Capítulo XIII
walter dirigia-se para a fleet street. Não se sentia precisamente feliz, mas estava pelo menos calmo — calmo à ideia de que tudo agora estava arranjado. Sim, tudo tinha sido arranjado; tudo — porque no curso da explosão emocional da última noite, tudo tinha vindo à superfície. Para começar, ele não tornaria a ver Lucy nunca mais; isso estava definitivamente decidido e prometido, tanto para o seu bem como para o de Marjorie. Depois, ia passar todas as noites com Marjorie. E finalmente ia pedir um aumento a Burlap. Tudo estava assentado. O próprio tempo parecia saber disso. Era um dia de bruma branca tenaz, tão intrinsecamente calmo que todos os ruídos de Londres pareciam um contrassenso. O tráfego rugia e se precipitava, mas sem tocar, entretanto, a quietude e o silêncio essenciais do dia. Tudo estava ajustado; o mundo recomeçava outra vez —, talvez não de uma maneira lá muito triunfal, não de todo brilhante, mas com resignação, com uma calma resoluta que coisa alguma podia turbar.
Lembrando-se do incidente da noite anterior, Walter esperava ser recebido friamente na redação. Mas, pelo contrário, Burlap estava em um de seus dias de maior cordialidade. Também se lembrava da noite passada e estava ansioso por que Walter a esquecesse. Chamou-lhe “meu velho”, apertou-lhe afetuosamente o braço; sentado em sua cadeira, ergueu os olhos para o rapaz, aqueles olhos que não exprimiam nada, que eram apenas dois buracos metidos na escuridão interior do crânio. Sua boca, entretanto, sorriu encantadora e sutilmente. Walter retribuiu-lhe o “meu velho” e o sorriso, mas com uma consciência dolorosa de insinceridade. Burlap sempre lhe produzia aquele efeito; na presença dele Walter nunca se sentia absolutamente honesto ou sincero. Era uma sensação desagradável ao extremo. Com Burlap ele era sempre, de certa maneira, obscuro, mentiroso e comediante. E ao mesmo tempo, tudo quanto dizia, mesmo quando exprimia as suas convicções mais íntimas, transformava-se numa espécie de falsidade.
— Gostei do seu artigo sobre Rimbaud — declarou Burlap, ainda apertando o braço de Walter, ainda sorrindo para ele, sentado na sua cadeira giratória atirada para trás.
— Isso me alegra — respondeu Walter, sentindo com um certo mal-estar que aquela observação não era realmente dirigida a ele, mas sim a alguma parte do próprio espírito de Burlap, que tinha sussurrado: “Você devia dizer algo de agradável sobre o artigo dele”, e que estava vendo a sua exigência satisfeita por outra parte do espírito do mesmo Burlap.
— Que homem! — exclamou Burlap. — Era uma criatura que acreditava na vida, não acha?
Desde que Burlap começou a exercer as funções de chefe da redação, os artigos editoriais do Mundo Literário tinham quase todas as semanas proclamado a necessidade de acreditar na vida. A fé de Burlap na vida era uma das coisas que mais inquietavam Walter. Que significado encerrariam aquelas palavras? Walter nunca chegara a ter a mais leve ideia. Burlap jamais explicara... Era preciso entender por intuição; quem não o conseguisse estaria condenado ao inferno. Walter supunha achar-se entre os malditos. Era pouco provável que viesse um dia a esquecer a sua primeira entrevista com o futuro chefe. “Ouvi dizer que o senhor precisa de um redator adjunto”, principiara ele timidamente. Burlap fez com a cabeça um sinal afirmativo: “Sim, preciso” e depois de um enorme e horrível silêncio, o homem subitamente olhou para Walter com os seus olhos vazios e perguntou: “O senhor acredita na vida?”. Walter corou até a raiz dos cabelos e respondeu: “Sim”. Era a única resposta possível. Houve outro deserto de silêncio e depois Burlap tornou a erguer os olhos: “O senhor é virgem?”, inquiriu. Walter corou ainda mais violentamente, hesitou, e por fim balançou a cabeça. Foi somente mais tarde que descobriu, por meio de um dos artigos do próprio Burlap, que o diretor do Mundo Literário tinha modelado sua atitude de acordo com a de Tolstói, “indo direito às grandes coisas simples e fundamentais”, segundo a descrição que o próprio Burlap fazia das impertinências espirituais do velho apóstolo salvacionista.
— Sim, Rimbaud certamente acreditava na vida — aquiesceu Walter com uma voz mole, sentindo, ao pronunciar as palavras, a mesma impressão que sentia quando tinha de escrever uma carta de pêsames. Falar a respeito da fé na vida era uma falta de sinceridade da mesma ordem que falar em “sentidas condolências” e em “vossa perda irreparável”...
— Rimbaud acreditava tanto na vida — continuou Burlap, baixando os olhos (com grande alívio da parte de Walter) e meneando a cabeça, ao passo que pronunciava as palavras como se as ruminasse —, de maneira tão profunda que estava pronto até para renunciar a ela. É assim que eu interpreto o seu abandono da literatura — um sacrifício consciente. (“Ele usa com demasiada facilidade as grandes palavras”, pensou Walter.) — Aquele que quiser salvar a sua vida deve perdê-la. (Oh! Oh!) — Ser o melhor poeta de sua geração e, sabendo disso, abandonar a poesia, é perder a própria vida para salvá-la. É acreditar verdadeiramente na vida. A sua fé era tão forte que ele estava disposto a perder a sua vida, na certeza de ganhar uma vida nova e melhor. (Sim, com demasiada facilidade! Walter sentia-se cheio de embaraço). — Uma vida de contemplação mística e de intuição. Oh, se ao menos se soubesse o que ele fez e pensou na África! Se ao menos se soubesse!
Walter teve a coragem de replicar:
— Contrabandeava armas de fogo para o imperador Menelik. E, a julgar por suas cartas, Rimbaud parece ter pensado sobretudo em ganhar bastante dinheiro para se estabelecer. Levava quarenta mil francos no cinturão. Dez quilos de ouro em torno dos rins. (“Por falar em ouro”, pensou Walter, “preciso falar-lhe a respeito do meu ordenado.”)
Mas ao ouvir falar nos fuzis de Menelik e nos quarenta mil francos Burlap sorriu com uma expressão de indulgência cristã.
— Mas você realmente pensa — perguntou ele — que o contrabando de armas e o dinheiro eram as coisas que ocupavam o espírito dele no deserto? Dele? Do autor de Les Illuminations?
Walter corou, como se tivesse cometido uma grave inconveniência.
— São esses os únicos fatos que conheço — respondeu ele, desculpando-se.
— Mas há uma intuição que vê mais fundo do que os simples fatos. — “Intuição profunda” era o nome que Burlap gostava de dar à sua própria opinião. — Ele estava apanhando o sentido da vida nova, estava ganhando o Reino do Céu.
— É uma hipótese — disse Walter, contrafeito, desejando que Burlap nunca tivesse lido o Novo Testamento.
— Para mim — retorquiu Burlap — é uma certeza. Uma certeza absoluta. — Falava com muita ênfase, balançando a cabeça com violência. — Uma certeza completa e absoluta — repetiu, hipnotizando-se com a reiteração da frase a ponto de entrar num estado fictício de convicção apaixonada. — Completa e absoluta. — Silenciou; mas interiormente continuou a se açoitar até entrar num furor místico. Pensou em Rimbaud a ponto de se transformar ele próprio em Rimbaud. E depois, subitamente, o seu diabinho meteu para fora a carantonha arreganhada e cochichou: “Dez quilos de ouro à cinta”. Burlap exorcizou o demônio, mudando de assunto. — Você viu os livros novos para a resenha? — perguntou, apontando para uma dupla pilha de volumes que se achava a um canto da mesa. — Metros e metros de literatura contemporânea. — Foi presa de uma exasperação humorística. — Por que será que os autores não param? É uma doença. Um fluxo de sangue, como o de que sofria aquela pobre senhora da Bíblia, você se lembra?
O de que Walter se lembrava principalmente era de que aquela comparação era de Philip Quarles.
Burlap levantou-se e começou a examinar os livros.
— Piedade para o pobre crítico! — disse ele com um suspiro.
O pobre crítico — não seria a deixa esperada para começar a sua conversa sobre ordenado? Walter criou ânimo, concentrou a sua vontade.
— Eu estava justamente a considerar... — principiou.
Mas Burlap, quase ao mesmo tempo, tinha começado a falar por sua vez:
— Vou chamar Beatrice — disse, apertando três vezes na campainha. — Perdão. O que dizia?
— Nada.
O pedido tinha de ser transferido. Não podia ser feito em público, sobretudo quando o público era Beatrice. “Maldita Beatrice!”, pensou Walter, com um ódio injusto. Por que vinha ela fazer de graça a revisão de provas e a redação de notícias curtas? Simplesmente porque tinha rendimento próprio e porque adorava Burlap.
Walter queixara-se a ela certa vez, por brincadeira, de suas miseráveis seis libras semanais.
— Mas o Mundo merece que façamos sacrifícios por ele — retrucara Miss Gilray num tom seco. — Além do mais, temos responsabilidades para com os outros; devemos fazer algo por eles. — Repetidas assim por aquela voz clara e martelada, os sentimentos cristãos de Burlap tinham um sabor particularmente estranho. — O Mundo faz alguma coisa; é preciso que o ajudemos.
A réplica natural seria esta: os rendimentos particulares dele, Walter, eram muito pequenos e ele não estava apaixonado por Burlap... No entanto, Walter não respondeu assim, e se deixou bicar. Fosse como fosse, o diabo que levasse aquela maldita mulher!
Beatrice entrou, uma figura fornidamente bem-feita, muito ereta e com ares atarefadíssimos.
— Bom dia, Walter — cumprimentou. Cada uma de suas palavras era como um golpe curto e vigoroso, dado com um martelo de marfim nos nós dos dedos. — Você parece cansado — continuou ela. — Gasto. Como se tivesse andado de farra a noite passada. — Bicada vinha após bicada. — Não andou?
Walter corou:
— Dormi mal — resmungou ele; e absorveu-se no exame de um livro.
Classificaram os volumes para os diversos críticos. Uma pilha pequena para o entendido em ciência, outra para o metafísico acreditado, um monte enorme para o especialista em ficção. A pilha maior tinha o nome de “Droga”. Eram livros que não mereciam críticas, mas apenas uma nota rápida.
— Eis aqui um livro sobre a Polinésia para você, Walter — disse Burlap generosamente. — E uma nova antologia de versos franceses. Não, pensando melhor, acho que eu é que vou escrever sobre isto. — Pensando melhor ele geralmente guardava para si os livros mais interessantes.
— A vida de são Francisco recontada para as crianças por Bella Jukes. Teologia ou droga? — perguntou Beatrice.
— Droga — respondeu Walter, olhando por cima do ombro dela.
— Mas eu gostaria de ter um pretexto para fazer um artiguinho a respeito de são Francisco — disse Burlap. Nos intervalos que lhe deixavam as funções de redator, tinha ele empreendido um estudo de fôlego que se deveria chamar São Francisco e a psique moderna. Burlap tomou o livrinho das mãos de Beatrice e fez desfilar as páginas sob o seu polegar. — Parece droga mesmo — admitiu. — Mas que homem extraordinário! Extraordinário! — Começou a hipnotizar-se, a flagelar-se para atingir o estado de espírito franciscano.
— Extraordinário! — martelou Beatrice, com os olhos fitos em Burlap.
Walter olhou para ela com curiosidade. As ideias de Beatrice e aquelas bicadas de ganso pareciam pertencer a duas pessoas diferentes, entre as quais o único elo perceptível era Burlap. Haveria também alguma ligação interna, orgânica?
— Que integridade devastadora! — continuou Burlap, numa autointoxicação. Balançou a cabeça e, suspirando, recuperou a calma suficiente para poder continuar o trabalho da manhã.
Quando, por fim, Walter teve ensejo de falar (com que timidez, com que escrupulosa relutância!) a respeito de seu ordenado, Burlap mostrou-se admiravelmente cheio de simpatia.
— Eu sei, meu velho — disse ele, descansando a mão no ombro do outro com um gesto que perturbadoramente recordou a Walter o tempo em que, menino de escola, ele representava o papel de Antônio em O mercador de Veneza e o detestável Porter (o mais velho), caracterizado de Bassânio, ensaiava um gesto que traduzisse amizade. — Eu sei o que é andar mal de dinheiro. — A sua risadinha dava a entender que ele, Burlap, era um verdadeiro franciscano especialista em pobreza, mas que era modesto demais para insistir no assunto. — Eu sei, meu velho. — E realmente chegava quase a acreditar que não era coproprietário e diretor da redação do Mundo, que não tinha um níquel empregado no jornal, que vivia com duas libras por semana havia muitos anos. — Eu quisera que estivéssemos em condições de pagar três vezes o que estamos pagando a você. Você o merece, meu velho. — Deu uma palmadinha no ombro de Walter.
Este resmungou algumas palavras vagas de modéstia. “Aquela palmadinha”, pensou, “era a deixa para ele começar.”
Eu sou a ovelha maculada do rebanho
Que mais merece ser levada ao matadouro...
— Eu só queria — continuou Burlap — para o seu bem e para o meu — acrescentou com um risinho tristonho, metendo-se, com relação às finanças, dentro da mesma panela de Walter —, eu só queria que o jornal desse lucro maior. Se você escrevesse menos bem, ele daria. — O elogio era encantador. Burlap o reforçou com outra palmadinha amigável e com um novo sorriso. Mas os olhos não exprimiam nada. Encontrando-os por um instante, Walter teve a estranha impressão de que aqueles olhos não estavam absolutamente olhando para ele, que não estavam olhando para coisa nenhuma. — O jornal é bom demais. E isto em grande parte por culpa tua. Não se pode servir a Deus e ao Dinheiro ao mesmo tempo...
— Naturalmente — concordou Walter; mas sentiu de novo que as grandes palavras tinham vindo com demasiada facilidade.
— Quisera eu que isso fosse possível — falou Burlap, como um são Francisco brincalhão que fingia zombar de seus próprios princípios.
Walter aderiu à risada, mas sem alegria. Preferia mil vezes que não tivesse mencionado a palavra “ordenado”.
— Vou falar a mr. Chivers — disse Burlap. Mr. Chivers era o diretor comercial. Burlap se servia dele, como os homens de Estado se servem dos oráculos e dos augúrios, em benefício da sua própria política. Suas decisões mal acolhidas podiam sempre ser levadas à conta de mr. Chivers; e quando ele tinha algum gesto simpático era invariavelmente “à revelia do desalmado despotismo do diretor comercial”. Mr. Chivers era a mais conveniente das ficções. — Hei de falar-lhe esta manhã mesmo.
— Não se incomode — disse Walter.
— Se for humanamente possível arrancar alguma coisa mais para você...
— Não, eu te peço... — Walter chegava positivamente a suplicar que não lhe aumentassem o ordenado. — Eu sei bem das dificuldades. Não pense que quero...
— Mas nós estamos te explorando, Walter, estamos positivamente pagando um salário de fome. — Quanto mais Walter protestava, mais generoso ficava Burlap. — Não pense que não percebo. Há muito que isso vem me preocupando.
A sua magnanimidade era infecciosa. Walter estava resolvido a não aceitar nenhum aumento, firmemente resolvido, embora tivesse a convicção de que o jornal estava em condições de pagá-lo melhor.
— Realmente, Burlap — disse ele quase numa súplica —, eu preferia antes que você deixasse as coisas como elas estão. — E então, de súbito, Walter pensou em Marjorie. Como a estava tratando injustamente! Sacrificava o bem-estar dela ao seu. Porque ele achasse desagradável negociar, porque lhe fosse repugnante lutar, por um lado, e, pelo outro, aceitar favores, a pobre Marjorie teria de continuar sem novos vestidos e sem mais uma criada.
Mas Burlap afastava-lhe as objeções. Insistiu em ser generoso.
— Vou falar a Chivers imediatamente. Creio que posso persuadi-lo a dar-te mais vinte e cinco por ano.
Vinte e cinco. Equivalia aquilo a dez xelins por semana, isto é, a nada. Marjorie tinha dito que ele devia exigir pelo menos mais cem libras.
— Obrigado — agradeceu Walter. E por ter dito esta palavra desprezou-se a si mesmo.
— É ridiculamente pouco, acho eu. Ridiculamente, eis o termo.
“Era o que eu devia ter dito”, pensou Walter.
— Sente-se até vergonha de oferecer isso. Mas que é que se vai fazer? — “Se” manifestamente não podia fazer nada, pela boa razão de que “se” era impessoal e não existia.
Walter resmungou algo a respeito de “ficar grato”. Sentiu-se humilhado e culpou Marjorie do que acontecera.
Quando trabalhava na redação, o que acontecia somente três dias por semana, Walter ficava na mesma sala de Beatrice. Burlap, num isolamento diretorial, ficava sozinho. Era dia de “Diversas”. Viam-se sobre a mesa as pilhas de “Drogas”. Walter e Beatrice serviram-se. Era um festim literário — um festim de sobejos. Maus romances e versos sem valor, sistemas imbecis de filosofia e moralizações chatas, biografias insignificantes e livros maçantes de viagem, livros de um pietismo tão nauseante e histórias infantis tão vulgares e tolas que lê-los era sentir vergonha por toda a raça humana; a pilha era alta, e cada semana ia ficando ainda mais crescida. A perseverança de Beatrice, que semelhava a das formigas, o discernimento rápido e a facilidade de Walter eram completamente incapazes de reprimir o fluxo crescente. Ambos puseram mãos à obra “como abutres”, dizia Walter, “nas Torres do Silêncio”. O que ele escreveu naquela manhã foi particularmente mordaz.
No papel Walter era tudo o que não conseguia ser na vida. Suas críticas eram ricas de epigramas e implacáveis. As pobres solteironas compenetradas, quando liam o que ele escrevia a respeito de seus poemas sentidíssimos sobre Deus e a Paixão, e sobre as belezas da natureza, se sentiam picadas ao vivo pelo desdém brutal do cronista. Os caçadores de caça grossa que tinham feito, cheios de gozo, uma excursão à África perguntavam-se a si mesmos como a narrativa de uma aventura tão interessante podia ser qualificada de cacete. Os jovens novelistas que tinham modelado os seus estilos e as suas concepções épicas de acordo com os melhores autores, que tinham ousadamente posto a descoberto os segredos de sua vida íntima e sexual, ficavam feridos, ficavam abismados, ficavam indignados ao lerem que os seus escritos eram pomposos, sua construção inexistente, sua psicologia falsa e seu drama, teatral e melodramático. Custa tanto escrever um mau livro como um bom; sai com a mesma sinceridade da alma do autor. Mas sendo a alma do mau autor, pelo menos artisticamente, de qualidade inferior, suas sinceridades serão, se não sempre intrinsecamente desinteressantes, pelo menos desinteressantemente exprimidas, e o trabalho dispensado nessa expressão será malbaratado. A natureza é monstruosamente injusta. Não há substituto para o talento. A indústria e todas as virtudes são de nenhum proveito. Imerso na sua “Droga”, Walter começou a escrever ferozmente sobre a falta de talento. Conscientes de sua indústria, de sua sinceridade e de suas boas intenções artísticas, os autores das “drogas” sentiam-se tratados de maneira injusta e ultrajante.
Os métodos de crítica de Beatrice eram simples; em todos os casos ela procurava dizer o que imaginava que Burlap diria. Na prática, o que acontecia era que ela elogiava todos os livros nos quais a vida e os seus problemas eram, julgava ela, levados a sério; e condenava todos os outros em que isso não acontecesse. Beatrice teria classificado o Festus de Bailey acima do Cândido, a menos, é claro, que Burlap ou alguma outra pessoa de autoridade lhe tivesse dito previamente que era seu dever preferir Cândido. Como nunca lhe permitiam criticar nada, a não ser o que era “Droga”, a sua falta absoluta de senso crítico era de pouca importância.
Walter e Beatrice trabalharam, saíram para fazer o lanche, voltaram e recomeçaram o trabalho. Onze livros novos haviam chegado no intervalo.
— Eu sinto — disse Walter — o que devem sentir os abutres de Bombaim quando há epidemia entre os parses.
Bombaim e os parses lembraram-lhe a irmã. Elinor e Philip deviam estar embarcando naquele dia. Walter se alegrava por sabê-los de volta à pátria. Eram quase as únicas pessoas com as quais ele podia falar com intimidade a respeito de seus assuntos. Poderia discutir com eles os seus problemas. Seria um conforto, um alívio de responsabilidade. E então, subitamente, o jovem Bidlake lembrou-se de que tudo estava ajustado, de que não havia mais problemas. Nenhum mais... Foi nesse momento que a campainha do telefone tilintou. Walter levantou o receptor e disse: Alô!
— É você, Walter querido? — Era a voz de Lucy.
O coração de Walter desfaleceu; ele sabia o que ia acontecer.
— Acabo de acordar — explicou ela. — Estou completamente só.
Queria que ele fosse para o chá. Walter recusou. Que fosse, então, depois do chá.
— Não posso — persistiu ele.
— Bobagem! É claro que você pode.
— Impossível.
— Mas por quê?
— Trabalho.
— Mas depois das seis. Faço questão...
“Afinal de contas”, pensou ele, “talvez fosse melhor ir vê-la e explicar-lhe o que tinha resolvido.”
— Eu nunca hei de te perdoar se você não vier.
— Está bem. Farei um esforço. Irei, se for possível...
— Que dengoso ele é — caçoou Beatrice quando Walter pendurou de novo o receptor. — A dizer não só pelo prazer de se sentir requisitado.
E quando, poucos minutos depois das cinco, o rapaz deixou a redação sob o pretexto de que precisava ir à London Library antes da hora de fechar, Beatrice dirigiu-lhe votos irônicos de felicidade. E as suas últimas palavras foram: “Bon amusement!”.
*
No gabinete do diretor, Burlap estava ditando cartas para a sua secretária:
— De V. Sª etc. etc. — terminou ele. Tomou de outro maço de papéis. — Cara Miss Saville — começou, depois de relancear os olhos sobre eles. — Não — corrigiu-se. — Cara Miss Romola Saville. Obrigado pela sua carta e pelos manuscritos anexos. — Fez uma pausa e, inclinando-se para trás na cadeira, fechou os olhos, numa reflexão breve. — Não é meu costume — continuou por fim, com uma voz macia e longínqua —, não é meu costume escrever cartas particulares a colaboradores desconhecidos. — Descerrou as pálpebras para dar com o olhar escuro e brilhante da secretária, que se achava do outro lado da mesa. A expressão dos olhos de Miss Cobbett era sarcástica; o mais pálido dos sorrisos encrespava-lhe quase imperceptivelmente as comissuras dos lábios. Burlap ficou contrariado; mas escondeu os seus sentimentos e continuou a olhar para a frente, como se Miss Cobbett não se achasse presente e como se ele estivesse a olhar distraidamente para qualquer peça da mobília. Miss Cobbett baixou de novo o olhar para o caderno de apontamentos.
“Como é desprezível”, exclamou ela no seu íntimo. “Como é indizivelmente vulgar!”
Miss Cobbett era uma mulherzinha de cabelos negros, que tinha os cantos do lábio superior sombreados de uma penugem escura: olhos castanhos desproporcionadamente grandes para o rosto fino e um tanto doentio. Olhos sombrios e apaixonados, com uma expressão quase permanente de censura que por vezes se iluminava em cólera súbita, ou, como naquele momento, em escárnio. Ethel Cobbett tinha direito de lançar para o mundo um olhar de acusação. O destino a tinha tratado com dureza. Com muita dureza, mesmo. Nascida e educada no meio de uma prosperidade razoável, a morte do pai a deixara, de um dia para outro, desesperadamente pobre. Ficou noiva de Harry Markham. A vida prometia começar de novo. Depois veio a guerra. Harry alistou-se e foi morto. Essa morte condenou Miss Cobbett à estenografia e à datilografia pelo resto da existência. Harry era o único homem que a tinha amado, o único homem que quisera correr o risco de amá-la. Os outros homens achavam-na inquietadoramente violenta, apaixonada e séria. Ethel levava tudo terrivelmente a sério. Os jovens sentiam-se mal e achavam-se ridículos na companhia dela. E vingavam-se rindo da pobre criatura, acusando-a de “não ter senso de humor”, de ser pedante e, à medida que o tempo passava, de ter se tornado uma solteirona que vivia a suspirar por um homem. Diziam que Miss Cobbett parecia uma feiticeira. Apaixonara-se muitas vezes, ardentemente, com uma violência sem esperança. Os homens ou não percebiam isso ou, se percebiam, fugiam precipitadamente; outras vezes zombavam dela ou, o que era muito pior, mostravam-se de uma bondade condescendente, como se estivessem tratando com uma pobre criatura desviada que, embora fosse aborrecível, devia, não obstante, ser tratada com caridade. Ethel Cobbett tinha pleno direito a usar aquela expressão de censura.
Conhecera Burlap porque, quando menina, nos dias de prosperidade, tinha frequentado o mesmo colégio de Susan Paley, que se tornara posteriormente esposa dele. Quando Susan morreu e Burlap explorou a dor que sentiu, ou pelo menos proclamou ter sentido, numa série mais do que habitualmente dolorosa daqueles artigos sempre dolorosamente pessoais que eram o segredo de seu êxito como jornalista (pois o grande público tem um apetite crônico e canibalesco pelas indiscrições pessoais), Ethel lhe escreveu uma carta de condolência, que fez acompanhar de um longo memorial a respeito da Susan dos tempos de menina. Pela volta do correio veio-lhe uma resposta comovida e comovente: “Obrigado pelas memórias que me representam a verdadeira Susan tal como eu sempre a senti — a menina que sobreviveu tão magnífica e tão puramente na mulher, até o derradeiro momento; a encantadora criança que, a despeito da cronologia, ela não tinha cessado de ser, sob a Susan física que vivia no tempo e paralelamente a ela. Nas profundezas mais íntimas de seu coração, estou certo, ela nunca chegou a crer no seu eu adulto e cronológico, nunca pôde desfazer-se da ideia de que continuava a ser uma criança que brincava de ser grande”.
E assim por diante — páginas de um lirismo um tanto histérico sobre a mulher-criança defunta. Incorporou uma boa parte da substância dessa carta em seu artigo da semana seguinte. “Desses será o Reino dos Céus” era o título. Um dia ou dois mais tarde ele foi a Birmingham para ter uma entrevista pessoal com aquela mulher que havia conhecido a verdadeira Susan na época em que ela era criança, tanto cronológica como espiritualmente. A impressão que cada um deles causou no outro foi favorável. Para Ethel, cuja vida era de amargura e de recriminação contra o destino, para ela, que vivia entre o seu apartamento sombrio e o odioso escritório da companhia de seguros onde estava empregada, a chegada da carta, primeiro, e a do próprio Burlap, depois, tinham sido acontecimentos grandes e maravilhosos. Tratava-se de um escritor de verdade, um homem que tinha um cérebro e uma alma. No estado mental que fabricara para si mesmo, Burlap teria gostado de qualquer mulher que lhe pudesse falar da meninice de Susan e oferecer-lhe o calor de uma compaixão maternal em que, criança também, ele pudesse mergulhar com delícia, como num leito de penas. Ethel Cobbett não se limitava a testemunhar-lhe simpatia e a ter sido amiga de Susan; tinha também inteligência, uma cultura séria, e sabia admirar. As primeiras impressões foram boas.
Burlap chorou, abjetamente. Torturou-se a si mesmo com o pensamento de que nunca, nunca mais poderia pedir perdão a Susan de todas as maldades que lhe fizera; de todas as palavras cruéis que pronunciara. E confessou, na agonia da contrição, que lhe fora uma vez infiel. Contou as contendas domésticas. E agora Susan estava morta; nunca lhe poderia pedir perdão. Nunca, nunca. Ethel ficou comovida. “Ninguém”, pensou ela, “há de mostrar esse interesse por mim quando eu morrer.” Mas os testemunhos de amor e de interesse depois que morremos são coisas menos satisfatórias do que os testemunhos de amor e de interesse quando estamos vivos. Aqueles paroxismos de dor que Burlap, por um processo de concentração intensa sobre a ideia da sua perda e da sua tristeza, tinha conseguido fazer ferver dentro de si mesmo, não eram de maneira nenhuma proporcionais aos sentimentos que ele experimentara com relação à Susan viva. Para cada jesuíta noviço Loyola prescrevia um retiro de meditação solitária sobre a Paixão de Cristo; alguns dias deste exercício, acompanhados de jejum, bastavam geralmente para produzir no espírito do noviço a realidade viva, mística e pessoal da existência e dos sofrimentos reais do Salvador. Burlap empregou o mesmo processo; mas em lugar de pensar em Jesus, ou então em Susan, pensou em si mesmo, nas suas agonias, na sua própria solidão, nos seus próprios remorsos. E com efeito, ao cabo de alguns dias de masturbação espiritual incessante, ele obteve como recompensa a realidade mística de seu próprio pesar, único e incomparável. Via-se, numa visão apocalíptica, como o varão de dores. (A linguagem do Novo Testamento vinha aos lábios de Burlap e brotava-lhe da pena constantemente. “A cada um de nós”, escrevia ele, “é dado um calvário proporcional à capacidade individual de resistência e às possibilidades de autoaperfeiçoamento.” Burlap falava familiarmente de agonias no jardim e em cálices.) Aquela visão lhe espedaçou o coração; o homem ficou inundado de piedade de si mesmo.
Mas a pobre Susan tinha, na verdade, muito pouco que ver com os sofrimentos daquele Burlap com ares de Cristo. O seu amor por Susan viva tinha sido por ele próprio tão forçado, tão buscado, tão estudadamente intensificado como fora a sua tristeza pela Susan morta. Burlap havia amado, não Susan, mas a imagem mental de Susan e a ideia do amor, coisas sobre as quais concentrara fixamente o espírito, à melhor maneira jesuítica, até que elas se tornassem alucinantemente reais. Seus ardores para com aquele fantasma, para com o amor do amor, a paixão pela paixão, que ele conseguira extrair das profundezas mais remotas de sua consciência, haviam conquistado Susan, que imaginava que aqueles sentimentos tivessem alguma relação com ela. O que mais agradava Susan naqueles sentimentos do marido era a sua qualidade de pureza que nada tinha de masculina. Os ardores de Burlap eram os de uma criança para com sua mãe (de uma criança um pouco incestuosa, é verdade; mas como ele representava com tato e delicadeza o papel de pequeno Édipo!), seu amor era ao mesmo tempo infantil e maternal; sua paixão era uma espécie de aconchego passivo. Frágil, melindrosa, não tendo atingido a plenitude da vida e continuando por isso a ser menos do que adulta, uma eterna menor, Susan adorava o marido como a um amante superior e quase sagrado. E Burlap, em troca, adorava o seu fantasma particular, adorava a sua concepção lindamente cristã do matrimônio, adorava a sua maneira adorável de ser esposo. Seus artigos periódicos em louvor ao casamento eram líricos. Isso não o impedia de cometer frequentes infidelidades; mas tinha uma maneira tão pura, tão infantil, tão platônica de ir para a cama com as outras mulheres que nem estas, nem ele podiam jamais achar que aquilo fosse realmente “dormir juntos”. A vida de Burlap com Susan foi uma sucessão de cenas, em todas as variedades da gama emocional. Ele mastigava e remastigava sem cessar um agravo qualquer até ficar envenenado num paroxismo de cólera ou de ciúme. Ou então insistia em suas próprias fraquezas e mostrava-se servilmente arrependido ou se rolava aos pés de Susan no êxtase de sua adoração incestuosa pela mamãe-bebê imaginária que era sua esposa, e com a qual lhe teria sido agradável identificar a Susan de carne e osso. E muitas vezes, então, com grande inquietude de Susan, ele interrompia subitamente o fluxo de suas emoções com um estranho risinho cínico, e transformava-se por um instante num ser inteiramente diverso, num ser que lembrava o Alegre Moleiro da canção: “Não faço caso de ninguém, oh não! E ninguém faz caso de mim, também!”. “O demônio de cada um...” — era assim que ele descrevia impessoalmente tais estados de espírito depois de ter reconquistado a espiritualidade emotiva; e citava as palavras do Velho Marinheiro, de Coleridge, a propósito do cochicho do demônio que lhe havia deixado o coração seco como poeira. Seria mesmo “o demônio de cada um” — ou era, talvez, o verdadeiro Burlap, o Burlap fundamental, fatigado enfim do esforço de se fazer passar por um outro e de forçar a fermentação de emoções que ele não sentia espontaneamente, o verdadeiro Burlap que concedia a si mesmo um curto feriado?
Susan morreu; mas a dor prolongada e apaixonada que ele experimentou naquela ocasião poderia ter sido provocada quase com o mesmo êxito se Burlap resolvesse imaginar a esposa morta e a si mesmo abandonado e solitário, durante a vida dela. Ethel ficou sensibilizada pela intensidade daqueles sentimentos, ou, melhor, pela violência e pela insistência que Burlap punha ao exprimi-los. O homem parecia absolutamente aniquilado, tanto de corpo como de espírito, pelos seus pesares. Miss Cobbett sentiu o seu coração sangrar por ele. Encorajado pela simpatia da moça, Burlap mergulhou numa orgia de lamentações cuja vaidade tornava exasperadoramente acerbas, arrependimentos tanto mais cruciantes quanto eram tardios, confissões e humilhações desnecessárias. As sensações não são entidades à parte, suscetíveis de ser estimuladas independentemente do resto do espírito. Quando um homem fica emocionalmente exaltado em uma direção, está sujeito a ficar também em outras. A dor de Burlap tornava-o nobre e generoso; a piedade de si mesmo lhe tornava fácil ter sentimentos cristãos para com as outras pessoas.
— A senhora também é infeliz — disse ele a Ethel. — Eu bem o vejo. — Ela concordou; disse-lhe o quanto odiava o seu trabalho, o seu emprego, o pessoal com quem trabalhava; contou-lhe a sua história desgraçada. Burlap pôs em ebulição a sua simpatia.
— Mas que importam as minhas pequenas misérias comparadas com as suas? — protestou Ethel, lembrando-se da violência das lamentações do outro.
Burlap falou da franco-maçonaria do sofrimento e depois, ofuscado pela visão da bondade de seu próprio eu, chegou a oferecer a Miss Cobbett um lugar de secretária-estenógrafa no Mundo Literário. Embora Londres e o Mundo Literário lhe parecessem infinitamente preferíveis a Birmingham e à companhia de seguros, Ethel hesitou. O emprego era monótono, mas era sólido, permanente e dava direito a uma aposentadoria. Numa outra explosão de sentimento generoso, ainda mais violenta do que a primeira, Burlap garantiu-lhe toda a permanência que ela desejava. E sentiu o seu ser todo aquecido de bondade.
Miss Cobbett deixou-se persuadir. Foi para Londres. Se Burlap esperava deslizar degrau após degrau e de modo quase imperceptível até a cama de Ethel, ficou desapontado. Criança abatida pela dor e necessitada de consolação, ele gostaria de induzir a sua consoladora — oh! — mas quão espiritual e platonicamente! — a um suave e delicioso incesto. Uma tal ideia, porém, era inconcebível para Ethel Cobbett; nunca haveria de entrar-lhe na cabeça. Era uma mulher de princípios, tão apaixonada e violenta nas suas lealdades morais como no seu amor. Tinha tomado a dor de Burlap a sério e literalmente. Quando ambos pactuaram, entre lágrimas, fundar uma espécie de culto particular para a pobre Susan a fim de elevar e guardar perpetuamente iluminado e adornado um altar interior à sua memória, Ethel imaginou que as palavras de Burlap deviam ser tomadas ao pé da letra. Fosse como fosse, as dela eram sinceras. Nunca lhe ocorreu que as de Denis não o fossem. O comportamento ulterior deste a espantou e escandalizou. “Era então aquele o homem”, perguntava Ethel a si mesma, vendo Burlap viver a sua vida de promiscuidades disfarçadas, platônicas e viscosamente espirituais, “era aquele o homem que tinha feito o voto de conservar para sempre velas acesas na frente do altar da pobrezinha de Susan?” Ela exprimia a sua desaprovação por meio de olhares e de palavras. Burlap se maldizia por causa da sua loucura de tê-la tirado da companhia de seguros, por causa da sua refinadíssima imbecilidade de lhe prometer permanência no emprego. Se ao menos ela se demitisse por sua livre vontade! Procurava tornar-lhe a existência intolerável, tratando-a com impessoalidade glacial, superior, como se ela fosse apenas uma máquina de apanhar cartas e de copiar artigos. Mas Ethel Cobbett se aferrava ferozmente ao emprego; havia então dezoito meses que se achava agarrada a ele e não dava sinais de se demitir. Era intolerável; aquilo não podia continuar. Mas como havia ele de pôr um fim à história? Era claro, ele não estava por lei obrigado a conservá-la indefinidamente. Não tinha escrito nada, preto no branco... Na pior das hipóteses...
Revelando um insensível desdém pela expressão dos olhos de Ethel Cobbett e pelo seu quase imperceptível sorriso de ironia, Burlap continuou com o ditado. Não se deve dar atenção às máquinas: usá-las, apenas. Mesmo assim, a coisa como estava simplesmente não podia continuar.
— Não é meu costume escrever cartas particulares a colaboradores desconhecidos — repetiu Burlap num tom de voz firme e resoluto. — Mas não posso deixar de dizer-lhe... não, não — de agradecer-lhe o grande prazer que seus poemas me deram. A frescura lírica da sua obra, a sua sinceridade apaixonada, o seu esplendor livre e quase selvagem chegaram-me como uma surpresa e um refrigério. Um diretor de jornal é obrigado a absorver tão grande quantidade de má literatura que chega a ficar quase pateticamente reconhecido para com os que... — não, escreva: para com os raros e preciosos espíritos que lhe oferecem ouro em vez da escória habitual. Agradeço-lhe a remessa de... — Burlap olhou de novo para os papéis — ... de O amor na floresta verdejante e de Passifloras. Obrigado pelos seus poemas cujas palavras semelham a superfície cintilante e turbulenta de um lago. Obrigado também pela sensibilidade... — não — pela vibrante sensibilidade, pela experiência de sofrimento, pela ardente espiritualidade que uma visão mais profunda descobre debaixo dessa superfície. Vou mandar paginar imediatamente ambos os poemas para publicá-los no próximo mês.
“Até lá, se acontecer de a senhorita passar nas proximidades de Fleet Street, eu me consideraria muito honrado em poder ouvir pessoalmente algumas indicações sobre seus projetos poéticos. O aspirante a literato, mesmo quando tem talento, fica muitas vezes embargado pelas dificuldades materiais que o homem de letras profissional sabe como contornar. Sempre considerei como um dos meus maiores privilégios e deveres de crítico e de jornalista aplainar o caminho para o talento literário. Esta será a minha escusa por ter escrito tão longamente. Creia-me verdadeiramente muito seu...”
Burlap tornou a olhar para os poemas datilografados e leu uma linha ou duas. “Talento verdadeiro”, disse para si mesmo várias vezes, “talento verdadeiro.” Mas o “demônio de cada um” achava que aquela rapariga era notavelmente franca, que devia ter temperamento e que parecia ser dona de uma certa experiência... Pousou os papéis no cesto que tinha à sua direita e apanhou outra carta do cesto da esquerda.
— Ao reverendo James Hitchcock — ditou. — Presbitério Tuttleford, Wilts. Prezado senhor: Lamento vivamente estar impossibilitado de utilizar o seu longo e muito interessante artigo a respeito da relação entre as línguas aglutinantes e as formas aglutinativas de quimeras na arte simbólica. Exigências de espaço...
*
Rosada dentro do seu roupão como as tulipas nos vasos, Lucy estava deitada, apoiada nos cotovelos, lendo. O divã era de cor alegre, as paredes estavam forradas de seda cinzenta, o tapete era cor-de-rosa. Na sua gaiola de ouro até a própria cacatua era rosa e cinza. A porta se abriu.
— Walter, querido! Enfim! — Lucy deixou cair o livro.
— Enfim. Se você soubesse de todas as coisas que eu devia estar fazendo agora em vez de estar aqui. (“Promete?”, perguntara Marjorie. E ele respondera: “Prometo”. Mas aquela última visita de explicação não entrava em conta...)
O divã era largo. Lucy afastou os pés para a parede, fazendo lugar para Walter sentar-se. Um de seus chinelos turcos vermelhos tombou.
— Aquela detestável manicure... — disse ela, erguendo o pé nu alguns centímetros, de maneira a colocá-lo dentro de seu campo de visão. — Quer por força pôr essa horrível coisa vermelha nas unhas dos meus pés. Parecem até chagas...
Walter não falou. Seu coração batia violentamente. Como o calor de um corpo transposto para uma outra gama sensorial, o aroma das gardênias de Lucy o envolvia. Há perfumes quentes e frios, sufocantes e frescos. As gardênias de Lucy pareciam encher-lhe a garganta e os pulmões de uma doçura tropical e pesadamente opressiva. Sobre a seda cinzenta do divã, o pálido pé da rapariga parecia uma flor, era como os botões pálidos e carnudos das flores de lótus. Os pés das deusas hindus que passeiam por entre os seus lótus são também como flores. O tempo se escoava em silêncio, mas não inutilmente como nos momentos ordinários. Dir-se-ia que ele era aspirado, a cada bombada do coração inquieto de Walter, para dentro de algum reservatório fechado de sensações experimentadas, que subiam atrás da represa, até que por fim, de repente... De repente Walter estendeu o braço e tomou o pé nu em sua mão. Sob a pressão de todos aqueles minutos silenciosamente acumulados, a barragem ruíra. Era um pé alongado, alongado e estreito. Os dedos de Walter se fecharam em torno dele. Inclinando-se, o rapaz beijou o peito daquele pé.
— Mas meu caro Walter! — Lucy pôs-se a rir. — Você está se tornando verdadeiramente oriental.
Walter não disse palavra, mas, ajoelhando-se no chão ao lado do divã, curvou-se sobre Lucy. O rosto que se inclinou para beijá-la estava fixo numa espécie de loucura desesperada. As mãos que tocavam o corpo dela tremiam. Lucy balançou a cabeça, escudou o rosto com a mão.
— Não, não.
— Mas por que não?
— Não dá certo...
— Por que não?
— Para principiar, as coisas ficariam muitíssimo mais complicadas para ti.
— Qual! Não ficariam — afirmou Walter.
Não havia complicações. Marjorie cessara de existir.
— Além disso — continuou Lucy —, você parece esquecer a minha pessoa. E eu não quero...
Mas os lábios dele eram macios, as suas mãos tocavam de leve. O bater de asas das mariposas prenunciadoras do prazer voltaram palpitantemente à vida sob aqueles beijos e aquelas carícias. Lucy fechou os olhos. As carícias de Walter eram como uma droga que fosse ao mesmo tempo excitante e opiada. Bastava relaxar a vontade; a droga haveria de possuí-la completamente. Lucy cessaria de ser ela mesma. Não seria nada mais do que uma epiderme de prazer palpitante a envolver um vácuo, uma treva quente e abismal.
— Lucy! — As pálpebras dela palpitaram e estremeceram sob os lábios do rapaz. As mãos dele tocavam-lhe o peito. — Minha querida! — Ela jazia completamente imóvel, com os olhos sempre fechados.
Um guincho súbito e penetrante fê-los ambos despertar, completamente acordados, do esquecimento do tempo em que haviam mergulhado. Foi como se um assassínio tivesse sido cometido a poucos metros do lugar onde ambos se achavam, mas um assassínio cuja vítima achasse um pouco divertida, ao mesmo tempo que dolorosa, a sensação de ser assassinada.
Lucy desatou a rir.
— É Polly.
Voltaram-se ambos para a gaiola. Com a cabeça um pouco inclinada para um lado, a ave os estava examinando com um olho negro e circular. E enquanto Lucy e Walter olhavam, uma cortina de pele pergaminhosa passou como uma catarata momentânea sobre o olho brilhante e inexpressivo, para logo depois se reerguer. Repetiu-se de novo o grito de agonia do mártir jocoso.
— Você vai ter de cobrir a gaiola com o pano — sugeriu Lucy.
Walter voltou-se para ela e pôs-se a beijá-la com raiva. A cacatua gritou outra vez. A risada de Lucy redobrou.
— É inútil... — disse, arquejante. — Ela não parará senão depois que a cobrires.
A ave confirmou o que Lucy dissera com outro berro de agonia alegre. E Walter, furioso, exasperado e consciente do seu ridículo, abandonou a posição genuflexa e atravessou o compartimento. À aproximação dele a ave começou a dançar animadamente no seu poleiro; alçou-se-lhe a crista, a plumagem da cabeça e a do pescoço eriçaram-se como as escamas de uma pinha madura. “Bom dia”, dizia a cacatua..., com uma voz gutural de ventríloquo. “Bom dia, titia, bom dia, titia, bom dia, titia...” Walter desdobrou o brocado cor-de-rosa que se achava em cima da mesa perto da gaiola e apagou o animal. Um último “bom dia, titia” saiu de baixo da coberta. E depois fez-se silêncio.
— Ela gosta dessa brincadeira — disse Lucy, assim que o animal desapareceu. Tinha acendido um cigarro.
Walter tornou a atravessar a peça e, sem dizer palavra, arrebatou o cigarro dos dedos dela e jogou-o dentro da lareira. Lucy alçou as sobrancelhas, mas Walter não lhe deu tempo para falar. Ajoelhando-se outra vez ao pé dela, começou a beijá-la com fúria.
— Walter — protestou Lucy. — Não! Que é que você tem? — Tentou desvencilhar-se, mas ele estava surpreendentemente forte. — Parece uma besta-fera. — O desejo dele era mudo e selvagem. — Walter! Eu insisto! — Lucy teve uma ideia absurda e começou subitamente a rir. — Se você soubesse como estava cinematográfico! Um grande, um enorme close-up cheio de dentes arreganhados.
Mas o ridículo foi tão inútil como os protestos. E desejaria Lucy verdadeiramente que ele fosse eficaz? Por que não se abandonava? Simplesmente porque era um pouco humilhante ser levada daquele modo, ser forçada em vez de escolher. Seu orgulho, sua vontade resistiam a Walter, resistiam ao seu próprio desejo. Mas, no fim das contas, por que resistir? A droga era ativa e deliciosa. Por que resistir? Lucy fechou os olhos. Mas, enquanto hesitava, o acaso repentinamente tomou uma decisão por ela. Bateram à porta.
Lucy tornou a abrir os olhos.
— Vou dizer que entrem — sussurrou.
Walter pôs-se precipitadamente de pé, ao mesmo passo que se ouvia uma segunda batida.
— Entre!
A porta se abriu.
— Mr. Illidge deseja vê-la, senhora — disse a criada.
Walter se achava à janela, fingindo que estava profundamente interessado num caminhão de entrega encostado à calçada da casa fronteira.
— Manda-o subir — ordenou Lucy.
Walter voltou-se logo que a porta se fechou atrás da criada. O rosto dele estava muito pálido, os lábios lhe tremiam.
— Eu havia me esquecido completamente — explicou Lucy. — Pedi a Illidge que viesse, a noite passada; ou melhor, esta manhã.
O rapaz voltou o rosto e, sem dizer palavra, cruzou o quarto, abriu a porta e se foi.
— Walter! — gritou ela, atrás dele. — Walter! — Mas Walter não voltou.
Na escada encontrou Illidge que subia precedido pela criada.
Walter respondeu-lhe às palavras de saudação com um cumprimento vago e passou por ele apressadamente. Não estava bastante calmo para arriscar-se a falar.
— Nosso amigo Bidlake parece que ia com grande pressa — disse Illidge, depois dos cumprimentos preliminares. Sentia-se exultantemente certo de que tinha posto o outro na rua.
Lucy observava-lhe o ar de triunfo. “Parece um galinho de plumagem vermelha”, pensou ela.
— Walter tinha se esquecido de qualquer coisa... — explicou vagamente.
— Espero que não tenha sido dele mesmo — falou o homenzinho, trocista. E quando Lucy riu, mais da masculinidade fátua da expressão dele do que propriamente da brincadeira, Illidge se sentiu inchado de satisfação e de confiança em si mesmo. Aquela aventura mundana lhe ia saindo tão fácil como jogar bolão... Sentindo-se inteiramente à vontade, estendeu as pernas, olhou em torno. A elegância ricamente sóbria do aposento impressionou-o desde logo como sendo de perfeito bom gosto. Aspirou o ar perfumado com satisfação.
— Que é que há debaixo daquele misterioso pano vermelho, ali? — perguntou, apontando para a gaiola coberta.
— É um papagaio — respondeu Lucy. — Um curru-paco-pa-paco! — corrigiu-se ela, rompendo numa súbita risada inquietante e inexplicável.
Há dores confessáveis, sofrimentos de que nos podemos positivamente orgulhar. A perda de um ente que nos é caro, a partida, o sentimento do pecado, o medo da morte — de tudo isso os poetas já falaram com eloquência. Tais dores se impõem à simpatia do mundo. Mas há também angústias vergonhosas, não menos cruciantes do que as outras e das quais, no entanto, o paciente não ousa nem pode falar. A angústia do desejo contrariado, por exemplo. Era essa a angústia que Walter carregava consigo pela rua. Era dor, raiva, desapontamento, vergonha e desespero combinados. Ele tinha a impressão de que a sua alma estava em agonia de morte. E no entanto a causa era inconfessável, baixa e mesmo ridícula. Suponhamos então que um amigo o encontrasse e lhe perguntasse por que ele tinha um ar tão infeliz.
— Eu estava em colóquio amoroso com uma mulher quando fui interrompido, primeiro pelos gritos de um papagaio e depois pela chegada de uma visita.
O comentário a essa confissão seria uma gargalhada enorme de zombaria. E a sua confissão se converteria em uma anedota de sala de fumar. E no entanto Walter não estaria sofrendo mais se tivesse perdido a mãe...
Vagou durante uma hora pelas ruas, em Regent’s Park. A luz se sumia gradualmente da tarde brumosa e branca: Walter ficou mais calmo. “Aquilo fora uma lição”, pensava ele, “um castigo: havia quebrado a promessa. Para o seu próprio bem e para o bem de Marjorie, nunca mais.” Olhou o relógio e, vendo que já passava das sete, voltou para casa. Chegou cansado e decididamente arrependido. Marjorie estava costurando; a luz da lâmpada brilhava-lhe no rosto magro e fatigado. Ela também vestia um roupão. Era cor de malva e horrendo; Walter sempre achara que ela tinha mau gosto. O apartamento estava invadido por um cheiro de cozinha. Walter detestava os cheiros de cozinha, mas nisso residia outra razão para ser fiel. Era uma questão de honra e de dever. Lá porque preferisse gardênia a couve não era motivo para Marjorie sofrer.
— Veio tarde — disse ela.
— Havia muita coisa a fazer — explicou Walter. — E vim a pé. — Isto pelo menos era verdade... — Como você se sente? — Pousou a mão no ombro dela e inclinou-se. Deixando a costura, Marjorie passou os braços em torno do seu pescoço. “Que felicidade”, pensava ela, “tê-lo de novo! Possuí-lo, uma vez mais! Que reconforto!” Mas no próprio instante em que o estreitava contra o corpo, Marjorie percebeu que mais uma vez fora traída. Afastou-se bruscamente do companheiro.
— Walter, você teve coragem?
O sangue afluiu à face do rapaz, mas ele tentou continuar a comédia.
— Coragem de quê?
— Você voltou a procurar aquela mulher...
— Mas de que é que você está falando? — Sabia que era inútil, mas assim mesmo continuou a fingir.
— Não vale a pena mentir. — Marjorie se ergueu com tal violência que o cesto de costura virou, derramando o conteúdo pelo soalho. Atravessou a peça, sem querer ouvir nada. — Vai embora! — gritou ela, quando Walter fez menção de segui-la. O outro deu de ombros e obedeceu. — Você teve coragem! — continuou ela. — Vir para casa recendendo ao perfume dela. — Eram as gardênias, então... Fora um tolo por não haver previsto aquilo... — Depois de tudo o que você disse a noite passada. Como você pôde fazer isso?
— Mas se você me deixasse explicar... — protestou ele num tom de vítima, de vítima exasperada.
— Explicar por que mentiu — disse ela com amargura. — Explicar por que faltou à tua promessa.
A sua cólera cheia de desprezo evocou uma cólera correspondente em Walter.
— Quero simplesmente explicar — disse ele com uma polidez dura e perigosa. Como ela era aborrecível com as suas cenas e os seus ciúmes! Que cacete intolerável, irritante.
— Quer simplesmente continuar a mentir — escarneceu Marjorie.
Outra vez Walter deu de ombros.
— Se prefere encarar a questão assim... — fez ele polidamente.
— Não passa de um reles mentiroso! É o que você é. — E, voltando-lhe as costas, cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar.
Walter não ficou comovido. A vista daqueles ombros que arfavam nada mais fez senão exasperá-lo e aborrecê-lo. Olhou para a mulher com uma cólera fria e cansada.
— Vai embora! — gritou Marjorie em meio às lágrimas —, vai embora! — Não queria que Walter ficasse ali, triunfante, enquanto ela chorava. — Vai embora.
— Você quer que eu me vá de verdade? — perguntou ele com a mesma polidez fria e exasperante.
— Sim, vai, vai.
— Muito bem! — disse Walter e, abrindo a porta, saiu.
Em Camden Town tomou um táxi e chegou a Bruton Street exatamente a tempo de achar Lucy prestes a sair. Ia jantar fora.
— Vai sair comigo — anunciou Walter muito calmamente.
— Ai! Ai!
— Sim, vais.
Lucy olhou para Walter com curiosidade. Ele lhe retribuiu firmemente o olhar, sorrindo, com uma estranha expressão de triunfo divertido, de poder invencível e obstinado, expressão que ela nunca lhe vira antes no rosto.
— Pois bem — disse a rapariga, afinal. E, tocando a campainha para chamar a criada, ordenou: — Telefone a lady Sturlett, sim? Dize-lhe que sinto muito, mas estou com uma tremenda dor de cabeça e não posso ir à casa dela esta noite. — A criada retirou-se. — Bem, e você vai se mostrar reconhecido agora?
— Estou começando... — respondeu ele.
— Começando? — Lucy fingiu indignação. — Gosto dessa sua infernal impertinência.
— Eu sei que você gosta — retrucou ele. E ela gostava mesmo. Naquela noite Lucy se tornou amante de Walter.
*
Era entre três e quatro da tarde. Spandrell mal acabara de sair da cama. Não tinha se barbeado ainda; por cima do pijama vestira um roupão de pano pardo e grosseiro, como um hábito de monge. (A nota monástica era estudada; ele gostava de lembrar a si mesmo os ascetas. Gostava, um pouco puerilmente, de representar o papel de anacoreta diabólico.) Tinha enchido a chaleira e estava esperando que a água fervesse sobre a chama do gás. Parecia que aquilo estava levando um tempo exageradamente longo. Spandrell sentia a boca seca e assediada por um gosto que lembrava os vapores de cobre aquecido. O brandy produzia seus efeitos habituais.
— Como o cervo que suspira pelos claros regatos — disse ele consigo mesmo —, assim minh’alma anseia... Sim, e com uma sede de ressaca... Se ao menos a Graça pudesse ser engarrafada como a água Perrier...
Foi até a janela. Para além de um raio de cinquenta metros, todas as coisas tinham sido abolidas pelo nevoeiro branco. Mas com que insistência aquele poste de iluminação se erguia na frente da casa contígua, à direita, com que importância! O mundo tinha sido destruído e somente o poste, como Noé, fora preservado do cataclisma universal. E ele nunca tinha antes dado pela existência daquela coisa ali; até aquele momento ela simplesmente não existira. Spandrell olhou para o poste com uma atenção fixa, sem respirar. Aquele poste solitário em meio do nevoeiro... Não tinha ele, Spandrell, visto antes algo semelhante? Aquela sensação esquisita de se achar em companhia do único sobrevivente do Dilúvio parecia-lhe familiar. Olhando fixamente para o poste, Maurice procurava lembrar-se. Ou melhor, fazia um esforço esfalfante para não se lembrar; mantinha a distância a sua vontade e os seus pensamentos conscientes, assim como um policial mantém afastada a multidão em torno de uma mulher que desmaiou na rua; mantinha a distância a sua consciência, a fim de dar à memória aturdida o espaço necessário para se espichar, para respirar, para voltar à vida. Olhando firmemente para o poste, Spandrell esperou, agoniado e paciente, qual um homem que, sentindo-se a ponto de espirrar, espera tremulamente o paroxismo previsto; esperou que revivesse a recordação que havia muito tinha morrido. E de súbito ela brotou, vivamente despertada, surgida da sua catalepsia, e, com um sentimento de enorme alívio, Spandrell se viu subindo o caminho coberto de neve batida e dura que levava de Cortina para a garganta de Falzarego. Uma nuvem fria e branca descera sobre o vale. Não havia mais montanhas. Os fantásticos pináculos de coral dos Dolomitas tinham sido suprimidos. Não havia mais alturas nem profundezas. O mundo tinha apenas cinquenta passos de largura — neve branca no chão, nuvem branca em torno e no alto. E de quando em quando, contra a brancura, aparecia um vulto escuro de casa ou de poste telegráfico, de árvore, homem ou trenó; prodigiosos em seu isolamento e no seu caráter de coisa única, cada um deles era como um sobrevivente solitário da destruição geral. A sensação era sobrenatural, misteriosa, mas como era sensacionalmente nova, como era estranhamente bela! O passeio era uma aventura; Spandrell se sentia emocionado, e uma espécie de ansiedade intensificava a sua felicidade a ponto de ele mal a poder suportar.
— Olha só para aquele chalezinho à esquerda — gritou ele para a mãe. — Quando subi a última vez não estava ali. Juro que não estava.
Conhecia o caminho perfeitamente; tinha-o subido e descido uma centena de vezes e nunca vira o chalezinho. E agora a casinhola se erguia quase ameaçadora, como única coisa escura e definida dentro de um vago mundo de brancura.
— Sim, eu nunca o vi antes — disse a mãe. — O que mostra apenas — acrescentou ela com uma nota de ternura que sempre lhe vinha à voz quando falava no defunto marido — como tinha razão o teu pai. “Desconfiai de todos os testemunhos”, costumava ele dizer, “mesmo dos vossos próprios.”
Spandrell tomou-lhe da mão e ambos se puseram a caminhar juntos em silêncio, puxando os trenós.
Maurice afastou-se da janela. A chaleira estava fervendo. Derramou a água no bule, fez chá, encheu uma xícara e bebeu. A sede, bastante simbolicamente, permaneceu insatisfeita. Spandrell continuou a beber em pequenos goles, pensativo, recordando e analisando aquelas felicidades completamente incríveis da sua meninice. Invernos entre os Dolomitas, primaveras na Toscana, em Provença ou na Baviera; o verão à beira do Mediterrâneo ou na Saboia. Depois da morte do pai e antes de ir para a escola, eles tinham vivido quase continuamente no estrangeiro — era mais barato. E quase todas as suas férias escolares eram passadas fora da Inglaterra. Dos sete aos quinze anos ele se locomovera de um para outro ponto pitoresco da Europa, apreciando a beleza — e sinceramente, note-se bem —, como um precoce Childe Harold.[15] Depois disso, a Inglaterra pareceu-lhe um pouco sem graça. Spandrell lembrou-se de outro dia de inverno. Daquela vez não havia bruma: era um dia brilhante; o sol ardia num céu sem nuvens; os precipícios de coral dos Dolomitas brilhavam — laranja, rosa e branco — acima das florestas e dos declives cobertos de neve. Ele e a mãe desciam de esqui através dos bosques de lariços. Raiada de sombras de árvores, a neve sob os pés deles era como um imenso tigre branco e azul. A luz do sol fulgia alaranjada entre os galhos sem folhas; era verde-mar entre as barbas pendentes de musgo. A neve pulverizada chiava sob os esquis, o ar estava ao mesmo tempo morno e vivo. E quando Spandrell emergiu dos bosques, os grandes declives se estendiam diante dele, semelhantes aos contornos de um corpo maravilhoso, e a neve virgem era lisa como uma epiderme, delicadamente granulada sob o sol baixo da tarde e toda cintilante de diamantes e lantejoulas. Ele tinha vindo na frente. À beira do bosque parou para esperar a mãe. Olhando para trás viu-a aproximar-se por entre as árvores. Uma silhueta alta e forte, ainda jovem e ágil, o rosto moço pregueado num sorriso. Mrs. Spandrell desceu na direção do filho... Era o mais lindo e ao mesmo tempo o mais simples, o mais reconfortante e familiar dos seres.
— Então? — disse ela, rindo, ao deter-se diante do rapaz.
— Então? — Ele olhou para a mãe e depois para a neve, para a sombra das árvores, para os grandes rochedos nus e para o céu azul; finalmente voltou os olhos de novo para a mãe. E de súbito se sentiu invadido por uma felicidade intensa e inexplicável.
“Nunca voltarei a ser tão feliz como agora”, disse consigo mesmo, quando ambos de novo se puseram a caminho. “Nunca mais, mesmo que eu viva cem anos.” Naquele tempo tinha apenas quinze anos; mas fora aquilo justamente o que pensara e sentira.
E as suas palavras foram proféticas. Fora aquela a sua última felicidade. Depois... Não, não. Preferia não pensar no depois. Nem no presente. Encheu de novo a xícara de chá.
O toque de uma campainha sobressaltou-o. Spandrell caminhou para a porta do apartamento e abriu-a. Era a mãe.
— Você? — Então lembrou-se subitamente de que Lucy lhe dissera alguma coisa àquele respeito.
— Não recebeu o meu recado? — perguntou mrs. Knoyle, ansiosa.
— Sim. Mas tinha-o esquecido completamente.
— Julguei que você precisasse... — principiou ela. Temia ser importuna: o rosto de Maurice tinha uma expressão nada acolhedora.
As comissuras de seus lábios se encresparam ironicamente.
— Sim, preciso. — Vivia num estado crônico de falta de dinheiro.
Passaram para outro quarto. Num relance mrs. Knoyle notou que as janelas estavam embaçadas de sujeira. Em cima da prateleira e da chaminé havia uma grossa camada de pó. Teias de aranha negras de fuligem pendiam do teto. Ela havia tentado conseguir que Maurice lhe permitisse mandar uma mulher para fazer a limpeza três vezes por semana. Mas ele respondera: “Nada dessas suas visitas sanitárias! Prefiro chafurdar... A sujeira é o meu elemento natural. Além disso, não tenho nenhuma posição militar de destaque pela qual deva zelar...”. Riu silenciosamente, mostrando os grandes dentes fortes. Aquilo era para ela... Mrs. Knoyle nunca ousara repetir o oferecimento. Mas o quarto necessitava verdadeiramente de uma limpeza.
— Você quer chá? — perguntou ele. Está pronto. Acabo de fazer a primeira refeição da manhã — acrescentou, chamando propositadamente a atenção da mãe para as irregularidades de seu modo de vida.
Ela recusou, sem arriscar nenhum comentário sobre a hora desusada do desjejum. Spandrell ficou um pouco desapontado por não ter conseguido o que pretendia. Houve um longo silêncio.
De quando em quando mrs. Knoyle lançava para o filho um olhar quase furtivo. Spandrell estava olhando fixamente para a lareira vazia. “O rapaz tem o ar envelhecido”, pensava ela, “e um aspecto terrível de doença e abandono.” Tentou reconhecer nele a criança, o rapagão colegial que ele fora naqueles tempos longínquos, quando ambos eram felizes juntos e sós... Lembrou-se da tristeza que Maurice sentia quando ela não trajava como ele achava que devia trajar, quando não estava elegante, quando não brilhava com todo o seu brilho. Maurice sentia pela mãe a mesma afeição ciumenta que esta tinha por ele. Mas a responsabilidade de sua educação era um fardo pesado para ela. O futuro a tinha sempre apavorado; mrs. Spandrell temera sempre tomar uma decisão; não tinha confiança em suas faculdades. De resto, por morte do marido não lhe ficaram senão recursos modestos; ela não tinha cabeça para negócios, nenhum talento para dirigir uma casa. Como havia de conseguir recursos para mandar o filho para a universidade, como iniciá-lo na vida? Estas perguntas a atormentavam. Passava as noites em claro, a perguntar-se a si mesma o que devia fazer. A vida a aterrorizava. Mrs. Spandrell possuía uma capacidade infantil para a felicidade, mas era também medrosa e inepta como uma criança. Quando a existência se mostrava como um feriado, ninguém podia ser mais arrebatadamente feliz do que ela; mas quando havia projetos a fazer, decisões a tomar, a pobre criatura ficava absolutamente perdida e cheia de medo. E, para cúmulo de males, depois que Maurice foi para a escola, ela se sentiu só. O rapaz ficava com a mãe apenas durante as férias. Os nove meses dos doze, ela os passava sozinha, sem ninguém a quem pudesse dar o seu amor, ninguém a não ser o seu velho cão. Por fim até mesmo este veio a faltar-lhe — caiu doente, o pobre animal, e foi preciso pôr-lhe fim aos tormentos. Foi pouco depois da morte do velho Fritz que ela conheceu o então major Knoyle.
— Você disse que trouxe o dinheiro? — perguntou Maurice, quebrando o longo silêncio.
Mrs. Knoyle corou:
— Sim, está aqui. — Abriu a bolsa. Chegara o momento de falar. Era seu dever admoestá-lo, e o maço de cédulas lhe dava esse direito, esse poder. Mas o dever era odioso e ela não tinha desejos de usar daquela força. Ergueu os olhos e fitou-os no filho com um ar implorante — Maurice, suplicou ela — por que você não pode ser razoável? Que loucura, que insensatez!
Spandrell ergueu as sobrancelhas.
— Que é que é loucura? — inquiriu ele, fingindo não saber de que se tratava.
Embaraçada por ser daquela maneira compelida a especificar as suas censuras vagas, mrs. Knoyle corou.
— Você sabe o que eu quero dizer. Este seu modo de vida. É mau, é estúpido. Que dissipação, que suicídio! Além disso, você não é feliz; eu bem o vejo.
— Não tenho então nem mesmo o direito de ser infeliz, se isso me agrada? — perguntou ele ironicamente.
— Mas quer também me fazer infeliz? — perguntou ela. — Porque, se quer, você o consegue, Maurice, você o consegue. Você me faz terrivelmente infeliz. — Vieram-lhe lágrimas aos olhos. Procurou um lenço na bolsa.
Spandrell ergueu-se de sua cadeira e começou a caminhar no quarto de um lado para outro.
— Você não pensou muito na minha felicidade, no passado...
A mãe não lhe respondeu, mas continuou a chorar em silêncio.
— Quando se casou com aquele homem — continuou ele — pensou acaso na minha felicidade?
— Você sabe que eu julguei que isso seria para o seu bem — respondeu ela com voz entrecortada. Já havia explicado aquilo muitas vezes; não podia recomeçar agora. — Você sabe — repetiu.
— Eu só sabia o que senti e disse naquele tempo — respondeu Maurice. — Você não me escutou, e agora dizes que me quiseste fazer feliz...
— Mas você foi tão pouco razoável! — protestou mrs. Knoyle. — Se tivesse me apresentado razões.
— Razões — repetiu Spandrell vagarosamente. — Você esperava sinceramente que um menino de quinze anos dissesse à sua mãe as razões pelas quais não queria que ela partilhasse a sua cama com um estranho?
Spandrell pensou naquele livro que havia circulado sub-repticiamente entre os rapazes de seu dormitório, no colégio. Enojado e cheio de vergonha, mas irresistivelmente fascinado, ele o tinha lido à noite, à luz de uma lanterna de bolso, debaixo das cobertas. Chamava-se Um internato de meninas em Paris — título bastante inocente; mas o conteúdo era pornografia pura. As proezas sexuais dos militares eram exaltadas em estilo pindárico. Um pouco mais tarde a mãe lhe escreve, dizendo que ia casar-se com o major Knoyle...
— É inútil, mamãe — disse ele em voz alta. — Não seria melhor que falássemos de outras coisas?
Mrs. Knoyle respirou profundamente e, com ar resoluto, pela última vez, enxugou os olhos e voltou a pôr o lenço na bolsa.
— Desculpe-me — disse ela. — Foi uma tolice minha. Talvez seja melhor que eu me retire.
Secretamente ela esperava que o rapaz protestasse, que lhe pedisse para ficar. Mas Spandrell não disse palavra.
— Aqui está o dinheiro... — acrescentou ela.
Spandrell tomou as cédulas dobradas e atufou-as no bolso do roupão.
— Lamento ter sido obrigado a pedir-lhe isto — disse. — Eu estava num buraco... Farei o possível para não tornar a cair nele.
Olhou para a mãe durante um momento, a sorrir, e de súbito, através da máscara gasta, ela julgou vê-lo tal qual ele tinha sido na meninice. A ternura, como uma tepidez suave, estendeu-se por todo o corpo dela — suave mas irresistível. Impossível de conter... Mrs. Knoyle pousou as mãos nos ombros do filho.
— Adeus, meu menino querido — disse. Spandrell reconheceu na voz da mãe aquela nota que ela deixava transparecer quando lhe falava do pai morto. Mrs. Knoyle inclinou-se para beijar Maurice. Voltando o rosto, ele suportou passivamente que os lábios dela lhe tocassem a face.