O que quero narrar deve ter acontecido depois de 1979, mas o fio do meu pensamento teima em ignorar esse limite e volta àquele outono de 1969, com seu sol radiante, seus crisântemos dourados e seus gansos migrando para o sul. Nesse ponto, já não me distingo de minha lembrança. Meu pensamento, ou aquele eu que fui um dia, um menino solitário expulso da escola, mas ainda atraído pelo vozerio que vinha lá de dentro, esgueira-se tímido pelo portão sem vigia, atravessa um corredor comprido e escuro e alcança um pátio escolar rodeado de construções. À esquerda ergue-se um poste de madeira tendo no topo uma trave amarrada com arame, de onde pende um sino enferrujado. À direita, uma mesa rústica de pingue-pongue, feita de tijolo e cimento. Em torno dela, uma multidão assiste a uma partida entre duas pessoas. O vozerio vem daqui. A Escola Rural está em férias de outono; na torcida que cerca a mesa, os professores são maioria e bem poucas as meninas bonitas. Elas são as competidoras que a escola vem preparando especialmente para o campeonato distrital que vai acontecer no Aniversário da Revolução. Em vez de aproveitar as férias, elas são obrigadas a treinar na escola. Filhas de funcionários da Fazenda Estatal, são meninas bem alimentadas e, por isso mesmo, bem desenvolvidas, donas de uma pele de porcelana. Vêm de famílias ricas, usam roupas coloridas, e só de olhar já dá para saber que não pertencem a nossa ralé. Babávamos por elas, que nem se dignavam a lançar um olhar em nossa direção. Um dos jogadores é o professor de matemática, Liu Tianguang. Ele é baixinho e tem uma boca enorme. Dizem que consegue abocanhar o próprio punho, mas ele nunca demonstrou essa sua especialidade na nossa frente. Volta e meia passa pela minha cabeça a visão dele bocejando em sala de aula. Aquela boca escancarada era um verdadeiro espetáculo. Ele tinha o apelido de Hema, que quer dizer hipopótamo. Não fazíamos ideia de que animal era aquele, sabíamos era do sapo, que chamamos hama, também dotado de uma bocarra considerável. Como hema e hama têm pronúncia parecida, Liu Hema obviamente passou a ser chamado de Liu Hama, ou Liu Sapo. Nem tinha sido invenção minha, mas depois de investigarem a torto e a direito, acabaram concluindo que o culpado era eu. Liu Sapo era filho de mártir, e ainda por cima vice-diretor do Comitê Revolucionário Escolar, era óbvio que botar apelido nele consistia ofensa grave. Acabar expulso da escola e enxotado portão afora foram meros desdobramentos inevitáveis.
Desde pequeno sou atrevido, desde pequeno sou desastrado, desde pequeno sou mestre em arranjar sarna para me coçar. Muitas vezes eu só queria puxar o saco do professor, mas ele logo imaginava que ali tinha armadilha. Minha mãe suspirava: “Ai, filho, você é uma coruja de bom agouro, não faz jus à fama”. Só que nunca ninguém me relacionou a coisas boas, toda coisa ruim era sempre eu que fazia. Muita gente achava que eu tinha um parafuso a menos, que era um cabeça-dura e que odiava a escola e os professores. Total equívoco. Na verdade eu nutria um sentimento profundo por minha escola, em especial pelo professor Boca Grande. Porque eu também era um menino de boca grande. O menino em meu conto “Boca grande” foi inspirado em mim. O professor Liu Boca Grande e eu estávamos, na verdade, unidos pelo infortúnio. Devíamos ter mais compaixão um pelo outro. Bem diz o ditado: quem sofre a mesma doença, sente a mesma dor. Eu poderia inventar um apelido para qualquer pessoa, menos para ele. Isso era óbvio, só que o professor Liu não se deu conta. Puxou-me pelo cabelo até a sala dele e me deu um chute que me fez cair no chão. Então disse o seguinte:
– Você… você… nunca se olhou no espelho? Nunca viu essa sua boquinha de cereja, nem mesmo refletida na poça do seu próprio mijo?
Tentei me explicar, mas ele não quis saber. E assim um menino que tinha especial afeição pelo professor Liu Boca Grande – eu, Mo Boca Grande – foi expulso da escola. Só que meu atrevimento era tamanho que, mesmo depois de ter minha expulsão anunciada diante de todo o corpo docente e discente, eu continuava amando a escola como se nada tivesse acontecido. Todo dia andava até lá de mochila nas costas para achar um jeito de entrar sem que ninguém percebesse. No começo o professor Liu me mandava embora; quando eu não obedecia, ele me pegava pela orelha ou pelo cabelo e me arrastava para fora. Mas nem bem ele voltava para sua sala eu já estava outra vez lá dentro. Depois ele encarregou uns alunos grandalhões de me enxotar; quando eu resistia, eles me pegavam pelos braços e pelas pernas e me jogavam na rua. Nem bem eles voltavam para suas carteiras eu já reaparecia do lado de dentro. Colava-me a um canto do muro, o corpo todo encolhido, em parte para não ser notado, em parte para despertar compaixão. Dali eu assistia às brincadeiras das outras crianças durante o recreio e ouvia o burburinho que faziam. O que eu mais gostava de ver era o pingue-pongue, ficava fascinado, muitas vezes meus olhos se enchiam de lágrimas e eu mordia o punho. Depois, eles desistiram de me pôr para fora.
Vejo como se fosse hoje aquela tarde de outono quarenta anos atrás: eu colado ao canto do muro, o professor Liu Sapo brandindo a enorme raquete de pingue-pongue que ele mesmo desenhara e que mais parecia uma pá militar; sua adversária era Lu Wenli, a colega que se sentava ao meu lado na sala de aula. Na verdade Lu Wenli também era uma menina de boca grande, mas grande de um jeito razoável, nada a ver com a bocarra do professor Liu e a minha. Mesmo naquela época em que bocas grandes não faziam sucesso, ela já podia ser considerada uma menina bonitinha. Além do mais, o pai dela era motorista da Fazenda Estatal e dirigia um Gaz 51 importado da União Soviética, imponente, possante. Dirigir caminhão, naquele tempo, não era para qualquer um. O professor conselheiro da nossa turma uma vez nos pediu uma redação sobre o tema “Meu sonho”. Metade dos meninos queria ser motorista. He Zhiwu, um colega que, com sua estatura, sua corpulência, seu rosto cheio de espinhas e seu bigode parecia ter uns vinte e cinco anos, escreveu apenas: “Não tenho nenhum outro sonho. Só tenho um sonho. O meu sonho é ser o pai da Lu Wenli”. O professor Zhang gostava de ler para nós as redações que considerava a melhor e a pior da turma. Em vez de revelar o nome dos autores, pedia que a gente adivinhasse, depois de terminada a leitura. Naquela época, falar em língua culta na roça era motivo de chacota; na nossa escola não era diferente. O professor Zhang era o único que se atrevia a falar em língua culta. Ele era formado pela Escola Normal e passava um pouco dos vinte anos de idade. Tinha um rosto magro, comprido e pálido, repartia o cabelo do lado, vestia um paletó militar de gabardine azul desbotado. Prendia a gola com clipes e protegia as mangas com longas braçadeiras azul-escuras. Certamente vestia outras cores, outros modelos, não é possível que trajasse sempre a mesma coisa nas quatro estações do ano, mas na minha lembrança a imagem dele está invariavelmente ligada a essa roupa. Sempre me lembro primeiro das braçadeiras e dos clipes na gola, depois lembro do paletó, do rosto, das feições, da voz, da expressão do rosto. Se não seguir essa ordem, não consigo me lembrar da aparência dele. O professor Zhang poderia ser descrito como “um tesouro” nos anos 1980, “um gato” nos 1990 e “um arraso” nos dias de hoje? Talvez na linguagem atual haja alguma expressão mais em voga para designar um jovem bonito, mas só terei condições de chegar a uma conclusão depois de perguntar a minha jovem vizinha. He Zhiwu parecia muito mais velho que o professor. Dizer que ele parecia o pai do professor seria exagero, mas podia passar por tio sem dificuldade. Lembro do professor lendo a redação de meu colega num tom afetado e irônico: “Não tenho nenhum outro sonho – Só tenho um sonho – O meu sonho é ser o pai da Lu Wenli”. Depois de um breve silêncio, a classe toda explodiu numa gargalhada. A redação de He Zhiwu tinha só três frases. O professor segurava o caderno pelo canto e o sacudia como se quisesse fazer algo cair lá de dentro. “Gênio, um verdadeiro gênio!”, disse o professor Zhang. “Adivinhem quem escreveu esta pérola.” Ninguém sabia dizer, ficamos olhando para todos os lados em busca do tal gênio. Logo nossos olhares convergiram para o rosto de He Zhiwu. Ele era o mais alto e o mais forte da turma. Gostava de importunar o companheiro de carteira, por isso o professor Zhang o mandava sentar-se sozinho no fundo da sala. Centro de nossas atenções, ele parecia ruborizar, um tanto encabulado. Mas olhando bem, via-se que não era bem isso. Ele até parecia bastante satisfeito, pois exibia um sorrisinho bobo, debochado e meio malandro. Tinha o lábio superior mais curto. Quando sorria, mostrava a gengiva roxa e os dentes amarelos separados na frente. Sua especialidade era fazer saírem bolhinhas dessa fresta entre os dentes. Uma atrás da outra. As bolhinhas flutuavam na frente dele, era uma visão fascinante. Ele recomeçou aquilo das bolhinhas e o caderno de redação voou da mão do professor na direção dele, só que caiu no meio do caminho, na frente de Du Baohua – essa sim, uma boa aluna –, que o pegou e lançou para trás cheia de asco. O professor perguntou: “He Zhiwu, que história é essa de querer ser o pai da Lu Wenli?”. Nosso colega continuou com suas borbulhas. “Levante-se!”, gritou o professor. O aluno se levantou, fazendo cara de pouco-caso. “Fale! Por que quer ser o pai da Lu Wenli?” Foi outra gargalhada geral. No meio da confusão, Lu Wenli deitou a cabeça na mesa, aos prantos. (Até hoje não entendi por que ela precisava chorar.) He Zhiwu recusava-se a responder à pergunta do professor e assumia um ar ainda mais desaforado. A choradeira de Lu Wenli só servia para complicar um assunto simples. O atrevimento de He Zhiwu desafiava a autoridade do professor Zhang. Se soubesse que a coisa evoluiria daquela forma, acho que o professor não teria lido a redação do nosso colega em público. Mas flecha disparada não volta para o arco. O professor não tinha opção senão dizer: “Ponha-se daqui para fora!”.2
He Zhiwu, nosso colega genial, aquele que era mais alto que o professor, abraçou a mochila contra o peito, deitou-se no chão, encolheu o corpo e começou a rolar pelo espaço estreito entre as carteiras. O riso mal saiu de nossas gargantas e foi engolido de volta, efeito do clima tenso que se instalara na sala de aula, impróprio para risadas. Essa tensão toda vinha da fisionomia do professor Zhang, lívida de raiva, e dos soluços de Lu Wenli. Além do mais, nosso colega rolava de um jeito atrapalhado. Sem ter como definir a direção do movimento, ia batendo nos pés das carteiras e dos bancos. A cada impacto era preciso reajustar a rota. O barro trazido por nossos sapatos transformara o piso de tijolos num terreno acidentado. Aquela devia ser uma posição desconfortável para He Zhiwu. Mas posição ainda mais desconfortável era a do professor Zhang. O desconforto do aluno era físico, o do professor, mental. Torturar-se fisicamente para punir outras pessoas é um golpe baixo, em nada condizente com um herói. Mas quem consegue fazer isso não é um vilão qualquer. Um grande vilão tem sempre algo de heroico, e um grande herói tem sempre algo de vil. He Zhiwu é um grande vilão ou um grande herói? Não sei dizer. De todo modo, como ele é o protagonista desta história, o leitor acabará chegando a sua própria conclusão. Foi assim que ele saiu da sala. Levantou-se, o corpo cheio de terra, e foi embora sem olhar para trás. O professor Zhang gritou: “Parado aí!”. Mas He Zhiwu foi embora sem olhar para trás. Lá fora o sol ardia, dois pássaros grasnavam na árvore ao lado da sala de aula. Eu via um halo dourado em torno do meu colega. Não sei o que passava pela cabeça dos outros, mas para mim àquela altura ele já se transformara num herói. Avançou a passos largos, resoluto. Pedaços de papel voavam de sua mão e dançavam no ar antes de tocar o chão. Não sei quanto aos outros, mas naquele momento meu coração pulava. Ele estava rasgando a cartilha! Estava rasgando o caderno! Estava cortando todos os laços com a escola. Deixava a escola para trás, pisando no professor. Era um passarinho fora da gaiola. Estava livre. A disciplina escolar já não o atingia. Quanto a nós, continuávamos sob o jugo do professor. O complicado era que, ao rolar até a porta e rasgar seu livro, He Zhiwu ganhou minha admiração profunda e me fez sonhar em, um dia, também ser capaz de tamanha proeza. Mas pouco tempo depois, quando o Boca Grande me expulsou, fiquei arrasado – meu apego à escola não me deixava em paz. Esse pequeno fato basta para distinguir com toda a clareza o herói do covarde.
He Zhiwu já encerrara sua saída triunfal, mas Lu Wenli continuava soluçando. Sem disfarçar a impaciência, o professor Zhang disse: “Chega! He Zhiwu queria ser motorista como seu pai, não queria ser seu pai de fato. Além do mais, mesmo que ele quisesse ser seu pai, isso por acaso o tornaria seu pai?”. Assim que o professor terminou de falar, Lu Wenli levantou a cabeça, puxou um lencinho estampado, enxugou os olhos e parou de chorar. Ela tinha uns olhos grandes, bem separados, que lhe davam uma expressão meio abobada quando olhava para alguém de frente.
Mas por que sonhávamos ser como o pai de Lu Wenli? Por causa da velocidade. Meninos são fascinados por velocidade. Se ouvíssemos o ronco do motor durante a refeição em casa, largávamos o prato e corríamos até a esquina para assistir à passagem daquele Gaz 51 verde dirigido pelo pai de Lu Wenli, que vinha como um bólido de um lado ou de outro da aldeia. As galinhas que ciscavam a poeira da estrada voavam apavoradas, e os cachorros vadios saltavam para a valeta lateral. Em resumo, era o caminhão passando e os animais pulando. Muitos deles foram vítimas fatais em vários acidentes, mas nem por isso o pai de Lu Wenli diminuía a velocidade. O dono da galinha ou do cachorro, sem dizer palavra, voltava para casa carregando ou arrastando o bicho morto. Ninguém jamais reclamou de nada, nem mesmo foi atrás do motorista. Um caminhão tem de correr assim, se não corre, não é caminhão. Galinhas e cachorros é que precisam dar passagem, não o oposto. Dizem que esse Gaz 51 de fabricação soviética serviu na Guerra de Resistência à Agressão Norte-Americana e em Ajuda à Coreia. Os buracos de bala na carroceria, deixados por caças americanos, eram prova de um passado glorioso. Em tempos de guerra ativa, ele avançava entre saraivadas de balas. Em tempos de paz, corria levantando uma nuvem de poeira pela estrada. Quando o caminhão passava diante de nós, podíamos ver, pelo vidro, o pai de Lu Wenli cheio de si. Às vezes ele usava óculos de sol, outras vezes não; às vezes calçava luvas brancas, outras vezes não. Eu gostava quando ele usava tudo, luvas brancas e óculos de sol. Isso porque tínhamos assistido a um filme em que um dos nossos agentes, disfarçado de alto oficial do inimigo, de luvas brancas e óculos escuros, vai inspecionar uma posição da artilharia inimiga. Ele passa o dedo por dentro do cano de um canhão e mancha a luva. Então pergunta, no tom típico dos oficiais: “Isso lá é jeito de cuidar de um canhão?”. A farda inimiga, de estilo americano, era mesmo bonita e caía especialmente bem no heroico agente, com suas luvas brancas e seus óculos escuros. Uma elegância desmedida. Durante muito tempo depois de ver o filme continuamos brincando de imitá-lo: “Isso lá é jeito de cuidar de um canhão?”. Mas sem aquelas luvas brancas, o efeito nunca era igual. Todos nós desejávamos um dia ter um acessório daqueles. Já a farda, os óculos de sol e o revólver pendurado na cintura eram artigos tão sofisticados que nem ousávamos sonhar com eles. Muitos rapazes da nossa turma e até várias meninas idolatravam He Zhiwu, não só por ele ter saído da escola em grande estilo como também pelo espetáculo de extrema elegância que encenara diante de todos, professores e alunos, pouco depois de sua saída.
Foi num 1º. de junho, Dia das Crianças. A escola toda estava reunida para o hasteamento da bandeira no pátio externo. Apesar de vivermos numa aldeia remota, éramos vizinhos de uma fazenda estatal que recebera um grupo de habilidosos “direitistas”. Alguns deles, com especial vocação para artes e esportes, trabalhavam como professores substitutos em nossa escola. Graças a eles, Lu Wenli virou campeã juvenil de tênis de mesa de Gaomi, e Hou Dejun conquistou o campeonato de salto com vara de Changwei. Além disso, eles nos ajudaram a montar uma banda marcial decente. Tínhamos um bumbo, dez caixas, dois gongos, dez trompetes, dez trombones, mais duas tubas reluzentes, daquelas que dão uma volta no corpo e têm a boca virada para cima. Os camponeses estavam acostumados com instrumentos de percussão como tambores, gongos e címbalos, que criam um ruído aborrecido, monótono e provinciano, tum-tum-tá, tum-tum-tá, tum-tá-tum-tá, tum-tum-tá. A estreia da nossa banda no pátio, com aquele aprumo, aquele garbo, aquele encanto, deixou os aldeões de queixo caído. Quem já tinha visto uma guarda de honra daquelas? Quem já tinha escutado algo assim? A escola mandou fazer uniformes para os integrantes da banda, calção azul e camisa branca para os meninos, camisa branca e saia azul para as meninas. Todos ganharam longas meias brancas e tênis igualmente brancos. Os rostos recebiam ruge, as sobrancelhas eram pintadas com lápis-carvão. As meninas usavam uma fita vermelha no cabelo e os meninos uma gravata borboleta vermelha no pescoço, era bonito mesmo. Como se não bastasse, todos usavam finas luvas brancas! Esses instrumentos e uniformes custaram uma fortuna que a escola não conseguiria obter nem que vendesse todas as carteiras mais o sino de ferro, mas, para a Fazenda Estatal Jiaohe, aquilo era como uma pena para uma galinha. Não digo um pelo para nove bois, como no ditado popular, porque aí seria exagero. Mencionei a fazenda em vários dos meus livros, e também aqueles “direitistas”, que, para mim, eram alegres e sabiam aproveitar a vida. Eles são os protagonistas do conto “Uma corrida trinta anos atrás”, os leitores interessados podem procurar e ler. Aquilo é ficção, inventei a maioria daquelas histórias, mas aqui escrevo basicamente minhas lembranças. Se houver algo em desacordo com os fatos históricos, a culpa só pode ser da memória, que me falha depois de tantos anos.
A Fazenda Estatal Jiaohe, de propriedade pública, e o Corpo de Produção e Construção de Xinjiang, que ainda existe, originalmente integravam um mesmo sistema organizacional. A maioria de seus membros era formada por veteranos do exército. Mais tarde chegaram vários “jovens qualificados” de Qingdao. No início dos anos 1960, quando ainda se usavam ferramentas antiquadas como carros de boi e arados de madeira, a fazenda já possuía uma colheitadeira vermelha de fabricação soviética. A visão daquela máquina avançando ruidosa pelo trigal imenso tinha sobre nós um efeito comparável ao que tiveram sobre nossos avós as locomotivas alemãs que passavam pela aldeia cuspindo fumaça preta em 1904, na então recém-inaugurada ferrovia Qingdao-Jinan. Para uma empresa daquele porte, equipar a escola vizinha com uma banda marcial era realmente uma ninharia. Desculpem minha narrativa prolixa, minha cabeça está cheia de lembranças embaralhadas. Não tenho intenção de escrevê-las, elas é que vão brotando por conta própria.
Por que a Fazenda Jiaohe queria equipar nossa escola com uma banda marcial? Porque ali estudavam os filhos de muitos de seus funcionários. E por que nos mandavam direitistas como professores substitutos? Pelo mesmo motivo. Dos professores locais, Zhang só cursara a Escola Normal, e Boca Grande nunca passara do ginásio. Mas os direitistas enviados pela fazenda eram todos notáveis intelectuais. A esta altura, acho que vocês já entenderam que naquela época nossa escola era a melhor da península de Shandong. Fui expulso da escola na quinta série; apesar disso descobri, mais tarde, no serviço militar, que ainda podia facilmente dar aulas aos meus companheiros de Exército que haviam concluído o Colegial. Se eu tivesse me formado naquela escola poderia entrar, só com meu Ensino Fundamental, na Universidade de Pequim ou na Tsinghua em 1977, quando foram retomados os exames de admissão.
Enquanto assistíamos ao hasteamento da bandeira de cinco estrelas ao som de “O Oriente é vermelho” tocado pela banda marcial, He Zhiwu apareceu no lugar mais visível do pátio usando uma farda desbotada, um quepe de oficial praticamente novo, luvas brancas, óculos de sol e um chicote caseiro. Por que tocavam “O Oriente é vermelho” em vez do hino nacional no hasteamento da bandeira? Porque os autores do hino nacional haviam caído em desgraça. E onde He Zhiwu tinha arranjado aquele figurino? Não sabíamos dizer. Muitos anos depois, quando o encontrei em Qingdao, perguntei-lhe a respeito disso. Ele riu e respondeu – meio de brincadeira, meio a sério: “Peguei emprestado do pai da Lu Wenli”. Apesar de o efeito não ser igual ao do herói do filme, aquilo foi suficiente para nos fulminar.
Marchando a passos largos, cabeça erguida e peito inflado, ele passou impávido entre as fileiras de alunos e a diretoria. Andando, apontava o chicote para nós e dizia, num tom teatral: “Isso lá é jeito de cuidar de um canhão?”.
A diretoria toda ficou sem ação. De olhos arregalados, seus membros viram He Zhiwu passar diante deles. De olhos arregalados, viram-no passar outra vez diante deles, voltando. He Zhiwu entrou assoviando no beco ao lado do pátio. Nossos olhares seguiram seu vulto, vimos quando ele subiu o dique, desceu o dique e sumiu para os lados do rio. Sabíamos que o leito não estava seco, ficamos imaginando o que ele faria ao chegar à margem, como seria a cena? Tiraria a roupa para dar um mergulho ou ficaria admirando o próprio reflexo na água? Depois disso, toda a programação organizada pela escola perdeu a graça. Não havia declamação de poema nem esquete cômico que conseguisse fazer nosso interesse voltar da beira do rio. O professor Liu Boca Grande anunciou, furioso: “Vamos dar uma lição nele!”.
Mas nunca ficamos sabendo qual fora a lição dada em He Zhiwu. O pai dele trabalhara a vida inteira como empregado de lavoura, a mãe era veterana do Partido, a mais antiga da aldeia, tinha o rosto bexigoso, pés grandes e pavio curto. Muitas vezes, sem motivo aparente, subia na pedra de moinho em frente a sua casa e esbravejava aos quatro ventos. Ao fazer isso, punha a mão esquerda na cintura, erguia o braço direito e ficava parecendo uma chaleira daquelas antigas. He Zhiwu era o mais velho de quatro irmãos e duas irmãs. A família vivia em um casebre de três cômodos e não tinha nem uma esteira para forrar o kang.3 Nem o próprio presidente Mao saberia o que fazer com uma pessoa nessa situação, quanto mais o Liu Boca Grande.
No outono de 1973 consegui um emprego temporário na fábrica de processamento de algodão, com a ajuda do meu tio que trabalhava lá como contador. Embora fosse temporário, ao fim de cada mês eu pagava vinte e quatro iuanes para a equipe de produção e ainda me sobravam quinze. Naquele tempo em que a carne de porco custava um iuane e quarenta centavos o quilo e os ovos seis centavos a unidade, dava para fazer muita coisa com quinze iuanes. Comecei a andar na moda, deixei o cabelo crescer e consegui vários pares de luvas brancas. Aquilo me subiu um pouco à cabeça. Um dia, He Zhiwu veio me procurar depois do trabalho. Calçava um par de sapatos furados, tinha os dedos à mostra e carregava nas costas um cobertor puído dobrado em quatro. Cabelos desgrenhados, barba crescida, três rugas profundas na testa. “Me empresta dez iuanes, vou para o Nordeste procurar trabalho”, pediu ele. “Mas depois que você for embora, o que vai ser de seu pai, sua mãe e seus irmãos?”, perguntei. “O Partido Comunista não vai deixar eles morrerem de fome.” “Vai fazer o quê lá no Nordeste?” “Não sei, mas é melhor do que ficar aqui até morrer, não é? Olha para mim, tenho quase trinta anos e nem consigo arrumar uma mulher para me casar, vou para outro lugar por uns tempos, mudar de lugar pode ser ruim para as plantas, mas faz bem aos homens.” Para dizer a verdade, eu não queria emprestar a quantia, naquele tempo dez iuanes não eram pouca coisa. “Quer fazer uma aposta?”, propôs ele. “Se eu me der bem, não devolvo o dinheiro. Se me der mal, vou te pagar nem que precise vender meu sangue.” Para ser sincero, não consegui entender aquela lógica. Mesmo assim, depois de muita hesitação, acabei emprestando a quantia que ele me pedira.
Vamos voltar àquela tarde em que eu assistia, escondido num canto do muro, ao pingue-pongue entre o professor Liu Boca Grande e Lu Wenli. O professor jogava com uma técnica medíocre, mas era obcecado pelo esporte e gostava de competir com as alunas. Nenhuma das selecionadas para o time da escola era feia, e Lu Wenli era a mais bonita de todas. Por isso era a adversária favorita do professor. Durante as partidas, sem perceber o professor abria aquela sua boca enorme. Se ficasse só nisso, tudo bem, mas ele emitia, das profundezas de sua bocarra, um som esquisito, coac-coac, parecia que criava sapos lá dentro. Ver ou ouvir o professor Liu jogar era uma tristeza. Eu sabia que Lu Wenli jogava com ele muito a contragosto, mas, como o professor era da diretoria, ela não tinha escolha. Daí vinha todo aquele desalento, aquela contrariedade que ela deixava transparecer no rosto e nos movimentos aleatórios que fazia com a raquete durante as partidas com o professor. Mencionei tudo isso só para compor a seguinte cena dramática: o professor Liu, de boca escancarada, vupt, lança uma bola alta com efeito, que Lu Wenli rebate, distraída. Entretanto, como se tivesse criado olhos, a cintilante bolinha de pingue-pongue voa direto para dentro da boca do professor.
A plateia fica atônita por um momento e depois cai na gargalhada. De tanto rir, a professora Ma, que já era corada, fica vermelha como uma crista de galo. Lu Wenli, antes de cara amarrada, deixa escapar uma risadinha. Eu sou o único que não ri, só me pergunto, abismado, como é possível tanta coincidência. Naquela hora até me vem à cabeça uma história contada pelo Vovô Wang Gui, famoso contador de histórias da nossa aldeia: certa vez o azarado Jiang Ziya foi vender farinha e veio uma ventania, foi vender carvão e não veio o frio, virou o rosto para o céu num longo suspiro, veio um passarinho e cagou na boca dele. Vinte anos depois, no outono de 1999, eu estava em Pequim indo de metrô para o trabalho no Diário da Procuradoria, quando passou um jornaleiro gritando: “Leiam! Leiam! Na Segunda Guerra Mundial uma bala disparada pelo Exército soviético entrou no cano de um canhão alemão”. Aquilo imediatamente me fez lembrar a cena de Lu Wenli lançando a bola de pingue-pongue para dentro da boca do professor Liu. O que aconteceu naquele momento foi o seguinte: a torcida riu por um momento, percebeu que havia algo errado e parou de rir. Segundo as regras do bom senso, o professor Liu cuspiria a bolinha sem pensar duas vezes, diria algo engraçado – ele sabia ser engraçado – e Lu Wenli, ruborizada, pediria desculpas; depois disso continuariam a partida. Mas a situação não se desenrolou conforme o bom senso; vimos o professor esticar o pescoço e arregalar os olhos num esforço para engolir a bolinha, em vez de cuspi-la. Agitava os braços para cima e para baixo enquanto um som estranho, ó-ó, saía de sua garganta, parecia uma galinha que engoliu um bicho venenoso. A multidão, em choque, não sabia o que fazer. Sem demora, o professor Zhang correu para bater nas costas do professor Liu; o professor Yu correu para tentar segurar o pescoço dele; o professor Liu enxotou-os agitando os braços. Experiente, o professor Wang, um direitista formado em medicina, afastou Zhang e Yu, estendeu uns braços longos como os de um macaco e, abraçando a cintura de Liu pelas costas, deu-lhe uma boa chacoalhada – a bolinha de pingue-pongue voou da boca do professor, caiu primeiro na mesa, quicou algumas vezes, depois caiu no chão e parou, sem rolar muito. Wang afrouxou os braços, o professor Liu emitiu um som estranho e se esparramou no chão como se fosse um monte de lama. Lu Wenli largou a raquete em cima da mesa e saiu aos prantos, tapando o rosto com as mãos. Wang massageou um pouco o professor Liu, deitado no chão. Depois disso, Liu se levantou com ajuda das pessoas em volta, olhou para todos os lados e perguntou, rouco:
“E Lu Wenli? E Lu Wenli onde está? Aquela pirralha quase me matou!”
[1] A expressão chinesa é, literalmente, “saia rolando”. [N.T.]
[2] Cama de tijolos aquecida a lenha. [N.T.]