Capítulo xxi
— há um mês — disse elinor, enquanto o táxi saía da estação de Liverpool Street — estávamos em Udaipur.
— Não há dúvida de que parece inverossímil — volveu Philip, concordando com a ideia que a observação da mulher trazia implícita.
— Esses dez meses de viagem passaram como uma hora no cinema. Olha ali o cais. Chego a duvidar de que estive fora... — Suspirou. — É uma sensação um tanto aflitiva.
— Você acha? Suponho que já me acostumei a isso. Parece-me sempre que o passado não existe. — Alongou o pescoço pela portinhola. — Para que perder tempo com o Taj Mahal quando temos a catedral de São Paulo para olhar? Que maravilha!
— E aquele maravilhoso branco e negro da pedra...
— Sim, dir-se-ia uma gravura. Duplamente uma obra de arte. Não apenas arquitetura, mas uma arquitetura representada em água-forte. — Inclinou-se para trás. — Eu pergunto a mim mesmo com frequência se alguma vez cheguei a ter uma infância — prosseguiu, voltando à conversação precedente.
— É porque nunca pensas nela. Há um mundo de coisas de minha infância que para mim são mais verdadeiras que este nosso Ludgate Hill. Mas acontece que eu penso nisso constantemente.
— É verdade — disse Philip. — Não procuro recordar com frequência. Para falar a verdade, quase nunca. Parece-me que sempre tenho coisas demais a fazer, coisas demais em que pensar.
— Você não tem piedade natural. E eu quisera que tivesse...
Rolaram ao longo do Strand. As duas igrejinhas velhas protestavam contra a massa toda nova da “Australia House”, mas em vão. No pátio do King’s College, um grupo de rapazes e de moças estava sentado ao sol, esperando o professor de Teologia Pastoral. À entrada da plateia do Gaiety havia já algumas pessoas enfileiradas, formando um começo de cauda; os cartazes anunciavam a quadringentésima representação de A menina de Biarritz. Ao lado do Savoy, observou Philip, podia-se ainda comprar um par de botinas por doze xelins e meio. Em Trafalgar Square os repuxos jorravam, os leões de sir Edwin Landseer dardejavam suavemente seu olhar feroz, o amante de lady Hamilton estava empoleirado lá no alto, entre as nuvens, como são Simeão Estilita. E, atrás da austera colunata da National Gallery, os cavaleiros de Uccello combatiam esquecidos do tempo que fugia, Rubens raptava as suas sabinas, Vênus se mirava em seu espelho e, no meio dos anjos de Piero que cantavam em coro, Jesus nascia, dentro de um mundo magicamente encantador.
O veículo obliquou para descer em Whitehall.
— Gosto de pensar em todos esses burocratas.
— Pois eu não — disse Elinor.
— Escrevendo, escrevendo... — continuou Philip —, escrevendo desde a manhã até a noite a fim de que possamos viver com liberdade e conforto. Escrevendo, escrevendo... O resultado é o Império Britânico. Que bem-estar sentimos em viver num mundo em que podemos delegar a outrem tudo o que é aborrecível, desde a necessidade de governar até a fabricação de salsichas!
À porta dos Horse Guards, as sentinelas a cavalo tinham o ar de figuras empalhadas. Perto do Cenotáfio achava-se uma senhora de idade madura, os olhos erguidos, murmurando uma oração por cima da kodak com a qual se propunha tirar um instantâneo das almas dos novecentos mil mortos. Um sikh de barba negra e turbante cor de malva pálida saiu da casa Grindley no momento em que Philip e Elinor passavam. Pelo Big Ben, eram onze horas e vinte e sete minutos. Haveria algum marquês a dormitar na biblioteca da Câmara dos Pares? Um ônibus despejou os seus americanos à porta da abadia de Westminster. Olhando para trás, pela janelinha traseira da capota, Philip e Elinor puderam ver que o hospital estava ainda em necessidade urgente de fundos.
A casa de John Bidlake ficava na Grosvenor Road, com vista para o rio.
— Pimlico — disse Philip meditativamente, ao se aproximarem da casa. Riu. — Você se lembra daquela canção ridícula que teu pai citava sempre?
— “Vamos todos a Pimlico” — cantarolou Elinor.
— “Uma estrofe falta aqui”. É preciso não esquecer isto! — Riram ambos, lembrando-se dos comentários de John Bidlake.
— “Uma estrofe falta aqui...” Falta em todas as antologias. Nunca pude descobrir o que se passou quando eles chegaram a Pimlico. Durante muitos anos fiquei a pensar nisso, febrilmente. Não há nada como o bowdlerismo para inflamar a imaginação.
— Pimlico — repetiu Philip. — “O velho Bidlake”, pensou ele, “tinha feito de Pimlico uma espécie de olimpo rabelaisiano. Gostava da expressão. Mas, para o uso público, ele preferia gargantuesca a rabelaisiana. Aos que não o tinham lido nunca, Rabelais não evocava senão a ideia de pornografia. Um olimpo gargantuesco, então. Tinha-se pelo menos notícias de que Gargântua era grande.”
Mas o John Bidlake que eles encontraram sentado perto da estufa, no seu estúdio, não tinha nada de olímpico; sua estatura, em vez de sobre-humana, parecia antes um tanto minguada. Deixou-se beijar pela filha e apertou molemente a mão do genro.
— Folgo em ver vocês de novo — declarou ele. Mas não havia nenhuma ressonância na sua voz; aquele eco tonitruante de risos joviais estava ausente dela. Ele falava sem nenhum entusiasmo. Seus olhos estavam sem lustro e estriados de sangue. O velho Bidlake tinha uma aparência de magreza; estava cinzento.
— Como vai, papai? — Elinor ficou surpresa e cheia de pena. Nunca vira o pai em tal estado.
— Mal... — respondeu ele, balançando a cabeça —, mal... Há qualquer coisa que não funciona bem aqui dentro. — Mostrou o ventre. O velho leão subitamente se pôs a rugir, conforme a sua maneira habitual. — Fazer a gente andar vida afora carregando um montão de tripas! Eu sempre quis mal a Deus por causa dessas brincadeiras de mau gosto... — O rugido se fez queixa. — Não sei o que está acontecendo às minhas vísceras agora. Mas é qualquer coisa de muito desagradável. — A queixa degenerou quase em lamúria. — Eu me sinto desgraçado.
John Bidlake descreveu com minúcia os sintomas de seu mal.
— Consultou um médico? — perguntou Elinor, quando o pai terminou.
O velho negou com a cabeça.
— Não acredito nos médicos. Nunca fazem bem nenhum à gente. — A verdade era que ele tinha um terror supersticioso dos médicos. Detestava vê-los em casa: eram aves agourentas.
— Mas você devia chamar, falando sério!
Elinor tentou convencê-lo.
— Bom — consentiu por fim o velho Bidlake, resmungando. — Que venham os charlatães. — Mas secretamente sentia certo alívio. Havia já algum tempo que desejava consultar um médico; mas até então a superstição tinha sido mais forte que esse desejo. O feiticeiro de mau agouro podia vir agora, não a chamado seu, mas de Elinor. A responsabilidade não era sua; não seria, portanto, sobre ele que a desgraça havia de cair. A religião particular do velho Bidlake era obscuramente complicada.
Começaram a falar de outras coisas. Agora que sabia poder consultar um médico em segurança, John Bidlake se sentia melhor e mais animado.
— Estou inquieta com ele — disse Elinor no táxi que a levou em companhia do marido.
Philip concordou com um meneio de cabeça.
— Ter setenta e três anos não é brincadeira. Ele começa a aparentar a idade que tem.
“Que cabeça!”, pensava Philip. Quisera ser pintor. A literatura era impotente para reproduzir aquilo. Poder-se-ia descrever, é claro, a menor ruga. Mas a que resultado se chegaria dessa maneira? A nenhum. As descrições são coisa lenta; um rosto é instantaneamente percebido. Uma palavra, uma simples frase — era o de que se precisava. “A glória que foi a Grécia, agora decrépita.” Esta, por exemplo, diria já alguma coisa do homem. Mas, naturalmente, não bastava. As citações têm em si alguma coisa de chistosamente pedante. “Uma estátua em pergaminho” — seria melhor esta... “A estátua em pergaminho daquele que outrora fora Aquiles estava sentada, encolhida, ao pé da estufa...” Sim, aproximava-se do objetivo. Nada de descrições de longo fôlego. Mas, para quem quer que alguma vez tivesse visto um molde em gesso do Discóbolo, para quem quer que tivesse manejado um livro encadernado em pergaminho e ouvido falar de Aquiles, John Bidlake tornava-se visível naquela única frase. Mas e os que nunca haviam visto a estátua grega, nem lido nada sobre Aquiles num livro de capa de couro de carneiro enrugado? Pois esses... podiam ir para o diabo!
“Apesar de tudo”, pensava Philip, “é demasiadamente literário. Cultura em excesso.”
Elinor rompeu o silêncio.
— Eu só queria saber é como vou encontrar Everard, agora que ele se tornou um grande homem. — Via em imaginação aquele rosto ardente, aquele corpo enorme mas ágil. Rapidez e violência... E Webley estava apaixonado por ela. E ela?... Gostava daquele homem? Ou detestava-o?
— Pois queria só saber se ele já se pôs a puxar as orelhas do povo, como Napoleão... — disse Philip, rindo. — Em todo caso não passa de uma questão de tempo.
— Apesar de tudo, gosto dele. — A zombaria de Philip lhe tinha fornecido uma resposta à sua própria pergunta.
— Eu também gosto dele. Mas será que não posso rir quando tenho vontade?
— Você também ri de mim. É porque gosta de mim?
Philip tomou a mão da esposa e beijou-a.
— Eu te adoro e nunca rio de você. Levo-a perfeitamente a sério.
Elinor olhou para ele sem sorrir.
— Há momentos em que você me deixa desesperada. Que faria se eu fosse embora com outro homem? Isso te importaria, um bocadinho que fosse?
— Eu me sentiria verdadeiramente desgraçado.
— É verdade? — Elinor fitou os olhos nele. Philip sorria; estava mil quilômetros afastado... — Pois tenho vontade de fazer a experiência — acrescentou ela, enrugando a testa. — Mas será que você se sentiria mesmo desgraçado? Eu queria ter certeza disso antes de começar...
— E quem seria o seu companheiro de experiência?
— Ah! Eis a dificuldade. A maioria dos outros homens é tão insuportável...
— Que elogio!
— Mas você também é insuportável, Phil! Você é o mais insuportável de todos, para falar a verdade. E o pior é que eu te amo, apesar de tudo. E você sabe. Sim, e você explora essa circunstância.
O carro parou à beira da calçada. Elinor estendeu a mão para tomar o seu guarda-chuva.
— Mas tome cuidado — continuou ela, levantando-se. — Eu não te deixarei abusar de mim indefinidamente. Não quero continuar toda a minha vida a dar muito a troco de nada. Um destes dias eu me ponho à procura do “outro”...
Saltou para a calçada.
— Por que não experimenta Everard? — caçoou ele, seguindo-a com os olhos pela portinhola do veículo.
— Talvez experimente. Sei que Everard não deseja outra coisa.
Philip pôs-se a rir e atirou-lhe um beijo com a ponta dos dedos.
— Diga ao chofer que me leve ao clube.
Everard fê-la esperar quase dez minutos. Quando acabou de pôr um pouco de pó no rosto, Elinor explorou curiosamente a sala. As flores estavam abominavelmente mal arranjadas. E aquela vitrina cheia de velhos sabres, de punhais, de pistolas guarnecidas de incrustações, era horrenda, como um mostruário de museu; era uma monstruosidade, embora fosse ao mesmo tempo e de certo modo tocantemente absurda. Desde o colégio Everard conservava a ambição de correr mundo a cavalo e de decepar cabeças aqui e ali; a vitrina o denunciava. O mesmo acontecia com aquela mesa de plancha de vidro, com seu tabuleiro cheio de medalhas e moedas, sob uma coberta de cristal. Com que orgulho ele lhe tinha mostrado seus tesouros! Havia lá a tetradracma macedoniana, com a cabeça de Alexandre, o Grande, na atitude de Hércules; o sestércio do ano 44 antes da nossa era, com o perfil formidável de César, e, ao lado dele, o real de Edward iii, estampado com a efígie do navio que simbolizava o início do poderio marítimo da Inglaterra. E lá estava ainda, sobre a medalha do Pisanello, Sigismundo Malatesta, o mais belo dos rufiões; e mais a rainha Elizabeth com sua golilha alta, um Napoleão com louros na cabeça, e o duque de Wellington. Elinor sorriu afetuosamente para aquelas figuras; eram velhos amigos. O que havia de agradável em Everard, pensava Elinor, era que com ele a gente sempre sabia a quantas estava. Webley era sempre, e de maneira perfeitamente definida, ele mesmo; vivia à altura de sua reputação. Elinor abriu o piano e tocou um par de acordes: o instrumento estava desafinado, como de costume.
Sobre a mesinha perto da chaminé havia um volume dos últimos Discursos e proclamações de Everard. Elinor tomou do livro, folheou-o. “A política dos Ingleses Livres”, leu ela, “pode-se resumir assim: socialismo sem democracia política e nacionalismo sem insularidade.” Aquilo soava bem. Mas, se ele tivesse escrito: “democracia política sem socialismo, e insularidade sem nacionalismo”, ela o teria admirado provavelmente com a mesma sinceridade. Ah, aquelas abstrações! Elinor balançou a cabeça e suspirou. — “Devo ser uma tola”, pensou. Mas aquelas abstrações eram efetivamente destituídas de sentido para ela. Absolutamente vazias. Palavras, nada mais que palavras. Voltou a página: “O sistema dos partidos funciona bastante bem quando os partidos são simplesmente dois grupos de oligarcas rivais, que pertencem à mesma classe, que têm no fundo os mesmos interesses e o mesmo ideal, e que lutam um contra o outro pelo poder. Mas quando os partidos se identificam com as classes e aplicam de modo rigoroso os princípios partidários, o sistema se torna um absurdo. Pelo fato de eu me sentar de um lado na Câmara e você do outro, sou compelido a admitir o individualismo com exclusão de toda interferência do Estado, e você é constrangido a admitir a interferência do Estado com exclusão de todo individualismo; sou obrigado a admitir o nacionalismo, mesmo o nacionalismo econômico (que é um absurdo), você é compelido a admitir o internacionalismo, mesmo o internacionalismo político (que não é um absurdo menor); sou forçado a admitir a ditadura dos ricos (com a exclusão dos inteligentes), você é levado a aceitar a ditadura dos pobres (igualmente com exclusão dos inteligentes). Tudo isso pela razão simplíssima, e politicamente inconsequente, de eu ser da direita e você da esquerda. Em nossos parlamentos, os direitos da topografia são mais fortes do que os do bom senso. Eis os benefícios do moderno sistema de partidos. E o alvo dos Ingleses Livres é abolir esse sistema, bem como o parlamentarismo corrompido e impotente que lhe serve de corolário”.
“Tudo isso parecia certo”, pensou Elinor; mas ficou a perguntar a si mesma, não obstante, por que motivo as pessoas se atormentavam com coisas daquele gênero. Em lugar de viver, simplesmente viver. Mas, segundo parece, quando se é homem, acha-se aborrecido simplesmente viver. Elinor reabriu o livro, mais ou menos no meio. “Cada uma das liberdades inglesas foi adquirida ao preço de uma nova escravidão. A destruição do feudalismo fortificou a Coroa. Durante a Reforma nos desembaraçamos da infalibilidade papal, mas nos curvamos ao peso do direito divino dos reis. Cromwell esmagou o direito divino dos reis, mas impôs a tirania dos proprietários de terras e das classes médias. A tirania dos proprietários de terra e das classes médias está em via de destruição rápida, a fim de que tenhamos a ditadura do proletariado. Uma infalibilidade nova, não mais a do papa, mas sim a da maioria, foi proclamada — uma infalibilidade na qual somos obrigados a acreditar pela lei. — Os Ingleses Livres juraram fazer triunfar uma nova Reforma e uma nova revolução política. Nos desembaraçaremos da ditadura do proletariado como nossos pais se desembaraçaram do direito divino dos reis. Negaremos a infalibilidade da maioria como eles negaram a infalibilidade papal. Os Ingleses Livres se batem...” Elinor sentiu alguma dificuldade no voltar a página... “Por que se batiam eles?”, perguntou ela a si mesma. Pela ditadura de Everard e a infalibilidade de Webley?... Soprou as páginas recalcitrantes, que se abriram enfim... “pela justiça e pela liberdade. Sua política é que os homens de mais valor devem governar, qualquer que seja a sua origem. Todas as carreiras, numa palavra, devem ser largamente abertas aos talentos. Eis a justiça. Eles exigem que cada problema seja tratado objetivamente, sem referência aos prejuízos tradicionais de partidos nem à opinião sem valor das maiorias estúpidas. Eis a liberdade. Os que imaginam que a liberdade é sinônimo de sufrágio universal...” Uma porta bateu; uma voz forte ressoou no vestíbulo. Houve um ruído de passos precipitados na escada; a casa tremeu. A porta do salão foi aberta violentamente, como se uma bomba tivesse explodido do outro lado. Everard Webley entrou, numa torrente de ruidosas desculpas e boas-vindas.
— Como me posso desculpar? — gritou ele, tomando as mãos de Elinor. — Mas, se soubesse em que turbilhão eu vivo! Como é maravilhoso tornar a ver-te! E você não mudou nada. Encantadora como sempre. — Pousou no rosto dela um olhar profundo e intenso. — Os mesmos olhos pálidos e serenos, os mesmos lábios cheios e melancólicos... E está com uma aparência maravilhosa!
Elinor correspondeu-lhe ao sorriso. Everard tinha os olhos de um castanho muito escuro; vistos de uma certa distância, pareciam inteiramente tomados pelas pupilas. “Bonitos olhos, mas um pouco inquietadores”, pensava ela, “por causa de sua fixidez intensa, brilhante, vigilante.” Ela mergulhou por um segundo o olhar neles, depois desviou-o.
— Você também — disse —, sempre o mesmo. É verdade que não vejo por que devêramos ter mudado. — Tornou a encarar Webley e viu que ele a olhava sempre com intensidade. — Dez meses em viagem pelos trópicos não é o bastante para nos transformar em outra pessoa...
Everard pôs-se a rir.
— Felizmente! Demos graças aos céus! E agora, desçamos para o almoço.
— E Philip? — perguntou ele, quando o peixe foi servido. — Também é o mesmo de sempre?
— Um pouco mais o mesmo, se isso é possível.
Everard meneou a cabeça.
— Um pouco mais... Sim, compreendo... Era de se esperar. O fato de ver negros passeando sem calças deve tê-lo feito ainda mais cético do que era quanto às verdades eternas.
Elinor sorriu, mas ao mesmo tempo ficou um pouco ofendida pela zombaria.
— E que efeito produz em você o fato de ver tantos ingleses passeando de uniforme verde-ervilha?
Everard desandou a rir.
— Isso fortifica a minha crença nas verdades eternas, está claro.
— Verdades das quais você é uma, não?
O homem fez com a cabeça um sinal afirmativo.
— Das quais sou uma, naturalmente. — Olharam um para o outro, sorrindo. Foi Elinor que, de novo, afastou primeiro o olhar.
— Obrigada pela informação. — Ela mantinha o tom de ironia. — Eu podia não ter adivinhado por mim mesma.
Houve um pequeno silêncio.
— Não imagine — disse ele por fim, com um tom que não era mais trocista, mas sério — que me vai enraivecer chamando-me de presunçoso. — Everard falava docemente; mas sentiam-se nele enormes reservas em potência. — Outros poderiam conseguir isso, talvez. Mas é que não gostamos de ser incomodados pelos animais inferiores. Esmagamo-los. Com seres humanos, nossos iguais, é diferente: com eles discutimos as coisas racionalmente.
— Que alívio ouvir de você estas palavras! — riu Elinor.
— Acha que eu tenho muita prosápia. E isso deve ser verdade num certo sentido. Mas o que há de grave é que sei muito bem que meu orgulho é justificado, sei por experiência. A modéstia é prejudicial, quando falsa. Milton diz que “nada é mais proveitoso do que a estima de si mesmo fundada sobre a justiça e o direito”. Sei que a minha repousa sobre a justiça e o direito. Sei, estou absolutamente convencido disso, que posso fazer o que quero. Para que negar esta convicção? Vou tornar-me senhor, vou impor a minha vontade. Tenho resolução e coragem. E em muito pouco tempo terei a força organizada. Assumirei, então, o controle. Eu sei; por que haveria de fingir que ignoro? — Inclinou-se para trás na cadeira. Houve um longo silêncio.
“É absurdo”, pensava Elinor, “é ridículo falar dessa maneira.” Era o protesto de sua inteligência crítica contra seus sentimentos. Porque seus sentimentos tinham sido estranhamente tocados. As palavras de Webley, o tom da sua voz, tão macio, deixando adivinhar entretanto, sob sua suavidade, tantas reservas latentes e vibrantes de força e paixão, a tinham conquistado. Quando ele dissera: “Vou tornar-me senhor”, foi como se ela houvesse tomado um trago de vinho quente e capitoso, tal fora o calor que subitamente lhe formigara no corpo todo. “É ridículo”, repetia ela interiormente, tentando tirar de Webley uma desforra da conquista fácil, tentando punir os traidores que moravam dentro de sua própria alma e que tinham capitulado tão facilmente. Mas o que estava feito era impossível de se desfazer de maneira completa. As palavras podiam ser ridículas, mas o fato era que, quando ele as pronunciara, Elinor tinha vibrado de admiração súbita, de emoção, de um desejo estranho de exultar e de rir forte.
O criado trocou os pratos. Falaram de coisas indiferentes — da viagem de Elinor, dos acontecimentos de Londres durante sua ausência, de amigos comuns. Veio o café; ambos acenderam os seus cigarros; houve um silêncio. De que modo seria ele quebrado? Elinor ficou a pensar nisso com apreensão. Ou melhor, não pensou, pois já sabia, e foi esse conhecimento profético que lhe deu tanta apreensão. Talvez pudesse frustrá-lo, rompendo ela mesma o silêncio. Era possível que, continuando a palestrar rapidamente, conseguisse manter a conversação num plano neutro até que chegasse a hora de ela partir. Mas lhe pareceu de súbito que não havia mais nada a dizer. Elinor se sentiu como que paralisada pela aproximação do acontecimento inevitável. Nada mais podia fazer senão ficar sentada e esperar. E por fim o inevitável aconteceu, como devia acontecer.
— Você se lembra — perguntou ele lentamente, sem erguer os olhos — do que eu te disse antes de tua partida?
— Julguei que tivéssemos combinado não voltar a falar nisso...
Everard jogou a cabeça para trás, com uma pequena risada.
— Pois você se enganou. — Olhou-a e leu nos olhos dela uma expressão de angústia e de inquietude, um apelo à sua demência. Mas foi implacável. Fincou os cotovelos na mesa e se inclinou para ela.
Elinor baixou os olhos.
Com sua voz macia cheia de reservas latentes de violência, ele falou:
— Você me disse que não mudei, no que diz respeito à fisionomia. Pois bem, meu coração também não mudou. Ficou o mesmo, Elinor, sempre o mesmo como no momento em que você partiu. Eu te amo tanto quanto te amei sempre, Elinor. Não, eu te amo mais. — Ela estendera a mão para a frente, pousando-a na mesa. Webley estendeu também uma das suas e tomou a de Elinor. — Elinor... — murmurou.
Ela balançou a cabeça sem olhar para o amigo.
Docemente, apaixonadamente, ele continuou a falar:
— Você não sabe o que pode ser o amor. Você não sabe o que eu posso te dar. O amor que é desesperado e louco, como uma esperança derradeira. E ao mesmo tempo terno, como o de uma mãe para com o filho doente... O amor que é violento e suave, violento como um crime e suave como o sono.
“Palavras”, pensava Elinor, “palavras absurdas, melodramáticas.” Mas elas comoviam, como a lisonja dele a tinha comovido.
— Por favor, Everard — disse em voz alta —, cale-se. — Não queria ser comovida. Fez um esforço para manter o olhar firme, ao passo que observava o rosto dele, seus olhos vivos e escrutadores. Tentou um sorriso, balançou a cabeça. — Porque é impossível, e você bem sabe.
— Tudo o que sei — disse ele lentamente — é que você tem medo. Medo de vir para a vida. Porque você viveu meio morta, todos estes anos. Não teve a menor oportunidade de despertar plenamente para a vida. E sabe que eu posso te dar. Você tem medo. Tem medo.
— Que tolice!
Aquilo tudo era bombástico, melodramático.
— E talvez tenha razão, em certo sentido. Estar vivo, verdadeiramente vivo, não é brincadeira. É perigoso. Mas, por Deus! — e toda a violência latente de sua voz doce vibrou de súbito, solta, numa realidade sonora —, é sensacional.
— Se soubesse que susto você me deu! Gritando dessa maneira... — Mas não fora apenas susto o que ela sentira. Seus nervos e a sua própria carne palpitavam ainda às sensações obscuras e violentas de exultação que a voz de Webley tinha despertado nela. “É ridículo”, pensava Elinor, para se tranquilizar. Mas era como se ela tivesse ouvido aquela voz diretamente com todo o seu corpo. Os ecos pareciam ressoar no seu próprio diafragma... “Ridículo”, repetiu ela... E, depois, que era aquele amor de que ele falava de uma maneira tão vibrante? Apenas um breve interlúdio de violência, nos intervalos dos negócios. Everard desprezava as mulheres, queria-lhes mal porque elas desperdiçavam o tempo e a energia de um homem. Elinor muitas vezes lhe ouvira dizer que não tinha tempo para se ocupar com o amor. Suas investidas eram quase um insulto, como as propostas que se fazem a uma mulher da rua.
— Seja razoável, Everard — disse ela.
Everard retirou sua mão da de Elinor e depois, com uma risada, jogou-se para trás na cadeira.
— Muito bem. Por hoje.
— Para sempre. — Ela se sentiu profundamente aliviada. — De resto — acrescentou, citando uma frase de Webley com um leve sorriso irônico —, você não é um membro da classe ociosa... Tem coisas mais importantes a fazer do que se ocupar com o amor.
Everard olhou-a por alguns instantes em silêncio, e seu rosto se fez grave, com um ar de ameaça pensativa. Coisas mais importantes a fazer? Era verdade, sem dúvida. Estava zangado consigo mesmo por desejá-la tão violentamente. E zangado também com Elinor por deixá-lo assim insatisfeito.
— Devemos falar sobre Shakespeare? — perguntou ele, sarcástico. — Ou sobre o copofone?
*
O preço da corrida foi três xelins e seis pence. Philip deu ao condutor duas meias coroas e subiu os degraus do pórtico de seu clube, perseguido pelas palavras de agradecimento. Tinha por hábito dar gorjetas generosas. Não era por ostentação, nem porque tivesse pedido ou tencionasse pedir serviços especiais. (Realmente, poucos homens conseguiriam ser menos exigentes do que Philip para com os criados, muito poucos poderiam suportar com mais paciência um serviço malfeito e mostrar-se mais dispostos a desculpar negligências.) Nele a gorjeta generosa era a expressão material de uma espécie de desdém carregado de remorsos e de desculpas. “Meu pobre diabo!”, parecia querer dizer a gratificação pródiga “lamento muito ser teu superior”. E talvez Philip desse também um xelim em reparação da sua própria indulgência para com os criados. Porque, se ele era pouco exigente, isso se devia tanto ao pavor e à aversão que lhe inspirava todo contato humano não absolutamente necessário, como aos sentimentos de consideração e polidez. Daqueles que o serviam Philip exigia pouco, pela boa razão de que queria ter o menor número possível de relações com eles. A presença de serviçais o perturbava. Ele não gostava que sua intimidade fosse violada por pessoas estranhas. Ser obrigado a falar-lhes, a estabelecer um contato direto — não entre as inteligências, mas entre as vontades, os sentimentos, as intuições — com aqueles violadores, era-lhe sempre desagradável. Ele o evitava na medida do possível; e, quando o contato se tornava necessário, Philip fazia o possível para desumanizar as relações. A sua generosidade era assim, em parte, uma compensação à sua bondade inumana para com os que eram objeto dela. Era, de certa maneira, uma penitência paga em dinheiro.
As portas estavam abertas; o escritor entrou. O vestíbulo de colunas era vasto, sombrio e fresco. O grupo alegórico de mármore, de sir Francis Chantrey, que representava a ciência e a virtude subjugando as paixões, se encolhia com todo o decoro clássico num nicho, em cima da escada. Philip pendurou o chapéu e foi passar os olhos pelos jornais na sala de fumar, esperando a chegada de seus convidados. Spandrell foi o primeiro a aparecer.
— Diga-me — pediu Philip, logo depois que as primeiras saudações foram trocadas e pedido o vermute —, diga-me depressa, antes que ele apareça: que é que há com o meu jovem e ridículo cunhado? Que é que se passa entre ele e Lucy Tantamount?
Spandrell deu de ombros.
— Que é que se passa geralmente em tais casos? E de qualquer modo, serão estes o lugar e a hora para entrar em detalhes?
Apontou os outros ocupantes da sala de fumar. Um ministro, dois magistrados e um bispo estavam ao alcance da voz deles.
Philip pôs-se a rir.
— Mas eu apenas quero saber se a coisa é mesmo séria e quanto tempo parece que vai durar...
— É muito séria, no que diz respeito a Walter. Quanto à duração, quem sabe? Mas Lucy deve partir para o estrangeiro dentro de muito pouco tempo.
— Deus seja louvado! Ah! lá está ele! — Era Walter. — E Illidge também. — Philip lhes fez um sinal com a mão. Os recém-chegados recusaram o aperitivo. — Vamos comer em seguida, então — disse Philip.
A sala de jantar do clube de Philip era imensa. Uma dupla fila de colunas coríntias de estuque suportavam um teto dourado. Sobre as paredes de um marrom de chocolate, os retratos dos membros ilustres, atualmente defuntos, olhavam a sala com um ar feroz. As cortinas de veludo cor de clarete achavam-se arrepanhadas por cordões, de cada lado das seis janelas; um tapete também cor de clarete amortecia o ruído dos passos, e, em suas librés cor de clarete, os garçons se movimentavam de um lado para outro, quase invisíveis, como insetos numa floresta.
— Sempre gostei desta sala — disse Spandrell ao entrar nela com os outros. Parece uma montagem para um festim de Baltasar.
— Mas de um Baltasar bem anglicano — precisou Walter.
— Safa! — exclamou Illidge, que tinha deixado o olhar passear em torno. — São coisas deste gênero que me dão verdadeiramente a sensação de ser da plebe.
Philip se pôs a rir, presa de um leve mal-estar. Mudando de assunto, mostrou os criados no mimetismo de suas librés de um vermelho protetor. Eles confirmavam a hipótese darwiniana.
— É a sobrevivência dos mais aptos — disse o novelista, quando se sentaram todos à mesa que lhes estava reservada. — Os que trajavam de outras cores devem ter sido assassinados pelos sócios do clube enfurecidos. — Um dos sobreviventes cor de clarete trouxe o peixe. Começaram a comer.
— É curioso — disse Illidge, seguindo o fio dos pensamentos sugeridos pelas primeiras impressões da sala —, é verdadeiramente extraordinário, em suma, que eu esteja aqui. Pelo menos, sentado com vocês, na qualidade de convidado. Porque não teria sido coisa de surpreender se eu estivesse aqui com uma dessas librés cor de vinho. Isso pelo menos estaria em harmonia com aquilo a que os pastores chamariam “minha condição social”. — Emitiu um riso breve de despeito. — Mas estar sentado aqui com vocês, assim deste modo, é mesmo quase incrível. E tudo isso se deve ao fato de um lojista de Manchester ter tido um filho com tendências para a tuberculose. Se Reggie Wright fosse uma criatura normalmente sã, eu a esta hora estaria provavelmente remendando sapatos em Lancashire. Mas felizmente Reggie tinha bacilos de Koch no seu sistema linfático. Os médicos lhe prescreveram a vida do campo. O pai alugou uma casinha na minha aldeia, para a mulher e o filho, e Reggie foi para a escola do lugar. Mas o pai era ambicioso no que dizia respeito ao filho. (Que ratinho repugnante era ele!) — observou Illidge entre parênteses. — Queria que o rapaz entrasse mais tarde para o colégio de Manchester. Com uma bolsa de estudos. Pagou o nosso professor para lhe dar lições particulares. Eu era um bom aluno; o professor gostava muito de mim. Enquanto dava repetições a Reggie, achou que podia também incluir-me nas aulas. Grátis, o que é mais importante. Não permitiu que minha mãe pagasse um níquel. Não que ela pudesse pagar muito facilmente, pobre mulher! Veio a época dos exames e fui eu quem ganhou a bolsa. Reggie foi reprovado. — Illidge riu. — Miserável fetinho tuberculoso! Mas eu lhe serei eternamente grato, assim como aos bacilos ativos das suas glândulas. Sem eles eu teria ido para a oficina de sapateiro de meu tio, numa aldeia de Lancashire. E são de coisas como essa que depende toda uma existência, de alguma probabilidade absurda, uma contra um milhão. Uma insignificância, e toda a nossa vida fica alterada.
— Não, não foi uma insignificância — objetou Spandrell. — A sua matrícula gratuita não foi um acidente; ela estava completamente de acordo, completamente em harmonia com você. De outro modo você não a teria obtido, não estaria agora aqui. Duvido que haja acontecimentos de fato insignificantes. Tudo o que acontece é intrinsecamente semelhante ao homem a quem acontece.
— Isso é um tanto oracular, não acha? — objetou Philip. — Percebendo os acontecimentos, os homens os deformam, expressemo-nos assim, de sorte que o que acontece parece-se com eles.
Spandrell deu de ombros.
— Pode ser que essa espécie de deformação exista. Mas eu creio que os acontecimentos se apresentam já feitos para se adaptarem às pessoas a quem acontecem.
— Que asneira! — exclamou Illidge, com desgosto.
Philip discordou de uma maneira mais polida.
— Mas pessoas diferentes podem ser influenciadas pelo mesmo acontecimento de maneiras inteiramente diferentes e características.
— Eu sei — disse Spandrell. — Mas, por algum processo impossível de descrever, o acontecimento é modificado, modificado qualitativamente, de maneira que se adapte ao caráter de cada pessoa nele envolvida. É um grande mistério e um paradoxo.
— Para não dizer um absurdo e uma impossibilidade — acrescentou Illidge.
— Absurdo, seja. Impossibilidade, mesmo — concordou Spandrell. — Mas, apesar de tudo, é assim que as coisas acontecem, na minha opinião. Por que haviam elas de ser logicamente explicáveis?
— Com efeito, por quê? — fez Walter, num eco.
— No entanto — interveio Philip —, essa providência de vocês faz, de um mesmo acontecimento, coisas qualitativamente diferentes para indivíduos diferentes. Não acham isto um pouco duro de digerir?
— Não é mais indigesto do que o fato de estarmos aqui. Nem mais indigesto do que tudo isto... — Apontou a sala de jantar baltasariana, os convivas às suas mesas, os criados cor de ameixa, e o secretário perpétuo da Academia Britânica, que casualmente ia entrando na sala, em companhia do professor de poesia da Universidade de Cambridge.
Mas Philip insistiu nos seus argumentos.
— Mas admitindo, como fazem os homens de ciência, que a hipótese mais simples seja a melhor, embora eu nunca tenha encontrado em toda a minha vida uma justificativa, além da inépcia humana, para tal atitude...
— Apoiado! Apoiado!
— Que justificativa? — repetiu Illidge. — A justificativa da experiência, ora essa! Está experimentalmente verificado que a natureza faz, com efeito, as coisas da maneira mais simples.
— Ou então — disse Spandrell — que os seres humanos não compreendem senão as explicações mais simples. Na prática não seria possível distinguir entre essas duas alternativas.
— Mas se uma coisa tem uma explicação simples, natural, não pode ao mesmo tempo ter uma explicação complicada, sobrenatural.
— Por que não? — perguntou Spandrell. — Pode muito bem acontecer que sejamos incapazes de compreender ou de medir as forças sobrenaturais que estão atrás das forças superficialmente naturais (seja qual for a diferença entre o natural e o sobrenatural). Mas isso não prova que elas não estejam agindo. O que você faz é simplesmente promover a sua tolice à categoria de lei geral.
Philip aproveitou o ensejo para prosseguir na sua argumentação.
— Mas admitindo, apesar de tudo — atalhou ele, antes que Illidge pudesse replicar —, que a explicação mais simples possa ser a mais verdadeira, será que os fatos não se explicam mais simplesmente se dissermos que é o indivíduo, com a sua história e o seu caráter, que deforma o acontecimento para fazê-lo à sua própria semelhança? Nós vemos os indivíduos, mas não vemos a providência; somos obrigados a pressupô-la. Não será melhor, se pudermos dispensá-la, deixar de parte esse postulado supérfluo?
— Mas será realmente supérfluo? — inquiriu Spandrell. — É possível explicar os fatos sem ela? Duvido. O que você diz dessa espécie maleável de gente? — e somos todos mais ou menos maleáveis, somos todos mais ou menos modelados. O que você diz das pessoas cujos caracteres não são inatos, mas sim formados, inexoravelmente, por uma série de acontecimentos todos do mesmo tipo? Uma corrente de felicidade, se te agrada dar-lhe este nome, ou uma corrente de infelicidade; uma corrente de pureza ou uma corrente de impureza; uma corrente de belas oportunidades heroicas ou uma corrente de oportunidades ignóbeis e tristes... Depois que a corrente persistiu o tempo suficiente (e é espantoso como tais correntes persistem!), o caráter estará formado; então, se te agrada explicar a coisa dessa maneira, você poderá dizer que é o indivíduo que deforma à sua própria semelhança tudo quanto lhe acontece. Mas antes que ele tenha um caráter bem definido, à semelhança do qual possa deformar os acontecimentos, que me dizes, hein? Quem decidiu essa espécie de coisas que lhe aconteceram antes?
— Quem decide se uma moeda cai com a cara ou com a coroa voltada para cima? — perguntou Illidge com desdém.
— Mas por que introduzir moedas na discussão? — retorquiu Spandrell. — Por que você vem com as moedas, quando estamos falando de seres humanos? Considere o seu caso. Será que você tem o sentimento de ser uma moeda quando te acontece alguma coisa?
— Pouco importa o sentimento que eu possa ter. Os sentimentos nada têm a ver com os fatos objetivos.
— Mas as sensações, essas sim, têm. A ciência e a racionalização das percepções dos nossos sentidos. Por que haveríamos de atribuir valor científico a certa classe de intuições psicológicas, quando a recusamos a todas as outras? A intuição direta de uma ação providencial tem tantas probabilidades de ser um meio de conhecimento dos fatos objetivos quanto a intuição direta da cor azul ou da dureza. E quando as coisas nos acontecem, não temos a sensação de ser uma moeda. Sentimos que os acontecimentos têm a sua significação, que foram arranjados. Especialmente quando eles se produzem em séries. Como se a moeda caísse de cara cem vezes seguidas, digamos.
— Conceda-nos ao menos o mérito de cair de coroa — disse Philip rindo. — Nós somos os intelectuais, não se esqueça.
Spandrell franziu o sobrolho; aquela frivolidade fora de propósito o chocava. Era um assunto que ele levava a sério.
— Quando penso em mim mesmo — disse ele —, fico convencido de que tudo quanto me aconteceu foi, de alguma maneira, arranjado previamente. Quando garoto, tive um prenúncio do que eu poderia ter vindo a ser, se os acontecimentos não houvessem intervindo... Algo completamente diverso deste “eu” real.
— Um anjinho, hein? — troçou Illidge.
Spandrell não tomou conhecimento da interrupção.
— Mas a partir dos meus quinze anos, começaram a acontecer-me coisas à semelhança profética do que sou atualmente.
Calou-se.
— De maneira que cresceram um rabo e uns cascos fendidos em você, em vez de um halo e de um par de asas. Uma história triste. Nunca te chamou a atenção — continuou Illidge, voltando-se para Walter — a você que é perito em matéria de arte, ou que pelo menos devia ser, nunca te chamou a atenção o fato de que todas as reproduções de anjos em quadros são absolutamente incorretas e anticientíficas? — Walter fez “não” com a cabeça. — Um homem de setenta quilos, se lhe crescessem asas, deveria receber ao mesmo tempo músculos colossais para movê-las. E grandes músculos de voo significariam um esterno em proporção, como o das aves. Um anjo desse peso, se quisesse voar tão bem como um marreco, deveria ter um esterno que passasse de quatro ou cinco pés, pelo menos. Diz isso ao seu pai, na próxima vez que ele tiver vontade de pintar uma Anunciação. Todos os Anjos Gabriéis que existem são escandalosamente inverossímeis.
Spandrell, enquanto isso, pensava naqueles arrebatamentos no meio das montanhas, naquelas delicadezas de sentimento, naqueles escrúpulos, sensibilidades e remorsos da sua mocidade; ele dizia a si mesmo que tudo aquilo — o arrependimento das más ações não menos que o arrebatamento extasiado diante do espetáculo de uma flor ou de uma paisagem —, que tudo estava ligado de um certo modo a seus sentimentos para com a mãe, que tudo estava enraizado e implicitamente contido naqueles sentimentos. Lembrou-se de Um internato de meninas em Paris, aquelas leituras eróticas sob as cobertas, à luz de uma lanterna. O livro datava da época em que as longas meias pretas e as longas luvas da mesma cor constituíam o maior requinte da moda pornográfica, e quando “beijar um homem sem bigode era comer um ovo sem sal”. O major sedutor e priápico tinha bigodes longos, retorcidos e duros de cosmético. Que vergonha ele, Spandrell, sentira, e que remorso! Como tinha lutado, com que ardor tinha orado para ter força moral! E o deus a quem orara era a imagem de sua mãe. Resistir à tentação era mostrar-se digno dela. Sucumbindo, ele a atraiçoaria, renegaria Deus. Tinha triunfado de início. Mas uma manhã, inopinadamente, chegara a notícia de que ela ia casar-se com o major Knoyle. O major Knoyle tinha também bigodes retorcidos.
— Santo Agostinho e os calvinistas tinham razão — disse Spandrell em voz alta, interrompendo a discussão a respeito de esternos e serafins.
— Volta a repisar o assunto? — perguntou Illidge.
— Deus deseja salvar uns e danar outros.
— Ou antes, ele o poderia fazer (a) se existisse, (b) se existisse uma coisa chamada salvação, e (c)...
— Quando penso na guerra — continuou Spandrell, interrompendo-o —, no que ela poderia ter sido para mim e no que ela foi efetivamente... — Deu de ombros. — Sim, santo Agostinho tinha razão.
— Bem, devo confessar — disse Philip — que sempre fui agradecido a santo Agostinho, ou a quem quer que tenha sido o responsável por me ter dado uma perna defeituosa. Isso impediu que eu me tornasse um herói; mas me impediu igualmente de me tornar um cadáver.
Spandrell olhou para ele, com um vinco irônico nas comissuras da boca largamente rasgada:
— O seu acidente te garantiu uma vida tranquila e desprendida. Em outras palavras, o acontecimento assemelhou-se a você. Da mesma maneira que a guerra, no que me diz respeito, foi exatamente à minha semelhança. Havia já um ano que eu estava em Oxford, quando ela começou.
— A velha alma mater, hein? — zombou Illidge, que não podia ouvir pronunciar o nome de um dos centros de instrução antigos e caros sem fazer algum comentário sarcástico.
— Três semestres cheios de vida e dois períodos de férias ainda mais cheios de vida — o descobrimento do álcool e do pôquer e da diferença que há entre as mulheres em carne e osso e as da imaginação adolescente. — Que apocalipse, a primeira mulher real!, acrescentou ele entre parênteses. — E ao mesmo tempo, que desilusão revoltante! É uma coisa chata, em certo sentido, que sucede a imaginação superaquecida e o livro pornográfico.
— O que é um tributo à arte — disse Philip —, como muitas vezes apontei. — Sorriu para Walter, que corou, recordando-se do que lhe tinha dito o cunhado a respeito dos perigos que havia em imitar, em amor, os modelos poéticos elevados. — Nossa educação é feita às avessas — continuou Philip. — Põe-se a arte diante da vida; Romeu e Julieta, e histórias imundas, antes do casamento ou de seus equivalentes. Daí resulta que toda a jovem literatura moderna seja desiludida. Inevitavelmente. No bom tempo antigo, os poetas começavam por perder a sua virgindade; depois, de posse de um conhecimento completo da coisa real, e sabendo exatamente onde e como ela cessava de ser poética, aplicavam-se deliberadamente a idealizá-la e embelezá-la. Nós começamos pelo poético e partimos daí, rumo ao não poético. Se os rapazes e as moças perdessem sua virgindade tão cedo como na época de Shakespeare, teríamos um renovamento da lírica amorosa elisabetana.
— Talvez você tenha razão — disse Spandrell. — Tudo o que sei é que, uma vez que descobri a realidade, achei-a decepcionante, mas atraente, apesar de tudo! Talvez tão atraente pelo mesmo motivo de ter sido tão decepcionante. O coração é uma espécie curiosa de monturo; a imundície atrai a imundície, e o grande encanto do vício reside em sua estupidez e em sua baixeza. Ele atrai porque é assim repelente. Mas continua a ser sempre repelente. Eu me recordo, quando chegou a guerra, de como exultei por ter uma oportunidade de fugir à esterqueira e fazer alguma coisa decente, para variar...
— Pelo rei e pela pátria — zombou Illidge.
— Pobre Rupert Brooke[18]! A gente sorri agora do que ele escreveu, a respeito do retorno da honra ao mundo. Os acontecimentos fizeram que isso parecesse um pouco cômico.
— Foi uma brincadeira sinistra, mesmo na época em que foi escrita — disse Illidge.
— Não, não. Àquela época, era exatamente o que eu sentia.
— Está claro que era o que você sentia. Porque você era como Brooke: um membro corrompido e blasé da classe ociosa. Tinha necessidade de uma emoção nova, eis tudo... A guerra e essa famosa “honra” de vocês forneceram-lhes essa emoção.
Spandrell deu de ombros.
— Explique a coisa assim, se quiser. Tudo o que posso dizer é que em agosto de 1914 eu queria fazer alguma coisa de nobre. Ter-me-ia sido perfeitamente agradável ser morto.
— “Antes a morte que a desonra”, hein?
— Sim, exatamente ao pé da letra. Porque posso te assegurar que todos os melodramas estão perfeitamente de acordo com a realidade. Há certas ocasiões em que as pessoas dizem efetivamente coisas como essa. O único defeito do melodrama é que ele tende a nos fazer crer que as pessoas fazem dessas frases sempre e sempre. Mas infelizmente não é assim. “Antes a morte que a desonra” era exatamente o que eu pensava em agosto de 1914. Sim, se a única possibilidade existente fora da morte fosse o modo de vida estúpido por mim levado, eu preferia morrer...
— Ainda está falando o cavalheiro desocupado... — observou Illidge.
— Foi então que, simplesmente por ter sido educado em grande parte no estrangeiro, por conhecer duas ou três línguas, por ter uma mãe que me amava demais e um padrasto influente nos meios militares, fui transferido, de bom ou de mau grado, para a Intelligence. Deus tinha, na verdade, a intenção de me danar.
— Ele estava misericordiosamente procurando salvar sua vida — opinou Philip.
— Mas eu não queria que me salvassem a vida. A menos que pudesse empregá-la em qualquer coisa de decente, em qualquer coisa de heroico, de preferência, ou pelo menos de difícil e de arriscado. E, em lugar disso, me deram um trabalho de ligação e depois me mandaram dar caça aos espiões. Meteram-me em todos os negócios sórdidos e ignóbeis.
— Mas, no fim das contas, as trincheiras não tinham lá nada de muito romântico...
— Não, mas eram perigosas. Para ficar sentado numa trincheira, era preciso coragem e paciência estoica. Um caçador de espiões estava em perfeita segurança e não tinha de pôr à prova nenhuma de suas nobres virtudes; e, quanto às ocasiões de praticar o vício... Ah! Aquelas cidades da retaguarda da frente de batalha, Paris, os portos — as prostitutas e o álcool eram os seus produtos principais.
— Mas, no fim das contas — disse Philip —, eram males que se podiam evitar. — Sendo frio de natureza, ele achava fácil ser razoável.
— Evitáveis, mas não para mim — respondeu Spandrell. — Sobretudo naquelas circunstâncias. Quisera eu fazer alguma coisa decente e tinha sido impedido nesse propósito. De sorte que se tornou uma espécie de questão de honra fazer o contrário do que tinha desejado. Uma questão de honra, compreende?
Philip balançou a cabeça:
— É um pouco sutil demais para mim...
— Mas imagine que você está na presença de um homem que respeita, e ama, e admira como nunca amou, respeitou e admirou ninguém antes.
Philip fez com a cabeça um sinal afirmativo. “Mas a verdade era”, refletiu ele, “que nunca tinha admirado ninguém profundamente, de todo o coração.” Teoricamente, sim; mas nunca na prática, nunca a ponto de querer constituir-se discípulo da pessoa admirada, nunca a ponto de segui-la. Tinha adotado as opiniões de outras pessoas, mesmo os seus modos de vida — mas sempre com a convicção subjacente de que não os tinha feito realmente seus, com a certeza de que podia abandoná-los, e de que na certa os abandonaria, tão facilmente como os adotara. E sempre que lhe parecera correr algum perigo de se deixar arrebatar, ele tinha resistido deliberadamente, tinha lutado ou fugido, a fim de conservar a sua liberdade.
— Você fica subjugado pelo que sente por essa pessoa — continuou Spandrell. — E caminha para ela de mãos estendidas, oferecendo a sua amizade e o seu devotamento. Por única resposta, essa criatura a que você se entrega enfurna as mãos nos bolsos e vira as costas... Que faria nesse caso?
Philip riu.
— Eu teria de consultar o Livro de etiqueta do Vogue.
— Você o deitaria por terra com um soco. Pelo menos era o que eu faria. Uma questão de honra. E quanto mais forte tivesse sido a minha admiração, mais violento seria o soco, e mais tempo eu dançaria depois sobre a carcaça do homem que me desprezou. Eis por que as prostitutas e o álcool não podiam ser evitados. Pelo contrário, tornou-se uma questão de honra para mim o não evitá-los nunca. Aquela vida, na França, parecia-se com a que eu tinha levado antes da guerra — apenas era muito mais ignóbil e estúpida, e extremamente falha de qualquer elemento que a pudesse aliviar ou redimir. E depois de um ano de guerra, eu lutava desesperadamente para me apegar à minha desonra e evitar a morte. Santo Agostinho tinha razão, garanto-lhes; somos condenados ou salvos de antemão. As coisas que acontecem são uma conspiração da providência.
— Disparates! — disse Illidge. Mas, no fundo do silêncio que se seguiu, o homenzinho ficou a pensar de novo em como era extraordinário e infinitamente pouco provável que ele estivesse ali sentado a beber vinho, com o secretário perpétuo da Academia Britânica sentado duas mesas além, e o vice-presidente da Suprema Corte colocado exatamente atrás dele. Vinte anos antes, as probabilidades que havia contra a sua presença ali, sob aquele teto dourado, tinham sido numa proporção de várias centenas ou milhares de milhões contra uma. Não obstante, lá estava ele... Illidge bebeu um outro trago de vinho.
E Philip, enquanto isso, estava se lembrando daquele imenso cavalo negro, que escoiceava e pinoteava, os dentes arreganhados e as orelhas deitadas para trás; e de como o animal se arremessara de súbito para a frente, arrastando consigo o condutor; e do estrondo das rodas; e “Ai!” dos gritos que ele, Philip, soltara; e de como recuara para o talude escarpado, como tentara escalá-lo, escorregando, porém, e rolando para o chão; e do pinote espantoso e das patadas do gigante; e — “Ai! Ai!” — daquela massa enorme que se interpusera entre ele e o sol; e dos grandes cascos; e, de repente, aquela dor aniquiladora...
E, dentro daquele mesmo silêncio, Walter pensou na tarde em que pela primeira vez entrara no salão de Lucy Tantamount. “Toda coisa que acontece é intrinsecamente semelhante ao homem a quem ela acontece.”
*
— Mas enfim qual será o segredo dela? — perguntou Marjorie. — Por que será que Walter anda louco por ela? Sim, porque ele está louco. Literalmente.
— Você não acha que é um segredo muito evidente? — sugeriu Elinor. O que ela achava esquisito não era que Walter tivesse perdido a cabeça por Lucy, mas sim que ele tivesse achado alguma coisa de atraente na pobre Marjorie. — Afinal de contas — continuou — Lucy é muito divertida, muito cheia de vivacidade. E, além disso — acrescentou ainda, recordando-se das observações exasperantes de Philip a propósito do cão que eles tinham atropelado em Bombaim —, ela tem má reputação...
— Mas será isso um atrativo? Uma reputação má? — O bule de chá ficou suspenso por sobre a xícara, enquanto Marjorie fazia a pergunta.
— É claro que é. Significa que a mulher que a possui é acessível...
— Açúcar?
— Não, obrigada.
— Mas é natural — disse Marjorie, passando a xícara à outra — que um homem não queira dividir suas amantes com outros homens.
— Talvez não. Mas o fato de uma mulher ter outros amantes dá ao homem esperança... “Onde outros foram bem-sucedidos, eu também posso ser.” Eis o argumento do homem. E ao mesmo tempo, uma reputação má fá-lo imediatamente pensar na mulher sob o ponto de vista da aventura amorosa. Quando vemos Lola Montes, a sua reputação faz que pensemos automaticamente na alcova, não nos vem ao pensamento a alcova quando vemos Florence Nightingale. Lembramo-nos apenas de quartos de doente. O que não é a mesma coisa — acrescentou Elinor para terminar.
Houve um silêncio.
Elinor estava pensando que era abominável de sua parte não sentir mais simpatia por Marjorie. Mas não sentia: era essa a verdade... Procurou fazer-se lembrada da vida lamentável que aquela pobre mulher levara — com o marido, primeiro, e agora com Walter. Abominável, na verdade! Mas aqueles pavorosos brincos pendentes, imitando jade! E aquela voz, aquela maneira importante...
Marjorie ergueu os olhos:
— Mas será possível que os homens possam ser tão facilmente enganados? Por uma isca tão grosseira? Homens como Walter. Como Walter! — insistiu ela. — Será que homens como ele podem ser tão, tão...
— Porcos? — sugeriu Elinor. — Aparentemente, podem. Isso parece estranho, é verdade. — “Seria talvez melhor”, pensava ela, “que Philip fosse um pouco mais porco e um pouco menos caramujo. Os porcos são humanos — talvez demasiadamente humanos, mas de qualquer modo sempre são humanos. Ao passo que os caramujos fazem o possível para ser moluscos.”
Marjorie balançou a cabeça e suspirou:
— É extraordinário — disse ela, com uma convicção que pareceu a Elinor um tanto risível.
“Que espécie de opinião poderá ter ela de si mesma?”, perguntou Elinor interiormente. Mas a boa opinião de Marjorie se aplicava menos a ela mesma do que à sua virtude. A companheira de Walter tinha sido educada na crença da fealdade do vício e da parte animal da natureza humana, na beleza da virtude e do espírito. E, fria por natureza, tinha, da mulher fria, a total incompreensão da sensualidade. Que Walter cessasse de repente de ser o Walter que ela conhecia e se portasse “como um porco”, segundo a expressão um pouco crua de Elinor, era coisa que lhe parecia verdadeiramente extraordinária, à parte todas as considerações sobre seus atrativos pessoais.
— E depois, é preciso que você se lembre — disse Elinor em voz alta — que Lucy tem uma outra vantagem no que diz respeito aos homens como Walter. É uma dessas mulheres que têm um temperamento de homem. Os homens podem achar prazer num encontro fortuito. Em sua maior parte, as mulheres não podem: é preciso que sintam amor, mais ou menos. É preciso que suas emoções estejam envolvidas no caso. Todas, com raras exceções. Lucy é uma dessas exceções. Ela tem a faculdade masculina do desprendimento. Tem o poder de separar os apetites do resto de sua alma.
— Que horror!
Marjorie estremeceu.
Elinor observou esse estremecimento e ficou tão aborrecida com ele que foi a ponto de contradizer a outra.
— Você acha? Isso me parece, às vezes, um talento bastante invejável. — Desatou a rir, e Marjorie ficou escandalizada diante do cinismo dela. — Para um rapaz tão tímido e embaraçado como Walter — continuou Elinor —, há alguma coisa de muito excitante num temperamento afoito dessa espécie. É justamente o contrário do seu. Temerária, sem escrúpulos, voluntariosa, sem um átomo de consciência. Oh, eu compreendo muito bem por que o rapaz perdeu a cabeça. — Pensou em Everard Webley. — A força é sempre uma atração — acrescentou. — E sobretudo quando à gente mesma falta essa força, como no caso de Walter. Pode-se não amar essa espécie de força. — Ela própria não gostava muito da ambição enérgica de Webley. — Mas não se pode deixar de admirar a força em si. É como o Niágara. É magnífico, embora possamos não ter desejos de nos colocar debaixo dele. Posso tirar mais uma fatia de pão com manteiga? — Serviu-se. Por delicadeza Marjorie também tirou uma. — Que delicioso pão preto! — exclamou Elinor. E ficou a perguntar a si mesma como Walter pudera viver com uma pessoa que recurvava no ar o dedo mínimo da mão que segurava a xícara de chá e que mordia a fatia de pão em bocados tão terrivelmente pequenos, mastigando em seguida só com os dentes da frente, como um rato, como se o fato de comer fosse uma coisa indelicada e um tanto repugnante...
— Mas o que você acha que devo fazer? — decidiu perguntar Marjorie por fim.
Elinor deu de ombros.
— Que outra coisa você pode fazer senão desejar que ele obtenha o que deseja e que logo fique enjoado?
Era evidente; mas Marjorie achou que Elinor fora um tanto insensível, dura e cruel por ter dito aquilo.
*
Os Quarles haviam improvisado em Londres, de maneira simplista, uma residência na última de uma série de antigas cocheiras de Belgrávia. Para entrar passava-se sob um arco. Um penhasco de estuque creme se erguia a pique, à esquerda do observador, sem uma única janela, porque outrora os habitantes daquele bairro aristocrático nem sequer tomavam conhecimento da miserável vida privada de seus dependentes. À direita se estendia a linha baixa dos estábulos, com o único andar de salas de estar em cima, ocupados agora por enormes Daimlers e pela família de seus choferes. As cavalariças terminavam por um muro, por cima do qual se podiam ver os plátanos dos jardins de Belgrávia balançando-se ao vento. A entrada da casa dos Quarles ficava à sombra desse paredão. Metida entre os jardins e as cavalariças pouco habitadas, a casinha era muito quieta. O silêncio não era quebrado senão pelo ir e vir das limusines e pelo grito casual de uma criança.
— Mas, felizmente — tinha observado Philip —, os ricos se podem oferecer veículos silenciosos. E há alguma coisa no motor de combustão interna que leva à limitação dos nascimentos. Quem já viu um chofer com oito filhos?
O abrigo dos carros e as baias dos cavalos tinham sido amalgamados, na reconstrução do estábulo, num simples e espaçoso salão. Dois biombos constituíam uma imitação de parede divisória. Atrás dos biombos, à direita de quem entra, ficava o lado “sala de visitas” do apartamento — cadeiras e um sofá, agrupados ao redor da lareira. O biombo da esquerda escondia a mesa da sala de jantar e a entrada de uma cozinha minúscula. Uma pequena escada subia obliquamente ao longo de uma das paredes e conduzia aos quartos de dormir. Cortinas de cretone amarelo davam a ilusão da luz do sol que não entrava nunca pelas janelas, voltadas para o norte. Havia muitos livros. O retrato de Elinor, quando mocinha, feito pelo velho Bidlake, estava pendurado por cima da lareira.
Philip se achava deitado no sofá, livro na mão.
Muito notável (lia ele) é a observação de mr. Tate Regan sobre os machos pigmeus parasitos em três espécies de diabos-marinhos cerativídeos. No Ceratias holbolii, do Ártico, uma fêmea de mais ou menos vinte centímetros de comprimento carregava sobre a superfície do ventre dois machos de perto de seis centímetros. A região do focinho e do queixo, no macho pigmeu, estava fixada de maneira permanente a uma papila da pele da fêmea, e os vasos sanguíneos dos dois indivíduos eram confluentes. O macho não tem dentes; sua boca é inútil; o canal alimentar está atrofiado. Nos Photocarynus spiniceps, uma fêmea de perto de seis centímetros de comprimento levava um macho de um centímetro no alto da cabeça, diante do olho direito. Nos Edriolychnus schmidti as dimensões eram pouco mais ou menos as mesmas que no caso precedente, mas a fêmea levava o macho pigmeu de cabeça para baixo, sobre a superfície interna da branquióstega.
Philip abandonou o livro e tirou do bolso interno o caderno de notas e a caneta-tinteiro:
Os diabos-marinhos fêmeas (escreveu) carregam, presos a seus corpos, machos pigmeus parasitos... Fazer a comparação que se põe quando o meu Walter anda atrás da sua Lucy. E se eu escrevesse uma cena diante de um aquário? Eles entram com um amigo cientista que lhes mostra os diabos-marinhos fêmeas e seus maridos. O crepúsculo, os peixes — um fundo perfeito.
Philip ia pôr de lado o caderno quando outro pensamento lhe ocorreu. Tornou a abri-lo.
Pôr o aquário em Mônaco e descrever Monte Carlo e toda a Riviera sob o aspecto de monstros do fundo do mar.
Acendeu um cigarro e continuou com o livro. Bateram à porta. Philip ergueu-se e foi abrir; era Elinor.
— Que tarde! — exclamou ela, atirando-se sobre uma cadeira.
— Então, que novidades me contas de Marjorie?
— Novidades? Nada que se pareça com isso... — disse Elinor num suspiro, enquanto tirava o chapéu. — A pobre criatura está insípida como sempre. Mas lamento-a sinceramente.
— Que lhe aconselhaste fazer?
— Nada. O que quer que ela faça? E Walter? — perguntou Elinor por sua vez. — Você teve ocasião de fazer o papel de pai severo?
— De pai semissevero, digamos... Obtive que ele fosse se instalar em Chamford com Marjorie.
— Obteve? Foi um verdadeiro triunfo.
— Não tanto como você julga. Não tive inimigo contra quem combater. Lucy parte para Paris no próximo sábado.
— Esperemos que ela fique por lá... Pobre Walter!
— Sim, pobre Walter... Mas eu tenho que te falar dos diabos-marinhos.
Falou-lhe.
— Um destes dias — concluiu — preciso escrever um Bestiário moderno. Que lições de moral! Mas, me diz, como está Everard? Tinha me esquecido completamente de que o havia visto.
— Não podia deixar de esquecer... — retrucou ela desdenhosamente.
— Acha? Não sei por quê...
— Não, não sabe.
— Estou esmagado sob o peso do seu desdém — disse Philip com uma humildade fingida.
Houve um silêncio.
— Everard está apaixonado por mim — falou por fim Elinor, sem olhar para o marido, e com uma voz perfeitamente calma e fria.
— Mas isso é novidade? Julguei que ele fossse um velho admirador.
— Mas é sério — prosseguiu Elinor. — Muito sério. — Ela esperava ansiosamente os comentários do marido. Estes vieram depois de um curto silêncio.
— Isso deve ser menos divertido...
Menos divertido! Pois então ele não compreendia?
No fim das contas, Philip não era um tolo. Ou talvez compreendesse muito bem e estivesse apenas fingindo o contrário; talvez estivesse mesmo secretamente contente com a paixão de Everard. Ou era então simplesmente a indiferença que o tornava cego? Ninguém pode compreender aquilo que não sente. Philip não podia compreendê-la, porque não sentia as coisas do mesmo modo. Estava confiante na crença de que as outras pessoas eram tão razoavelmente indiferentes como ele.
— Mas eu gosto dele — afirmou Elinor em voz alta, fazendo uma derradeira tentativa desesperada para arrancar do marido pelo menos um simulacro de demonstração de amor. Se ao menos ele se mostrasse ciumento, ou triste, ou zangado, como ela seria feliz, como lhe ficaria reconhecida por isso!
— Gosto muito de Webley — continuou Elinor. — Há alguma coisa de muito atraente nele. Aquele seu caráter apaixonado, aquela violência...
Philip pôs-se a rir:
— O irresistível homem das cavernas, hein?
Elinor ergueu-se com um pequeno suspiro, apanhou o chapéu e a bolsa e, inclinando-se sobre o marido, beijou-lhe a testa, como para lhe dizer adeus; depois se afastou e, sempre sem dizer palavra, subiu para o quarto.
Philip tornou a apanhar o livro que tinha abandonado. Leu:
Bonellia viridis é um verme verde, não muito raro no Mediterrâneo. A fêmea tem o corpo do tamanho aproximado de uma ameixa, munida de um apêndice proboscidiano em filamento, bífido na extremidade, fortemente contrátil, e que pode atingir dois pés de comprimento. Mas o macho é microscópico e vive no que pode ser denominado o conduto reprodutor (nefrídio modificado) da fêmea. Não tem boca e se alimenta apenas do que absorve parasitariamente através de suas superfícies ciliadas...
Mais uma vez Philip largou do livro. Ficou a pensar sobre se devia ou não subir e falar a Elinor. Estava convencido de que ela nunca chegaria a amar realmente Everard. Mas talvez ele, Plilip, não devesse ter a coisa como muito certa. A mulher lhe parecera um pouco transtornada. Talvez esperasse que ele lhe falasse, que lhe dissesse de seu amor, de quanto seria infeliz — e de como ficaria furioso — se ela deixasse de querê-lo. Mas eram estas precisamente as coisas mais impossíveis de dizer. Ao cabo, decidiu não subir. Ia esperar para ver... transferia para outra ocasião. Continuou a leitura sobre a Bonellia viridis.