No fim do livro Crime e castigo, o assassino niilista Raskolnikov tem um sonho febril e claramente alegórico em que “o mundo inteiro […] é acometido por uma praga terrível, sem paralelo e sem precedentes”:
Os infectados eram afetados imediatamente e ficavam loucos. Mas as pessoas nunca se consideravam tão inteligentes e cobertas de razão quanto se consideravam as que foram contagiadas. Elas nunca haviam confiado tanto em seus preceitos, em suas conclusões científicas, em suas convicções morais e em suas crenças. Assentamentos inteiros, cidades e nações inteiras foram contaminados e enlouqueceram. Estavam todos em um estado de alerta, e ninguém entendia ninguém; cada um acreditava ser dono da verdade, e ficava agoniado quando olhava para os demais; batia no peito; chorava e se contorcia de angústia. Eles não sabiam quem levar a julgamento ou como julgá-los; não chegavam a um acordo quanto ao que era o mal e o que era o bem. Não sabiam a quem condenar nem a quem absolver. As pessoas matavam umas às outras com fúria sem propósito. Exércitos inteiros eram reunidos uns contra os outros, mas, assim que se colocavam em marcha, subitamente começavam a se separar. As fileiras se dispersavam; os soldados se lançavam uns contra os outros, golpeavam e esfaqueavam, comiam e devoravam uns aos outros. Nas cidades, os sinos tocavam o dia inteiro. Todos eram chamados, mas ninguém sabia por quem ou para quê, e ficavam todos tensos. Os negócios mais cotidianos foram abandonados, porque todos propunham suas próprias ideias, e faziam suas próprias críticas, e não conseguiam chegar a um acordo. A agricultura foi interrompida. Em alguns lugares, grupos de pessoas se reuniam, chegavam a um acordo mínimo, e juravam não se separar; mas, mal conseguiam isso, acontecia alguma coisa completamente diferente do que haviam proposto. Elas começavam a acusar umas às outras, a brigar entre si e a se esfaquear até a morte. O fogo tomou conta; a fome se instalou. Tudo e todos padeceram destruição e ruína.1
Essa visão quase se concretizou na Europa entre 1914 e 1918.
O que se conseguiu com esse Armagedom – se é que se conseguiu alguma coisa? As tropas alemãs desocuparam a Bélgica e o norte da França; e também a Romênia, a Polônia, a Ucrânia e os Países Bálticos. Os impérios alemão, russo e turco diminuíram; o austríaco foi totalmente destruído. A Hungria encolheu, assim como a Bulgária e a Grã-Bretanha – que, aos poucos, perdeu grande parte da Irlanda. Novos Estados se formaram: a Áustria e a Hungria seguiram caminhos separados; os sérvios alcançaram seu objetivo de um estado eslavo do sul – que, depois de 1929, foi denominado “Iugoslávia” – junto com os croatas e os eslovenos (bem como os bósnios muçulmanos); a Checoslováquia, a Polônia, a Lituânia, a Letônia, a Estônia e a Finlândia se tornaram independentes. A Itália cresceu, embora menos do que seus líderes haviam esperado, adquirindo o Tirol do Sul, a Ístria, parte da Dalmácia e as ilhas do Dodecaneso (em 1923). A França reclamou a Alsácia e a Lorena, perdidas em 1871. A França e a Grã-Bretanha também expandiram seus impérios coloniais na forma de “mandatos” de antigas possessões inimigas: a Síria e o Líbano para a França, o Iraque e a Palestina para a Grã-Bretanha, que havia se comprometido com a criação de um Estado nacional judaico nesta última. Camarões e Togolândia também foram divididos entre os dois vencedores. Além disso, o Sudoeste Africano Alemão foi para a África do Sul; a Samoa Alemã foi para a Nova Zelândia e a Nova Guiné Alemã foi para a Austrália. A Grã-Bretanha também se apoderou da África Oriental Alemã, para desgosto da Bélgica e de Portugal (que foram obrigados a se contentar com territórios africanos menos desejáveis). Sassoon estava certo, afinal, em julho de 1917: aquela havia se tornado “uma guerra de […] conquista”; o mapa, como disse Balfour, tinha ainda “mais vermelho”.2 Na última reunião do Gabinete de Guerra britânico antes da Conferência de Versalhes, Edwin Montagu havia comentado, com ironia, que gostaria de ouvir alguns argumentos contrários a que a Grã-Bretanha anexasse o mundo inteiro.3 Os Estados Unidos, no entanto, disputaram com a Grã-Bretanha o papel de banco mundial e estiveram à beira de conquistar a supremacia econômica global. E a visão do presidente Wilson de “uma nova ordem mundial” baseada em uma Liga das Nações e em leis internacionais se concretizou, embora não exatamente à maneira utópica de seus sonhos. Pouca atenção foi dada às pretensões do Japão, que reivindicou Shandong, outra relíquia alemã, como sua parte dos espólios. Tampouco houve sérias objeções quando, rompendo o Tratado de Sèvres, a Turquia e a Rússia partilharam, por um breve período, a Armênia independente.4
Talvez de forma mais notável, os Romanov, os Habsburgo e os Hohenzollern foram derrubados (e o sultão otomano não durou muito mais tempo); repúblicas tomaram o lugar deles. Nesse aspecto, a Primeira Guerra Mundial acabou sendo uma reviravolta no conflito de longa data entre o monarquismo e o republicanismo; um conflito que teve suas origens na América e na França do século XVIII e, com efeito, ainda antes, na Grã-Bretanha do século XVII. Embora duas monarquias houvessem caído em 1911 – a chinesa e a portuguesa –, o republicanismo ainda era relativamente débil em 1914; alguns conservadores acreditaram que a guerra poderia ajudá-los a exterminá-lo de uma vez por todas. Na prática, a guerra deu um golpe fatal nas três maiores monarquias da Europa e abalou gravemente uma série de outras. Às vésperas da guerra, descendentes e outros parentes da rainha Vitória haviam ocupado não só o trono da Grã-Bretanha e da Irlanda, como também o da Áustria-Hungria, da Rússia, da Alemanha, da Bélgica, da Grécia e da Bulgária. Na Europa, só a Suíça, a França e Portugal haviam se tornado repúblicas. Apesar das rivalidades imperiais da diplomacia do pré-guerra, as relações pessoais entre os próprios monarcas permaneceram cordiais e até amigáveis: as cartas trocadas entre “George”, “Willy” e “Nicky” atestam que continuou havendo uma elite real cosmopolita e poliglota com, no mínimo, um senso de interesse coletivo. E, apesar dos constantes insultos ao Kaiser por parte dos propagandistas de guerra britânicos (e, daí em diante, repetidos por muitos historiadores), Guilherme II não foi pessoalmente responsável pelo início da guerra em 1914; de fato, ele tentou, em vão, limitar a Áustria à ocupação de Belgrado quando se soube que a Grã-Bretanha apoiaria a França e a Rússia em uma guerra geral. O czar também parecia ter inclinações excessivamente pacíficas aos olhos de seu próprio Chefe de Estado-Maior Geral: daí a conversa sobre quebrar telefones. Embora o poder do monarca com relação aos soldados e políticos profissionais variasse, todos hesitaram em travar uma guerra em escala global uns com os outros, pressentindo que, como Bethmann havia previsto em maio de 1914, “a guerra derrubaria muitos tronos”. No fim das contas, a posição dos monarcas estava fadada a ser ameaçada por uma guerra que mobilizou milhões de homens: em sua raiz, a Primeira Guerra Mundial foi democrática.
Portanto, quando o peso da guerra começou a se fazer notar, foi a monarquia que esteve entre as primeiras instituições estabelecidas a perder sua legitimidade, e a guerra levou a um triunfo do republicanismo que seria impensado até mesmo nos anos 1790. Em julho de 1918, Nicolau II e sua família foram assassinados em Ecaterimburgo, e os corpos foram jogados em uma mina (onde permaneceram por 80 anos); o Kaiser se exilou na Holanda, cujo governo resistiu aos pedidos de que ele fosse extraditado como criminoso de guerra; o último imperador dos Habsburgo, Carlos I, foi para a Suíça e depois para a ilha da Madeira; o último sultão otomano foi levado às pressas de Constantinopla para um navio britânico que o aguardava. É verdade, a monarquia sobreviveu na Grã-Bretanha, na Bélgica, na Romênia, na Bulgária, na Itália, na Iugoslávia, na Grécia e na Albânia, e também na Holanda e na Escandinávia, que ficaram de fora da guerra; e novas monarquias foram instauradas nas ruínas do Império Otomano. No entanto, o mapa da Europa no pós-guerra viu o surgimento de repúblicas na Rússia, na Alemanha, na Áustria, na Hungria, na Checoslováquia, na Polônia e nos três Países Bálticos, bem como em Belarus, na Ucrânia Ocidental, na Geórgia, na Armênia e no Azerbaijão (que foram absorvidos à força pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1919-1921) e finalmente na Irlanda do Sul. Provavelmente esta foi uma das consequências menos intencionais da guerra. Na Rússia, além do mais, a nova república foi uma tirania muito mais sanguinária e não liberal do que o regime dos czares. A deflagração de uma guerra civil na Rússia talvez fosse vista como a conquista do objetivo inicial da Alemanha na guerra: eliminar a ameaça militar no Oriente. Mas todos os outros países combatentes (e inclusive os alemães) vieram a lamentar o triunfo de Lênin. Embora houvesse manifestações revolucionárias de Glasgow a Pequim, de Córdoba a Seattle, os temores de que o bolchevismo se espalhasse pelo mundo como a gripe espanhola se mostraram exagerados.5 Mas, pouco a pouco, percebeu-se que a Rússia soviética tinha o potencial de ser um poder militar ainda maior que a Rússia imperial, ainda que só nos anos 1940 a magnitude da resiliência do novo regime tenha se tornado evidente para uma nova geração de soldados alemães.
Os vitoriosos da Primeira Guerra Mundial pagaram um preço excessivo por todos os seus ganhos; de fato, tão excessivo que eles logo se veriam totalmente incapazes de manter a maioria deles. Ao todo, a guerra cobrou mais de 9 milhões de vidas de ambos os lados – mais de 1 em cada 8 dos 65,8 milhões de homens que lutaram. Em quatro anos e três meses de carnificina mecanizada, foram mortos, em média, cerca de 6.046 homens por dia. O número total de fatalidades para o Império Britânico como um todo foi em torno de 921 mil: o iniciador da Imperial War Graves Commission, sir Fabian Ware, calculou que, se os mortos marchassem lado a lado pela Whitehall, o desfile em frente ao cenotáfio duraria três dias e meio.6 Em 1919, Ernest Bogart tentou calcular o valor de capitalização dos mortos; estimou o custo total em 7 bilhões de dólares para a Alemanha, 4 bilhões para a França e 3 bilhões para a Grã-Bretanha.7 A realidade demográfica era que os mortos (embora nem sempre suas habilidades) eram rapidamente substituídos. Foram mortos durante a guerra menos homens britânicos do que os que haviam emigrado na década anterior.8 Embora a taxa de natalidade na Alemanha tenha caído de forma acentuada desde 1902 (de mais de 35 por mil para 14 por mil em 1917), não houve escassez de homens jovens no período imediatamente posterior à guerra; muito pelo contrário. Com relação à população como um todo, os homens entre 15 e 45 anos de idade aumentaram de 22,8% em 1910 para 23,5% em 1925.9 Na Inglaterra e no País de Gales, o número de homens entre 15 e 24 anos também era mais alto em 1921 do que fora em 1911; como uma proporção da população total, caiu só um pouco (de 18,2% para 17,6%).10
Um problema maior foram aqueles, entre os 15 milhões de feridos durante a guerra, que sofreram invalidez permanente. Dos 13 milhões de homens alemães que “serviram” em algum momento, 2,7 milhões ficaram permanentemente incapacitados em decorrência dos ferimentos sofridos, dos quais 800 mil receberam pensão por invalidez.11 Eram estes os mutilados patéticos retratados por Otto Dix: os ex-heróis do front reduzidos a mendigos na sarjeta.12 Havia pelo menos 1,1 milhão de feridos de guerra na França, dos quais 100 mil eram totalmente incapacitados.13 Mais de 41 mil soldados britânicos tiveram membros amputados em consequência da guerra; dois terços deles perderam uma perna e 28% perderam um braço; outros 272 mil sofreram lesões que não exigiram amputação. No fim dos anos 1930, 220 mil oficiais e 419 mil soldados continuavam recebendo pensão por invalidez.14 Além disso, há os que ficaram transtornados em decorrência da guerra: 65 mil ex-soldados britânicos receberam pensão por invalidez por causa de “neurastenia”; muitos, como o poeta Ivor Gurney, foram hospitalizados pelo resto da vida.
E também havia o luto. Recentemente, os historiadores voltaram sua atenção para as inúmeras formas com que os sobreviventes – pais, esposas, irmãos e amigos – procuraram lidar com a perda dos que morreram. Sem dúvida, como Jay Winter argumentou, muitos encontraram algum consolo nos auxílios simbólicos ao luto proporcionados pelos memoriais de guerra. Certamente a religião – incluindo a prática em voga, embora pouco ortodoxa, de se comunicar com o “espírito” dos mortos – também ajudou. Os povos europeus haviam perdido mais pessoas para a guerra do que as que foram posteriormente assassinadas no Holocausto; com efeito, a elite social britânica perdeu uma geração. Mas a maneira com que morreram e a existência de uma linguagem tradicional de sacrifício cristão significaram que os sobreviventes ficaram menos traumatizados do que os judeus que sobreviveram a 1945.15 Porém, nenhum símbolo – nem a Trincheira das Baionetas em Verdun, nem as estátuas agonizantes de pais enlutados de Käthe Kollwitz, nem os 73.367 nomes de mortos em Thiepval, nem mesmo o simples pathos do cenotáfio em Whitehall – podia fazer mais do que proporcionar um foco para a angústia pessoal. Quando muito, o verdadeiro propósito de tais memoriais foi transmitir a dor dos que foram afortunados o bastante para não sofrer nenhuma perda imediata: era essa a finalidade da sugestão do sul-africano Percy Fitzpatrick de que toda a Grã-Bretanha fizesse dois minutos de silêncio às 11 horas do dia 11 de novembro de cada ano. O testemunho dos que perderam filhos – Asquith, Bonar Law, Rosebery, Kipling, sir Harry Lauder – confirma a verdade universal de que nenhuma dor se iguala à dor de perder um filho.16 Kipling encontrava na escrita o meio sublime de expressá-la: seu relato sobre o regimento do filho John é um dos memoriais mais admiráveis da guerra, maravilhoso por seus eufemismos,17 ao passo que seus poemas sobre o assunto (“When you come to London town/ (Grieving – grieving!)” [Quando você vier a Londres/ (Sofrendo – Sofrendo!)]) têm uma beleza melancólica. Mas a dor não era diminuída pela lembrança. O soldado David Sutherland foi morto durante um ataque surpresa em 16 de maio de 1916. O comandante de seu pelotão, o tenente Ewart Mackintosh, que o trouxe de volta inutilmente pela terra de ninguém, escreveu um poema que é impossível ler sem ficar comovido:
E ele era o seu único filho
E as turfas recém-cortadas estão apodrecendo
E o trabalho está por fazer,
Por causa do choro de um velho
Apenas um velho que sofre,
Por David, seu filho David,
Que não vai voltar.18
Além de assassinato, mutilação e luto, a guerra – em sentido literal e metafórico – destruiu as conquistas de um século de avanços econômicos. Como vimos, de acordo com uma estimativa, o custo da guerra chegou a 208 bilhões de dólares; isso atenua de maneira brutal o dano econômico causado. A miséria econômica das décadas que se seguiram ao conflito – uma época de inflação, deflação e desemprego em razão de crises monetárias, contração do comércio e não pagamento de dívidas – não poderia ter contrastado mais com a prosperidade sem precedentes que havia caracterizado os anos 1896-1914, um período de rápido crescimento e pleno emprego com base na estabilidade dos preços, no comércio crescente e no livre fluxo de capitais. A Primeira Guerra Mundial desfez a primeira era de ouro de “globalização” econômica. Os homens se admiravam de que, depois de tanto massacre, pudesse haver desemprego; depois de tanta destruição, tão pouco trabalho – ainda que apenas trabalho de reparação – a ser feito. Além da rápida recuperação demográfica, o problema era recuperar a estabilidade fiscal e monetária. Em retrospecto, os keynesianos podem criticar os governos por se empenharem em equilibrar os orçamentos em vez de contraírem empréstimos para financiar a geração de empregos; mas as potências combatentes já haviam contraído empréstimos até o limite, e é bem duvidoso que os benefícios de incorrer em novos déficits tivessem superado os custos. Eichengreen argumentou que os problemas da economia mundial no período entreguerras se deveram, em grande parte, à tentativa quixotesca de tentar restabelecer o agora inapropriado padrão-ouro.19 Os parlamentos democráticos resistiram à implementação das velhas regras do padrão-ouro. A rigidez no mercado de trabalho – a recusa da mão de obra sindicalizada em aceitar reduções nos salários nominais – condenou milhões ao seguro-desemprego. Mas qual era a alternativa? Os países que trataram de evadir suas dívidas de guerra permitindo que suas moedas se depreciassem acabaram se saindo pior, em termos econômicos, do que aqueles que dolorosamente voltaram ao padrão-ouro. É duvidoso que um sistema de taxas de câmbio flutuantes tivesse funcionado melhor.
Na época, os críticos da paz negociada em Paris lamentaram suas condições financeiras, insistindo que o ônus das reparações sobre a Alemanha condenava a Europa a uma nova guerra. Isso, como vimos, era incorreto. A economia da República de Weimar não foi destruída pelas reparações; ela se autodestruiu. Também não se deve dar demasiada importância ao fracasso dos programas franceses para uma cooperação econômica franco-germânica na região do vale do Ruhr, na Renânia; embora interessantes para os historiadores por terem sido precursores da integração europeia após 1945, tais programas foram irrelevantes no período entreguerras. Os verdadeiros defeitos do tratado de paz são outros: a crença ingênua de que o desarmamento bastaria para erradicar o militarismo (com o Exército restrito a 100 mil homens, o Reichswehr foi meramente reestruturado por Versalhes) e, o que é ainda mais grave, a invocação do princípio de “autodeterminação”.
Já em dezembro de 1914, Woodrow Wilson havia argumentado que qualquer acordo de paz “deveria servir aos interesses das nações europeias consideradas povos, e não para que uma nação imponha sua vontade governamental sobre povos estrangeiros”.20 Em 27 de maio de 1915, ele foi ainda mais longe em um discurso à League to Enforce Peace [Liga para Impor a Paz], afirmando de maneira inequívoca que “todo povo tem o direito de escolher a soberania sob a qual deseja viver”.21 Em 22 de janeiro de 1917, Wilson reafirmou esse princípio: “Todo povo deve ser livre para determinar suas próprias políticas”;22 e, nos pontos cinco a 13 de seus Catorze Pontos de 8 de janeiro de 1918, detalhou as implicações dessa afirmação, que a essa altura havia sido adotada (com graus variados de hipocrisia) pelos bolcheviques, pelos alemães e por Lloyd George.23 Tal como concebida por Wilson, a Liga das Nações não só garantiria a integridade territorial de seus Estados-membros, como também poderia facilitar acordos futuros “conforme o princípio da autodeterminação”.24
Além do repúdio do Senado norte-americano ao Tratado de Versalhes, houve um problema fatal com isso: a heterogeneidade étnica da Europa Central e Oriental – e, em particular, a existência de uma grande diáspora alemã fora dos limites do Reich. A Tabela 46 fornece uma análise aproximada da distribuição da população germanófona na Europa Central e Oriental por volta de 1919. O ponto principal é que havia pelo menos 9,5 milhões de alemães fora dos limites do Reich após a Primeira Guerra Mundial – em torno de 13% do total da população germanófona. Esses números seriam ainda maiores se fossem considerados os alemães na Alsácia-Lorena e na União Soviética (os chamados “alemães volga”); e não incluem comunidades autodeclaradas alemãs fora da Europa continental. (De fato, a Associação para os Alemães no Exterior estima que o número total de alemães fora do Reich após 1918 era de quase 17 milhões; mais tarde, a propaganda nazista inflou essa estimativa para 27 milhões.)
A adoção da “autodeterminação” como princípio norteador da paz foi fatal porque não podia ser aplicada à Alemanha sem expandi-la para muito além do território ocupado pelo Reich antes de 1919. A escolha era entre uma hipocrisia sistematizada, que negava aos alemães o direito de autodeterminação concedido a outros, ou um irresistível revisionismo, que terminaria concedendo aos alemães uma parte considerável dos objetivos de anexação de 1914-1918. Desde o início houve inconsistência: nenhuma Anschluss do restante da Áustria para o Reich, mas plebiscitos para determinar o destino de Schleswig, do sul da Prússia Oriental e da Alta Silésia. Philip Gibbs disse que era a “desconsideração para com as fronteiras raciais [e] a criação de ódios e vinganças” por parte dos tratados de paz o que “levaria, com toda a certeza, a uma nova guerra”.25 Ele estava quase certo; na verdade, foi o fato de os pacificadores invocarem a autodeterminação, um princípio que não poderia ser aplicado na Europa Central e Oriental sem que houvesse mais violência. O primeiro exemplo surgiu nos Bálcãs e na Anatólia, onde 1,2 milhão de gregos e meio milhão de turcos foram “repatriados” – isto é, expulsos de sua terra natal. A população da Grécia aumentou em um quarto, alterando totalmente o equilíbrio étnico da Macedônia grega.26 Transferências similares de população aconteceram em toda a Europa, impostas com mais ou menos autoritarismo: 770 mil germanófonos haviam saído dos “territórios perdidos” para o Reich em 1925, mais de um quinto dos quais viviam neles em 1910.27 Os critérios no caso grego foram, de fato, religiosos; futuras expulsões em massa seriam baseadas em categorias raciais menos precisas. Especialmente vulneráveis eram os cerca de 2 milhões de refugiados tecnicamente “apátridas”, a maior parte deles refugiados da Guerra Civil Russa, muitos dos quais judeus fugindo dos massacres dos Exércitos Branco e Vermelho.28 Não é difícil imaginar o que os alemães poderiam ter feito se houvessem ganhado a guerra. Até mesmo Max Warburg defendeu, no decurso de 1916, a criação de “colônias” alemãs nos territórios bálticos da Letônia e da Curlândia:
|
Alemães |
População total |
Percentual |
Reich |
61.211.000 |
62.410.000 |
98,1 |
Áustria |
6.242.000 |
6.500.000 |
96,0 |
Dinamarca |
40.000 |
3.260.000 |
1,2 |
Checoslováquia |
551.000 |
4.725.000 |
11,7 |
Itália |
199.000 |
38.700.000 |
0,5 |
Iugoslávia |
505.000 |
11.900.000 |
4,2 |
Romênia |
713.000 |
18.000.000 |
4,0 |
Polônia |
1.059.000 |
27.100.000 |
3,9 |
Estônia |
18.000 |
1.100.000 |
1,6 |
Letônia |
70.000 |
1.900.000 |
3,7 |
Lituânia |
29.000 |
2.028.000 |
1,4 |
Total |
70.637.000 |
177.623.000 |
39,8 |
Os letões seriam facilmente evacuados. Na Rússia, o reassentamento não é considerado cruel em si mesmo. As pessoas estão acostumadas a isso […] Os povos estrangeiros [isto é, não russos] que têm ascendência alemã e hoje são tão maltratados podem ter autorização para se mudar para essas áreas e fundar colônias. [Estas] não precisam ser integradas à Alemanha; devem apenas ser afiliadas, ainda que com firmeza, a fim de eliminar a possibilidade de que voltem para o lado dos russos.29
Para os judeus da Europa Oriental, entretanto, ser conquistados por uma Alemanha Imperial comparativamente filo-semita teria sido preferível a ser conquistados pela Rússia bolchevique; a conquista pelo Terceiro Reich se mostrou fatal.
Este livro trata de responder a dez perguntas sobre a Grande Guerra:
1. A guerra era de fato inevitável, seja por causa do militarismo, do imperialismo, da diplomacia secreta ou da corrida armamentista?
2. Por que os líderes alemães apostaram na guerra em 1914?
3. Por que os líderes britânicos decidiram intervir quando a guerra eclodiu no continente?
4. A guerra foi realmente recebida com entusiasmo popular, como muitas vezes se afirma?
5. A propaganda, e especialmente a imprensa, mantiveram a guerra em curso, como acreditava Karl Kraus?
6. Por que a enorme superioridade econômica do Império Britânico não foi suficiente para derrotar os Impérios Centrais mais rapidamente e sem a intervenção norte-americana?
7. Por que a superioridade do Exército alemão não foi capaz de derrotar os Exércitos britânico e francês na Frente Ocidental, como fez com a Sérvia, a Romênia e a Rússia?
8. Por que os homens continuavam lutando quando as condições no campo de batalha eram, como contam os poetas da guerra, tão deploráveis?
9. Por que os homens deixaram de lutar?
10. Quem ganhou a paz?
A resposta à última pergunta já foi apresentada anteriormente. As respostas que tentei dar às outras nove podem ser resumidas da seguinte maneira:
1. Nem o militarismo, nem o imperialismo, nem a diplomacia secreta tornaram a guerra inevitável. Em toda parte na Europa, em 1914, o antimilitarismo estava em ascensão política. Os homens de negócios – até mesmo os “mercadores da morte” como Krupp – não tinham nenhum interesse em uma grande guerra europeia. A diplomacia, secreta ou não, foi capaz de resolver conflitos imperiais entre as potências: em questões imperiais e até mesmo em questões navais, a Grã-Bretanha e a Alemanha conseguiram acertar suas diferenças. A principal razão pela qual as relações entre a Grã-Bretanha e a Alemanha não produziram uma Entente formal foi que a Alemanha, ao contrário da França, da Rússia, do Japão ou dos Estados Unidos, não parecia representar uma grave ameaça ao Império Britânico.
2. A decisão alemã de arriscar uma guerra europeia em 1914 não foi baseada em excesso de confiança: não havia uma concorrência pelo poder mundial. Em vez disso, os líderes da Alemanha agiram guiados por uma sensação de vulnerabilidade. Primeiramente, esta derivou de sua incapacidade de vencer a corrida armamentista no mar ou em terra. A proporção entre a tonelagem dos navios de guerra britânicos e alemães à véspera da guerra era de 2,1 para 1; a proporção de soldados em uma guerra que colocou a Rússia, a França, a Sérvia e a Bélgica contra a Alemanha e a Áustria-Hungria era de 2,5 para 1. Essa diferença definitivamente não se deveu à escassez de recursos econômicos, mas sim a restrições políticas e, sobretudo, fiscais: a combinação de um sistema federal relativamente descentralizado com um Parlamento nacional democrático tornava quase impossível para o governo do Reich equiparar os gastos com defesa de seus vizinhos mais centralizados. Além disso, em 1913-1914, estava se tornando cada vez mais difícil para o Reich contrair mais empréstimos, depois de uma década e meia em que a dívida nacional havia crescido 150%. Por conseguinte, a Alemanha gastou com defesa apenas 3,5% de seu Produto Nacional Bruto em 1913-1914, em comparação com 3,9% na França e 3,6% na Rússia. Paradoxalmente, se a Alemanha houvesse sido, na prática, tão militarista quanto a França e a Rússia, teria tido menos motivos para se sentir insegura e apostar em um ataque preemptivo “enquanto fosse mais ou menos capaz de passar no teste”, na reveladora frase de Moltke.
3. A decisão da Grã-Bretanha de intervir foi consequência de um plano secreto de seus generais e diplomatas, que remontava ao fim de 1905. Formalmente, a Grã-Bretanha não tinha nenhum “compromisso continental” com a França; isso foi afirmado repetidas vezes por Grey e por outros ministros no Parlamento e na imprensa entre 1907 e 1914. Tampouco o governo liberal se sentiu obrigado, pelo tratado de 1839, a respeitar a neutralidade da Bélgica; se a Alemanha não a houvesse violado em 1914, a Grã-Bretanha o teria feito. O fundamental foi a convicção de uma minoria de generais, diplomatas e políticos de que, no caso de uma guerra continental, a Grã-Bretanha deveria enviar um exército para apoiar a França. Isso se baseou em uma interpretação equivocada das intenções da Alemanha, que os proponentes da intervenção imaginavam ser de escala napoleônica. Os responsáveis foram culpados em outros aspectos: conduziram mal a Câmara dos Comuns, mas, ao mesmo tempo, não fizeram praticamente nada para preparar o Exército britânico para a estratégia concebida. Quando chegou o momento da decisão em 2 de agosto de 1914, estava longe de ser uma certeza que a Grã-Bretanha interviria contra a Alemanha; a maioria dos ministros estava hesitante, e acabou concordando em apoiar Grey em parte por medo de ser expulsa do cargo, dando lugar aos tories. Foi um desastre histórico – embora não para sua própria carreira – que Lloyd George não tenha apoiado os oponentes da intervenção nesse momento crucial; pois “ficar de fora” teria sido preferível a uma intervenção que não poderia ser conclusiva na ausência de um Exército britânico muito maior. Os objetivos alemães, se a Grã-Bretanha tivesse ficado de fora, não teriam apresentado uma ameaça direta ao Império; a redução do poder da Rússia na Europa Oriental, a criação de uma união aduaneira na Europa Central e a aquisição de colônias francesas – eram todos objetivos complementares aos interesses britânicos.
4. A Grã-Bretanha também não foi arrastada para a guerra por uma onda de entusiasmo popular pela “Pequena Bélgica”; uma razão pela qual tantos homens se ofereceram como voluntários nas primeiras semanas de combate foi que o desemprego atingiu níveis altíssimos por causa da crise econômica desencadeada pelo conflito armado. A crise financeira de 1914 é, de fato, o maior indício do pessimismo da guerra. Para muitos povos na Europa, a guerra não era motivo de celebração, mas de apreensão: imagens apocalípticas eram empregadas com tanta frequência quanto a retórica patriótica. As pessoas percebiam o Armagedom.
5. A guerra foi certamente uma guerra midiática: a propaganda foi não tanto o resultado do controle do governo quanto de mobilização espontânea por parte da imprensa, bem como de acadêmicos, cinegrafistas e escritores profissionais. No início, os jornais prosperaram com a guerra, que trouxe grande aumento na circulação para muitas publicações. Entretanto, os problemas econômicos surgidos durante o conflito significaram que o período acabou sendo financeiramente prejudicial para a maioria dos jornais. Além disso, grande parte do envilecimento do inimigo e da mitificação da casus belli a que os jornais e outros propagandistas se entregaram não foi levada a sério por aqueles que lutaram; a eficácia da propaganda de guerra foi inversamente proporcional à proximidade do front. Só quando se baseou na verdade, como no caso das atrocidades cometidas contra os belgas ou do naufrágio do Lusitania, a propaganda de guerra foi eficaz em reforçar a disposição para o combate.
6. As potências da Entente gozavam de imensa superioridade econômica sobre os Impérios Centrais: uma renda nacional combinada 60% maior, 4,5 vezes mais pessoas e 28% mais homens mobilizados. Além disso, a economia britânica cresceu durante a guerra, ao passo que a alemã se contraiu. A disputa econômica não foi capaz de compensar essas grandes disparidades. Mas é um mito que os alemães tenham administrado mal a economia de guerra. Levando em consideração as diferenças em recursos, foi o outro lado – e especialmente a Grã-Bretanha e os Estados Unidos – que travou guerra de maneira ineficiente. Em particular, a alocação de mão de obra na Grã-Bretanha foi desastrosa, gerando o alistamento de uma grande proporção de trabalhadores qualificados dos quais dependia sua indústria manufatureira – e muitos deles acabaram mortos ou feridos. Ao mesmo tempo, aqueles que permaneceram nas fábricas ou foram contratados recebiam salários mais altos em termos reais do que seria justificado em termos de produtividade. Isso foi um reflexo do maior poder dos sindicatos, cujo número de afiliados quase dobrou na Grã-Bretanha e na França durante a guerra; na Alemanha, o número de membros dos sindicatos diminuiu em mais de 25%. Entre 1914 e 1918, houve em torno de 27 milhões de dias úteis perdidos devido a greves na Grã-Bretanha; na Alemanha, 5,3 milhões. Por fim, é implausível argumentar que a má distribuição de renda e a escassez de alimentos minaram o esforço de guerra alemão, já que os grupos mais afetados tinham relativamente pouca importância: proprietários de terras, funcionários públicos com anos de serviço, mulheres, insanos e filhos ilegítimos. Eles não perderam a guerra, tampouco fizeram uma revolução.
7. Os Impérios Centrais foram muito mais eficazes em matar o inimigo do que os Exércitos da Entente e dos Aliados; eles mataram pelo menos 35% mais soldados do que perderam. Também conseguiram fazer prisioneiros de 25% a 38% mais homens do que os que foram capturados pelo outro lado. Os Impérios Centrais incapacitaram de forma permanente 10,3 milhões de soldados inimigos; perderam 7,1 milhões. Sem dúvida, os Impérios Centrais tinham Exércitos menores, mas sua taxa de mortalidade foi apenas 15,7% dos homens mobilizados, pouco mais do que o número equivalente para o outro lado (12%). De qualquer modo, taxas elevadas de mortalidade não explicam o resultado da guerra: do contrário, a França, e não a Rússia, teria ruído, e os regimentos escoceses teriam se amotinado. Isso significa que as potências da Entente perderam a guerra de exaustão. Em uma palavra, sua principal estratégia foi um fracasso – quase um fracasso tão grande quanto sua segunda estratégia mais importante: forçar os alemães a se render fazendo que passassem fome por meio do bloqueio naval. Entre agosto de 1914 e junho de 1918, os alemães mataram ou capturaram mais soldados britânicos e franceses do que perderam. Mesmo quando a maré virou no verão de 1918, teve mais a ver com erros de estratégia alemã do que com melhorias do lado dos Aliados. A magnitude do sucesso alemão e do fracasso dos Aliados é ainda mais evidente quando são combinadas estimativas militares e financeiras: custou aos Impérios Centrais apenas 11.345 dólares para matar um soldado inimigo; o número equivalente para a Entente e os Aliados é de 36.485 dólares, mais do que o triplo.
8. Por que, então, os homens continuaram lutando? Sem dúvida, as condições no front eram deploráveis. Morte e ferimento eram distribuídos diariamente por metralhadoras, fuzis, projéteis, baionetas e os demais instrumentos de carnificina. Além da dor de serem “atingidos”, os homens sentiam medo, horror, pesar, fadiga e desconforto: as trincheiras eram mais úmidas, mais sujas e inclusive mais infestadas de parasitas do que os piores cortiços. Mas havia relativamente pouca confraternização com o inimigo; a deserção foi comparativamente rara durante a maior parte da guerra, sobretudo na Frente Oriental; os motins foram escassos.
Seria reconfortante, em muitos aspectos, se pudéssemos provar que os homens lutavam porque foram coagidos a fazê-lo pelas grandes burocracias estatais geradas antes e durante o conflito. Sem dúvida, alguns homens o foram, mas as evidências mostram claramente que aqueles que precisaram ser coagidos a lutar foram uma minoria. A disciplina militar não consistia em impelir os homens a lutar – e sim em encorajá-los –, daí a importância das relações entre os oficiais e os soldados.
Seria menos reconfortante, mas ainda tolerável, se pudéssemos demonstrar, como Kraus propôs, que os homens lutavam por causa da propaganda jingoísta de uma imprensa cínica ou censurada. Mas mesmo essa hipótese, apesar de toda a sua ressonância contemporânea, parece pouco persuasiva. Alguns homens certamente acreditavam estar lutando pelas causas informadas por seus governantes. No entanto, muitos soldados ou não entendiam os argumentos políticos a favor da guerra, ou não acreditavam neles. Suas razões para continuar lutando eram outras.
O moral dependia de confortos e desconfortos cotidianos: roupa adequada, alojamentos habitáveis, comida, álcool, tabaco, descanso, lazer, sexo e períodos de licença. A camaradagem no interior das unidades também era um elemento importante. É improvável que a guerra tenha prosseguido graças a suas conotações homoeróticas, embora alguns oficiais que estudaram em escolas de elite não fossem indiferentes a essas. A natureza dos laços entre os homens nas trincheiras é mais bem expressa por palavras que ainda retêm um espírito daquela época: os homens defendiam seus camaradas ou companheiros. Tal camaradagem, no entanto, era encontrada em toda parte. Identidades coletivas mais abrangentes (regimentais, regionais e nacionais) foram importantes porque eram mais pronunciadas em alguns Exércitos do que em outros – os soldados franceses se sentiam mais franceses do que os russos se sentiam russos. Também há alguns indícios de que a religião ajudou a motivar os Exércitos oponentes. Os motivos da guerra sagrada e do autossacrifício cristão empregados por clérigos de ambos os lados possibilitaram aos soldados racionalizar o massacre que perpetravam e sofriam, apesar do fato de que os dois lados na Frente Ocidental eram pouco diferentes em seu caráter religioso.
Mas o ponto crucial é que os homens lutavam porque não se importavam de lutar. Aqui discordo da ideia de que a guerra foi totalmente um “horror”, no sentido de Wilfred Owen (isto é, uma desgraça, um grande sofrimento), e de que os homens que a travaram foram dignos de pena. Para a maioria dos soldados, matar e arriscar ser morto era muito menos intolerável do que em geral supomos hoje em dia. Esta é, em muitos aspectos, a afirmação mais chocante que se pode fazer a respeito da guerra, dada a influência da poesia de Owen. Mas até os escritores de guerra mais famosos fornecem indícios de que o assassinato e a morte não eram coisas que desagradavam os soldados na guerra. Matar provocava pouca repugnância, e o medo da morte era suprimido, ao passo que ferimentos não fatais, mas graves o suficiente para mandá-los para casa, eram inclusive cobiçados. Freud estava certo ao afirmar que uma espécie de “instinto de morte” estava em ação durante a guerra. Para alguns, a revanche era uma motivação. Outros, sem dúvida, sentiam prazer em matar: para aqueles intoxicados por violência, esta talvez parecesse, com efeito, “uma guerra adorável”. Ao mesmo tempo, os homens subestimavam suas próprias probabilidades de serem mortos. Embora as chances de um soldado britânico na França ser morto fossem de 50%, a maioria dos homens presumia que os sinos do inferno não dobrariam por eles como indivíduos, e eles se tornaram, em certa medida, habituados a presenciar mortes repentinas (o que causava agonia era assistir a um homem morrer lentamente). Os horizontes temporais foram distorcidos: no combate, os homens viviam de segundo em segundo, aliviados por estarem livres da longa espera da noite anterior. E quando começou a parecer que a guerra não teria fim, o fatalismo tomou conta.
9. Isso nos conduz à questão final e mais difícil: por que, se a guerra era suportável, os homens pararam de lutar? A melhor resposta a essa pergunta reside no cálculo complexo da rendição; pois foi a rendição em massa, e não o assassinato em massa, o que determinou a vitória em todas as frentes. O colapso alemão começou em agosto de 1918, com um grande aumento no número de alemães feitos prisioneiros. Essa mudança drástica não é explicada facilmente; mas a chave pode estar no fato de que se render (e, com efeito, fazer prisioneiros) era perigoso. De ambos os lados, houve muitos incidentes de assassinato de prisioneiros, incluindo um número desconhecido em que prisioneiros eram assassinados a sangue-frio, longe da área imediata de combate. Isso, apesar do valor dos prisioneiros como fonte de informação e mão de obra barata. Em parte, o assassinato de prisioneiros foi um subproduto da cultura sanguinária do front descrita anteriormente: alguns homens matavam prisioneiros por revanche. Mas também há indícios de que alguns oficiais encorajavam uma política de “não fazer prisioneiros” para aumentar a agressividade de seus homens. É possível que tais incidentes tenham se tornado menos frequentes em 1918, mas isso parece improvável. É mais provável que uma queda no moral em decorrência do fracasso notório da ofensiva de primavera iniciada por Ludendorff, somada a seu pedido de armistício e ao problema cada vez maior de doenças, tenha encorajado os soldados alemães a atribuírem um custo mais alto ao combate do que haviam feito em 1917. No entanto, seria incorreto considerar essa disposição para se render como um cansaço da violência em geral. Embora a luta tenha cessado na Frente Ocidental em novembro de 1918, a guerra prosseguiu sem descanso na Europa Oriental e em outros lugares; e foi travada pelos Exércitos Branco e Vermelho na Guerra Civil Russa com ferocidade ainda maior.
À luz de tudo isso, vale reexaminar criticamente o pressuposto discutido na Introdução deste livro de que a memória da guerra na literatura e na arte foi de horror absoluto. Mesmo alguns dos mais famosos poetas de guerra foram menos “antiguerra” do que normalmente se considera. Dos 103 poemas na edição padrão das obras completas de Owen, apenas 31 (segundo meus cálculos) podem realmente ser classificados como antiguerra.30 Quanto a “O beijo”, de Sassoon – dirigido a “Brother Lead and Sister Steel” [Irmão chumbo e irmã aço] –, é no mínimo ambivalente quanto ao combate corpo a corpo em que o poeta (conhecido no front como “Mad Jack”) era tão bom:
Querida irmã, conceda isto a teu soldado:
Que, em sua fúria, ele possa sentir
O corpo em que ele pisa
Se retrair do flechaço do teu beijo.31
A denúncia mais famosa que Sassoon faz da guerra, como uma guerra “de agressão e conquista”, agradou um pequeno grupo de pacifistas; mas seus amigos e superiores a viram como um sintoma de “neurastenia”. Em vez de julgá-lo em corte marcial, eles o enviaram para Dottyville, o hospital psiquiátrico em Craiglockhart.32 Depois de serem tratados por Rivers, ele e Owen voltaram ao serviço ativo por vontade própria. Outros “poetas de guerra” foram, em vez de hostis para com a guerra, quando muito ambivalentes: um bom exemplo é Charles Hamilton Sorley, cujo “When You See Millions of the Mouthless Dead” [Quando você vê milhões de mortos sem voz] (1915) é solene, mas não “antiguerra”. Apollinaire também não foi um poeta antiguerra: ele nunca duvidou de que “o progresso material, artístico e moral […] [tivesse] de ser defendido [da Alemanha] a todo custo”.33 Ungaretti também não: embora de estilo vagamente moderno, poemas como “Rivers” [Rios] e “Italy” [Itália] são de um patriotismo comovedor.34
Também vale lembrar que muitos poemas famosos nesse cânone foram, de fato, escritos por não combatentes: Thomas Hardy tinha 78 anos quando escreveu “And There Was a Great Calm” [E houve uma grande calma], com seu desesperador “Por quê?” final; “Hugh Selwyn Mauberley (Life and Contacts)”, de Ezra Pound (1920), não é um poema de guerra, e sim uma paródia de um, feita por um escritor que jamais chegou perto de uma trincheira:
Morreram alguns, pela pátria,
nem “doce” nem “honorável” […]
caminharam no fundo do inferno
acreditando nas mentiras dos velhos, e depois desacreditando […]
Entre as condenações mais marcantes à guerra na poesia alemã estão As elegias de Duíno, de Rilke; mas, embora tenha sido convocado e tenha servido por um breve período no 1º Regimento Reserva de Fuzileiros, Rilke não lutou.35 Em sua segunda edição revisada, The Penguin Book of First World War Poetry [O livro Penguin de poesia da Primeira Guerra Mundial] inclui obras de Hardy, Rudyard Kipling, D. H. Lawrence, Ford Madox Ford e, em consideração à sensibilidade feminista, nove poetisas. Nenhum deles participou do combate. Também há vários poemas que são mais ou menos entusiásticos a respeito da guerra, notadamente as obras de Brooke – sem dúvida, o mais popular de todos os poetas de guerra36 –, Julian Grenfell, John McCrae e Edward Thomas, muitas vezes considerado um mártir arquetípico de uma guerra sem sentido, cujo “This is No Case of Petty Right or Wrong” [Não se trata de certo nem errado] é, de fato, uma apologia da guerra. De todo modo, nunca é demais enfatizar que tais seleções estão longe de ser representativas. A esmagadora maioria do grande número de poemas escritos durante a guerra, tanto por combatentes como por não combatentes, foi de hinos patrióticos.37
Também há dificuldades com a noção de prosa antiguerra. Como observou Hugh Cecil, embora Nada de novo no front tenha sido, e provavelmente continue sendo, o mais lido de todos os livros inspirados na Primeira Guerra Mundial, é uma obra um tanto atípica com relação às cerca de 400 obras de ficção de guerra publicadas na Grã-Bretanha entre 1918 e 1939.38 Durante a guerra, o tom patriótico predominou. The First Hundred Thousand [Os primeiros cem mil], de Ian Hay (1915), é marcado pelo entusiasmo do início da guerra. As obras de ficção jingoístas da época da guerra incluem The Red Planet [O planeta vermelho] (1916) e The Rough Road [O caminho difícil] (1918), de William J. Locke, e The Curtain of Fire [A cortina de fogo] (1916), de Joseph Hocking. Mesmo depois da guerra, o clima não era totalmente de desencanto. O próprio Disenchantment [Desencanto] não foi um grande sucesso de vendas: em 1927, havia vendido pouco mais de 9 mil exemplares na Grã-Bretanha.39 Medal Without Bar [Medalha sem barretas], embora admirado pelos ex-soldados que o leram por sua precisão, vendeu 10 mil.40 Esses eram, sem dúvida, números respeitáveis; mas fez muito mais sucesso o livro escrito pelo ex-capelão do Exército Ernest Raymond, o açucarado Tell England [Diga à Inglaterra], que só tinha uma coisa em comum com Nada de novo no front: todos os amigos jovens que entram para o Exército em 1914 acabam mortos. Esse “grande romance da juventude gloriosa” foi reimpresso 14 vezes em 1922.41 Embora o personagem principal em The Way of Revelation [O caminho da revelação] (1921), de Wilfred Ewart – outro best-seller –, tenha de lidar com uma namorada que sucumbe à decadência na frente interna, suas críticas à guerra propriamente dita foram veladas.42
Da mesma forma, nem todas as memórias de guerra tiveram um tom de absoluto desencanto. Há, na verdade, muito menos sentimento antiguerra nas obras de Sassoon, Blunden e Graves do que às vezes se afirma; com efeito, Graves ficou surpreso quando seu livro Goodbye to All That [Adeus a tudo aquilo] foi considerado “um tratado violento contra a guerra”.43 Ele, de fato, explica de maneira brilhante como os homens “calculavam” suas próprias chances de sobrevivência:
Para tirar uma vida, corríamos um risco, digamos, de 20%, em particular se havia um objetivo maior do que meramente reduzir o número de soldados inimigos; por exemplo, interceptar um franco-atirador conhecido […] Uma única vez eu me abstive de atirar em um alemão que vi […] Talvez um risco de 5% para trazer um alemão ferido à segurança seria considerado justificável [no Corpo dos Fuzileiros Reais do País de Gales] […] Quando estávamos exaustos e queríamos ir rapidamente de um ponto a outro nas trincheiras sem sucumbir, nós às vezes tomávamos um atalho por cima do parapeito […] Na pressa, corríamos um risco de 1 em 200; quando muito cansados, um risco de 1 em 50.44
Graves também descreve como “o espírito regimental sobrevivia persistentemente a todas as catástrofes”; ao passo que “o batalhão se importava tão pouco com o sucesso ou os infortúnios de nossos Aliados quanto com as origens da guerra”.45 Ele cita como evidência da cultura violenta dos escalões inferiores os dois homens do Corpo de Fuzileiros Reais do País de Gales julgados em corte marcial e fuzilados por terem assassinado um de seus próprios sargentos; e observa que “era surpreendente que houvesse tão poucos choques entre os britânicos e os franceses locais – que retribuíam nosso ódio”.46 Graves tampouco omite o fato de que “as bases hospitalares para doenças venéreas estavam sempre lotadas”. Nada disso tem a intenção de escandalizar; ele simplesmente, e com certo humor negro, explica. Undertones of War [Nuanças da guerra], de Blunden, tem sua parcela de horror, mas também mostra a fascinação do soldado comum pela morte (observe-se o modo como os homens olhavam para as sepulturas abertas em um cemitério de igreja bombardeado), e sua arte do eufemismo: “‘Nunca fiz um bombardeio como este’, disse ele. Foi exatamente como se estivesse falando de um novo recorde de Willie Smith [no bilhar], ou da arte pela arte”.47 Quanto às memórias parcamente ficcionalizadas de Sassoon, os soldados lembram-se, imperturbáveis, de terem “subido as trincheiras com a intenção de matar alguém” para vingar um amigo morto;48 e, mais tarde, de terem ficado “exaltados diante da perspectiva de uma batalha […], como se partir para o ataque fosse uma espécie de experiência religiosa”. Como afirma Sassoon: “não acreditei nem um pouco nas denúncias absurdas da Guerra […] Em 1917, eu estava apenas começando a aprender que a vida para a maioria da população é uma luta detestável contra probabilidades injustas, culminando em um funeral barato”.49 Ele também reconhece o instinto de morte: “o instinto semissuicida que me assombrava sempre que eu pensava em voltar para a linha […] um desejo insidioso de ser morto”.50
Até mesmo Remarque (como Barbusse) reconhece o papel redentor da camaradagem no front: o hábito de defecar em grupo, as brincadeiras grosseiras, a obsessão com comida que resulta no hilário roubo de um ganso, a capacidade de esquecer um camarada morto e herdar suas botas.51 Peter Jackson, Cigar Merchant [Peter Jackson, mercador de charutos] (1920), de Gilbert Frankau, expressa críticas à má administração do Exército e até mesmo à corrupção, mas só porque isso inibe a execução efetiva da guerra.52 Memorialistas menos conhecidos, como Ronald Gurner, William Barnet Logan e Edward Thompson, repudiaram a noção de desencanto.53 Além disso, até mesmo alguns daqueles que, de alguma forma, se sentiram desencantados – homens como Montague e Edmonds – se decepcionaram mais com a paz do que com a guerra.54 O historiador militar Douglas Jerrold não foi uma voz isolada quando publicou, em 1930, seu panfleto The Lie about the War: A Note on Some Contemporary War Books [A mentira a respeito da guerra: uma nota sobre alguns livros de guerra contemporâneos], acusando 16 autores (entre os quais, Remarque e Barbusse) de “negar a dignidade do drama trágico da guerra em benefício da propaganda”. Seu colega Cyril Falls concordou em seu The War Book: A Critical Guide [O livro da guerra: um guia crítico] (1930): era absolutamente incorreto, argumentou, insinuar que “os homens que morreram [na guerra] foram conduzidos ao massacre como bestas, e morreram como bestas […]”. Como era de prever, os poucos altos oficiais que pararam para ler Remarque foram desdenhosos.55 Muitos soldados comuns também partilhavam do desagrado de Sidney Rogerson por livros que “empilhavam um cadáver sobre outro, tratando com leviandade o terror”.56 Como muitas vezes se observou, as memórias dos anos 1920 e 1930 foram, em sua grande maioria, obra de homens educados em universidades de elite com pouca vivência em situações adversas, muito menos em guerra. Sua desilusão estava fundada nas ilusões da juventude privilegiada;57 e pouco do desconforto do qual reclamavam era novidade para os suboficiais e os soldados.58 Um excelente exemplo da visão otimista do soldado britânico é a memória de Coppard, que ilustra perfeitamente como os homens eram sustentados por uma combinação de fatalismo – “se tem seu maldito número, não há nada que você possa fazer a respeito” –, vício em nicotina – “tão importante quanto a munição” – e ódio – “Os inimigos eram sempre canalhas infames”. Coppard admite até mesmo que não teria se recusado a fuzilar um homem condenado em corte marcial se houvesse recebido ordens para isso.59
Também é um grande erro imaginar que havia um tom uniforme nos escritos do pós-guerra sobre o conflito. Um dos melhores livros inspirados diretamente no esforço de guerra dos Impérios Centrais é The Good Soldier Švejk [O bom soldado Švejk] (1921-1923), de Jaroslav Hašek.60 É um dos livros mais divertidos já escritos. No outro extremo estão os romances de guerra de Ernst Jünger. Para Jünger, como vimos, a guerra foi um teste revigorante da capacidade dos indivíduos de dominar o medo em nome da honra; apesar de reconhecer os desconfortos e os terrores das trincheiras, ele reitera constantemente a satisfação que sentiu em sua época como oficial de tropas de assalto.61 “O combate é uma das experiências verdadeiramente grandiosas”, escreveu em Combat as Inner Experience [O combate como experiência interna] (1922), “e ainda estou para encontrar alguém para quem o momento da vitória não tenha sido de grande euforia”. Na guerra, “o verdadeiro ser humano compensa, em uma orgia embriagada, tudo que vinha negligenciando. Então, suas paixões, há tanto tempo estancadas pela sociedade e suas leis, tornam-se mais uma vez dominantes e sagradas, e a razão suprema”. Quando chamou a guerra de “uma grande escola” e “a bigorna onde o mundo será moldado em novas fronteiras e novas comunidades”, Jünger estava ecoando o que os darwinistas sociais haviam escrito antes da guerra: longe de invalidar o militarismo, a guerra o tornou mais atraente para muitos alemães. Houve uma série de memórias de guerra publicadas durante o período da República de Weimar que expressaram sentimentos similares em uma prosa menos exaltada: por exemplo, Vom Kriege [Da guerra] (1924), de Rudolf Binding, Soldat Suhren [Soldado Suhren] (1927), de Georg von der Vring, e Trommelfeuer um Deutschland (1929) e Gruppe Bösemuller (1930), de Werner Beumelburg.62 As memórias dos soldados que continuaram a lutar em Freikorps irregulares depois do armistício expressam, além de sua hoje notória misoginia, uma sede de sangue um tanto impenitente.63 Também na Itália o advento do regime fascista em 1922 garantiu que a guerra fosse glorificada na literatura, apesar da experiência dolorosa do país durante o conflito. De fato, esse processo começou mesmo antes de 1922, graças a D’Annunzio.64 Na União Soviética, é claro, o regime bolchevique encorajou os escritores a condensarem os acontecimentos antes de outubro de 1917 em um mero prelúdio para a revolução. É significativo que no livro favorito de Stálin, A guarda branca, de Mikhail Bulgákov, a história comece com os Exércitos alemães fugindo da Ucrânia e termine com os bolcheviques chegando para conter a anarquia da Guerra Civil. Ainda assim, não houve nenhuma tentativa nos anos 1920 de abominar a violência como tal; pelo contrário, esta foi celebrada como uma ferramenta necessária na luta de classes.
Tampouco se pode dizer que o teatro inspirado pela guerra tenha sido sempre antiguerra. Embora se passe em um abrigo subterrâneo perto de Saint-Quentin à véspera da grande ofensiva de primavera de Ludendorff, Journey’s End [O fim da jornada] (1928), de R. C. Sherriff, não é uma obra pacifista. O alto oficial bebe, outro perde a coragem e dois colegas morrem em um ataque fatídico; mas a obra é marcada pela compostura característica das escolas de elite.65 O dramaturgo britânico que mais criticou a guerra foi George Bernard Shaw; mas seu jornalismo panfletário e antiguerra praticamente não obteve apoio popular, e as indiretas a respeito da guerra em Heartbreak House [A casa dos corações partidos], bem como no prefácio de Back to Methuselah [De volta a Matusalém], são inócuas em comparação com a obra-prima de Kraus.66 As músicas compostas sobre a guerra também desafiam uma categorização simples. The Tigers [Os tigres] (iniciada em 1916), de Havergal Brian, pode ser classificada como uma “ópera satírica antiguerra”; mas e quanto à pomposa A World Requiem [Um réquiem mundial] (1918-1921), de John Foulds, executada por quatro anos consecutivos no Dia do Armistício em uma cerimônia comemorativa patrocinada pela Legião Britânica? Como “uma mensagem de consolo para os enlutados de todos os países”, esta dificilmente era uma obra antiguerra.67 L’Histoire du Soldat [A história do soldado], de Stravinsky, tampouco pode ser caracterizada dessa maneira, nem mesmo Jonny spielt auf [Jonny começa a tocar] (apresentada pela primeira vez em 1927), a ópera com influência de jazz de Ernst Krenek; o uso de uma sirene de ataque aéreo para abafar o último refrão é, quando muito, um toque cômico.
Os filmes mais famosos inspirados na guerra foram, é claro, Nada de novo no front e seu correspondente alemão, Westfront 1918 [Frente Ocidental, 1918]. Dos cinco filmes de guerra lançados em 1930, Nada de novo no fronté um dos que continuam sendo exibidos na Grã-Bretanha; e ninguém que o tenha visto esquecerá a cena (que não aparece no livro, menos sentimental) em que, perto do fim da guerra, o jovem herói leva um tiro enquanto estende o braço para tocar numa borboleta em um parapeito. Possivelmente ainda mais angustiante é a imagem dos mortos se levantando dos túmulos em Eu acuso, de Abel Gance, o maior filme francês antiguerra ao lado de A grande ilusão, de Jean Renoir. Mas não devemos esquecer que foram lançados, no mesmo ano que Nada de novo no front, uma versão cinematográfica de Journey’s End [O fim da jornada] e mais duas aventuras situadas no mais romântico de todos os palcos de guerra – o ar. Os anos 1920 também haviam presenciado o lançamento de seis filmes de guerra feitos por britânicos: The Battle of Jutland [A Batalha da Jutlândia], Armageddon [Armagedom] (sobre a guerra na Palestina), Zeebrugge, Ypres, Mons e Battles of the Coronel and the Falkland Islands [Batalhas do coronel e as Ilhas Malvinas]. Um crítico exasperado os descreveu como “cheios do tipo de sentimentalismo que nos faz estremecer”, apresentando a guerra “totalmente da perspectiva de um livro de aventuras de um rapaz romântico”.68 Mas não era disso que mais gostava o público de cinema do período entreguerras?
E qual arte era a verdadeira “arte de guerra”? Nos livros de história da arte de tendência mais whig se costumava dizer que os horrores da guerra, de certo modo, aceleraram a evolução do modernismo, por desacreditar as convenções românticas da representação; isso é controverso. O imaginário romântico sobreviveu à guerra praticamente intacto: observe-se Vision of St. George over the Battlefield [Visão de São Jorge sobre o campo de batalha] (1915), de John Hassall, Forward the Guns! [Avante as armas!] (1917), de Lucy Kemp, ou Edith Cavell (1918), de George Bellow, e sua extraordinária sequência de telas retratando as atrocidades belgas, que remetem a Flaying of Marsyas [A punição de Mársias], de Ticiano.69 O desdobramento mais radical do modernismo entre 1914 e 1918 – o dadaísmo – foi, em grande parte, obra de artistas como Hugo Ball e Richard Huelsenbeck, que haviam levantado acampamento rumo a um país neutro: a Suíça.70 Para os que lutaram, a guerra proporcionou temas geométricos para aqueles pintores (como Wyndham Lewis, Fernand Léger ou Oscar Schlemmer) que já haviam sido expoentes do vorticismo ou do cubismo; temas explosivos para aqueles (como Otto Dix) já atraídos pelo expressionismo; e temas grotescos para aqueles (como George Grosz) já tomados por misantropia. Sem dúvida, nenhum desses artistas parece, aos olhos de hoje, ter glorificado a guerra. Mas o número de artistas que, como Paul Nash, viram sua obra servir a uma função didática antiguerra foi relativamente pequeno. Pouquíssimas das cerca de 30 gravuras que Grosz publicou durante e após a guerra em coleções como os dois Mappen (1917), Im Schatten [Na sombra] (1921), Die Räuber [Os ladrões] (1923), Ecce Homo (1923) e The Marked Men [Os homens marcados] (1930) aludem à guerra de maneira explícita. Embora ele tenha retratado veteranos incapacitados nas ruas violentas e decadentes de Berlim, praticamente todas as caricaturas são de civis. Apenas os dois cartuns de 1915, “Battlefield with Dead Soldiers” [Campo de batalha com soldados mortos] e “Captured” [Capturados], e os nove cartuns em Gott mit uns [Deus está conosco] (1920) dão algum indício de que Grosz vivenciou o combate na própria pele. O mesmo pode ser dito de suas pinturas: até mesmo Explosion [Explosão] (1917), que poderia ser interpretada como um ataque aéreo imaginado sobre Berlim, foi diretamente inspirada em uma obra anterior à guerra: Burning City [Cidade em chamas] (1913), de Ludwig Meidner. Foi só em 1928 (com Hintergrund [Pano de fundo]) que Grosz produziu uma série de cartuns explicitamente antiguerra.71
Além disso, muitos dos artistas modernos apreciavam a estética da guerra total. Tendo elogiado a guerra antes de 1914, o futurista italiano Filippo Marinetti dificilmente poderia fazer o contrário quando o conflito terminou. Mas não foram só os futuristas que viram a guerra de uma perspectiva favorável. Léger e Dix foram, no mínimo, ambivalentes com relação aos horrores que testemunharam. Lewis, que havia instado seus colegas vorticistas a jamais “ficarem de fora de uma guerra”, mais tarde escreveu com notável ambiguidade sobre
os esqueletos sorridentes em seus uniformes militares, o crânio ainda protegido pelo capacete de metal: aqueles festões de arame empastados de lama; as cadeias montanhosas em miniatura, de terra cor de açafrão; e árvores que parecem forcas – estes eram os atributos exclusivos dos elencos gigantescos de atores moribundos e traumatizados pela guerra, que carregavam esse palco com uma eletricidade romântica.72
Léger ficou “estarrecido ao ver a abertura traseira de um canhão calibre 75 em plena luz do dia, confrontado com o jogo de luzes sobre o metal branco”.73 A guerra, escreveu, proporcionou-lhe uma revelação repentina da “profundidade do dia presente”:
A visão de enxames de esquadrões. O habilidoso soldado raso. E então, repetidas vezes, novos exércitos de trabalhadores. Montanhas de matérias-primas, de objetos manufaturados […] motores norte-americanos, escavadoras malaias, granadas inglesas, tropas de todos os países, produtos químicos alemães […] tudo carregando a marca de uma grande unidade.74
Seu The Card Game [O jogo de cartas] (1917) era, como um crítico comentou, “um grito de ódio contra [o fato de] a guerra impor aos homens a terrível uniformidade mecânica dos robôs e, ao mesmo tempo, um hino à força dos homens que criaram essas máquinas, cujo ritmo exalta o poder controlador do homem”.75 Se, como Willett afirmou, Franz Jung foi o autor do Manifesto Dadaísta de Berlim de abril de 1918, parece razoável associar sua linguagem belicosa com sua experiência como recruta na Batalha de Tannenberg:
A maior arte será aquela […] que nos permita ficar perplexos diante das explosões da última semana, que está constantemente se recompondo do choque do dia anterior. Os melhores […] artistas serão aqueles que estão sempre recolhendo os pedaços de seu corpo em meio ao caos dos cataclismos da vida, enquanto se aferram ao intelecto da época com as mãos e o coração sangrando.76
Os artistas russos também produziram mais arte pró-guerra do que antiguerra. Disabled Veterans [Veteranos incapacitados] (1926), de Y. Pimenov, chama a atenção por sua dívida para com artistas alemães como Grosz e Dix; mas Death of Commissar [A morte do comissário], de K. Petrov-Vodkin, concluída no mesmo ano, ilustra mais uma vez a necessidade bolchevique de distinguir entre a perversa guerra imperialista e a heroica Guerra Civil.77
O mais impressionante dos exemplos contrários é, possivelmente, o de Otto Dix. Ele, que lutou durante todo o conflito, tanto na Frente Ocidental como na Oriental, considerava a guerra uma “ocorrência natural”, e horrorizou seu amigo Conrad Felixmüller ao descrever o prazer de “enfiar uma baioneta nas vísceras de alguém e retorcê-la”. Muitas vezes mal interpretadas como denúncias da guerra – talvez porque o agente de Dix procurou aproveitar a onda pacifista da Alemanha nos anos 1920 –, pinturas grotescas como The Trench [A trincheira] (1923, posteriormente desaparecida) ou o tríptico War [Guerra] (1929-1932) e as 50 gravuras de guerra (1924) de fato se devem muito ao desejo do artista, quando um jovem voluntário, de “experimentar na própria pele todas as profundezas insondáveis e medonhas da vida”. Conforme ele explicou mais tarde, “precisava sentir como alguém ao meu lado de repente cai e está morto, e a bala o atingiu em cheio. Eu precisava vivenciar isso em primeira mão. Eu queria isso”. “A guerra era uma coisa horrível”, recordou, “mas também tinha algo de extraordinário.”78 Um leitor ávido de Nietzsche antes e durante a guerra, Dix, mais do que qualquer outro artista, foi inspirado pela estética da destruição e do assassinato em massa. Segundo escreveu em um dos esboços de cartão-postal que enviou à amiga Helen Jakob: “nas ruínas de Aubérive – os buracos de munição nos vilarejos estão cheios de energia elementar […] É uma beleza rara e singular que nos diz muito”.79 Um artista-soldado alemão muito menos sofisticado também pintou e desenhou vilarejos bombardeados: o clima dessas obras pouco conhecidas de Adolf Hitler, que então era cabo no 16º Regimento de Infantaria Reserva da Baviera, só pode ser descrito como sereno.80
Parte da arte britânica posterior inspirada na guerra partilha dessa ambivalência: Stanley Spencer falou, a respeito de seu Resurrection of the Soldiers [Ressureição dos soldados] em Burghclere – em certos aspectos, estilisticamente similar à obra de Dix no pós-guerra –, que ele desejava comunicar “uma sensação de alegria e expectativa esperançosa”.81 Mesmo quando, durante a guerra, pediram que ele pintasse os letreiros diferenciando os banheiros dos sargentos dos banheiros dos soldados, ele procurou edificar, decorando o S de Sargento com uma coroa de rosas.82 A Ressurreição de Burghclere dificilmente é uma obra alegre, mas sua reconfiguração da guerra em iconografia cristã visa o consolo, e não a ira; nisso, Spencer lembrava Georges Rouault, cujo ciclo de 58 gravuras, Miserere, é, possivelmente, a tentativa suprema de tornar a guerra inteligível em termos religiosos.83
Em 1932, com as reparações e as dívidas de guerra congeladas e o mundo submerso na Depressão, o escritor J. C. Squire publicou uma coleção interessante (embora hoje praticamente esquecida) do que chamou de “lapsos na história imaginária”. Três de seus 11 colaboradores escolheram reescrever a história de modo que a Primeira Guerra Mundial fosse “evitada”. André Maurois fez isso imaginando que a Revolução Francesa não aconteceu. Como explica seu onisciente “arcanjo”, o mundo imaginário depois de mais um século e meio de governo dos Bourbon na França “é dividido de maneira um pouco diferente. Os Estados Unidos não se separaram da Inglaterra, mas se tornaram tão vastos que agora dominam o Império Britânico […] O Parlamento Imperial fica na cidade de Kansas […] A capital dos Estados Unidos da Europa […], em Viena”. Não houve nenhuma “guerra de 1914-1918”.84 Winston Churchill alimentou uma fantasia similar ao imaginar uma vitória dos Confederados em Gettysburg e o subsequente surgimento, em 1905, de uma “Associação Anglófona” reunindo a Grã-Bretanha, a Confederação e os Estados Unidos do Norte:
Uma vez que os perigos de 1914 foram evitados e o desarmamento da Europa acompanhou o já realizado pela Associação Anglófona, a ideia de um “Estados Unidos da Europa” estava fadada a ocorrer. O magnífico espetáculo da grande união de povos anglófonos, sua segurança garantida, seu poder sem limites, a rapidez com que a riqueza era criada e distribuída no interior de suas fronteiras, a sensação de dinamismo e esperança que parecia permear populações inteiras; tudo isso assinalava, aos olhos dos europeus, um moral que só os mais tolos poderiam ignorar. Se o imperador Guilherme II conseguirá realizar o projeto de unidade europeia impulsado por mais uma etapa importante na Conferência Pan-europeia que acontecerá em Berlim em 1932, ainda é assunto para a profecia […] Se esse prêmio couber à Sua Majestade Imperial, ele talvez reflita sobre a facilidade com que sua carreira poderia ter sido destruída em 1914 com a eclosão de uma guerra que poderia ter lhe custado o trono, e teria devastado seu país.85
Em um tom um pouco mais realista, Emil Ludwig propôs que, se o imperador alemão Frederico III não houvesse morrido de câncer em 1888 (depois de apenas 99 dias no trono), a política na Alemanha poderia ter tomado um rumo mais liberal: nesse mundo alternativo, Frederico viveria o bastante para parlamentarizar a Constituição e concluir uma aliança anglo-germânica, morrendo satisfeito em 1º de agosto de 1914, aos 83 anos de idade.86 Hilaire Belloc foi o único que imaginou um desfecho contrafatual ainda pior do que a realidade histórica. Como Maurois, Belloc eliminou a Revolução Francesa; mas desta vez a queda da França como potência é acelerada, permitindo que o Sacro Império Romano-Germânico se transformasse em uma federação europeia que “se estende do Báltico à Sicília e de Königsberg a Ostend”. Desse modo, quando eclode a guerra contra essa Grande Alemanha em 1914, é a Grã-Bretanha que perde, terminando como uma “Província da Comunidade Europeia”.87
Além da preocupação comum com a ideia de unificação europeia – que, conforme vimos, foi de fato um objetivo da Alemanha em 1914 –, o que chama a atenção em todos esses ensaios é quanto os autores sentiram que precisavam recuar no tempo a fim de encontrar um ponto de inflexão em que a história europeia poderia ter seguido outro rumo factível. Porém, 80 anos depois do armistício de 1918, narrativas contrafatuais menos remotas parecem mais plausíveis. E se a Alemanha houvesse adotado uma estratégia menos arriscada, investindo mais em suas defesas em tempos de paz em vez de apostar tudo no Plano Schlieffen? E se a Grã-Bretanha houvesse ficado de fora da guerra em 1914?
Se a Primeira Guerra Mundial jamais houvesse ocorrido, a pior consequência teria sido algo como uma Primeira Guerra Fria, em que as cinco grandes potências continuariam a manter grandes aparatos militares, mas sem impedir seu próprio crescimento econômico sustentado. Por outro lado, se a guerra houvesse sido travada sem a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, os alemães, vitoriosos, poderiam ter criado uma versão da União Europeia oito décadas antes.
Se a Força Expedicionária Britânica nunca houvesse sido enviada, não há dúvida de que os alemães teriam ganhado a guerra. Mesmo se houvessem sido detidos no Marne, eles quase certamente teriam conseguido destruir o Exército francês se este não tivesse contado com reforços britânicos substanciais. E, mesmo se a Força Expedicionária Britânica tivesse chegado, só que uma semana depois ou em um local diferente em consequência de uma crise política em Londres, Moltke ainda poderia ter repetido o triunfo de seu antecessor. No mínimo, ele teria sido menos inclinado a se retirar para Aisne. Mas e depois? Sem dúvida, os argumentos a favor da intervenção britânica para conter as ambições alemãs teriam continuado – especialmente com Bonar Law como primeiro-ministro. Mas só teria sido concebível uma intervenção de tipo bem diferente. A Força Expedicionária teria se tornado obsoleta com a derrota da França; se houvesse sido enviada, o dénouement provavelmente teria sido uma evacuação similar à de Dunquerque. Os velhos planos dos navalistas para aportar na costa alemã também teriam sido descartados, como de fato foram. É possível que alguma versão da invasão de Dardanelos ainda tivesse surgido como a maneira mais aceitável de empregar o Exército (especialmente se Churchill houvesse permanecido no Almirantado, o que é muito provável). Além desse empreendimento arriscado – que poderia, é claro, ter se saído melhor se toda a Força Expedicionária Britânica houvesse sido disponibilizada –, o máximo que a Grã-Bretanha poderia ter feito seria usar seu poder naval para travar o tipo de guerra marítima contra a Alemanha que Fisher sempre defendera: capturar os navios mercantes alemães, perturbando o comércio dos países neutros com o inimigo e confiscando os ativos ultramarinos alemães.
Tal estratégia dupla certamente teria irritado Berlim. Mas não teria ganhado a guerra. Pois há sólidas evidências de que o bloqueio não levou a Alemanha à submissão, como seus defensores esperaram que faria. Tampouco uma vitória sobre a Turquia teria enfraquecido de maneira significativa a posição de uma Alemanha vitoriosa na Frente Ocidental, embora sem dúvida teria beneficiado os russos ao concretizar suas intenções históricas sobre Constantinopla. Sem a guerra de exaustão na Frente Ocidental, o efetivo militar britânico, sua economia e seus recursos financeiros imensamente superiores não teriam sido suficientes para garantir a vitória contra a Alemanha. Um resultado muito mais provável teria sido um acordo diplomático (do tipo que lorde Lansdowne defendeu), por meio do qual a Grã-Bretanha cessaria as hostilidades em troca de garantias alemãs quanto à integridade e à neutralidade da Bélgica. Esse, afinal, havia sido o objetivo de Bethmann o tempo todo. Com a França derrotada e a oferta alemã de restaurar a Bélgica ao status quo ante ainda em discussão, é difícil conceber como algum governo britânico poderia ter justificado a continuidade de uma guerra naval e, talvez, no Oriente Médio, de duração imprevista. Para quê? É possível imaginar liberais ressentidos ainda clamando, como fizeram, por uma guerra contra a “casta militar” da Alemanha; mas teria sido difícil sustentar esse argumento (que tinha pouca importância para Haig) se, como parece provável, Bethmann tivesse prosseguido com a política de colaboração com os sociais-democratas, que começou com os impostos de 1913 e deu frutos com o voto a favor dos créditos de guerra.88 Mas uma guerra para preservar o controle russo sobre a Polônia? Para entregar Constantinopla para o czar? Embora Grey às vezes parecesse pronto a travar tal guerra, ele certamente teria sido vencido por aqueles como sir William Robertson, que continuava defendendo, em agosto de 1916, a preservação de “uma potência central europeia […] forte […] teutônica” como forma de deter a Rússia.89 Teria sido difícil recusar a proposta alemã de uma união aduaneira na Europa Central.
Portanto, se a Grã-Bretanha tivesse ficado de fora – ainda que por uma questão de semanas –, a Europa continental poderia ter se transformado em algo não muito diferente da União Europeia que conhecemos hoje – mas sem a grande contração no poder ultramarino britânico acarretada pela participação em duas guerras mundiais. Talvez isso também tivesse evitado que a Rússia sucumbisse aos horrores da guerra civil e do bolchevismo. Apesar de continuar havendo grandes problemas de tumulto rural e urbano, uma monarquia constitucional adequada (depois da abdicação provavelmente inevitável de Nicolau II) ou uma república parlamentar tivesse tido mais chance de sucesso após uma guerra mais breve. E simplesmente não teria ocorrido a grande incursão do poder militar e financeiro dos Estados Unidos em questões europeias, que marcou de maneira decisiva o fim da supremacia financeira britânica no mundo. É verdade, ainda poderia ter havido fascismo na Europa nos anos 1920; mas teria sido na França, e não na Alemanha, que os nacionalistas radicais teriam soado mais persuasivos. Isso não seria surpresa alguma: a direita francesa foi muito mais ruidosamente antissemita do que a alemã antes de 1914 – observe-se o Caso Dreyfus. E, talvez, se não fossem as tensões econômicas de uma guerra mundial, as inflações e as deflações do início dos anos 1920 e início dos anos 1930 não teriam sido tão severas.
Com o Kaiser triunfante, Adolf Hitler poderia ter ganhado a vida como um pintor medíocre de cartões-postais e um soldado veterano satisfeito em uma Europa Central dominada pela Alemanha, da qual ele teria encontrado poucos motivos para reclamar. E Lênin poderia ter prosseguido com seus rabiscos rancorosos em Zurique, para sempre desejando a queda do capitalismo – e para sempre decepcionado. Foi, afinal, o Exército alemão que proporcionou a Hitler não só sua adorada “experiência do front”, como também sua iniciação na política e nos discursos públicos imediatamente depois da guerra. Também foi o Exército alemão que enviou Lênin de volta a Petrogrado para minar o esforço de guerra russo em 1917. Em última instância, foi por causa da guerra que ambos os homens foram capazes de ascender para estabelecer despotismos bárbaros que perpetraram ainda mais assassinatos em massa. Ambos viram isso como uma prova conclusiva de suas teorias conflitantes, mas complementares: que os judeus pretendiam destruir a raça ariana; que o capitalismo estava fadado à autodestruição.
Na análise final, portanto, o historiador é obrigado a perguntar se a aceitação de uma vitória alemã no continente teria sido tão nociva aos interesses britânicos quanto Grey e outros germanófobos afirmaram na época, e como a maioria dos historiadores aceitou posteriormente. A resposta proposta aqui é que não. A pergunta de Eyre Crowe sempre fora: “Se a guerra vier, e a Inglaterra ficar de fora […] [e] a Alemanha e a Áustria ganharem, destruindo a França e humilhando a Rússia, qual será então a situação de uma Inglaterra sem amigos?”.90 A resposta do historiador é: melhor do que a de uma Inglaterra exaurida em 1919.
Immanuel Geiss argumentou recentemente:
Não havia nada de errado com a conclusão […] de que a Alemanha e a Europa continental a oeste da Rússia só seriam capazes de manter sua posição […] se a Europa se unisse. E uma Europa unida cairia, quase automaticamente, sob a liderança da maior potência – a Alemanha […] [Mas] a liderança alemã sobre uma Europa unida a fim de fazer frente aos blocos gigantes de poder econômico e político que estavam por vir teria de superar a suposta relutância dos europeus à dominação por qualquer um de seus pares. A Alemanha teria de persuadir a Europa a aceitar a liderança alemã […] deixar claro que o interesse geral da Europa coincidia com o interesse iluminado da Alemanha […] a fim de alcançar, nos anos após 1900, algo que se assemelhasse a sua posição atual como República Federal.91
Embora seus pressupostos reflitam, talvez de modo inconsciente, o excesso de confiança da era pós-reunificação, em um sentido ele tem toda razão: teria sido infinitamente preferível se a Alemanha pudesse ter alcançado sua posição hegemônica no continente sem duas guerras. Não foi só por culpa da Alemanha que isso não aconteceu. Foi a Alemanha que forçou a guerra continental de 1914 sobre uma França relutante (e uma Rússia não tão relutante). Mas foi o governo britânico que decidiu transformar a guerra continental em uma guerra mundial, um conflito que durou o dobro e custou muito mais vidas do que teria custado a primeira “aposta [alemã] em uma União Europeia”, se houvesse saído conforme o planejado. Ao combater a Alemanha em 1914, Asquith, Grey e seus colegas ajudaram a garantir que, quando a Alemanha finalmente conquistou a supremacia no continente, a Grã-Bretanha já não era forte o bastante para detê-la.
Portanto, o título deste livro, O horror da guerra, é ao mesmo tempo uma sincera alusão à frase de Wilfred Owen e um eco da linguagem atenuada do soldado raso comum nas trincheiras. A Primeira Guerra Mundial foi um horror na dupla acepção do termo: no sentido do poeta, de algo que causa pena e pesar, e no sentido de atrocidade – algo condenável, execrável. Foi pior do que uma tragédia, que é algo que somos ensinados pelo teatro a considerar, em essência, inevitável. Foi nada menos que o maior erro da história moderna.
1. Dostoiévsky, Crime and Punishment, p. 555s.
2. M. Gilbert, First World War, p. 509.
3. Ver Goldstein, Winning the Peace.
4. M. Gilbert, First World War, p. 528, 530. Conforme afirma Gilbert com razão, nenhum povo sofreu mais na Primeira Guerra Mundial do que os armênios: entre 800 mil e 1,3 milhão foram massacrados pelas forças otomanas no primeiro ano de guerra. Genocídios não foram exclusividade da Segunda Guerra Mundial.
5. Hobsbawm, Age of Extremes, p. 65s.
6. Cannadine, “War and Death”, p. 197.
7. Bogart, Direct and Indirect Costs.
8. Cannadine, “War and Death”, p. 200.
9. Petzina, Abelshauser e Foust, Sozialgeschichtliches Arbeitsbuch, vol. III, p. 28.
10. Mitchell, European Historical Statistics, p. 62.
11. Bessel, Germany, p. 5, 73, 79. Cf. Whalen, Bitter Wounds.
12. Ver seus Pragerstrasse: Cork, Bitter Truth, p. 252.
13. Kemp, French Economy, p. 59.
14. Bourke, Dismembering the Male, p. 33.
15. J. Winter, Sites of Memory, passim. Para uma crítica esclarecedora, ver a análise de Thomas Laqueur, “The Past’s Past”, London Review of Books, 19 de setembro de 1996, p. 3ss. Ver também Mosse, Fallen Soldiers.
16. Cannadine, “War and Death”, p. 212-217.
17. Kipling, Irish Guards, esp. vol. II, p. 28: “Estavam faltando os segundos-tenentes Clifford e Kipling […] Foi uma média justa para o primeiro dia, e lhes ensinou alguma coisa para o futuro”.
18. M. Gilbert, First World War, p. 249.
19. Eichengreen, Golden Fetters, passim.
20. Knock, To End all Wars, p. 35.
21. Ibid., p. 77.
22. Ibid., p. 113.
23. Ibid., p. 143ss.
24. Ibid., p. 152.
25. Hynes, War Imagined, p. 291.
26. Mazower, Dark Continent, p. 61.
27. Petzina, Abelhauser e Foust, Sozialgeschichtliches Arbeitsbuch, vol. III, p. 23.
28. Hobsbawm, Age of Extremes, p. 51.
29. Ferguson, Paper and Iron, p. 137.
30. W. Owen, Poems.
31. Sassoon, War Poems, p. 29.
32. Os eventos estão descritos em Sassoon, Complete Memoirs, p. 471-557.
33. Willett, New Sobriety, p. 30.
34. Silkin, Penguin Book of First World War Poetry, p. 265-268.
35. Coker, War and the Twentieth Century, p. 58ss.
36. 1914 contabilizava 28 impressões em 1920; os Collected Poems, 16 impressões em 1928: Hynes, War Imagined, p. 300.
37. Bogacz, “Tyranny of Words”, p. 647s.
38. H. Cecil, “British War Novelists”, p. 801. Cf. Roucoux, English Literature of the Great War.
39. Grieves, “Montague”, p. 55.
40. H. Cecil, “British War Novelists”, p. 811, 813.
41. Hynes, War Imagined, p. 332ss.
42. Ibid., p. 331s.
43. Cecil, “British War Novelists”, p. 810.
44. Graves, Goodbye, p. 112s.
45. Ibid., p. 78, 116. Também p. 152.
46. Ibid., p. 94.
47. Blunden, Undertones, p. 56, 218.
48. Sassoon, Memoirs of a Fox-Hunting Man, p. 304.
49. Sassoon, Memoirs of an Infantry Officer, p. 134, 139.
50. Sassoon, Complete Memoirs, p. 559.
51. Remarque, All Quiet, passim.
52. H. Cecil, “British War Novelists”, p. 803.
53. Ibid., p. 804.
54. Bond, “British ‘Anti-War’ Writers”, p. 817-830.
55. Hynes, War Imagined, p. 450ss.
56. Bond, ‘British “Anti-War” Writers’, p. 826.
57. P. Parker, Old Lie, p. 27. Ver também Mosse, Fallen Soldiers, p. 68; Simkins, “Everyman at War”, p. 311s.
58. Barnett, “Military Historian’s View”, p. 8ss.
59. Coppard, With a Machine Gun, p. 26, 44, 48.
60. Hašek, Good Soldier Švejk.
61. Jünger, Storm of Steel.
62. Craig, Germany, p. 492s.
63. Theweleit, Male Fantasies, vol. I.
64. Ver Pertile, “Fascism and Literature”, p. 162-184.
65. Barnett, “Military Historian’s View”, p. 6; Hynes, War Imagined, p. 441s; Bond, “British ‘Anti-War’ Writers”, p. 822.
66. Holroyd, Bernard Shaw, vol. II, p. 341-382; Hynes, War Imagined, p. 142s, 393.
67. Hynes, War Imagined, p. 243, 275.
68. Ibid., p. 443-449.
69. Cork, Bitter Truth, p. 76, 128, 189ss.
70. Na verdade, Huelsenbeck recebera permissão para estudar medicina em Zurique pelo Exército, e Hans Richter fora ferido na Frente Oriental e estava em Zurique para tratamento médico. Tristan Tzara, que se tornou o porta-voz do movimento Dada, era um judeu suíço (seu nome verdadeiro era Sami Rosenstock): Willett, New Sobriety, p. 27.
71. Kranzfelder, George Grosz, p. 9-24; Schuster, George Grosz, esp. p. 325, 452-487; Willett, New Sobriety, p. 24. Cf. Cork, Bitter Truth, p. 100.
72. Gough, “Experience of British Artists”, p. 852 (grifo meu).
73. Cork, Bitter Truth, p. 163.
74. Willett, New Sobriety, p. 31.
75. Marwick, “War and the Arts”. Cf. Cork, Bitter Truth, p. 165.
76. Willett, New Sobriety, p. 30.
77. B. Taylor, Art and Literature, p. 14, 19.
78. J. Winter, Sites of Memory, p. 159-163; J. Winter, “Painting Armageddon”, p. 875s. Cf. Eberle, World War I and the Weimar Artists.
79. Whitford, “Revolutionary Reactionary”, p. 16ss; O’Brien Twohig, “Dix and Nietzsche”, p. 40-48.
80. Hitler, Aquarelle: ver especialmente “Fromelles, Verbandstelle 1915”.
81. Hynes, War Imagined, p. 462. Cf. J. Winter, “Painting Armageddon”, p. 867s.
82. Gough, “Experience of British Artists”, p. 842.
83. J. Winter, “Painting Armageddon”, p. 868ss.
84. Squire, If It Had Happened Otherwise, p. 76s.
85. Ibid., p. 195.
86. Ibid., p. 244, 248.
87. Ibid., p. 110ss.
88. Guinn, British Strategy, p. 122, 171, 238; J. Gooch, Plans of War, p. 30, 35, 278. É importante observar que uma vitória alemã sobre a França, ao contrário do que muitas vezes se presume, não teria feito a política da Alemanha pender para a direita. Os pangermânicos e o Kaiser talvez tenham pensado que sim; mas, conforme vimos, Bülow e Bethmann sabiam muito bem que o preço da guerra, saíssem vitoriosos ou não, seria mais um passo em direção a uma democracia parlamentar.
89. Woodward, Great Britain, p. 227s. Robertson tinha suspeitas similares com relação às ambições italianas e francesas.
90. K. Wilson, Policy of the Entente, p. 79.
91. Geiss, “German Version of Imperialism”, p. 114s.