Capítulo xxx

rachel quarles não tinha nenhuma simpatia por esses filantropos sentimentais que apagam a distinção entre o bem e o mal, entre justos e culpados. A seus olhos eram os criminosos, e não a sociedade na qual eles viviam, os responsáveis por seus crimes. Os pecadores cometiam efetivamente os seus pecados; não era o meio ambiente que o fazia por eles. Havia desculpas, estava claro, paliações, circunstâncias atenuantes. Mas o bem era sempre o bem, e o mal continuava sendo o mal. Havia circunstâncias em que era muito difícil escolher o bem; mas era sempre o indivíduo que fazia a escolha e, uma vez feita, era responsável por ela. Mrs. Quarles, numa palavra, era cristã e não humanitária. Como cristã achava que Marjorie tinha feito mal em deixar o marido — muito embora se tratasse de um marido como Carling — por um outro homem. Ela desaprovava o ato, mas não se atrevia a julgar a pessoa — tanto mais que, apesar do que ela tinha feito, o coração e a cabeça de Marjorie haviam sempre persistido, sob o ponto de vista cristão de mrs. Quarles, “no bom caminho”. Rachel achava mais fácil amar uma pessoa que tinha procedido mal continuando, porém, a ter pensamentos virtuosos, do que uma outra que, como sua nora Elinor, pensava de maneira errada, embora sempre tivesse se conduzido, ao que ela sabia, de modo absolutamente irrepreensível. Havia circunstâncias, também, em que a ação má lhe parecia quase menos repreensível do que o pensamento mau. Não que ela simpatizasse com a hipocrisia. A pessoa que pensava e falava bem, ao passo que, consciente e constantemente, procedia mal, era-lhe odiosa. Tais pessoas são raras, entretanto. A maior parte dos que fazem o mal, a despeito de suas crenças sãs, o fazem em um momento de fraqueza, e lamentam em seguida a falta que cometeram. Mas aquele cujos pensamentos são maus não admite o caráter pecaminoso das más ações. Não vê por que não os haja de cometer e por que, depois de fazê-lo, tenha de se arrepender e corrigir. E mesmo que, de fato, se porte virtuosamente, ele pode, mercê de seus maus pensamentos, arrastar outros homens a más ações.

— É uma mulher admirável — dissera John Bidlake, pronunciando seu julgamento —, mas gosta demais das folhas de parreira, sobretudo na boca.

Quanto a Rachel Quarles, não tinha consciência senão do fato de ser cristã. Não podia conceber como certas pessoas podiam viver sem serem cristãs. E no entanto um grande número — era obrigada a admitir com tristeza — o conseguia perfeitamente. Quase todas as pessoas jovens de seu conhecimento. “Dir-se-ia que nossos próprios filhos falam uma língua diferente”, queixava-se ela um dia a uma velha amiga.

Mrs. Quarles achou em Marjorie Carling alguém que falava e entendia a sua própria linguagem espiritual.

— Você a achará um pouco cacete, temo-o — avisara-lhe Philip, ao anunciar a intenção que tinha de emprestar a sua casinha de Chamford a Walter e Marjorie. — Mas seja boa com ela. Apesar de tudo Marjorie o merece, pobre criatura. Tem tido uma vida muito triste.

E contou à mãe todos os pormenores de uma história que ela escutou com suspiros.

— Eu não esperava que Walter Bidlake fosse assim — comentou ela.

— Nesses assuntos não convém esperar coisa alguma de ninguém. As coisas acontecem, simplesmente. Ninguém as faz.

Mrs. Quarles não respondeu nada. Pensou na época em que, pela primeira vez, ela descobrira uma das infidelidades de Sidney. O espanto, a dor, a humilhação!

— No entanto — disse em voz alta —, ninguém julgaria que ele pudesse conscientemente tornar alguém infeliz.

— Ainda menos que ele tivesse se tornado infeliz conscientemente. E, no entanto, creio que Walter tornou a si mesmo tão desgraçado quanto Marjorie. Talvez seja esta a sua principal justificativa.

Rachel Quarles suspirou.

— Tudo isso me parece tão extraordinariamente desnecessário...

Foi fazer uma visita a Marjorie, depois que esta se instalou na nova residência.

— Vem me ver muitas vezes — disse-lhe ao sair. — Porque você me agrada — acrescentou, pondo-se subitamente a sorrir, motivo pelo qual a pobre Marjorie lhe ficou reconhecida, a ponto de sua gratidão chegar a ter qualquer coisa de patético. Não lhe acontecia muito amiúde agradar aos outros. O fato de ela estar perdidamente apaixonada por Walter se devia antes de tudo a ter sido este uma das raras pessoas que se mostraram interessadas por ela. — E espero que eu te agrade também — acrescentou mrs. Quarles.

Marjorie apenas pôde corar e gaguejar. Mas já estava adorando...

Rachel Quarles havia falado com toda a sinceridade. Gostava efetivamente de Marjorie; gostava dela precisamente por causa dos defeitos mesmos que faziam que os outros a achassem tão aborrecível; por causa de sua estupidez — uma estupidez tão boa, tão cheia de puras intenções; por causa da sua falta de senso de humor — coisa que denotava uma tal seriedade, um tal ardor! Mesmo aquelas pretensões intelectuais, aquelas observações profundas ou didáticas que ela deixava cair como uma coisa portentosa do fundo de um silêncio meditativo, não desagradavam mrs. Quarles. Ela descobria nisso os sintomas um tanto absurdos de um amor autêntico do bem, do verdadeiro e do belo, de um desejo sincero de progresso e de cultura.

Por ocasião do terceiro encontro, Marjorie lhe confiou toda a sua história. Os comentários de mrs. Quarles foram sensatos e cristãos.

— Não há cura milagrosa para coisas dessa espécie — disse ela —; não há especialidade farmacêutica contra a infelicidade. Existem apenas velhas virtudes um pouco monótonas, a paciência, a resignação e as outras; e a velha consolação, a antiga fonte de toda força — velha, sim, mas não monótona: não, nada de menos monótono do que Deus. Mas a maior parte das pessoas moças não querem crer em mim quando lhes digo, se bem que elas morram de aborrecimento com o seu jazz e as suas danças.

O primeiro movimento de adoração de Marjorie se confirmou e cresceu, a tal ponto, que mrs. Quarles ficou toda envergonhada, como se tivesse roubado alguma coisa, como se tivesse representado uma comédia fraudulenta.

— A senhora me tem sido de um tal auxílio, de um tal conforto! — declarou-lhe Marjorie.

— Qual! — respondeu ela quase com cólera. — A verdade é que você estava sozinha, se sentia infeliz e eu me encontrei a seu lado no devido momento.

Marjorie protestou; mas a mulher mais velha não permitia que a louvassem ou que lhe dirigissem agradecimentos.

Falaram muito em religião. Carling tinha dado a Marjorie o horror de tudo quanto era pitoresco ou formal no cristianismo. Piran de Peranzabuloe, as vestes religiosas, as cerimônias, tudo o que, mesmo de longe, dizia respeito a um santo, a um rito, a uma tradição lhe era odioso. Mas havia conservado uma fé vaga e rudimentar no que considerava como sendo as coisas essenciais; tinha guardado de sua infância certo hábito de pensamentos e de sentimentos cristãos. Sob a influência de Rachel Quarles, essa fé se tornou mais precisa, as emoções habituais se robusteceram.

— Eu me sinto de tal maneira feliz, desde que estou aqui com a senhora! — anunciou ela, apenas oito dias depois de sua chegada.

— É porque você não se esforça por ser feliz e porque não pergunta a si mesma por que você se tornou infeliz, por que cessou de pensar nas coisas sob o ponto de vista da felicidade e da infelicidade. É a tolice enorme dos jovens desta geração — continuou mrs. Quarles —, eles não pensam nunca na vida senão relacionando tudo com a felicidade... “Que farei para me divertir?” Eis a pergunta que eles se fazem a si mesmos, ou então se queixam: “Por que minha vida não é divertida?”. Mas nós estamos num mundo em que “os bons momentos”, na acepção vulgar desta palavra, ou talvez em todas as suas acepções, não podem durar continuamente nem pertencer a toda a gente. E, mesmo que a mocidade tivesse esses “bons momentos”, ela havia de ficar inevitavelmente decepcionada porque a sua imaginação é sempre mais bela do que a realidade. E depois que gozamos um pouco esses momentos, eles se tornam aborrecidos. Cada um se esforça para obter a felicidade, e o resultado é que ninguém é feliz. É porque eles estão no caminho errado. A pergunta que deviam fazer a si mesmos não é: “Por que não somos felizes?” ou “Como nos iremos divertir?”, mas sim: “Como podemos agradar a Deus” e “Por que não somos melhores?”. Se as pessoas fizessem interiormente estas perguntas e respondessem a elas, na prática, da melhor maneira que pudessem, haveriam de atingir a felicidade sem nunca pensarem nela. Porque não é procurando a felicidade que a encontramos; é procurando a salvação. E quando as criaturas forem sábias, em vez de serem inteligentes, hão de pensar na vida relacionando-a com a salvação e a perdição, não com os “bons” ou “maus momentos”. Se você se sente feliz agora, Marjorie, é porque cessou de pensar em ser feliz e porque está tentando ser melhor. A felicidade é como o coque — uma coisa que se obtém como subproduto da fabricação de outra coisa.

*

Enquanto isso, em Gattenden os dias se sucediam, sombrios.

— Por que não faz um pouco de pintura? — propôs mrs. Bidlake ao marido, na manhã que se seguiu à sua chegada.

O velho John balançou a cabeça.

— Havia de tomar gosto por ela, uma vez que começasse... — adulou Elinor.

Mas o pai não se queria deixar convencer. Não tinha vontade de pintar, precisamente porque isso lhe teria sido muito desagradável. O terror mesmo da dor, da doença e da morte fazia perversamente com que ele se recusasse a deixar distrair o espírito de sua contemplação abominável. Dir-se-ia que uma parte dele desejava obscuramente aceitar a derrota e o abatimento, estava ávida por tornar a sua capitulação ainda mais total. Sua coragem, sua força gargantuesca, seu bom humor descuidoso, eram os frutos de uma ignorância voluntária que durara toda a sua vida. Mas agora que não era mais possível “ignorar”, agora que o inimigo estava instalado no seu próprio corpo, toda a virtude o havia abandonado. Bidlake tinha medo, e não podia dissimular os seus terrores. Desejava de certo modo ficar acabrunhado. E ficou mesmo. Mrs. Bidlake e Elinor fizeram o possível para tirá-lo da tristeza apática dentro da qual ele passava a maior parte de seus dias em Gattenden. Mas o velho pintor não se deixava despertar senão para se lamentar e às vezes para explodir numa cólera cheia de queixumes.

É deplorável (escreveu Philip em seu caderno de notas) ver um olímpico reduzido por um pequeno tumor no estômago a um estado de subumanidade. Mas talvez — acrescentou alguns dias mais tarde, pensando melhor — ele tenha sido sempre um subumano, mesmo quando dava a impressão de ser a mais olímpica das criaturas; talvez o fato de ser olímpico fosse justamente um sintonia de subumanidade.

Era somente com o pequeno Phil que John Bidlake despertava em certas ocasiões de seu estado de abatimento. Brincando com o menino, ele se esquecia às vezes, por um instante, da sua desgraça.

— Desenhe alguma coisa para mim — pedia.

E o pequeno Phil, com a língua entre os dentes, desenhava um trem ou um barco ou os cervos que se batiam no parque de Gattenden ou o velho marquês na sua cadeira de rodas puxada pelo burrico.

— Agora você vai desenhar alguma coisa, para mim, vovô — dizia o pequeno, quando cansava.

E o velho tomava do lápis e fazia cinco ou seis pequenos esboços maravilhosos de T’ang, o cão pequinês, ou de Tompy, o gato da cozinha. Ou então, algumas vezes, num acesso de malícia, rabiscava uma caricatura da pobre Miss Fulkes a contorcer-se toda. E frequentemente, esquecendo-se por completo de que o pequeno estava perto, desenhava para seu próprio prazer — um grupo de banhistas, dois lutadores, uma dançarina.

— Mas por que elas não têm roupa? — perguntava Phil.

— Porque ficam mais bonitas assim.

— Ah! Mas eu não acho. — E, perdendo o interesse pelos desenhos que tinham tão pouca coisa para lhe contar, o menino exigia de novo o lápis.

Mas não era sempre que John Bidlake acolhia com tanta alegria o neto. Às vezes, quando se sentia particularmente abatido, encarava a simples presença do menino como uma ofensa, uma espécie de zombaria. Ficava encolerizado, vituperava contra o garoto porque este fazia barulho, porque o incomodava.

— Não me deixarão nunca em paz? — gritava ele. E punha-se então a queixar-se, com blasfêmias, da incapacidade geral de toda a gente. A casa estava cheia de mulheres cuja função era cuidar daquele maldito pirralho. Mas ele andava por ali, correndo de um lado para outro, fazendo uma baderna dos infernos, como se quisesse fazer o mundo vir abaixo, e metendo-se na vida dos outros. Era intolerável. Sobretudo quando não se estava passando bem. Absolutamente intolerável! Ninguém tinha a menor consideração para com ele. Corada, a contorcer-se, a pobre Miss Fulkes levava o seu aluno, que uivava, para seu quarto.

As cenas mais penosas se produziam às horas de refeição. Porque era durante as refeições (reduzidas agora, para ele, a caldo, leite e farinha láctea) que John Bidlake era mais desagradavelmente lembrado de seu estado de saúde. “Esta lavagem repugnante!”, resmungava ele. Mas se comia alguma coisa sólida os resultados eram deploráveis. As refeições eram os momentos mais tempestuosos e mais selvagens do dia de John Bidlake. Ele descarregava a sua raiva sobre o neto. O pequeno Phil, que não comia nunca de boa vontade, foi durante toda aquela primavera até o começo do estio particularmente obstinado no que dizia respeito à alimentação. Chorava quase sempre à hora das refeições.

— É porque realmente ele não vai muito bem — explicava Miss Fulkes para o desculpar. E era verdade. O pequeno estava um pouco amarelo e magro, dormia mal, tinha crises de nervos, fatigava-se depressa, sofria de dores de cabeça, não aumentava de peso. O dr. Crowther tinha prescrito malte, óleo de fígado de bacalhau e um tônico.

— Ele não vai bem — insistia Miss Fulkes.

Mas John Bidlake não queria ouvir nada.

— Ele é simplesmente desobediente, nada mais. Não quer comer e pronto! — E, voltando-se para o pequeno, gritava: — Engula, moleque, engula! Não sabe engolir? — O espetáculo do pequeno Phil, mastigando e remastigando interminavelmente alguma coisa de que não gostava, exasperava o velho. — Vamos, engula, garoto! Não continue a ruminar assim! Não é nenhuma vaca. Engula isso! — E o menino, vermelho, as lágrimas brotando-lhe nos olhos, fazia um esforço desesperado para engolir o detestável produto de cinco minutos de mastigação nauseada. Os músculos de sua garganta se intumesciam e se enrugavam, uma expressão de nojo invencível distorcia-lhe o rosto pequenino, ouviam-se os ruídos sinistros de uma ânsia de vômito.

O velho vociferava:

— Mas isto é simplesmente revoltante! Engula!

E seus gritos eram uma receita quase infalível para fazer a criança vomitar.

*

Os fardos tornaram-se leves, as trevas deram lugar à luz, Marjorie teve apocalipticamente a revelação de todos os símbolos da literatura religiosa. Porque ela própria tinha se debatido no Lodaçal do Desespero, e havia emergido dele; tinha também feito a escalada laboriosamente, sem esperança, e de súbito ficara consolada pela vista da Terra Prometida.

— Todas essas expressões me pareciam tão convencionais e tão insipidamente piedosas — disse ela a mrs. Quarles. — Mas agora percebo que elas são simples descrições de fatos reais.

Mrs. Quarles concordou com um meneio de cabeça.

— Más descrições, porque os fatos não se podem descrever. Mas quando os sentimos pessoalmente, podemos compreender a intenção dos símbolos.

— Conhece a Terra Negra?[20] — perguntou Marjorie. — Sinto a sensação de ter saído de uma dessas cidades de mineiros, para chegar às planícies, aos largos espaços abertos — acrescentou ela, com a sua voz ardente e um pouco infantil na sua entonação arrastada. (“Esta voz”, não pôde deixar de pensar mrs. Quarles, que se arrependeu em seguida do pensamento, porque no fim das contas a pobre mulher não era responsável pela voz que tinha, “esta voz faz parecer abafados e fechados os largos espaços abertos.”) — E quando eu olho para trás, a cidade negra aparece tão pequenina, tão insignificante em comparação com o espaço e com o céu enorme! É como se a olhássemos por um binóculo posto às avessas.

Mrs. Quarles franziu levemente a fronte:

— Ela não é tão insignificante assim. Porque, no fim das contas, há pessoas que moram nessa cidade, por mais negra que ela possa parecer. E a posição errada do binóculo é sempre a posição errada. Não se pretende levar-nos a olhar as coisas de maneira que elas nos pareçam pequenas e insignificantes. Eis aí um dos perigos que há em sair para o céu aberto; temos uma tendência excessiva para considerar como pequenas, remotas e sem importância as cidades e as pessoas que elas contêm. Mas elas não o são, Marjorie. E a tarefa dos felizes que puderam evadir-se, vindo para o ar livre, é ajudar os outros a fugir também. — De novo franziu a testa, descontente consigo mesma dessa vez; detestava tudo quanto cheirasse a sermão. Mas Marjorie não devia imaginar que se tinha tornado superior e se achava acima do mundo. — Como vai Walter? — perguntou ela, com uma inconsequência que era apenas aparente. — Como vão vivendo vocês agora?

— Da mesma maneira de sempre. — Uma tal confissão, havia algumas semanas, lhe teria custado horrivelmente. Mas agora, o próprio Walter tinha começado a parecer-lhe pequeno e um pouco remoto. Ainda continuava a amá-lo, naturalmente; mas, de certo modo, com o binóculo às avessas. Com este na posição certa ela apenas via Deus e Jesus; eles cresciam, dominando-lhe avassaladoramente o campo de visão.

Mrs. Quarles olhou para a interlocutora, e uma expressão de tristeza passou-lhe rapidamente pelo rosto móvel:

— Pobre Walter!

— Sim, eu também o lamento — confessou Marjorie.

Fez-se um silêncio.

O velho dr. Fisher lhe havia dito que fosse procurá-lo para mantê-lo informado de tudo a cada duas ou três semanas, e Marjorie aproveitava o preço reduzido dos bilhetes de excursão de quarta-feira para ir à cidade, fazer algumas compras indispensáveis e dizer ao doutor como se sentia bem.

— É o que revela a sua aparência — disse o dr. Fisher, examinando-a primeiro através dos óculos e depois por cima destes. Sim, incomparavelmente melhor do que a última vez. Isso se passa muitas vezes no decorrer do quarto mês — pôs-se ele a explicar. O dr. Fisher gostava que seus clientes tomassem um interesse inteligente em sua própria fisiologia. — A saúde melhora. O moral também. É o corpo que se adapta ao novo estado de coisas. As modificações na circulação têm sem dúvida algo a ver com isso. O coração do feto começa a bater mais ou menos neste tempo. Tive casos de mulheres neurastênicas que desejavam ter filhos e mais filhos, numa sucessão tão rápida quanto possível. A gravidez era a única coisa que lhes podia curar a melancolia e as obsessões. Quão mal compreendemos ainda as relações entre o corpo e o espírito!

Marjorie sorriu e não disse palavra. O dr. Fisher era um anjo, um dos homens melhores e mais bondosos do mundo inteiro. Mas havia coisas que ele compreendia ainda menos do que as relações entre o corpo e o espírito. Que compreendia ele de Deus, por exemplo? Que compreendia ele da alma e de sua comunhão mística com as forças espirituais? Pobre dr. Fisher! Só sabia falar do quarto mês de gravidez e do coração do feto. Marjorie sorriu interiormente, sentindo um pouco de piedade pelo velho.

*

Burlap, naquela manhã, mostrou-se cheio de afeição:

— Meu velho — disse ele, pousando uma das mãos sobre o ombro de Walter —, vamos sair e comer juntos uma costeleta em alguma parte? — Deu uma palmadinha no ombro do jovem Bidlake e sorriu-lhe o sorriso cheio da ternura triste e enigmática de um santo de Sodoma.

— É pena! — disse Walter, procurando simular uma afeição correspondente —, tenho de jantar com um amigo na outra extremidade de Londres. — Era uma mentira; mas não podia suportar a ideia de passar uma hora com Burlap num restaurante de Fleet Street. De resto, queria ver se havia alguma carta de Lucy esperando por ele no clube. Olhou o relógio. — Céus! — exclamou, sem desejo de prolongar a conversação com Burlap —, preciso ir...

Fora, chovia. Os guarda-chuvas pareciam cogumelos negros brotados subitamente da lama. Tudo sombrio, sombrio... Em Madri devia estar fazendo um sol feroz. “Mas adoro o calor”, ela dissera. “Desabrocho nos fornos.” Ele havia imaginado de antemão as noites de Espanha, negras e quentes, e o corpo pálido de Lucy à luz das estrelas — um fantasma, mas tangível e morno; e o amor tão paciente, tão implacável como o ódio; e as posses que semelhavam um assassinato lento. Aquelas volúpias imaginadas tinham justificado todas as mentiras, todas as baixezas concebíveis. Pouco importava o que se podia fazer ou o que não se devia fazer, contanto que suas visões se realizassem. Ele tinha preparado o terreno, inventado uma série de mentiras complicadas, um monte para Burlap, outro para Marjorie; tomara informações sobre o preço das passagens, arranjara no banco um meio de sacar a descoberto de sua conta. E então viera a carta de Lucy, comunicando que tinha mudado de ideia. Ia ficar em Paris. Por quê? Só havia uma explicação possível. O ciúme de Walter, sua decepção, sua humilhação haviam desbordado em seis páginas de censuras e de furor.

— Cartas? — perguntou ele ao porteiro num tom despreocupado, ao entrar no clube.

O tom de sua voz dava a entender que ele não esperava nada de mais interessante do que uma circular de editor, ou do que a oferta filantrópica de um empréstimo de cinco mil libras sem garantias.

O porteiro lhe estendeu o conhecido envelope amarelo; Walter o rasgou avidamente e desdobrou três páginas escritas a lápis. “Quai Voltaire. Segunda-feira.” Fatigou os olhos na decifração da carta: era quase tão difícil de ler como um manuscrito antigo... “Por que me escreve sempre a lápis?” Walter se lembrou da pergunta de Cuthbert Arkwrigth e da resposta que Lucy lhe havia dado. “Pois eu havia de fazer que a tinta desaparecesse a beijos”, replicara ele. Que estúpido! Walter entrou na sala de refeições e pediu o seu jantar. Entre bocados de comida que levava à boca, decifrou a carta de Lucy.

Quai Voltaire.

Insuportável, a tua carta. De uma vez por todas recuso receber injúrias ou lamúrias; não quero em absoluto ouvir censuras nem condenações. Faço o que me apraz e não reconheço em ninguém o direito de discutir os meus atos. A semana passada pensei que seria divertido ir a Madri contigo; nesta semana mudei de opinião. Se essa mudança te prejudicou materialmente, sinto muito. Mas não formulo a menor desculpa pelo fato de ter mudado de opinião, e se imagina que suas jeremiadas e as suas ciumeiras me enchem de piedade por você, está muito enganado. Deseja realmente saber por que não deixo Paris? Muito bem. “Sem dúvida encontrou um outro homem de quem gosta mais do que de mim.” Maravilhoso, meu caro Sherlock Holmes, maravilhoso! E adivinha onde o encontrei... Na rua. Passeando ao longo do Boulevard Saint-Germain, olhando as livrarias. Percebi que estava sendo seguida de vitrina em vitrina por um jovem. Gostei dos ares dele. Muito moreno, pele cor de oliva, aspecto um tanto romano, não mais alto do que eu. Na quarta vitrina ele se pôs a me falar num francês extraordinário com acentos em todos os ee mudos. “Ma lei è italiano.” Era; enorme contentamento. “Parla italiano?” E se pôs a despejar a sua admiração no mais puro toscano.

Olhei para ele. No fim das contas, por que não? Alguém que nunca encontramos antes e de quem nada sabemos — é uma ideia excitante. Por um momento, dois seres perfeitamente estranhos; no momento seguinte, já tão íntimos quanto o podem ser dois entes humanos. De resto, era uma linda criatura. “Vorrei e non vorrei”, disse-lhe eu. Mas ele nunca tinha ouvido falar de Mozart, não conhecia senão Puccini, de sorte que pus ponto na tagarelice. “Muito bem.” Tomamos um táxi que nos levou a um pequeno hotel perto do Jardin des Plantes. Quartos à hora. Uma cama, uma cadeira, um armário, um lavatório com uma bacia de folha e um jarro, um porta-toalhas, um bidê. Sórdido, mas fazia parte da brincadeira. “Dunque”, disse-lhe eu. Não lhe tinha permitido que me tocasse no táxi. Ele saltou sobre mim como se me fosse matar, os dentes cerrados. Fechei os olhos, como uma mártir cristã em face de um leão. O martírio é uma coisa excitante. Deixar-se ferir, humilhar, usar como um capacho, esquisito! Gosto disso. Além do mais, o capacho também faz uso de quem o usa. É complicado. O homem acabava de voltar de umas férias passadas à beira do mar, no Mediterrâneo, e seu corpo estava todo queimado e polido pelo sol. Tinha um ar magnificamente feroz — era como um pele-vermelha. E tão feroz como o seu aspecto fazia esperar. Ainda tenho marcas no pescoço, no lugar em que ele me mordeu. Tenho de usar uma echarpe durante alguns dias. Onde terei visto aquela estátua de Mársias esfolado? O rosto dele era assim. Eu lhe meti as unhas nos braços até fazer sangue. Depois perguntei-lhe o nome. Ele se chama Francesco Allegri e é engenheiro aeronáutico; vem de Siena, onde o pai é professor de medicina na universidade. Que estranha incongruência no fato de um selvagem trigueiro fazer projetos de motores de avião e ter um pai professor de faculdade! Devo revê-lo amanhã... Então agora já sabe, Walter, por que mudei de opinião a respeito da tal viagem a Madri. Não me mande nunca mais uma carta como a última.

L.

*

Marjorie tomou o trem das três horas e doze minutos para voltar a Chamford. A chuva havia cessado quando ela chegou. As colinas do outro lado do vale, tocadas pela luz do sol, pareciam brilhar com uma radiação própria contra o fumo e o índigo das nuvens. Gotas ainda pendiam suspensas dos ramos, e todas as taças ocas das pétalas e das folhas estavam cheias. A terra molhada exalava uma fragrância fresca e deliciosa; ouvia-se um ruído de pássaros. Quando Marjorie passava sob os ramos pendentes do grande carvalho, na metade do caminho, um golpe de vento lhe jogou contra o rosto um aguaceiro frio e súbito. Marjorie riu de prazer.

Achou a casinhola vazia. A criada tinha saído e não estaria de volta senão à hora de deitar. O silêncio das peças vazias tinha uma qualidade de transparência cristalina e musical, a solidão lhe pareceu amiga e doce. Movendo-se pela casa, Marjorie caminhou na ponta dos pés, como se temesse acordar uma criança adormecida.

Fez para si mesma uma xícara de chá, que bebeu; comeu um biscoito, acendeu um cigarro. O gosto daquilo que ela comia e bebia, o aroma do tabaco, lhe pareciam particularmente deliciosos e de certo modo novos. Era como se os descobrisse pela primeira vez.

Voltou a poltrona de maneira que ela ficasse de face para a janela e deixou-se ficar sentada, alongando o olhar por sobre o vale, até as montanhas brilhantes com o seu fundo de tempestade. Lembrou-se de um dia análogo, no tempo em que eles moravam na casinha de Berkshire. O sol, mais luminoso por ser tão precário naquele fundo sombrio; uma terra brilhante e transfigurada. Walter estava sentado com ela, perto da janela aberta. Ele a amava naquele tempo. E, no entanto, ela era mais feliz agora, muito mais feliz. Não lamentava nada do que se passara no intervalo. O sofrimento tinha sido necessário. Era a nuvem que acentuava a luz de sua felicidade presente. Nuvem sombria — mas como estava longínqua agora, e curiosamente separada dela! E aquela outra claridade feliz, antes da vinda da nuvem, era também minúscula, e longínqua, como uma imagem num espelho curvo. “Pobre Walter!” pensou ela; e de uma maneira remota apiedou-se dele. Correndo atrás da felicidade, Walter tinha se tornado infeliz. A felicidade é um subproduto, mrs. Quarles o dissera. Era verdade. — “A felicidade, a felicidade...”, Marjorie repetia interiormente a palavra. Contra os vapores negros, as colinas eram como esmeraldas e ouro verde. A felicidade, a beleza, o bem... “A paz de Deus”, murmurou ela, “a paz de Deus, que vai além de todo o entendimento. Paz, paz, paz...”

Teve a impressão de que se fundia naquela calma verde e dourada; sentiu-se mergulhar nela e absorver por ela, dissolver como se deixasse de viver à parte para se unir à paz universal. A quietude fluía para a quietude, o silêncio de fora se identificava como seu silêncio interior. O licor da existência, agitado e turvo, assentou pouco a pouco, e tudo que o tinha tornado opaco — todo o ruído e o tumulto do mundo, todas as inquietudes, todos os desejos, todos os sentimentos pessoais — começou a se depositar, como um sedimento, a cair lentamente, lentamente e sem ruído, dentro do invisível. O licor turvo se tornou cada vez mais claro, cada vez mais translúcido. Atrás daquela bruma que se dissipava gradualmente, estava a realidade, estava Deus. Foi uma revelação lenta, progressiva. “Paz, paz”, murmurava Marjorie para si mesma; e as últimas ondulações morreram na superfície da vida, as opacidades causadas pela agitação da vida acabaram de cair, aniquiladas na calma extrema. “Paz, paz.” Marjorie não tinha mais desejos, mais preocupações. O licor que fora turvo estava perfeitamente límpido, agora, mais límpido do que o cristal, mais diáfano do que o ar; a bruma se dissipara e a realidade sem véus era um vazio maravilhoso, era o nada. O nada — a única perfeição, o único absoluto. O infinito, o eterno nada. A revelação progressiva estava completa agora.

Marjorie foi despertada do seu devaneio pelo clique do trinco da porta da entrada e por um ruído de passos no corredor. Relutantemente e com uma espécie de dor, ela se alçou das profundezas da divina vacuidade; sua alma remontou à superfície da consciência das coisas. O sol sobre as montanhas havia tomado um tom mais profundo, as nuvens tinham se erguido e o céu era de um azul pálido e esverdeado, como o da água. Era já quase noite. Marjorie sentia os membros hirtos. Provavelmente ficara ali sentada durante horas e horas.

— Walter? — gritou ela na direção do corredor, de onde vinham os ruídos.

Walter respondeu com uma voz que lhe pareceu morta, átona. “Por que será que ele é tão infeliz?”, perguntou ela consigo, ao ouvi-lo; mas perguntou de muito longe e com uma espécie de ressentimento muito remoto. Ressentia-se daquela presença que a perturbava e que lhe interrompia o êxtase; ressentia-se da própria existência de Walter. O rapaz entrou no compartimento, e Marjorie notou que ele tinha o rosto muito pálido, os olhos debruados de negro.

— Que é que há? — perguntou ela, quase a contragosto. Quanto mais se aproximava de Walter, mais se afastava no nada maravilhoso, mais se afastava de Deus. — Não está com boa aparência...

— Não é nada. Um pouco de cansaço, nada mais.

No trem, durante o trajeto, ele tinha lido e relido a carta de Lucy, a ponto de sabê-la quase de cor. Sua imaginação tinha fornecido um suplemento às palavras. Conhecia aquele quartinho sórdido de hôtel meublé; tinha visto o corpo requeimado do italiano, a brancura de Lucy, os dentes cerrados do homem, seu rosto que parecia o de um Mársias torturado, e também o rosto de Lucy, com aquela expressão que ele bem conhecia, aquele ar de sofrimento grave e atento, como se o prazer lancinante fosse uma verdade profunda e árdua, que não se pode apanhar senão por meio de intensa concentração...

“Bom”, estava pensando Marjorie, “ele dissera que não era nada. Era melhor assim; ela não precisava de se preocupar mais com aquilo.”

— Pobre Walter! — disse em voz alta. E lhe dirigiu um sorriso de piedade terna. Ela não ia fazer nenhum apelo à sua atenção ou à sua simpatia; o ressentimento dela desapareceu. — Pobre Walter!

Walter olhou-a um momento, depois se afastou. Não queria piedade. Não aquela espécie de piedade de anjo superior, e ainda menos da parte de Marjorie. Uma vez aceitara a piedade dela. A recordação desse incidente lhe deu calafrios de vergonha. Nunca mais! Walter se foi.

Marjorie ouviu seus passos na escada e a batida de uma porta.

“Apesar de tudo”, pensou ela, sentindo com relutância alguma solicitude, “algo não vai bem. Algo há que o torna particularmente desgraçado. Talvez seja melhor eu subir e ver o que ele está fazendo.”

Mas não subiu. Ficou sentada no mesmo lugar, imóvel, esquecendo-o deliberadamente. O pequeno sedimento que a chegada de Walter havia agitado dentro dela tornou a cair bem depressa para o fundo. Através do vazio inanimado do êxtase, seu espírito mergulhou de novo em Deus, no absoluto perfeito, no nada eterno e sem limite. O tempo passou; o fim da tarde se transformou em crepúsculo de verão; o crepúsculo se espessou lentamente em trevas.

Daisy, a criada, voltou às dez horas.

— Sentada no escuro, patroa? — perguntou ela, lançando um olhar para dentro da peça. Acendeu a luz. Marjorie estremeceu. O clarão lhe trouxe aos olhos ofuscados todos os detalhes imediatos e próximos do mundo material. Deus havia se dissipado, como uma bolha que se fura. Daisy viu a mesa vazia. — Então ainda não ceou? — exclamou com horror.

— Ora, não... — disse Marjorie. — Nem mesmo pensei em cear.

— Nem mr. Bidlake? — continuou Daisy em tom de censura. — Oh! Ele deve estar morto de fome, coitado!

Precipitou-se para a cozinha, à procura de carne fria e de picles.

Lá em cima, no seu quarto, Walter estava deitado na cama, cara enterrada nos travesseiros.