Capítulo xxxv
no dia seguinte, em lugar de gemer a cada retorno da dor, o menino começou a gritar — a soltar gritos após gritos, cada vez mais agudos, repetidos com uma regularidade quase digna de um mecanismo de relógio, durante um tempo que pareceu a Elinor uma eternidade. Dir-se-iam gritos de um coelho apanhado numa armadilha. Mas era mil vezes pior; porque se tratava de uma criança que gritava, e não de um animal; era o seu filho, apanhado na armadilha e preso nas garras da tortura. Elinor tinha a sensação de estar presa numa armadilha também. Presa da sua incapacidade absoluta de aliviar a dor do filho. Presa daquele obscuro sentimento de culpa, daquela crença irracional (mas tenaz, a despeito do que tinha de irracional), daquela convicção que se fazia cada vez mais opressiva e sufocante, de que tudo aquilo era, de alguma maneira insondável, culpa dela — que era uma punição, malevolamente infligida a outrem, como expiação de sua ofensa. Aprisionada em sua própria armadilha, mas excluída daquela em que se achava o pequeno, ela se deixou ficar ali, sentada, segurando a mão pequenina como que através de grades, impossibilitada de ir em socorro do doente, esperando, durante os silêncios ofegantes e febris do menino, que se reproduzisse aquele grito horrível, que se repetisse outra vez mais a visão daquela face subitamente contorcida, daquele pequenino corpo convulso e atormentado por uma dor que, de algum modo, tinha sido infligida por ela própria.
O doutor veio por fim com os seus opiácios.
Philip chegou no trem do meio-dia e vinte. Não tinha tido pressa, nem se levantara cedo para vir em um trem mais matinal. Estava aborrecido por se ver obrigado a deixar Londres. Sua chegada tardia tinha o caráter de um protesto. Elinor devia realmente aprender a não fazer tanto barulho cada vez que a criança tivesse uma cólica. Era absurdo.
Elinor o esperava à porta, quando o marido desceu do carro; ela estava tão branca, tão cansada, os olhos tão desesperados e com olheiras tão escuras, que, ao vê-la, Philip sentiu um choque.
— Mas é você que está doente! — exclamou ele com inquietude. — O que é que há?
No primeiro momento ela não respondeu, mas ficou a abraçar o marido, o rosto escondido no seu ombro, toda colada a ele.
— O doutor Crowther disse que é meningite — murmurou ela por fim.
Às cinco e meia chegou a enfermeira que mrs. Bidlake chamara de manhã por telegrama. Os jornais da noite chegaram pelo mesmo trem; o chofer voltou com uma seleção deles. Na primeira página anunciava-se o descobrimento do cadáver de Everard Webley no seu próprio automóvel. Foi ao velho John Bidlake, que dormitava apaticamente na biblioteca, que levaram primeiro os jornais. O velho os leu e ficou de tal maneira excitado à notícia da morte de um outro, que esqueceu por completo todas as preocupações relativas à sua. Rejuvenescido, ergueu-se num salto e correu para o vestíbulo acenando com o jornal.
— Philip! — gritou ele com a voz forte e sonora que lhe havia fugido naquelas últimas semanas. — Philip, venha cá imediatamente!
Philip, que acabava de deixar o quarto do doente e se achava parado no corredor, conversando com mrs. Bidlake, desceu às pressas para ver o que havia. John Bidlake lhe estendeu o jornal com uma expressão quase de triunfo no rosto.
— Leia isto — ordenou ele com um ar de importância.
Quando Elinor soube da notícia, por pouco não desmaiou.
*
— Creio que ele está melhor esta manhã, doutor.
O dr. Crowther apalpou a gravata para verificar se ela estava direita ou não. Era um homem pequeno, ativo, vestido com uma impecabilidade quase excessiva.
— Mais tranquilo, hein? Dormindo? — perguntou em estilo telegráfico. Sua conversação reduzia-se ao estritamente indispensável. Era simplesmente compreensível e nada mais. Não desperdiçava energia em pronunciar palavras inúteis. O dr. Crowther falava como são fabricados os automóveis Ford. Elinor votava-lhe uma aversão intensa, mas tinha confiança no homem, precisamente por causa daquelas mesmas qualidades de eficiência viva e de confiança em si mesmo que ela detestava.
— Sim, é isso mesmo — confirmou ela. — Ele está dormindo.
— Natural... — disse o dr. Crowther, fazendo com a cabeça um sinal de aprovação, como se tudo houvesse previsto como de fato havia de ser; porque a moléstia seguia seu curso invariável.
Elinor o acompanhou até o segundo andar.
— É bom sinal? — perguntou ela com uma voz que implorava uma resposta favorável.
O dr. Crowther espichou os lábios para a frente, atirou ligeiramente a cabeça para um lado e deu de ombros.
— Bem... — disse ele, sem se comprometer; calou-se. Tinha economizado pelo menos uma caloria de energia abstendo-se de explicar que, na meningite, a fase inicial de excitamento é seguida por uma fase de depressão.
O menino passava agora os dias a dormitar em uma espécie de estupor, sem sofrer (Elinor deu graças ao céu), mas dando prova, da maneira mais inquietante, de uma falta total de interesse por tudo quanto se passava ao redor, como se não estivesse inteiramente vivo. Quando ele abria os olhos, Elinor via as suas pupilas tão exageradamente dilatadas que nelas quase não havia mais íris. O olhar azul e malicioso da criança tinha se tornado de um negror inexpressivo. A luz, que o fizera sofrer atrozmente nos primeiros dias da doença, já não o incomodava. Phil não se sobressaltava nem tremia mais a cada ruído. E mesmo parecia não ouvir quando lhe falavam. Dois dias se passaram assim; de súbito, com uma sensação horrível de queda no vácuo, Elinor compreendeu que o filho estava quase completamente surdo.
— Surdo? — repetiu o dr. Crowther quando a mãe lhe deu conta da descoberta espantosa. — Sintoma comum.
— Mas não se pode fazer nada contra isso? — perguntou Elinor. A armadilha tornava a se fechar sobre ela, a armadilha de que se julgava liberta quando aqueles gritos terríveis haviam se aquietado até o silêncio.
O dr. Crowther balançou a cabeça com energia, mas uma vez somente em cada sentido. Não falou. Uma caloria economizada é uma caloria ganha.
— Mas não podemos deixá-lo surdo assim — disse Elinor quando o médico partiu, fazendo um apelo ao marido, em uma espécie de desespero incrédulo. — Não podemos deixá-lo assim, surdo! — Ela sabia que Philip não podia fazer nada; e, no entanto, esperava... Percebia o horror, mas recusava-se a acreditar nele.
— Mas se o doutor diz que não se pode fazer nada...
— Mas... surdo? — continuava ela a repetir, em tom interrogador. — Surdo? Phil? Surdo?
— Talvez isso passe por si — sugeriu ele para consolá-la, e ficou a se perguntar, no momento mesmo em que pronunciava aquelas palavras, se a mulher imaginava ainda que a criança ia sarar.
No dia seguinte, cedo, quando, metida no seu roupão, subiu na ponta dos pés para ouvir a enfermeira fazer-lhe o relatório da noite, Elinor achou o filho já acordado. Tinha ele uma pálpebra escancarada e o olho, todo pupila, olhava verticalmente para o teto; o outro estava semicerrado, numa piscadela permanente que dava ao rostinho fino e descarnado uma horrível expressão de gaiatice.
— Ele não pode abri-lo — explicou a enfermeira. — O olho está paralisado.
Entre aqueles longos cílios crespos, que tantas vezes ela invejara, Elinor pôde ver que o globo ocular tinha rolado para o canto externo da órbita e olhava esgazeadamente para o lado, com um estrabismo fixo e cego.
*
— Por que diabo — perguntou Cuthbert Arkwright, no tom de alguém que se sente pessoalmente lesado —, por que diabo Quarles não volta para Londres? — Esperava arrancar-lhe um prefácio para a sua nova edição ilustrada dos Mimos de Herondas.
A “rusticação” de Philip — explicou Willie Waever polissilabicamente — não era voluntária.
— O filho está doente — acrescentou, emitindo sua pequena tossezinha de autoaplauso —; ele parece muito relutante, como se diria na Dinamarca, a ausentar-se por mais tempo da bem-aventurança.
— Nesse caso, seria bom que ele se apressasse — resmungou Arkwright. Franziu a sobrancelha. — Talvez convenha arranjar um outro para o meu prefácio.
Em Gattenden os dias tinham sido como estágios sucessivos de um sonho horrendo e incrível. Dois dias depois de ficar surdo, o pequeno Phil cessou igualmente de ver. Os olhos vesgos cegaram por completo. Então, ao cabo de quase uma semana de trégua, houve uma brusca volta da dor dos primeiros dias; o menino se pôs a gritar. Mais tarde foi presa, várias vezes, de violentas convulsões; dir-se-ia que um demônio lhe entrara no corpo e ficara a torturá-lo interiormente. Depois, um lado do rosto e metade do corpo doente foram atacados de paralisia, e a carne começou a se consumir de maneira quase perceptível sobre os ossos, como cera que se derrete ao calor de um fogo interno e invisível. Presa na armadilha de sua impotência e daquela horrível sensação de culpa que a notícia do assassinato de Everard Webley havia intensificado enormemente, Elinor ficava sentada à cabeceira do filho e observava as fases da moléstia que se sucediam uma à outra — cada qual, parecia-lhe, pior do que a anterior, e ainda mais atrozmente incrível. Sim, incrível. Porque coisas assim não podiam acontecer, não aconteciam. Pelo menos para ela. O filho da gente não podia ficar assim sofrendo torturas e deformações gratuitas diante de nossos próprios olhos... O homem que nos amava e cujo amor estávamos quase decididas a retribuir (mas, ah!, de que maneira pecaminosa, criminosa e, como o tinham demonstrado os acontecimentos, fatal!) não podia ser súbita e misteriosamente assassinado... Coisas como aquelas simplesmente não podiam acontecer. Eram uma impossibilidade. E mesmo assim, a despeito dessa impossibilidade, Everard estava morto e para o pequeno Phil cada dia reservava um tormento novo e ainda mais cruciante. O impossível se tornava realidade, como em um pesadelo.
Exteriormente, Elinor andava muito calma, silenciosa e ativa. Quando a enfermeira se queixou de que as refeições que lhe mandavam ao quarto do doente vinham esfriando pelo caminho (não poderiam dar-lhe chá da Índia, em vez do chá da China, que lhe perturbava a digestão?), Elinor mandou buscar Lipton e tomou providências, apesar das objeções apaixonadas de Dobbs, para que o lanche e o jantar da enfermeira daquele momento em diante fossem levados para cima nos pratos aquecidos a água quente que se usavam na casa para o breakfast. Tudo o que o dr. Crowther, em estilo telegráfico, lhe ordenava fazer, ela cumpria pontualmente; tudo, menos prolongar as suas horas de descanso. A própria enfermeira tinha de reconhecer, embora de má vontade, que Elinor fazia as coisas de uma maneira meticulosa e metódica. Mas secundava o médico no convite ao repouso, em parte porque queria ficar reinando sozinha no quarto do doente, sem que ninguém lhe disputasse a realeza, em parte desinteressadamente, para o bem da própria Elinor. Aquela calma, ela bem o via, era o resultado de um esforço, era a rigidez de uma tensão extrema. Philip e mrs. Bidlake não insistiam menos para que ela repousasse, porém Elinor não os queria ouvir.
— Mas eu estou perfeitamente bem — protestava, negando o testemunho da sua palidez e dos círculos negros que tinha ao redor dos olhos.
Quisera, se fosse humanamente possível, nunca mais comer nem dormir. Com Everard morto e o menino torturado diante de seus olhos, parecia-lhe quase um cinismo comer e dormir. Mas o simples fato de possuir um corpo é um comentário cínico à alma e a todas as suas normas. É um cinismo, entretanto, que a alma tem de aceitar, goste ou não goste. Elinor ia, pois, deitar-se às onze horas, e descia para as refeições, para que ao menos pudesse ter força para suportar ainda mais desgraças. Sofrer era a única coisa que ela podia fazer; queria sofrer o máximo possível, tanto em quantidade como em intensidade.
— Então, como vai o garoto? — perguntava-lhe o pai quando se viam no jantar. Fazia a pergunta negligentemente, enquanto atacava o seu pedaço de galinha. E quando Elinor dava qualquer resposta vaga, ele passava depressa para outro assunto.
John Bidlake tinha recusado com obstinação, desde o início da moléstia do neto, aproximar-se-lhe do quarto. Sempre detestara o espetáculo do sofrimento e da doença, de tudo o que lhe podia lembrar a dor e a morte, coisas que ele tão agoniadamente temia para si mesmo. E, no caso presente, o velho tinha um fundamento especial para o seu terror. Porque, com aquele talento de inventor de superstições pessoais que o havia sempre distinguido, chegara secretamente à conclusão de que sua própria sorte estava ligada à do pequeno. Se este sarasse, ele também sararia. Se não... Uma vez formulada, a superstição não podia mais ser ignorada. “É absurdo”, procurava ele tranquilizar-se, “é completamente insensato, é idiota!” Mas cada boletim desfavorável que vinha do quarto do menino o fazia sentir calafrios. Se ele entrasse naquele compartimento, era quase certo que haveria de descobrir, de um modo absolutamente gratuito, a confirmação horribilíssima de seus pressentimentos. E talvez (quem sabe?) os sofrimentos do menino, por algum processo misterioso, pudessem passar para o corpo dele. John Bidlake não desejava nem mesmo ouvir falar do garoto. À parte as perguntas formuladas à hora das refeições, não fazia nunca alusão ao neto, e sempre que outra pessoa falava deste, ou o velho mudava o rumo da conversação (tocando ao mesmo tempo em madeira, furtivamente), ou então fugia para onde não pudesse ouvir. Ao cabo de alguns dias, os outros aprenderam a compreender e a respeitar a sua fraqueza. E, levados por esse sentimento que decreta que os criminosos condenados sejam tratados com uma bondade especial, eles tinham o cuidado de, na presença do velho Bidlake, evitar qualquer alusão ao que se passava lá em cima.
Enquanto isso, Philip, inquieto, errava pela casa. De tempos em tempos subia ao quarto do filho; mas depois de ter feito uma tentativa, sempre improfícua, de persuadir Elinor a deixar o quarto, tornava a descer ao cabo de alguns minutos. Não teria podido suportar aquele ambiente por muito tempo. Estava apavorado diante da inutilidade das vigílias obstinadas de Elinor; tivera sempre horror a ficar sem fazer nada e, em circunstâncias daquela espécie, um longo período de desocupação mental lhe teria sido uma tortura. Nos intervalos de suas visitas ao quarto do doente ele lia, tentava escrever. Depois, havia aquele caso de Gladys Helmsley para resolver. A doença do pequeno lhe tinha tornado impossível qualquer viagem a Londres, eximindo-o assim da necessidade de ter uma entrevista pessoal com Gladys. Foi a Willie Weaver — Willie, que não só era advogado, mas também o mais leal dos amigos — que Philip delegou a tarefa de tratar do assunto. E com que intenso alívio! Ficara realmente apavorado à ideia do encontro com Gladys. Willie, pelo contrário, parecia divertir-se com a coisa.
Meu caro Philip (escreveu ele)
Tenho feito o possível em prol do autor de seus dias; mas mesmo esse possível promete ser um tanto caro, apesar dos pesares. A dama tem todos os seducentes encantos da juventude (só a etiqueta profissional impediu que eu tentasse por conta própria uma pequena superfetação brincalhona); mas é também mulher de negócios. Ademais, seus sentimentos com relação a teu velho P. estão saturados de ferocidade. Vejo-me compelido a confessar, após o que dela ouvi, que lhes acho justiça. Sabe onde ele dá de comer às suas beldades? Chez Lyons. O homem deve ser um louco barmecida,[23] conforme expliquei à jovem dama depois que ela me descreveu esta particularidade. (Desnecessário será dizer que a criatura não compreendeu o aticismo da imagem; de sorte que eu te ofereço esta, à base de uma comissão de cinco por cento sobre todos os direitos de autor correspondentes às vendas de qualquer obra ou obras na qual ou nas quais queiras introduzir a supradita imagem.) Diga a seu venerando que, da próxima vez, procure gastar um pouquinho mais nos seus entretenimentos; será provavelmente mais econômico no final das contas. Aconselha-o a satisfazer a gula ao mesmo passo que a lubricidade; pede-lhe que refreie a economia e a temperança. Hei de voltar ao ataque amanhã, esperando poder formular, preto no branco, os termos do tratado de paz. Sinto muito em saber que sua progenitura não vai bem.
Teu W. W.
Philip sorriu ao ler aquela carta e pensou: “Graças a Deus, o caso está ajustado”. Mas a última frase lhe deu vergonha da sua satisfação e da sua sensação de alívio. “Que egoísmo incomensurável!”, pensou ele numa autocensura. E, como para se penitenciar, subiu coxeando até o quarto do doente e sentou-se por um instante ao lado de Elinor. O pequeno Phil jazia num estado de estupor. Seu rosto estava quase irreconhecivelmente descarnado e sumido, o lado paralisado retorcia-se em uma espécie de esgar assimétrico. Suas mãozinhas crispavam-se continuamente, agarrando as cobertas da cama. Respirava ora muito depressa, ora com tanta lentidão que levava a indagar se respirava ainda.
A enfermeira tinha ido dar um cochilo; porque suas noites eram passadas metade em claro. Os pais se deixaram ficar ali sentados em silêncio. Philip tomou da mão da mulher e a reteve na sua. Medido por aquela leve respiração irregular que vinha do leito, o tempo passava lentamente.
No jardim, John Bidlake pintava — a mulher conseguira enfim que ele fizesse uma experiência, pela primeira vez depois de sua chegada a Gattenden. E pela primeira vez, esquecendo-se de si mesmo e de sua moléstia, o pintor se sentia feliz. “Que encantamento!”, pensava ele. A paisagem era toda curva, bojos e concavidades arredondados, como um corpo humano. O absurdo, bom Deus, o absurdo! As nuvens eram traseiros de querubins; aquela colina lisa era um ventre glauco de nereida; a “Poncheira” de Gattenden era um enorme umbigo; cada um daqueles elmos no plano médio era um grande Sileno pançudo, recém-saído de um Jordaens; e aquelas absurdas moitas arredondadas de samambaias no primeiro plano eram as tetas múltiplas de uma Diana verde de Éfeso. Postas inteiras de anatomia em folhagem, em bruma e em terra túrgida. Maravilhoso! E santo Deus, o que se podia tirar daquilo! Aquelas nádegas de serafins deviam ser os reflexos celestes das tetas de Diana; um só tema absurdo, com variações; as nádegas inclinadas para o lado de fora, atravessando obliquamente a tela na direção da superfície do quadro; os seios, inclinados para o centro e obliquando rumo do interior. E o ventre polido seria uma reconciliação transversal e horizontal dos dois movimentos diagonais, com os grandes Silenos, dispostos diante dele em um ziguezague leve. E no primeiro plano, à esquerda, ficaria o contorno silhuetado da sequoia gigante transplantada para aquele lugar pela imaginação, a fim de fazer cessar os movimentos e impedi-los de correr para fora da tela; e o grifo de pedra estaria muito bem à direita — porque aquela era uma composição fechada, um pequeno universo, com limites além dos quais a imaginação não tinha permissão de se aventurar. E o olho devia contemplá-la como que por meio de um túnel imaginário, sem poder se afastar do ponto focal, centro do vasto umbigo da “Poncheira” de Gattenden, em torno da qual todos os outros fragmentos de anatomia divina seriam harmoniosamente agrupados. “Por Deus!”, disse John Bidlake para si mesmo, blasfemando em voz alta de pura satisfação espiritual. — Por Deus! — E se pôs a pintar com uma espécie de fúria.
Errando pelo jardim, na sua cruzada sem fim contra as ervas daninhas, mrs. Bidlake parou um instante atrás dele e olhou por cima de seu ombro.
— Admirável — disse ela; e este comentário se aplicava tanto à atividade mesma do marido como a seus resultados pictóricos.
Afastou-se e, tendo arrancado um dente-de-leão, deteve-se e pôs-se, com os olhos fechados, a repetir o seu nome: “Janet Bidlake, Janet Bidlake, Janet Bidlake”, indefinidamente, até que as sílabas tivessem perdido todo significado para ela e se tornassem tão misteriosas, tão vazias de sentido e tão arbitrárias como as palavras do sortilégio de um necromante... Abracadabra, Janet Bidlake, seria ela realmente? Ela existia mesmo? E as árvores? E as pessoas? Aquele momento e o passado? E tudo...?
Enquanto isso, no quarto do menino, havia acontecido uma coisa extraordinária. De repente, sem aviso prévio, o pequeno Phil abriu os olhos e olhou ao redor. Seu olhar encontrou o da mãe. Tanto quanto lhe permitia o rosto retorcido, o menino sorriu.
— Mas ele enxerga! — gritou Elinor. E, ajoelhando-se ao pé do leito, envolveu o filho com os braços e começou a beijá-lo com um amor que era avivado por um acesso de gratidão apaixonada. Após tantos dias de estrabismo cego, ela lhe ficava agradecida, profundamente agradecida, por aquele olhar de inteligência, que tinha respondido ao seu, por aquela pobre tentativa crispada de sorriso. — Meu querido! — repetia Elinor; e pela primeira vez, depois de muitos dias, desatou a chorar. Voltou o rosto, a fim de que o filho não lhe visse as lágrimas, ergueu-se e afastou-se da cama. — Que tolice, a minha! — disse ao marido à guisa de desculpa, enquanto enxugava os olhos. — Mas não posso evitar...
— Estou com fome — falou de súbito o pequeno Phil.
Elinor de novo se ajoelhou ao pé do leito.
— O que é que você quer comer, meu querido?
Mas o pequeno não ouviu a pergunta.
— Estou com fome — repetiu.
— Está surdo ainda — disse Philip.
— Mas enxerga, fala! — Elinor tinha o rosto transfigurado. Estivera convencida todo o tempo, a despeito de tudo, que era impossível que o filho não sarasse. Absolutamente impossível. E agora iam ver que ela tinha razão... — Fica quietinho. Vou correndo buscar um pouco de leite. — E precipitou-se para fora do quarto.
Philip ficou ao lado da cama. Acariciou a mão do filho e sorriu. O menino sorriu em retribuição. E o romancista começava a crer também que se podia produzir um milagre.
— Desenhe pra mim alguma coisa... — pediu o pequeno.
Philip tirou a caneta-tinteiro do bolso e, nas costas de uma carta velha, rabiscou uma dessas paisagens cheias de elefantes e de dirigíveis, de trens, de porcos que voam e de barcos a vapor, coisas pelas quais o filho tinha um fraco particular. Um elefante colidiu um trem. Debilmente, mas com uma alegria manifesta, o pequeno Phil começou a rir. Não podia haver dúvida, o milagre tinha efetivamente se operado.
Elinor voltou com leite e um prato de geleia. Tinha as faces rosadas, os olhos lhe brilhavam, e o rosto que, durante os últimos dias, andara sempre contraído numa expressão fixa de rigidez, havia recobrado em um momento toda a sua mobilidade de expressão. Dir-se-ia que ela acabava de ressuscitar.
— Vem olhar os elefantes — disse o pequeno Phil. — Tão engraçado! — E entre cada gole de leite, cada colherada de geleia, Philip tinha de mostrar-lhe as últimas adições à sua paisagem povoadíssima: — baleias no mar, mergulhadores beliscados por lagostas, dois submarinos em combate e um hipopótamo em um balão; um vulcão em erupção, canhões, um farol e todo um exército de porcos.
— Por que você não diz nada? — perguntou subitamente o pequeno.
Marido e mulher se entreolharam.
— Ele não nos pode ouvir — disse Philip.
A expressão de felicidade de Elinor se nublou por um instante.
— Talvez amanhã — disse ela. — Se a cegueira desapareceu hoje, por que não há de desaparecer também a surdez amanhã?
— Por que estão cochichando? — perguntou o pequeno.
A única resposta que Elinor pôde dar foi beijá-lo e acariciar-lhe a testa.
— Não devemos cansá-lo — disse por fim Elinor. — Acho bom ele dormir.
Bateu no travesseiro do doente, alisou as cobertas e inclinou-se sobre ele.
— Até logo, meu queridinho!
O pequeno Phil pôde responder pelo menos ao seu sorriso.
Elinor puxou as cortinas, e ambos saíram nas pontas dos pés. No corredor ela se voltou e esperou que o marido viesse. Philip enlaçou-a com o braço e Elinor se encostou nele, soltando um grande suspiro.
— Eu estava começando a ficar com medo — confessou — de que o pesadelo durasse para sempre. Até o fim.
Naquele dia o almoço foi como um festival de ressurreição, um sacramento da Páscoa. Elinor tinha degelado, era de novo uma mulher de carne e não de pedra. E a pobre Miss Fulkes, em quem os sintomas de abatimento tinham sido idênticos aos de um resfriado mui violento acompanhado de uma erupção de espinhas, retomou uma aparência quase humana e foi movida a um riso histérico pelas brincadeiras e anedotas do também ressuscitado John Bidlake. O velho entrara esfregando as mãos.
— Que paisagem! — exclamou ele, sentando-se à mesa. — Tão suculenta, tão sumarenta, não sei se compreendem o que quero dizer, tão carnuda... não há outra palavra. Só de olhar nos vem água à boca. É talvez por isso que trago uma fome de lobo.
— Aqui está o seu caldo — disse-lhe a mulher.
— Mas não pode esperar que eu pinte toda a manhã ingerindo apenas estas águas de lavagem... — E, a despeito dos protestos, o pintor insistiu em comer um pedaço de carne.
A notícia de que o pequeno Phil ia melhor aumentou-lhe a satisfação. (John Bidlake tocou em madeira três vezes, com as duas mãos ao mesmo tempo.) De resto, para falar a verdade, ele gostava muito do neto. Começou a conversar, e foi o velho Bidlake gargantuesco quem falou. Miss Fulkes riu tão violentamente de uma das anedotas sobre Whistler que se engasgou e foi obrigada a esconder o rosto no guardanapo. Até na vaga benevolência do sorriso de mrs. Bidlake havia a sugestão de qualquer coisa que se assemelhava à hilaridade.
Perto das três horas John Bidlake começou a sentir um mal-estar que lhe era familiar, mas que se tornava, pouco a pouco, cada vez mais agudo, na região do diafragma. Foi sacudido por soluços espasmódicos. Tentou continuar seu quadro; mas todo o prazer que ele tinha sentido no trabalho se evaporara. As tetas de Diana e os traseiros de anjos tinham perdido todo o encanto para ele. “Uma ligeira obstrução no piloro...” As frases médicas de sir Herbert lhe voltaram à memória. “O conteúdo do estômago... Uma certa dificuldade em passar para o duodeno...” Depois de um soluço mais violento que os outros, ele largou dos pincéis e tornou a entrar em casa para se deitar.
— Onde está papai? — perguntou Elinor quando desceu para o chá.
Mrs. Bidlake balançou a cabeça.
— Ele não está se sentindo muito bem outra vez.
— Oh!
Houve um silêncio, e foi como se, de repente, a morte se achasse ali no quarto com eles. “Mas, no fim das contas”, refletiu Elinor, “ele era velho; aquilo era inevitável.” O pai podia estar pior, mas o pequeno Phil estava melhor; e era isso a única coisa que importava verdadeiramente. Começou a falar com a mãe a respeito do jardim. Philip acendeu um cigarro.
Bateram à porta. Era a criada de quarto, que vinha da parte da enfermeira; que o senhor e a senhora fizessem o favor de subir imediatamente.
As convulsões tinham sido muito violentas; o corpo gasto se encontrava sem forças. Quando eles entraram no quarto, o pequeno Phil estava morto.