Em agosto de 2008, fui a Qingdao especialmente para encontrar He Zhiwu. Já tinha estado várias vezes naquela cidade, mas sempre com a agenda cheia de palestras ou conferências, sem tempo para mais nada. Isso deixava He Zhiwu muito contrariado. “Por que você não vem exclusivamente para me visitar? Aí vamos poder conversar três dias e três noites, tenho um monte de coisas para contar. Garanto que vai lhe render inspiração para um livro. Você me emprestou dez iuanes daquela vez, agora vou te devolver em material para um livro!”
Ele reservou uma luxuosa suíte no Hotel Imperial Huiquan, de frente para o mar. Dava para ouvir as ondas. Assim que me instalei, começou a contar sobre os últimos trinta anos da sua vida. Nos três dias seguintes, praticamente não fechou a boca, não importava se estávamos bebendo ou passeando na praia. Pediu todo tipo de iguarias da terra e do mar, mas só eu comia. “Não quer um pouco? Vai ser uma pena desperdiçar pratos tão caros.” “Coma você, minhas ‘três taxas’ estão altas: pressão, colesterol e açúcar no sangue. Não posso comer essas coisas.” Ele só bebia, fumava e falava sem parar. Deu férias ao motorista e me levou de carro para dar uma volta pela orla. “Ainda consegue dirigir depois de beber tanto?”, perguntei. “Fique tranquilo, sou como Wu Song,[1] quanto mais bebo, mais esperto fico.” “E se a polícia nos parar?” Ele riu: “Quero ver quem tem a ousadia de fazer isso”. Enquanto dirigia, continuava seu palavrório incessante; falava e gesticulava. “Amigo, não é melhor você se concentrar na direção?”, insisti. “Não tem problema, dirijo há mais de trinta anos, quando me sento aqui, o veículo se torna parte do meu corpo. Mas Lu Tiangong, aquele sim, era um motorista e tanto. A pontezinha de pedra atrás da nossa aldeia tinha quase a mesma largura do Gaz 51, e o sujeito atravessava a ponte sem tirar o pé do acelerador.” Eu ia perguntar quem era Lu Tiangong, mas logo entendi a quem ele se referia. Foi aí que me dei conta da lacuna que havia entre nós.
“Com os dez iuanes que você me emprestou”, ele prosseguiu, “fui à estação de trem, paguei um iuane e vinte centavos por uma passagem até Weifang num trem parador que ia de Qingdao a Shenyang. Apesar de ter passagem paga só até Weifang, o que eu queria era chegar a Shenyang de qualquer jeito. O controle era bem rigoroso. Toda vez que conferiam os bilhetes, dois seguranças ficavam de guarda nas saídas do vagão para ninguém escapar. Quem fosse apanhado, na melhor das hipóteses era retirado do trem; na pior, levava uma surra e em seguida era posto para fora. Havia um soldado sentado na minha frente com uma faixa preta no braço, devia ser em sinal de luto pela morte do pai ou da mãe. Como você sabe, aprendi com o Vovô Wang Gui a adivinhar o caráter das pessoas a partir de suas feições.” (Na verdade eu não sabia disso). “daí procurei puxar assunto com ele. Conversa vai, conversa vem, inventei a história de que tinha sido amigo de farra do falecido pai do soldado e ele acreditou sem pestanejar. Aí eu pedi: ‘Meu irmão, estou com um problema e preciso de ajuda’. O soldado tirou do bolso do casaco sua passagem para Shenyang e sussurrou: ‘Use isso, depois deixe embaixo da minha caneca’. Percebendo que o condutor se aproximava, ele pegou a chaleira da mão de uma atendente e, de um jeito muito caloroso, começou a servir água quente para todo mundo. Chegaram a dizer que ele era um Lei Feng [2] vivo.
Naqueles anos, um soldado do Exército Popular de Libertação tinha muito prestígio. Com a ajuda dele, consegui chegar a Shenyang sem problemas. Até hoje tenho grande afinidade com os militares. Minha filha mais velha se casou com o capitão de um submarino nuclear da frota do mar do Norte, e a mais jovem está namorando o comissário político do submarino. Dei todo meu apoio à escolha delas. Casar minhas filhas com o capitão e o comissário político significa que minha família praticamente controla a embarcação”, riu. “Minha mulher é descendente de russos brancos, monarquistas, que fugiram dos bolcheviques no início do século passado, russa de sangue puro, nascida e criada na China, uma verdadeira cidadã chinesa. Em 1979 eu já estava rico, tinha 38 mil iuanes no banco! Sou uma pessoa corajosa, aceito correr riscos, mas nunca corri um único risco sem antes pesquisar bem. Com a reforma agrária lançada no final de 1978, após a terceira plenária do Décimo Segundo Comitê Central do Partido Comunista, as comunas populares foram dissolvidas e as terras passaram a ser arrendadas. Logo percebi que os arrendatários iam precisar de animais grandes, como cavalos, bois. Naquele tempo, dava para comprar um bom cavalo por quatrocentos iuanes na Mongólia Interior e vender por mil ao sul da Grande Muralha. Um boi forte, com quatro dentes, comprado por apenas duzentos iuanes, custaria seiscentos do lado de cá da Muralha. Eu tocava um estúdio fotográfico na época. O negócio estava indo bem, mas, para ganhar mais dinheiro, vendi o estúdio por dez mil iuanes e comprei trinta cavalos de criadores de gado. Contratei um ajudante para levar o rebanho até o sul. Chegamos exaustos à província de Hebei. Os cavalos já estavam cansados e era difícil achar pastagem. Pensei um pouco e tive uma ideia. Peguei todos os cavalos e levei para a sede administrativa de Xuanhua. Fui direto procurar o chefe, disse que era um criador da Mongólia Interior e tinha ido entregar trinta cavalos de minha criação porque sabia que os agricultores locais, que arrendavam as terras, estavam precisando de animais para o plantio da primavera. Trinta lindos cavalos, de cortesia. O oficial, de sobrenome Bai, ficou sem saber o que dizer e só fez revirar os olhos. ‘Sério, tudo por minha conta’, falei. O oficial foi até o pátio, olhou os cavalos e disse: ‘Não podemos aceitar de graça, vamos fazer o seguinte, vamos pagar oitocentos iuanes por cavalo’. ‘É muito’, respondi, ‘seiscentos iuanes cada. Se precisarem, ainda posso ir buscar mais cem. Podem mandar alguém comigo, vou ajudá-los na transação.’ Assim, naquela primavera virei comerciante de cavalos e ganhei trinta e oito mil iuanes. E, por causa dessas transações, o chefe Bai – hoje vice-governador – virou meu amigo do peito. Com dinheiro na mão, era hora de constituir família e estabelecer uma carreira. Pensei comigo que deveria voltar a minha terra para concretizar um sonho de juventude. Para falar a verdade, eu gostava muito da Lu Wenli. Queria dar a ela um presente na ocasião do reencontro, quero dizer, compraria aquele caminhão do pai dela e a levaria naquele veículo até a Mongólia Interior para iniciar uma carreira importante e fazer fortuna. Eu estava sabendo que a Fazenda Estatal tinha sido reestruturada, que as terras estavam arrendadas para os agricultores e o caminhão já era propriedade particular de Lu Tiangong. Então mandei um telegrama oferecendo oito mil para comprar o veículo, um preço alto, bem alto. Na mesma época, o Yuejin NJ130, fabricado em Nanjing, uma cópia do Gaz 51, custava oito mil. O caminhão velho valia, no máximo, dois mil.
“Contei o dinheiro para Lu Tiangong e disse: ‘Estou pagando essa fortuna por seu carro velho como se lhe desse um presente. Xiang Zhuang fez a dança da espada mirando Liu Bang, e He Zhiwu veio comprar o caminhão de olho na Lu Wenli’. Lu Tiangong riu: ‘He Zhiwu, logo vi que você estava cheio de segundas intenções! Mas, em matéria de casamento, os pais não podem monopolizar a decisão. Vá atrás dela, se for capaz. Só vou lhe dizer uma coisa, filho, acho que a esta altura você já não tem muita chance. O filho do vice-secretário Wang, do Comitê Distrital do Partido, está interessado na minha Wenli. Para dizer a verdade, não gosto daquele rapaz. tem cara de pilantra, à primeira vista já dá para saber que não é coisa boa. Apesar de tudo, ele é filho do vice-secretário do Partido. então, se é da vontade de Wenli, não vejo razão para que nós, a mãe dela e eu, não aproveitemos enquanto é tempo. Não me importa o que acontecerá depois. Enquanto pudermos, vamos tirar proveito do privilégio de ser consogros do vice-secretário’.”
He Zhiwu continuou: “Dei várias voltas no Gaz 51 pela aldeia só para me mostrar, afinal de contas eu era jovem e não tinha nada na cabeça! Depois disso, fui direto para a vila. Quer saber quando aprendi a dirigir? Em 1976, quando trabalhei como carregador numa fábrica de tijolos, fiz amizade com o motorista, o Velho Xu, e foi com ele que aprendi. A gente via o pai da Lu Wenli cheio de pose ao volante, sem saber que, na verdade, dirigir é coisa que se aprende num instante. É só o tempo de fumar um cigarro. Fui de caminhão até a fábrica de borracha para conversar com a Lu Wenli, mas o velho da portaria disse que ela tinha sido transferida para o correio da vila. O velho tinha a língua solta, foi logo indagando como a nora do vice-secretário do Partido poderia continuar numa fábrica de borracha empoeirada e fedorenta? Fui até o correio da vila, estacionei o caminhão na porta, entrei na loja ao lado, comprei um par de sapatos de couro, calcei e saí. Andar com aqueles sapatos novos era um suplício. Parecia que todo mundo estava olhando para os meus pés. Assim que entrei no correio, vi a Lu Wenli sentada atrás do balcão de selos, conversando com uma mulher de meia-idade. Fui até ela e disse: ‘Lu Wenli, sou He Zhiwu, seu colega da escola primária. Seu pai me falou para te procurar’. Ela ficou parada me olhando por uns minutos e perguntou, indiferente: ‘O que você quer?’. Apontei para o caminhão estacionado no outro lado da rua: ‘Aquele é o caminhão do seu pai, ele me mandou buscar você’. ‘Mas estou trabalhando’, disse ela. E eu: ‘Tudo bem, vou esperar no carro até você sair do trabalho’. Voltei à cabine, acendi um cigarro e fiquei esperando por ela. Naquela época, a vila era um lugarejo caindo aos pedaços, o edifício mais alto era o prédio de três andares do governo local. De dentro da cabine, olhando para as bandeiras vermelhas no telhado e para os pinheiros em forma de pagode atrás do prédio, me deu aquela sensação de solenidade. Nem terminei o primeiro cigarro, Lu Wenli veio correndo. Abri a porta para ela entrar. Sem fazer nenhuma pergunta, dei a partida e saímos dali. ‘Mas afinal o que você quer?’, ela perguntou. Eu não disse nada e pisei fundo, olhando para ela pelo canto do olho. Lu Wenli abraçou os próprios ombros, fez um biquinho e começou a assoviar. Era um costume que ela não tinha antes, mas que lhe caía bem. As meninas mudam muito quando crescem, é verdade. Deixamos a vila, parei o caminhão num terreno ao lado do pátio externo da Escola Secundária Número 1. Por que parei ali? Porque era ali que ela havia ganhado o campeonato distrital de pingue-pongue juvenil. Virei a cabeça e olhei para ela fixamente. Era linda. Com certeza percebeu algo, ficou um tanto alerta, um tanto irritada. ‘Que raios você quer comigo?’ Não fiz rodeios, falei direto: ‘Lu Wenli, gosto de você há mais de uma década. Quando saí rolando da sala de aula, prometi a mim mesmo que, se conseguisse algo na vida, voltaria para me casar com você! Quando você ganhou o título de campeã ali dentro’ – apontei para o escritório da escola, que antes da revolução era uma igreja e que na nossa época abrigava o torneio de pingue-pongue – ‘tomei a decisão de voltar para me casar com você depois que vencesse na vida’. Ela torceu o nariz: ‘Então quer dizer que já venceu na vida? Já é alguém?’. ‘Basicamente é isso’, respondi, e logo perguntei: ‘Quanto você ganha por mês?’ Ela não respondeu, mas eu falei: ‘Nem precisa dizer, eu sei. Seu salário é de trinta iuanes por mês, trezentos e sessenta iuanes por ano. Com meu negócio de gado na Mongólia Interior, ganhei trinta e oito mil, o equivalente ao seu salário de cem anos. Pagar oito mil por esse caminhão quebrado foi como dar uma aposentadoria generosa para o seu pai e a sua mãe, e deixar você livre de preocupações no futuro. Tenho muitos amigos por lá e já está tudo arranjado. Usando esses trinta mil como capital, em alguns anos eu, ou melhor, nós vamos ter cem mil na conta e, quem sabe, virar milionários! Posso garantir uma coisa para você: nunca vai lhe faltar dinheiro para gastar; e mais: sempre vou tratar você bem.’ Ela disse com frieza: ‘Que pena, He Zhiwu, já estou noiva.’ ‘Noiva, mas não casada’, falei, ‘e, mesmo que, estivesse casada, ainda poderia se divorciar.’ ‘Como você pode ser tão impertinente? Com base no que, você acha que pode se meter na minha vida? Só porque comprou essa porcaria do meu pai? Só porque tem trinta mil na conta?’ Eu respondi: ‘Lu Wenli, tudo isso é porque amo você e não quero que entre numa fria. Andei investigando, aquele Wang Jianjun é um pilantra, vive na farra com outras mulheres…’. Ela me interrompeu: ‘He Zhiwu, não se acha mesquinho ao dizer isso?’. ‘Quero salvar você, não vejo nada de mesquinho nisso!’ E, ela replicou: ‘Obrigada pela boa vontade, mas você não é ninguém para mim. Da minha vida cuido eu, e você não tem o direito de se intrometer!’. ‘Espero que reconsidere’, eu disse. ‘He Zhiwu, me deixe em paz, está bem? Se Wang Jianjun souber disso, ele manda te matar.’ Eu sorri e disse: ‘Quem dera ele soubesse, pode contar a ele’. Lu Wenli abriu a porta do caminhão e desceu: ‘He Zhiwu, não se esqueça de quem você é, só porque está com uns tostões na mão. Escute o que eu lhe digo, o dinheiro não pode tudo’. Ela virou as costas e andou na direção da vila. Observando a sua silhueta, pensei: ‘De fato, o dinheiro não pode tudo, mas, se falta dinheiro, então não se pode nada. Boa sorte, Lu Wenli’.
“Cheguei em casa e demoli um pedaço de muro para poder estacionar aquele caminhão velho dentro do quintal do meu pai. Cobri-o com uma lona, reconstruí o muro e pedi para o meu pai tomar conta do veículo. Ele resmungou: ‘Tomar conta do quê? O caminhão por acaso vai criar asas e voar?’. Falei para ele ter uma visão de longo prazo. ‘Esse caminhão ainda vai ter muita utilidade.’ Depois de ajeitar tudo para os meus pais, voltei à Mongólia Interior com meus dois irmãos. Fizemos todo tipo de negócio, vendemos madeira, chapa de aço, gado e caxemira, e o dinheiro entrava aos borbotões. Tenho garra, mas também tenho miolos. Vou comprovar isso com uma pequena história.
“Naqueles dias, o comércio privado de caxemira era proibido. O contrabando de uma tonelada do produto para o sul poderia render um lucro de dez mil iuanes. Foram instalados postos de fiscalização. Achei dois caminhões idênticos, carreguei o da frente com algodão e o de trás com caxemira. Cobri a carroceria de ambos com lona. Quando estávamos nos aproximando do posto, mandei estacionar o veículo com a caxemira e fui com o de pano para a inspeção. Ofereci bebida e cigarros, prometi que traria presentes do sul e tudo mais. Concluída a fiscalização, deixaram o caminhão passar. Logo depois, voltei com o veículo e disse para eles que precisava procurar um estepe perdido na estrada. Quando encontrei o outro caminhão, deixei o carregado com pano no lugar e saí com o de caxemira, e disse para os fiscais que tinha achado o pneu. Como já tinham verificado tudo, me deixaram passar sem criar problema. Foi assim, com truques como esse, que eu e meus dois irmãos conseguimos, numa primavera, vender quarenta toneladas de caxemira. Um lucro líquido de quatrocentos mil iuanes.
“Conforme a riqueza aumentava, minha rede de amigos crescia. Consegui arranjar permissão de residência para meus irmãos e coloquei os dois para trabalhar numa empresa de transportes. Na época a gente ainda acreditava cegamente em coisas como permissão de residência e emprego regular. Em 1982 fiz outra viagem a nossa aldeia, mandei construir uma casa nova para os meus pais e mantive a antiga. E troquei a lona apodrecida que cobria o caminhão. Meu pai já não se atrevia a falar alto comigo. Ele dizia a minha mãe: ‘Zhiwu é muito generoso, não podemos mais criticar o que ele faz’. Eu ainda alimentava esperanças com relação a Lu Wenli, mas ela já tinha casado com Wang Jianjun e diziam que estava bem de vida. Assim, percebi que era hora de me casar também.
“Mal tinha tomado a decisão de namorar alguém a sério e uma leva de casamenteiros já estava batendo na minha porta para apresentar candidatas, todas bonitas. Não aceitei nenhuma. Então uma mulher veio me procurar sozinha. Era a Julia, minha esposa. Ela trabalhava no posto pecuário da região e tinha o apelido de Duas Mortes. De costas, tinha um corpo lindo de morrer, mas, de frente tinha um rosto esburacado que matava qualquer um de susto. Ela foi à minha casa e disse: ‘He Zhiwu, deixe perguntar-lhe uma coisa: para que quer uma esposa?’. Pensei um pouco e respondi: ‘Primeiro, quero que ela seja mãe dos meus filhos e, segundo, quero que lave minhas roupas e cozinhe para mim’. E ela disse: ‘Então é melhor me escolher’. Pensei por um minuto, dei um tapa na coxa e disse: ‘Então é você mesma! Vamos fazer o registro!’. Meu casamento abalou toda a região! Pense bem: He Zhiwu, o homem mais rico do pedaço, casou-se com uma mulher de cara esburacada. Ninguém entendeu nada, claro que não. Você entende? Você vai entender quando vir suas duas sobrinhas lindas de morrer e seu sobrinho que já está no time de futebol. Minha mulher tem feições bonitas, só ficou feia por causa das marcas no rosto, mas isso não é hereditário, o seu sangue russo, a sua estatura e as suas feições é que são hereditários. Se eu me casasse com uma chinesa, poderia ter apenas um filho, mas uma mulher de outra etnia me dá o direito de ter um segundo filho e até um terceiro, com alguns arranjos. Agora você entendeu por que suas duas sobrinhas conseguiram ‘aprisionar’ um submarino nuclear? As beldades mestiças estão por cima, não há comparação. Já pensei muito bem nisso, o homem que não puder se casar com a mulher que ama deve se casar com a mulher que lhe traz mais benefícios. E Julia é uma mulher dessas.”
He Zhiwu continuou: “Já nos anos 90, pensei com meus botões: para fazer um grande negócio e ganhar uma fortuna, preciso ir ao litoral. Por isso fui procurar você em Pequim, achei um jeito de ser transferido para a nossa vila e, mais tarde, para Qingdao. No início, minha mulher não queria deixar a nossa casa na Mongólia Interior. Eu disse a ela: ‘Quando chegarmos a Qingdao, vou construir um prédio para você!’.” He Zhiwu apontou um edifício cor de creme ao longe: “Olha aquele prédio, fui eu que mandei construir”. Ele ainda enumerou suas façanhas gloriosas em Qingdao, que ouvi e esqueci. Era uma sucessão de valores despendidos, novas amizades, pequenos prejuízos e lucros fartos. “He Zhiwu”, falei, “não sei se você ainda se lembra, no início da Revolução Cultural fizemos um teatrinho. Eu, no papel de Nikita Kruschev, da União Soviética, vesti a jaqueta desbotada do professor Zhang e enfiei dentro uma bola de basquete para simular uma barriga, e você, representando Liu Shaoqi, o Kruschev chinês, passou pó de arroz no cabelo. A nossa fala era ‘Kruschev, meu irmão, Liu, meu irmão, estamos juntos na mesma canção’. Eu cantei ‘quando a batata estiver cozida junte a carne’ [3] e você cantou ‘pequenos prejuízos e grandes lucros’. O segredo do seu sucesso”, continuei, “é justamente tomar pequenos prejuízos em troca de lucros fartos.” Ele pensou um minuto e disse: “Basicamente é isso, mas não só isso. Muitas vezes tomei grandes prejuízos sem ganhar um benefício sequer”. “Você se refere à compra do Gaz do pai da Lu Wenli?”, perguntei. “Como pode ser tão mesquinho?”, respondeu ele. “Posso fazer contas com todo mundo, menos com a Lu Wenli.”
“Não foi procurá-la depois da morte do marido dela?”
“O marido da Lu Wenli morreu num acidente em 1993”, disse He Zhiwu. “Na época eu estava no negócio de chapas de aço em Qingdao com a amante de um fulano aí. Sob a proteção desse fulano, monopolizamos o fornecimento de aço para todos os canteiros de obra da cidade. Fiquei emocionado ao saber que Lu Wenli estava viúva. Contei tudo a minha mulher e ela disse, com muita generosidade: ‘Vai lá e traz ela para casa, pode se casar com ela oficialmente ou fazer dela sua amante, não me importo’. Mas antes que eu fosse atrás da Lu Wenli, ela foi me procurar. Usava saia preta, luvas brancas e maquiagem pesada no rosto. Apesar de um pouco envelhecida, continuava bonita. A primeira frase que me disse foi: ‘He Zhiwu, finalmente estou livre’. Fui direto ao assunto: ‘Você quer ser minha esposa ou minha amante?’. Sem rodeios, ela respondeu: ‘Esposa, é claro’. ‘Fazer de você minha esposa vai dar muito trabalho, que tal ser minha amante? Vou lhe comprar um apartamento na praia e pagar todas as suas contas.’ Ela deu um sorriso amargo e disse: ‘Então não vou mais incomodar você’. Não muito tempo depois, ouvi falar que ela casara com o professor Liu Boca Grande. Com duas garrafas de aguardente e dois maços de cigarros, dirigi sozinho até o terreno baldio na frente da Fazenda Jiaohe, onde havia contado ao pai de Lu Wenli que gostava da filha dele. Fiquei lá bebendo, fumando e pensando. Sempre achei que conseguia ler o rosto das pessoas e saber o que elas têm no coração, mas elas na verdade tudo isso não passava do julgamento de pessoas virtuosas que eu fazia a partir da perspectiva de uma pessoa ordinária. Conseguia perceber o que se passava na cabeça dos outros porque eram, na maioria, gente tão ordinária quanto eu. Mas Lu Wenli é uma pessoa honrada.”
Na véspera da minha partida de Qingdao, He Zhiwu me levou para jantar em sua casa. A esposa dele cozinhou jiaozi com recheio de mariscos e ainda preparou uma tigela de purê de alho do jeito que fazem em Gaomi. Ela é uma mulher corpulenta e animada, o estereótipo da boa esposa e boa mãe. Quando estávamos meio embriagados, He Zhiwu levantou, apagou a luz e falou para eu olhar para o vidro da janela da cozinha deles. Lá se refletia um padrão: brilhando como ouro moedas de bronze entrelaçadas, cada moeda com um furo quadrado no meio. Perguntei de onde vinha a imagem. Ele disse que também não sabia; observei por um longo tempo, mas não consegui achar a fonte. Ele continuou: “Eu podia morar num daqueles palacetes perto do mar, mas não quero, quero morar aqui mesmo”. Quase o chamei de “escravo da fortuna”, mas consegui segurar a língua. Esses homens de negócio, quanto mais dinheiro têm, mais supersticiosos ficam. O que ele esperava era apenas uma palavra auspiciosa, nada de alegorias importunas. Então troquei o “escravo da fortuna” por “beneficiário do Deus da Fortuna”. “Só mesmo um grande escritor tem frase pronta para tudo”, disse ele, satisfeito.
He Zhiwu me ligou depois que voltei para Pequim. Contou que estava pensando em desenvolver um projeto imobiliário num terreno na praia em Longkou. “Pode achar um tempo para me visitar?”, pediu. “O responsável na Administração de Propriedades chama-se Zuo Lian, é filho de Zuo, o chefe da estação onde você trabalhou quando foi recrutado. O sujeito ficou todo animado assim que ouviu seu nome, ainda disse que você viu ele crescer e tal.” Hesitei por um momento e acabei inventando uma desculpa para não ir.
[1] Personagem lendário que, em certo episódio, depois de beber demais, mata um tigre selvagem com as próprias mãos. [N.T.]
[2] Lei Feng (1940-62), soldado do Exército Popular de Libertação considerado um modelo de altruísmo e dedicação. [N.T.]
[3] Verso de um poema de Mao Zedong, que ridicularizava uma afirmação do líder soviético Nikita Kruschev, segundo o qual o povo preferiria um bom gulache à revolução. [N.T.]