Capítulo XVI

os rampion moravam em chelsea. A casa deles era um grande estúdio com três ou quatro quartinhos anexos. “Um bonito recanto, na sua maneira um pouco rústica”, refletiu Burlap, ao fazer soar a campainha da porta naquela tarde de sábado. E Rampion o tinha comprado por pouco mais de nada, exatamente antes da guerra. Não pagara mais aluguéis depois da guerra. Um presente de cento e cinquenta libras líquidas por ano. “Diabo de sorte!”, pensou Burlap, esquecendo-se naquele momento de que ele próprio vivia sem pagar aluguel na casa de Beatrice e lembrando-se apenas de que tinha acabado de gastar vinte e quatro xelins e nove pence numa ceia com Molly d’Exergillod.

Mary Rampion abriu a porta.

— Mark o espera no estúdio — disse ela após a troca de saudações. “Mas por que diabo”, estava Mary a se dizer interiormente, “por que diabo ele continua a ter relações de amizade com este indivíduo? É coisa que está além de toda compreensão.” Detestava Burlap. “É uma espécie de abutre”, dissera ao marido depois da última visita do jornalista. “Não, não é um abutre, porque os abutres só comem carniça. É um parasita que se alimenta de seus hóspedes vivos, e sempre do que pode achar de melhor. E tem faro para descobrir o que há de melhor; isso eu lhe reconheço. Uma sanguessuga espiritual, eis o que ele é. Por que você deixa que ele te sugue o sangue?”

“E por que não?”, retorquira Mark. “Ele não me faz nenhum mal e me diverte.”

“Creio que ele lisonjeia a sua vaidade”, dissera Mary. “É lisonjeiro ter parasitas. É um elogio à qualidade do teu sangue.”

“E, além disso”, continuara Rampion, “ele tem algum mérito.”

“Está claro que tem”, respondera Mary. “Tem o teu sangue, entre outras coisas. E o sangue de todas as outras pessoas de quem ele se alimenta.”

“Vamos, não exagere, não seja romântica”, objetava Rampion a todas as hipérboles que não fossem as suas próprias.

“Pois bem, tudo que posso dizer é que não gosto de parasitas”, Mary falara com um tom decidido. “E a próxima vez que ele aparecer eu vou lhe jogar em cima um pouco de pó inseticida, só para ver o que acontece. Aí está...”

No entanto, a próxima vez tinha chegado e lá estava ela a abrir a porta para Burlap e a dizer-lhe que se dirigisse ao estúdio, como se se tratasse de um visitante bem-vindo. Mesmo na atavística Mary a força do hábito de polidez era mais forte do que o seu desejo de jogar pó inseticida.

Os pensamentos de Burlap, enquanto ele se dirigia para o estúdio, estavam ainda voltados para as questões financeiras. A lembrança do preço que havia pago pela ceia continuava a irritá-lo.

“Rampion não somente não paga aluguel”, pensava ele, “mas também quase nem chega a ter despesas. Vivendo como eles vivem apenas com uma criada, fazendo eles próprios a maior parte dos trabalhos domésticos e não tendo automóvel, devem mesmo gastar ridiculamente pouco. É verdade que têm dois filhos para educar.” Mas Burlap conseguia, por uma espécie de passe de prestidigitação mental em que era proficientíssimo, fazer que os dois filhos desaparecessem do campo de sua sensibilidade consciente. “E entretanto Rampion deve fazer bom dinheiro. Vende muito bem os seus quadros e desenhos. E tem um mercado regular para tudo quanto lhe apraz escrever. Que será que faz de todo esse dinheiro?”, perguntava a si mesmo com uma ponta de ressentimento enquanto batia à porta do estúdio. “Será que o guarda? Ou que fará, então?”

— Entre! — gritou a voz de Rampion do outro lado da porta.

Burlap compôs o rosto com um sorriso e abriu.

— Ah! É você — disse Rampion. — Não posso apertar a sua mão agora. — Estava limpando os pincéis. — Como está?

Burlap balançou a cabeça e disse que estava precisando de umas férias, mas que seus recursos não lhe permitiam tê-las. Caminhou pelo estúdio, olhando com ar reverente para as pinturas. A maior parte delas dificilmente teria merecido a aprovação de são Francisco. Mas que vida, que energia, que imaginação! A vida, no fim das contas, era o que importava ... “Eu acredito na vida.” Era o primeiro artigo do credo.

— Como é o título deste? — perguntou Burlap, detendo-se na frente de uma tela que se achava no cavalete.

Enxugando as mãos enquanto se aproximava, Rampion atravessou o quarto e parou ao lado de Burlap.

— Este? Bem, “Amor”, suponho que é o nome que você daria a ele... — pôs-se a rir; tinha trabalhado bem aquela tarde e estava com ótima disposição. — Mas as pessoas menos espirituais, menos refinadas, podem preferir algo mais cru... — sorrindo um sorriso arreganhado, sugeriu algumas das variantes mais cruas. O sorriso de Burlap era um tanto amarelo. — Não sei se pode encontrar outros... — concluiu Rampion maliciosamente. Na presença de Burlap, Mark achava-se divertido e ao mesmo tempo sentia que era positivamente um dever ser chocante.

Falavam de um quadro um tanto pequeno, a óleo. Embaixo, no ângulo esquerdo da tela, numa espécie de nicho entre um primeiro plano de rochas escuras e troncos de árvores e um fundo de rochedos escarpados, tendo por cima uma abóbada formada por uma massa de folhagem, duas figuras, um homem e uma mulher, estavam deitadas, abraçadas. Dois corpos nus, branco o da mulher, e o do homem de um moreno avermelhado. Esses dois corpos eram a fonte de toda a iluminação do quadro. Os rochedos e os troncos de árvores do primeiro plano se desenhavam contra a luz que emanava das figuras. O precipício, ao fundo, era dourado pela mesma luz, que tocava a face inferior da folhagem acima, lançando sombras sobre uma massa espessa de verdura. Jorrava para fora do recanto no qual o homem e a mulher se achavam, atravessando diagonalmente todo o quadro, iluminado e criando, sentia-se, pela sua radiosidade, uma flora surpreendente de rosas, de zínias e de tulipas gigantescas, com cavalos, leopardos e pequenos antílopes que iam e vinham entre as flores enormes; e mais além, uma paisagem verde que se ia aprofundando, plano após plano, até o azul, com um vislumbre de mar entre as colinas; por cima, formas de nuvens enormes e heroicas contra o céu azul.

— É bonito — disse Burlap vagarosamente, balançando a cabeça diante do quadro.

— Mas estou vendo que você o detesta. — Mark Rampion arreganhou os dentes numa espécie de triunfo.

— Mas por que você diz isso? — protestou o outro com uma tristeza suave de mártir.

— Porque é verdade. A coisa não é suficientemente “suave-Jesus” para ti. O amor, o amor físico, como fonte da luz, da vida e da beleza, oh! não, não, não! É por demais grosseiro e carnal; é lamentavelmente franco...

— Mas será que você me toma pela palmatória do mundo?

— Não pela palmatória do mundo — O bom humor de Rampion transbordou em zombaria. — Digamos: por são Francisco. Por falar nisso, como vai a vida dele que estás escrevendo? Espero que ponhas nela uma descrição bem suculenta daquele episódio em que o santo lambe os leprosos — Burlap fez um gesto de protesto. Rampion riu escancaradamente. — Para falar a verdade, o próprio São Francisco é um pouco crescido para ti. As crianças não lambem os leprosos. Só os adolescentes sexualmente pervertidos fazem isso. São Hugo de Lincoln, eis o que você é, Burlap. Ele era uma criança, você sabe, um puro e suave nenezinho. Um amorzinho de bebê que gostava de nanar no colinho de sua mamãezinha. Arregalava os olhos e mostrava-se reverente diante das mulheres, como se elas todas fossem madonas. Vinha para se deixar acariciar e beijar, a fim de que desaparecessem os seus dodóis, e para ouvir a história do pobre Jesus, ou mesmo para chupar uns goles de leite, caso houvesse algum.

— Com efeito! — protestou Burlap.

— Sim, com efeito — parodiou Rampion. Gostava de atormentar o outro, de fazer com que ele parecesse um mártir cristão que perdoava... Era bem-feito: quem o mandara entrar ali com aquela atitude de discípulo amado, quem o mandara dar mostras de uma reverência e uma admiração tão repugnantes?

— São Hugo de olhos arregalados e caminhar indeciso. Engatinhando como um bebê, todo reverente, na direção das mulheres, como se todas elas fossem madonas. Mas, apesar disso, metendo a sua mãozinha mimosa debaixo de suas saias... Vinha para orar, mas ficava para compartilhar a cama da madonnina — Rampion sabia um mundo de coisas a respeito dos casos amorosos de Burlap e tinha adivinhado outras tantas. — Meu prezado são Huguinho! Como ele vai caminhando bonitinho para o quarto de dormir e que jeitinho gracioso de bebê ele tem quando se aninha entre os lençóis! Estas coisas são demasiadamente grosseiras e pouco espirituais para o nosso Huguinho. — Atirou a cabeça para trás e desatou a rir.

— Continua, continua — disse Burlap. — Que eu não te sirva de estorvo — e à vista daquele sorriso espiritual de mártir, Rampion riu ainda mais estridentemente.

— Ora, ora, ora! — exclamou ele, ofegante. — Na sua próxima visita hei de ter para você uma cópia de Santa Mônica e Santo Agostinho de Ary Scheffer. Isso há de te fazer verdadeiramente feliz. Quer ver alguns dos meus desenhos? — perguntou Rampion em outro tom. Burlap meneou a cabeça afirmativamente. — São grotescos em sua maioria. Caricaturas. Um tanto livres, previno-te. Mas se quer vir olhar os meus trabalhos, já sabe o que te espera...

Abriu a pasta que estava sobre a mesa.

— Por que você acha que eu não gosto de teus trabalhos? — perguntou Burlap. — No fim das contas, é um crente da vida e eu também o sou. Temos as nossas diferenças, mas a respeito da maioria das questões o nosso ponto de vista é o mesmo.

Rampion ergueu os olhos para ele.

— Oh! Estou certo de que é o mesmo, sei que é. — E tornou a arreganhar os dentes.

— Bem, se sabe que é o mesmo — disse Burlap, cujos olhos, voltados para o lado, não tinham visto o sorriso aberto no rosto do outro —, por que acha que eu desaprovo os teus desenhos?

— Por que mesmo, não é? — motejou Rampion.

— Uma vez que o ponto de vista é o mesmo...

— É evidente que as pessoas que olham a paisagem do mesmo ponto devem ser idênticas. — Novo arreganhar de dentes. — Q. E. D.[16] — Tornou a virar-se para tirar um dos desenhos da pasta. — Eis o que eu chamo Fósseis do passado e fósseis do futuro. — Estendeu o desenho para Burlap. Era um trabalho a tinta, tocado com aquarela colorida, extraordinariamente brilhante e vívido. Encurvada num S magnificamente vasto, uma grotesca procissão de monstros marchava diagonalmente, atravessando o papel de cima para baixo. Dinossauros, pterodáctilos, titanortérios, diplódocos e ictiossauros caminhavam, nadavam ou voavam à cauda da procissão; a vanguarda era composta de monstros humanos, criaturas de cabeças enormes, sem membros nem corpos, rastejando como lesmas sobre prolongamentos vagamente viscosos dos seus queixos e pescoços. A maior parte tinha os rostos de contemporâneos eminentes. No meio da multidão Burlap reconheceu J. J. Thompson, lord Edward Tantamount, Bernard Shaw assistido por eunucos e solteironas, sir Oliver Lodge, servido por um fantasma de cabeça de nabo enrolado num lençol e por um tubo catódico ambulante; sir Alfred Mond e a cabeça de John D. Rockefeller, carregada sobre uma enorme travessa por um ministro batista; o dr. Frank Crane e mrs. Eddy com auréolas, e muitos outros.

— Os lagartos morreram porque tinham corpo em excesso e a cabeça demasiadamente pequena — disse Rampion, explicando. — É pelo menos o que os cientistas nunca se cansam de nos dizer. O tamanho físico é uma desvantagem, depois de certo ponto. Mas e o tamanho mental? Estes imbecis parecem se esquecer de que eles são exatamente tão desequilibrados, informes e desproporcionais como qualquer diplódoco. Sacrificam a vida física e afetiva à vida mental. Que imaginam eles que vai acontecer?

Burlap exprimiu seu assentimento com um aceno de cabeça.

— É o que sempre perguntei. O homem não pode viver sem coração.

— Para não falar nas tripas, na pele, nos ossos e na carne. Eles estão simplesmente marchando rumo à extinção. E, com mil diabos!, é uma felicidade. Mas o que há de mau no caso é que eles estão arrastando o resto do mundo consigo. Raios os partam! Devo confessar que não me agrada ser condenado à extinção só porque esses imbecis e cientistas, moralistas, espiritualistas, técnicos, esses literatos e políticos de tendências enaltecedoras e todo o resto do bando não têm o bom senso de ver que o homem deve viver como homem, não como um monstro de cerebralidade ou de alma. Brr! Eu quisera matá-los todos. — Repôs o desenho na pasta e tirou outro. — Eis aqui dois Bosquejos de história, o da esquerda segundo H. G. Wells, o da direita segundo eu.

Burlap olhou, sorriu e acabou rindo francamente.

— Ótimo!

O desenho da esquerda era composto à maneira de um simples crescendo. Um macaco minúsculo era seguido por um pitecantropo levissimamente maior, o qual, por sua vez, era seguido por um homem de Neanderthal levissimamente maior do que ele. O homem paleolítico, o homem neolítico, o egípcio da idade do bronze e o homem babilônico, o grego da idade do ferro e o homem romano — as figuras cresciam vagarosamente em tamanho. À época em que Galileu e Newton surgiram em cena, a humanidade tinha atingido dimensões bem respeitáveis. O crescendo continuava ininterrupto por intermédio de Watt e Stevenson, Faraday e Darwin, Bessemer e Edison, Rockefeller e Wanamaker, para chegar à perfeição contemporânea nas figuras do próprio mr. H. G. Wells e de sir Alfred Mond. E o futuro também não fora descurado. Através da bruma radiosa da profecia, as silhuetas de Wells e Mond, que iam ficando sempre maiores a cada repetição, se espichavam numa espiral triunfante para além do papel, rumo ao infinito utópico. O desenho da direita tinha uma composição menos otimista de picos e declínios. O minúsculo macaco bem depressa florescia num homem da idade do bronze, o qual dava lugar a um grego muito grande e a um etrusco escassamente menor. Os romanos iam ficando de novo menores. Os monges da Tebaida mal se distinguiam dos macaquinhos primitivos. Seguia-se certo número de florentinos, ingleses e franceses de bom tamanho. Vinham após estes uns monstros revoltantes denominados Calvino e Knox, Baxter e Wesley. A estatura dos homens representativos declinava. Os vitorianos tinham começado a ficar anões e disformes. Os seus sucessores do século xx eram abortos. Através das brumas do futuro podia se ver a companhia decrescente de pequenas gárgulas e de fetos cujas cabeças eram grandes demais para os seus corpos gelatinosos, e as caudas simiescas e os rostos de nossos contemporâneos mais eminentes, todos a se morder, a se arranhar e a se estripar uns aos outros com essa energia metódica e sistemática que é apanágio exclusivo dos seres mui altamente civilizados.

— Quisera eu ter um ou dois destes desenhos para o Mundo — disse Burlap, quando acabaram de examinar todo o conteúdo da pasta. — Em geral não reproduzimos desenhos. Somos francamente missionários, e não uma empresa de arte pela arte. Mas estas coisas tuas são parábolas ao mesmo tempo que pinturas. Devo dizer — acrescentou — que invejo esse poder que você tem de dizer as coisas de modo tão imediato e econômico. Eu gastaria centenas e milhares de palavras para dizer as mesmas coisas, menos vigorosamente, num ensaio.

Rampion concordou com um meneio de cabeça.

— Eis por que abandonei a pena por enquanto. As palavras não são lá muito adequadas para dizer o que eu acho que quero dizer agora. E que conforto fugir das palavras! Palavras, palavras! Elas levantam um muro entre nós e o universo. Três quartos do tempo a gente não está em contato com as coisas, mas apenas com as malditas palavras que as representam. E muitas vezes nem mesmo com elas, e sim com essa infernal algaravia metafórica dos poetas. “Vibra em cada hemistíquio um cântico nupcial”, por exemplo. Ou “E no seio nutriz da natureza bruta, resguardava o pudor teu verde coração!”. Ou então: “Uma ave negra friamente posta num busto acima dos portais”.[17] — Olhou para Burlap com os dentes à mostra. — Mesmo a “ave negra” se transformou numa abstração metafórica. “Friamente posta”, com efeito! Oh, essas palavras! Como me sinto feliz por ter fugido a elas. É como sair de uma prisão — oh! uma espécie de prisão muito elegante e fantástica, cheia de afrescos e de tapeçarias e o mais que segue. Mas a gente prefere a verdadeira campina ao ar livre. A pintura, acho eu, nos põe em real contato com ela. Posso dizer o que quero.

— Bem, tudo quanto posso fazer — disse Burlap — é fornecer um público para escutar o que você tem a dizer.

— Pobres-diabos! — exclamou Rampion, rindo.

— Mas eu acho que eles devem escutar. Tem-se uma grande responsabilidade. Eis a razão por que eu gostaria de publicar alguns dos teus desenhos no Mundo Literário. Sinto que isso é realmente um dever.

— Oh! se é uma questão de imperativo categórico — disse Rampion, rindo de novo —, está claro então que deve fazê-lo. Leve o que te agradar. Quanto mais chocantes forem os desenhos que publicares, mais prazer hei de sentir.

Burlap balançou a cabeça.

— Devemos começar suavemente — redarguiu. Não acreditava na vida a ponto de correr o risco de reduzir a circulação do jornal...

— Suavemente, suavemente... — repetiu o outro, num tom de mofa. — Vocês jornalistas são todos os mesmos. Nada de solavancos. A segurança antes de tudo. Literatura sem dor. Nada de preconceitos extraídos a frio ou de ideias pregadas a martelo: é preciso um anestésico. Os leitores devem ser mantidos permanentemente num estado de sono crepuscular. Vocês todos são um caso perdido.

— Um caso perdido — repetiu Burlap, num tom de penitência —, eu sei. Mas ai! É preciso transigir um pouco com o mundo, a carne e o diabo.

— Pouco se me dá que você faça isso ou não — respondeu Rampion. — O que me indigna é a maneira repugnante por que vocês transigem com o céu, com a respeitabilidade e com Jeová. Enfim, suponho que em tais circunstâncias nada podes fazer... Leve o que você quiser.

Burlap fez a sua escolha.

— Levo estes — disse por fim, erguendo três dos desenhos menos polêmicos e escandalosos. — Fica bem?

Rampion deitou-lhe os olhos.

— Se esperasse mais uma semana — resmungou ele —, eu teria uma cópia de Ary Scheffer pronta para ti.

— Eu temo — disse Burlap com aquela expressão de espiritualidade pensativa que sempre lhe vinha ao rosto quando ele começava a falar a respeito de dinheiro —, temo que eu não possa pagar muito por estes trabalhos...

— Ah! Ora... Estou acostumado a isso. — Rampion deu de ombros. Burlap ficou satisfeito por ver que o outro encarava a coisa daquela maneira. E no fim das contas, refletiu ele, era verdade. Rampion não estava habituado a ganhar muito. E depois, com aquele seu modo de vida não precisava mesmo de muito... Não tinha automóvel, não tinha criados...

— Seria de desejar que se estivesse em condições... — disse em voz alta, refugiando-se no impessoal. — Mas o jornal... — Balançou a cabeça. — Tentar persuadir o público a amar as coisas elevadas, quando eles veem que isso não compensa... Pode-se conseguir quatro guinéus por desenho.

Rampion riu-se.

— Não é exatamente uma oferta principesca... Mas leva-os. Leva-os de graça, se você quiser.

— Não, não — protestou Burlap. — Eu não faria isso. O Mundo não vive de caridade. Paga o que publica — não paga muito, coitado!, mas paga sempre um pouco; paga um pouco. É uma questão de princípio — continuou ele, balançando a cabeça—, mesmo que eu tenha de tirar dinheiro do meu próprio bolso. É uma questão de princípio. Absolutamente de princípio — insistiu, contemplando com um frêmito de satisfação legítima o íntegro e altruístico Denis Burlap, que pagava os colaboradores do seu próprio bolso e em cuja existência ele, enquanto falava, estava começando a acreditar. Continuou a falar, e a cada uma de suas palavras os contornos daquele Burlap magnificamente pobre, mas honesto, se tornavam mais claros diante da sua visão interior; e ao mesmo tempo o Mundo arrastava-se, aproximando-se cada vez mais das bordas da insolvência, a conta do jantar crescia de momento para momento e seus rendimentos particulares diminuíam correlativamente...

Rampion o contemplava com curiosidade. “Por que diabo estará ele agora a meter no corpo a chicote essa fúria toda?”, perguntava a si mesmo. Uma explicação possível subitamente lhe ocorreu. Quando Burlap parou para respirar, Rampion balançou a cabeça com simpatia:

— Você precisa é de um capitalista. Se eu tivesse algumas centenas ou alguns milhares de libras disponíveis, empregava-as no Mundo. Mas, ai de mim!, não tenho. Nem seis pence — concluiu ele, quase triunfalmente. E a expressão de simpatia se transformou de repente num sorriso largo de dentes arreganhados.

*

Naquela noite Burlap se atirou à questão da pobreza franciscana. “De pés descalços pelas colinas da Úmbria ela caminha, a Senhora Pobreza.” Era assim que começava o seu capítulo. Sua prosa, em momentos de exaltações, tendia a transformar-se em versos brancos. “Pousam seus pés nas alvas estradas poeirentas que lembram, a quem as contempla dos muros das pequenas cidades, brancas fitas estiradas lá embaixo na planura.”

Seguiam-se referências às oliveiras nodosas, às vinhas, aos campos terraplenados, aos “grandes bois brancos com os seus cornos recurvos”, aos burrinhos que carregavam pacientemente as suas cargas, subindo as estradas pedregosas, às montanhas azuis, às cidades que repousam sobre as colinas, na distância — cada uma delas como uma pequena Nova Jerusalém num livro de gravuras —, às águas clássicas de Ceitumnus e às ainda mais clássicas águas de Traismene. “Eis aí uma terra” continuou Burlap “e uma época em que a pobreza era um ideal admissível, praticável. A terra provia a todas as necessidades dos que viviam dela, havia pouca especialização profissional; cada camponês era, em larga medida, seu próprio manufator, do mesmo modo que era o seu próprio açougueiro, padeiro, verdureiro e vinhateiro. Uma sociedade na qual o dinheiro era ainda relativamente sem importância. A maioria o dispensava quase por completo. Negociava-se diretamente com as coisas — os objetos domésticos de próprio fabrico e os tenros frutos da terra, e não se tinha assim nenhuma necessidade dos metais preciosos que compram as coisas. O ideal de pobreza de são Francisco era então praticável, porque ele propunha à admiração geral um modo de vida que não diferia enormemente do modo de vida efetivo, dos seus mais humildes contemporâneos. Ele convidava os membros ociosos da sociedade e aqueles que tinham uma especialização profissional — os que viviam principalmente em função do dinheiro — a viver como os seus inferiores estavam vivendo, em função das coisas. Como é diferente a situação de hoje!” Burlap caiu uma vez mais no verso branco, levado dessa vez pela indignação, e não pela ternura lírica. “Somos todos especialistas que vivemos em função somente do dinheiro, e não das coisas reais, e habitamos abstrações remotas, e não o mundo verdadeiro que produz e que fabrica.” Garatujou alguma coisa a respeito das “grandes máquinas que, tendo sido escravas do homem, são agora suas tiranas”, a respeito da estandardização, da vida industrial e comercial e de seu efeito esterilizante sobre a alma humana (e para este último ponto Burlap pediu emprestadas algumas das frases favoritas de Rampion).

O dinheiro, concluiu Burlap, era a raiz de todo o mal; a fatal necessidade, sob a qual o homem agora trabalha, de viver em função do dinheiro e não das coisas reais. “Aos olhos modernos os ideais de são Francisco parecem fantásticos, terrivelmente insanos. A Senhora Pobreza foi rebaixada pelas circunstâncias modernas até a semelhança de uma jornaleira de sapatos furados que usa avental de estopa... Nenhum homem sensato sonharia em segui-la. Idealizar uma Dulcineia tão repulsiva seria mostrar-se mais louco do que o próprio Dom Quixote. Dentro da nossa sociedade moderna o ideal franciscano é impraticável. Tornamos a pobreza detestável. Mas isto não significa que possamos simplesmente desdenhar são Francisco como se ele fosse um visionador de sonhos loucos. Não. Pelo contrário, a insanidade é nossa e não dele. Ele é o médico no manicômio. Para os lunáticos o médico parece ser o único louco. Quando recobrarmos a razão, haveremos de compreender que ele era o único homem são. Nas condições atuais o ideal franciscano é inexequível. A moral disso é que as condições devem ser alteradas, radicalmente. Nosso alvo deve ser criar uma nova sociedade na qual a Senhora Pobreza seja não a sórdida jornaleira, mas sim uma forma esplêndida de luz, de graça e de beleza. Oh, Pobreza, Pobreza, linda Senhora Pobreza...”

Beatrice entrou para dizer que a ceia estava na mesa.

— Dois ovos — comandou ela, exprimindo a sua solicitude no tom vivo e cortante da voz. — Dois, faço questão. Foram feitos especialmente para você.

— Você me trata como ao filho pródigo — disse Burlap. — Ou como ao bezerro gordo quando estava sendo engordado. — Balançou a cabeça, sorriu o seu sorriso à Sodoma e se serviu do segundo ovo.

— Quero pedir a sua opinião a respeito de algumas ações de uma companhia de gramofones que eu tenho — disse Beatrice. — Elas têm subido com tanta violência...

— Gramofones! — disse Burlap. — Ah...

E deu a sua opinião.