa cujos dois andares superiores ele ocupava com Marjorie. Tinha subido a escada de gatinhas: abrira a porta com as precauções de um assassino. Nenhum ruído vinha do quarto da amante. Walter se despiu, lavou-se, como se estivesse efetuando uma operação perigosa. Apagou a luz e foi para a cama. A escuridão, o silêncio absoluto. Estava salvo.
— Walter!
Foi com a sensação de um criminoso condenado à morte que se vê despertado pelos guardas na madrugada da execução que ele respondeu, pondo na voz um arremedo de surpresa:
— Está acordada, Marjorie?
Levantou-se e caminhou, como da cela para o cadafalso, para o quarto dela.
— Você quer me matar, Walter?
Como um cão numa sarjeta, sozinha. Ele fez menção de tomá-la nos braços. Marjorie repeliu-o. A sua angústia se transformara momentaneamente em cólera, e o seu amor numa espécie de ódio e de ressentimento.
— Não seja ainda hipócrita além de tudo — disse ela. — Por que não pode dizer francamente que me odeia, que gostaria de se ver livre de mim, que ficaria contente se eu morresse? Por que não pode ser honesto e dizer-me tudo isso?
— Mas a troco de que hei de dizer o que não é verdade? — protestou ele.
— Vai, então, dizer que ainda me ama? — perguntou Marjorie sarcasticamente.
Walter, ao pronunciar as últimas palavras, chegara quase a acreditar nelas; aliás, era verdade, de certo modo.
— Mas eu te amo, eu te amo. Essa outra coisa é uma espécie de loucura. Independente da minha vontade... Não a posso evitar... Se soubesse como me sinto desgraçado, que brutalhão sem nome eu sou! — E tudo que ele tinha sofrido de desejo contrariado, de remorso, de vergonha e ódio de si mesmo parecia cristalizar-se, por meio dessas palavras, numa agonia única. Ele sofria e compadecia-se dos seus próprios sofrimentos. — Se soubesse, Marjorie. — E, de súbito, alguma coisa no seu corpo pareceu quebrar-se. Uma invisível mão segurou-lhe a garganta, seus olhos foram cegados pelas lágrimas, e uma força interior, que já não era ele, sacudiu-o dos pés à cabeça e lhe arrancou, a despeito de sua vontade, um grito abafado que mal chegava a ser humano.
Ao som desse soluço espantoso saído da treva, a cólera de Marjorie desapareceu de repente. Ela agora sabia apenas que Walter era infeliz, e que ela o amava. Chegou mesmo a sentir remorso de sua cólera, das palavras amargas que proferira.
— Walter. Meu querido.
Estendeu os braços e puxou-o contra o seu corpo. O rapaz se deixou ficar assim como uma criança, na consolação daquele abraço.
— Sente prazer em atormentá-lo? — inquiriu Spandrell enquanto ambos caminhavam rumo à Charing Cross Road.
— Atormentar quem? — perguntou Lucy. — Walter? Mas eu não o atormento.
— Mas não o deixa dormir com você! — retrucou Spandrell. — E ainda afirma que não o atormenta! Pobre desgraçado!
— Mas por que hei de aceitá-lo, se não tenho vontade?
— Realmente, por quê? No entanto, deixar o rapaz assim na incerteza é simplesmente torturá-lo.
— Mas eu gosto dele — disse Lucy. — É um companheiro tão bom! Novo demais, é claro; mas realmente quase ideal... E te garanto que não o atormento. Ele é que se atormenta.
Spandrell reteve a sua risada o tempo suficiente para assobiar, chamando um táxi que ele tinha visto no fim da rua. O chofer deu volta e parou em frente a eles. Spandrell ainda ria silenciosamente quando subiram para o veículo.
— Enfim, ele não faz senão receber o que merece — continuou Spandrell do seu canto escuro. — É o verdadeiro tipo do assassinado.
— Do assassinado?
— São precisos dois para haver um assassínio. Há vítimas natas, nascidas para terem a garganta cortada, ao mesmo tempo em que os corta-dores de carótidas nascem para serem enforcados. Isso se lhes pode ler nas caras. Há um tipo de vítima como há um tipo de criminoso. Walter é evidentemente uma vítima; ele, por assim dizer, convida os outros a que o maltratem.
— Pobre Walter!
— E é nosso dever — continuou Spandrell — fazer com que ele receba os maus-tratos a que faz jus...
— Por que não fazer com que ele não os receba? Pobre cordei-rinho!
— Devemos estar sempre do lado do destino. Walter nasceu manifestamente para apanhar... É nosso dever cooperar com a sorte dele. É o que vejo com satisfação que você está fazendo...
— Mas eu te asseguro que não. Você tem fogo? — Spandrell riscou um fósforo. Com um cigarro preso aos lábios finos, Lucy se inclinou para beber a chama. Spandrell a tinha visto inclinar-se daquela maneira, com o mesmo movimento vivo, gracioso e ávido, inclinar-se sobre ele para lhe beber os beijos. E o rosto que se aproximou dele agora estava concentrado e fixamente atento na chama, do mesmo modo que ele o tinha visto concentrado e fixamente atento na iluminação interior do prazer próximo. Os pensamentos e os sentimentos são numerosos e diversos, mas não existem senão uns poucos gestos; a máscara tem somente uma meia dúzia de caretas para exprimir mil coisas. Lucy empertigou-se; Spandrell jogou o fósforo para fora da janela. A ponta vermelha do cigarro se avivava e se sumia na escuridão.
— Você se lembra daquela nossa curiosa temporada em Paris? — perguntou ele, pensando ainda no rosto dela concentrado e ansioso. Três anos antes, ele a tivera como amante por um mês.
Lucy fez com a cabeça que sim.
— Lembro-me de que foi uma aventura quase ideal, enquanto durou. Mas você era horrivelmente volúvel.
— Em outras palavras, eu não fiz a baderna que esperava quando você me deixou por Tom Trivet.
— É mentira! — disse Lucy com indignação. — Você já tinha começado a se afastar muito antes que eu sonhasse com Tom.
— Pois bem, seja como quiser... Para falar a verdade, não eras o gênero de vítima que meu gosto exigia. — Não havia nada de vítima em Lucy; e muito pouco também, pensara ele com frequência, de mulher comum. Lucy sabia procurar o prazer como um homem procura o seu, sem remorso, com toda a força de espírito, sem permitir que seus pensamentos e sentimentos fossem minimamente atingidos. Spandrell não gostava de ser usado e explorado para prazer de outrem. Queria ser o explorador. Mas com Lucy não havia possibilidade de escravidão. — Eu sou como você — acrescentou ele. — Preciso de vítimas.
— Subentende-se então que eu sou um dos criminosos?
— Julguei que estivéssemos há muito de acordo a esse respeito, minha cara Lucy.
— Jamais concordei com coisa alguma na minha vida — protestou ela — e jamais hei de concordar. Pelo menos, durante mais de meia hora de cada vez.
— Foi em Paris, você se lembra? Na Chaumière. Havia um jovem que pintava os lábios na mesa próxima.
— E que tinha um bracelete de diamantes e de platina. — Lucy balançou a cabeça em sinal afirmativo, sorrindo. — E você me chamou anjo, ou coisa que o valha.
— Anjo mau — precisou ele —, anjo mau de nascença.
— Para um homem inteligente, Maurice, você diz besteiras aos montes. Acredita sinceramente que haja coisas direitas e coisas tortas?
Spandrell tomou-lhe da mão e beijou-a.
— Querida Lucy, você é esplêndida. E não deve esconder nunca os seus talentos. Bravos, oh bom e fiel súcubo! — Beijou-lhe a mão de novo. — Continue a fazer o seu dever como tem feito até agora. É tudo quanto o céu exige de você.
— Eu procuro simplesmente divertir-me. — O táxi estacou diante da casinha de Lucy em Bruton Street. — E sem muito êxito — acrescentou ela ao descer do carro —, só Deus sabe... Olha, eu tenho dinheiro. — Estendeu ao condutor uma nota de dez xelins. Lucy insistia, quando se achava com homens, em pagar o mais possível. Pagando, ela era independente, podia agir como entendia. — E ninguém me ajuda muito — continuou, tateando com a chave para achar a fechadura. — Vocês todos são assombrosamente insípidos.
Na sala de jantar esperava-os uma bela natureza-morta de garrafas, frutas e sanduíches. Nas curvas dos flancos polidos da garrafa térmica as imagens de ambos, refletidas, passeavam fantasticamente num universo não euclidiano. O professor Dewar tinha liquefeito o hidrogênio a fim de que a sopa de Lucy pudesse conservar-se quente para ela até as primeiras horas da madrugada. Por cima do bufê estava pendurada uma das pinturas de John Bidlake que representavam cenas de teatro. Uma curva da galeria, uma fileira de rostos em declive, um canto do proscênio brilhante.
— Como isso está bem! — disse Spandrell, pondo a mão em pala sobre os olhos para ver o quadro mais claramente.
Lucy não fez comentário. Estava a mirar-se em um velho espelho de vidro embaçado.
— Que hei de fazer quando ficar velha? — perguntou ela de súbito.
— Por que não morrer? — sugeriu Spandrell com a boca cheia de pão e de foi gras de Estrasburgo.
— Acho que vou me dedicar à ciência, como o Velho. Não existe algo a que se possa chamar zoologia humana? Eu me fatigaria muito depressa das rãs — prosseguiu ela. — Por falar em rãs — acrescentou —, aquele homenzinho de cabelos cor de cenoura me agradou um pouco... como é o nome dele?... Illidge. Como ele nos detesta por sermos ricos!
— Não me arroles no número dos ricos. Se soubesses... — Spandrell balançou a cabeça. “Esperemos que ela traga algum dinheiro quando vier amanhã”, pensava ele, recordando-se do recado que Lucy lhe trouxera da mãe. Tinha-lhe escrito que o caso era urgente...
— Gosto das pessoas que sabem odiar — continuou Lucy.
— Illidge sabe odiar. Está todo recheado de teorias, de fel e de inveja. Anseia por fazer saltar vocês todos a dinamite.
— E então por que não faz? Por que você não faz? Não foi para isso que o seu clube foi criado?
— Há uma leve diferença entre a teoria e a prática, você sabe. E quando se é comunista militante e materialista científico, e admi-rador da Revolução Russa, a teoria é das mais esquisitas. Você devia ouvir o nosso jovem amigo falar do homicídio! O que o interessa especialmente é, está claro, o assassínio político; mas ele não faz muita distinção entre os diferentes ramos da profissão. Segundo Illidge, uma espécie é tão inofensiva e moralmente indiferente como outra. A nossa vaidade faz-nos exagerar a importância da vida humana; o indivíduo é nada; à natureza importa apenas a espécie. E assim por diante... É estranho — comentou Spandrell num parêntese — como as últimas manifestações de arte e de política são geralmente fora de moda e até primitivas! O jovem Illidge fala como uma mistura de Tennyson no In Memoriam mais um índio do México ou de um malaio que procura decidir-se a entrar em amoque.[14] Ele justifica a indiferença mais primitiva, mais selvagem, mais animal para com a vida por meio de argumentos científicos obsoletos. É verdadeiramente muito estranho.
— Mas por que há de ser a ciência obsoleta? — inquiriu Lucy.
—Porque, no fim das contas, o próprio Illidge é um cientista...
— Mas é também um comunista. O que significa que ele está saturado do materialismo do século xix. Ninguém pode ser comunista verdadeiro sem ser também mecanicista. É necessário acreditar que as únicas realidades fundamentais são o espaço, o tempo e a massa, e que todo o resto é disparate, mera ilusão e, ainda por cima, ilusão burguesa. Pobre Illidge! Einstein e Edington o enchem de uma aflição enorme. E como ele detesta Henri Poincaré! E como fica furioso com o velho Mach! Toda essa gente está solapando a sua fé simples. Dizem-lhe que as leis da natureza são convenções úteis, de fabricação exclusivamente humana, e que o espaço e o tempo e a massa, estes mesmos, todo o universo de Newton e de seus sucessores, são apenas uma invenção nossa, muito nossa. Esta ideia lhe é tão indizivelmente chocante e dolorosa como seria para um cristão a ideia da não existência de Jesus. Illidge é homem de ciência, mas seus princípios o levam a lutar contra toda teoria científica que tenha menos de cinquenta anos de idade. É uma coisa deliciosamente cômica.
— Não resta dúvida... — disse Lucy, bocejando. — Isto é, no caso de estarmos interessados em teorias, o que não acontece comigo...
— Mas acontece comigo — retorquiu Spandrell —; assim, eu não te peço desculpas. Mas se você preferir, posso dar exemplos das inconsequências práticas do homenzinho. Descobri, não há muito tempo, e de uma maneira completamente casual, que Illidge tem o sentimento mais tocante de lealdade familiar. Ele sustenta a mãe, custeia a educação do irmão mais novo e deu cinquenta libras à irmã quando ela se casou...
— Que mal há nisso?
— Mal? Mas é desagradavelmente burguês! Em teoria Illidge não vê distinção entre sua mãe e qualquer outra mulher idosa. Sabe que, numa sociedade racionalmente organizada, ela seria levada para a câmara de asfixia por causa da sua artrite. A despeito disso, envia à velha não sei quanto por semana a fim de lhe tornar possível arrastar uma existência inútil. Eu o acusei disso outro dia. Illidge corou e ficou terrivelmente transtornado, como se tivesse sido apanhado a fazer trapaça num jogo de cartas. Assim, para restaurar o próprio prestígio, teve de mudar de assunto e começou a falar sobre o assassínio político e as suas vanvagens, com a ferocidade mais admiravelmente calma, desprendida e científica deste mundo. Eu me limitei a rir. “Num destes dias, ameacei-o, eu te pegarei pela palavra e te convidarei para uma expedição de caça ao homem.” E o mais importante é que eu vou convidá-lo mesmo!
— A menos que você continue a conversar fiado, como todos os outros...
— Sim — concordou Spandrell —, a menos que eu continue a conversar fiado...
— Se um dia você parar de tagarelar e fizer algo de positivo, me deixe saber. As coisas assim ganhariam mais vida...
— Ou mais morte, talvez...
— Mas a vitalidade mortal é realmente a mais viva de todas. — Lucy franziu a sobrancelha. — Estou tão enfarada destas espécies ordinárias e convencionais de vitalidade! A juventude na proa e o prazer ao leme. Você sabe. É tolo, é monótono. A energia parece ter hoje em dia tão poucas maneiras de se manifestar... Julgo que no passado era diferente...
— Havia violência e ao mesmo tempo amor. É o que você quer dizer?
— E isso. — Lucy fez com a cabeça um sinal afirmativo. — A vitalidade não era tão exclusivamente... tão exclusivamente bordeleira, para usar um termo cru.
— Eles sabiam quebrar também o sexto mandamento. Hoje em dia há muitos policiais.
— Muitos, demais... Não permitem nem que pestanejemos. A gente devia experimentar tudo...
— Mas de que serviria isso, uma vez que, como você parece pensar, não há coisas certas nem coisas erradas, não existe nem o bem nem o mal? De que serviria?
— De que serviria? Mas poderia haver experiências divertidas, experiências excitantes.
— Mas essas experiências nunca poderiam ser lá muito excitantes se não sentíssemos que eram um mal, um erro. — O tempo e o hábito tinham tirado a maldade de quase todos os atos que outrora ele julgara pecaminosos. Spandrell os realizava com tão pouco entusiasmo como teria realizado o ato de tomar o trem da manhã para a cidade. — Há pessoas — continuou ele com um ar meditativo, tentando precisar o que havia de obscuro e vago nas suas próprias sensações —, há pessoas que não podem conceber o bem senão pecando contra ele. — Mas quando os velhos pecados cessam de ser considerados como tais, que acontece? A discussão continuava dentro do cérebro de Spandrell. A única solução parecia ser cometer pecados novos e progressivamente mais sérios, para experimentar tudo, como dissera Lucy em seu jargão. — Uma das maneiras de conhecer Deus — disse ele lentamente, à guisa de conclusão — é negá-lo.
— Meu bom Maurice! — protestou Lucy.
— Vou parar. — Riu. — Mas, na verdade, se é caso para dizer “meu bom Maurice” — (aqui Spandrell imitou o tom da voz dela) —, se és igualmente insensível ao bem e ao pecado contra o bem, para que, então, você quer praticar esses atos que provocam a interferência da polícia?
Lucy deu de ombros.
— Por curiosidade. A gente se aborrece...
— Ai! A gente se aborrece... — Spandrell tornou a rir. — Apesar de tudo, eu penso que o sapateiro não devia ir além da chinela...
— E qual é a minha chinela?
Spandrell sorriu arreganhadamente:
— A modéstia — começou ele — me impede...