BUENOS AIRES, 30 DE NOVEMBRO DE 1976
Às seis e meia da manhã, a fila já dava a volta à esquina. No dia anterior chegara um pouco mais tarde, tinha ocupado um lugar semelhante e não conseguira ser atendido. Manuel Arroyo Benítez sempre teve muito azar e muita sorte, porém, naquela manhã, quando a porta do Consulado de Espanha abriu, foi direito ao balcão de Informações sem pensar nem num, nem noutra.
– Bom dia, menina. Sou cidadão espanhol e preciso de arranjar passaportes espanhóis para que a minha família saia comigo do país.
– Como todas as pessoas da fila. – A funcionária sorriu com amabilidade porque era ainda muito cedo. – Sinto muito, mas tem de esperar.
Havia exatamente uma semana que os militares tinham ido buscar o namorado da filha Simona, um fotógrafo que partilhava o apartamento com um jornalista de La Nación, o jornal onde ela trabalhava. Não o haviam encontrado, mas levaram o colega, apesar de ele nem ser de esquerda… Como sabes isso, Simona? Como sabes se é de esquerda ou não? Em vez de responder à mãe, a filha abraçou-se a uma almofada e começou a chorar. Mas o Charlie não falará, murmurou entre soluços, se o encontrarem não falará, e o José Ignacio não sabe nada, que pode dizer o coitado se não sabe nada? Até esse momento Manolo mantivera-se mudo, imóvel, tão ausente como se as palavras da filha o houvessem transportado para um lugar íntimo e remoto, para uma lembrança até à qual nenhum membro da família o podia acompanhar, contudo, ao voltar a si, recordou o homem que em tempos tinha sido e extraiu da memória uma serenidade assombrosa até para si próprio. Diz-me só uma coisa, Simona… Sem levantar a voz, sem se alterar, pegou num banquinho, aproximou-o do sofá, sentou-se nele para olhar a filha nos olhos e afastou as mãos dela da almofada que abraçava, apertando-as entre as suas. Só preciso de que me digas uma coisa, repetiu, o José Ignacio sabe que tu e o Charlie são namorados? Simona assentiu com a cabeça. Nesse caso, diz-me outra coisa, e o coração encolheu-se-lhe tão depressa como se o medo o tivesse transformado num feijão preto e seco, num calhau semelhante aos que lhe encheram a boca, apagando-lhe a voz com que proferiu a pergunta crucial. O José Ignacio sabe que tu militas como o Charlie? A mulher gritou ao ouvi-lo, mas ele nem sequer se voltou enquanto a filha negava com a cabeça. Tens a certeza?, insistiu, e Simona acabou por falar. Tenho a certeza, sim, disse. Eu nunca ia às reuniões que ele fazia no apartamento, porque… Levantou a cabeça ante os soluços da mãe, que se deixara cair numa poltrona, chorando com as mãos na cara, e não sou uma terrorista, mãe, percebes? Depois encarou-o novamente, diz-lhe tu, papá, explica-lhe que não sou terrorista, que não estou na guerrilha, que a minha organização… Isso agora não interessa, Simona, olha para mim, responde-me. Tens a certeza de que o José Ignacio não pode dizer nada a teu respeito? Sim, tenho a certeza. Isso é muito bom, Manolo aprovou com a cabeça, levantou-se, apercebeu-se de que o seu coração tinha regressado ao tamanho normal e foi sentar-se no braço da poltrona onde a mulher chorava, então agora vamos fazer o que eu disser… Simona abraçou-se a Manolo, ele rodeou-lhe os ombros com um braço, acariciou-lhe a cabeça com a outra mão e olhou dali para os três filhos. Vamos todos fazer o que eu disser.
– Desculpe, menina. – Uma semana mais tarde, a funcionária do consulado nem sequer o contemplou, à medida que ele ia pousando uma série de papéis na mesa. – Mas não creio que o meu caso se pareça com o de nenhuma outra pessoa da fila. Se quiser dar uma vista de olhos a isto…
– Mas… – Diante dos seus olhos estavam meia dúzia de documentos de identidade, de países e épocas distintas, com uma única coisa em comum. – Que significa…? – Porque todas as fotografias eram retratos do homem que a observava do outro lado da mesa. – Quem é o senhor?
Inicialmente, o seu plano não foi bem-sucedido. Para, papá, não posso fazer isso. A filha voltou a chorar quando o ouviu dizer que no dia seguinte teria de ir ao jornal despedir-se, dando a desculpa de que não sabia que o namorado era um subversivo e de que a notícia a abalara tanto que precisava de algum tempo. Tu não sabes, não percebes… Esquece, ninguém vai acreditar. Claro que sim, insistiu ele, todos vão acreditar. Pensarão que és uma cobarde, mas não tem importância, Simona, numa ditadura o normal é ser-se cobarde, não se vão admirar. Depois falarão mal de ti, sim, chamar-te-ão traidora, mas tu não chegarás a saber, porque amanhã, mal te despeças, vamos todos para Fortín Tiburcio. Para Fortín Tiburcio?, a mulher olhou para ele como se aquelas duas palavras não lhe entrassem na cabeça. Enlouqueceste, galego? Que vamos fazer para lá? Veranear, foi a resposta dele. Veranear?, não posso crer, há anos que lá não vamos! E depois?, contra-atacou ele, a casa não é tua? Quando os miúdos eram pequenos íamos quase todos os anos. Se alguém te perguntar, dizes que a Simona está destroçada porque não sabia que o namorado era subversivo, a filha bufou mas ele continuou sem se voltar para ela, que o Guille e o Juan já acabaram os exames, que vais pôr a casa à venda e que vieste para tratar de tudo. Se encontrares comprador, melhor ainda. Vender a casa?, repetiu Simona, e quem vai comprá-la? Sem as terras não vale nada, viste?… Mas eu ainda não acabei os exames, pai, interveio Guillermo, a quem só faltavam duas disciplinas para terminar o curso de Engenharia Industrial. Tenho o último no dia 22 do mês que vem. Portanto, não posso ir para esse cu de judas. Eu também não, apoiou-o o irmão, tenho que fazer aqui… Manuel Arroyo Benítez olhou para eles e respirou fundo antes de falar. Queres desaparecer, Simona? Ela não respondeu. Ele olhou primeiro para a mulher, depois para os outros dois filhos. E vocês, querem que ela desapareça?
– Cheguei à Argentina como agente da República Espanhola no exílio para desempenhar uma missão diplomática que não teve êxito. Não vim por vontade própria, mas para servir o meu país, e fiquei aqui preso. Agora, a minha família está em perigo e creio que tenho o direito de voltar.
– Espere um momento. – A funcionária pegou nos passaportes antes de se levantar. – Vou falar com o cônsul, já volto.
Sei o que é um golpe de Estado militar, sei o que é uma guerra civil, já passei por tudo isto… Enquanto falava, pensava no sítio onde estava, na sua casa, no apartamento da avenida do General Las Heras, quase na esquina com Callao, pelo qual Simona havia abandonado a sua querida Balvanera. A nova casa ficava perto, a seis quarteirões da sucursal da Escola de Línguas La Europea que Manolo dirigia havia quase vinte anos na avenida Santa Fe. A viúva de Bley investira uma boa parte do dinheiro que recebera pelas terras de Fortín Tiburcio num negócio que, desde o princípio, funcionou muito melhor do que o estabelecimento original da calle Lavalle. O marido tratou de adaptar os cursos ao nível de vida de Recoleta e, além de manter o inglês comercial, assinou acordos com instituições e universidades estrangeiras, que, por um lado, lhe permitiram atribuir diplomas oficiais e, por outro, comprar a parte do senhor Brioschi no início dos anos sessenta. Nunca tinha pensado em ficar a viver na Argentina, mas Buenos Aires era a sua casa, a única que tivera desde que saíra de Robles de Laciana. Tinha uma boa vida, com um bom trabalho, um bom apartamento, uma boa situação económica, um bom amor, uma boa família, uma boa reforma pela frente. Demasiado a perder para quem nunca tivera nada. Demasiado para perder sem aviso prévio, mesmo sabendo de antemão que não havia outro remédio.
– Bem-vindo, sinta-se em casa. – O cônsul que se levantou para lhe estender a mão era um homem novo de cabelo comprido e barba, o aspeto típico dos progres26 espanhóis que Manolo só conhecia das reportagens que via na imprensa. – Sente-se, por favor, senhor… – Voltou-se para a mesa, olhando para os passaportes do visitante, pousados como peças de um quebra-cabeças, e sorriu. – A verdade é que não sei como chamar-lhe.
– Chamo-me Manuel Arroyo Benítez – respondeu ele, apontando para o passaporte mais antigo. – Mas tenho três filhos com o apelido Pacheco, pelo que o melhor será manter esse apelido.
Ouve-me, minha filha, porque sei do que falo. Se estão à procura do teu namorado, o mais certo é encontrarem-no, mais cedo ou mais tarde. E ele recusar-se-á a falar, não discuto isso. Dirá que não vai denunciar ninguém, dispor-se-á a resistir até ao limite das suas forças e talvez o consiga, não te digo que não. Porém, os torturadores levá-lo-ão muito além desse limite, primeiro partindo-lhe os ossos e depois vergando tudo o resto, os nervos, a dignidade, a consciência, até ele deixar de ser uma pessoa, até deixar de se lembrar que te ama, até nem sequer saber como se chama. São especialistas. Portanto, o Charlie falará, denunciar-te-á, e não terá culpa. Por isso, não podem encontrar-te aqui, não podem encontrar ninguém aqui… A filha tinha deixado de chorar e olhava para ele com os olhos avermelhados, afundados nas órbitas, as faces cor de cera e uma expressão de terror que o deixou simultaneamente horrorizado e reconfortado, porque nunca mais a queria ver, porque facilitava muito as coisas. Isto também tem que ver convosco, e voltou-se para os filhos, porque se vierem buscar a vossa irmã e não a encontrarem, levam-vos a vocês, fazem-no sempre, nunca vão de mãos vazias. E interrogar-vos-ão, mesmo que vocês não saibam nada, e não se conformarão com que não saibam… Em Espanha foi igual, é sempre igual, e sei porque já o vivi. Fez uma pausa para os olhar a todos, um por um. Sabem o que está a acontecer, não sabem? Se quisermos continuar juntos, se quisermos continuar vivos, não nos resta outro remédio senão partir. De Buenos Aires ou…? A mulher estava prestes a chorar. Ele aproximou-se, abraçou-a e não se atreveu a responder à pergunta.
– E já pensou no que vai fazer quando regressar a Espanha? – Depois de preencher os impressos necessários para solicitar os passaportes, o cônsul espanhol em Buenos Aires inscreveu todos os membros da família Pacheco Gaitán na lista de residentes espanhóis na Argentina, para proteger Simona, confessando ao visitante que adoraria convidá-lo para almoçar e ouvir a sua história.
– Quer outro café?
– Não, obrigado. – Manolo sorriu àquele homem que se comprometeu a acelerar todas as formalidades antes de lhe retribuir o relato com uma história de família acerca de homens fuzilados e de mulheres rapadas27, tão conhecida, tão triste como a de tantos outros descendentes de republicanos espanhóis. – Já tenho demasiadas dificuldades para dormir. Quanto ao meu regresso, vou instalar-me em Madrid. Tenho lá um amigo que me vai ajudar.
Foi tudo muito difícil. Na terça-feira, 23 de novembro de 1976, mal entrou no carro depois de se despedir do jornal, Simona informou o o pai de que nunca lhe perdoaria. A mãe nada disse porque estava demasiado preocupada com Guillermo, que, na noite anterior, tinha dormido em casa de um amigo depois de anunciar que ficaria em Buenos Aires. Juan, furioso por não ter conseguido imitá-lo, passou metade da viagem a culpar a irmã por tudo, levando-a às lágrimas, e não voltou a abrir a boca. Chegaram ao destino num silêncio mais atroador do que os gritos, e Simona foi a única que acedeu a dar um passeio com o marido. Aquilo bastou para que os vizinhos ficassem a saber que se encontrava ali a passar uns dias com os filhos, que queria vender a casa e que o marido precisava de regressar ao trabalho na capital, embora voltasse a tempo da consoada em família. Manolo pediu à mulher que lhe telefonasse todas as noites contando novidades, porém, quando voltou ao norte com o filho que faltava, ainda não tinham nada de importante para contar. Charlie continuava escondido quando o pai da namorada distribuiu passaportes e bilhetes de avião. Guillermo guardou os seus, mas voltou a frisar que não iria para Espanha.
A 28 de dezembro, toda a família Pacheco Gaitán regressou a Buenos Aires pela última vez. Nessa noite, jantaram em casa da tia Adelina, a quem Manolo pedira que representasse os seus interesses no país durante a sua ausência. Simona fizera-o prometer que não venderiam nada além daquela casa de campo pela qual não sentia grande carinho, mas acedeu a alugar o apartamento de Recoleta. Manolo, com muito mais experiência em exílios, sabia que não conseguiria manter a promessa por muito tempo, mas assinou uma procuração para que a cunhada tratasse da venda de uma casa, do arrendamento da outra e da cobrança dos lucros da escola. Antes de se sentarem à mesa, a sogra afastou-se com ele para um canto a fim de lhe prometer que ficaria atenta a tudo, e Manolo emocionou-se ao verificar que aquela velhota fora a única a pensar nele. Já não vais poder reformar-te, coitadinho, disse-lhe depois da sobremesa, pegando-lhe nas mãos, e o genro deu-lhe razão. Sabia que teria de continuar a trabalhar, mas que na sua idade, e depois de tantos anos de ausência, também não encontraria um emprego muito bom, mas agora não posso pensar nisso, reconheceu em voz alta. Havemos de nos arranjar, acabou por acrescentar sem mais explicações, e o eco daquelas palavras acompanhou a família até àquela que era ainda a sua casa. No dia seguinte, um céu radiante contrastou com o silêncio chuvoso com que fizeram as malas, quase sem falar, cada um deles mergulhado na sua própria tristeza, tão absorto num luto privado como se não partilhasse com os outros uma desgraça comum. Quando Guillermo foi ter com ele para lhe dizer que tinha deixado a mala no vestíbulo, Manolo adivinhou que o mérito era da sogra e, depois de abraçar o filho que afinal não ficaria para trás, sentiu-se melhor.
– Posso comprar uma caixa de alfajores? – A filha puxou-o pelo braço, quando passaram pela loja do aeroporto. – Gostaria de a levar como recordação.
– Claro que sim. – O pai olhou para ela e abraçou-a. – Vamos comprar duas e comemos uma no avião, queres? – Ela assentiu com os lábios num beicinho infantil e o pai teve tanta pena que escolheu esse momento para começar a mentir em voz alta. – Não nos vamos embora para sempre, Simona. Voltaremos mal pudermos, prometo-te.
– Pois claro. – Juan sorriu com um canto da boca. – Se demorarmos o mesmo que vocês… – O pai contemplou-o sem saber o que dizer e ele ficou tão vermelho que não parecia ter dezoito anos acabados de fazer. – Desculpa, velho, já sabes que sou um boludo.
Sem soltar Simona, abraçou Juanito. Não se atreveu a dizer-lhe que tinha razão, que o destino dos exilados é conhecer só uma data, a do dia em que abandonam o país, nunca a do regresso, mas percebeu que ele já o sabia. Talvez por isso, naquele instante, abraçado à filha mais velha e ao filho mais novo, recordou inadvertidamente Clara Stauffer, Magda Ivanissevich, Walter Kutschmann, aquele comité que lhe dera as boas-vindas em Ezeiza quase trinta anos antes, quando contava pelos dedos os meses para voltar a Espanha como vencedor de uma guerra que tinha voltado a perder. Despacha-te, velho, estão a chamar para o nosso voo… A voz de Guillermo livrou-o de uma recordação que o feria, e o resto foi mais fácil, comprar alfajores, passar pelo controlo, embarcar num avião da Iberia, ocupar os cinco lugares da mesma fila, voar, distanciando-se de casa durante muitas horas, atravessar o oceano, tentar adormecer e consegui-lo com dificuldade. Quando o avião aterrou em Barajas, estavam todos tão cansados que até os filhos se alegraram com a chegada. Entraram oficialmente em Espanha como espanhóis, com os seus passaportes novos, impolutos, e Manolo não estranhou menos do que eles, porque o ar não o soube abraçar como da primeira vez, e os ouvidos não se emocionaram ante o sotaque áspero e seco da própria voz.
– Anda, galego… – A mulher apercebeu-se e tentou animá-lo. – Alegra-te. Mereces, já voltaste a casa.
– Achas?
Nessa altura avistou uma cabeça grisalha, um semblante rígido, o sorriso que lhe desfez num instante a seriedade, e alegrou-se muito por voltar a ver o doutor García.
Sobretudo porque o seu aparecimento lhe poupou a amargura de contradizer Simona.
26 Progre: progressista. (N. da T.)
27 Durante a guerra civil espanhola, mas também no período que se lhe seguiu, utilizou-se contra mulheres e meninas uma forma de repressão que consistia em rapar-lhes o cabelo. Muitas vezes esta punição vinha acompanhada de outros atos de humilhação pública. (N. do E.)