9. O que nos torna humanos?

 

DEEPAK

Darwin representa um enorme obstáculo numa estrada que a religião jamais conseguiu trilhar. A teoria da evolução foi um sucesso tão completo que a maioria das pessoas não consegue imaginar alternativa razoável. Mas é possível aceitar todas as heranças de nossos ancestrais, traçando a linhagem do Homo sapiens a partir dos primeiros primatas, e, mesmo assim, extrair diferentes respostas sobre a origem da vida humana. A espiritualidade afirma que essas origens estão num mundo transcendental, para além de qualquer processo físico. Antes somos mente, depois matéria. Segundo Erwin Schrödinger: “O que observamos como corpos materiais e forças nada mais são que formas e variações na estrutura do espaço.” Se essa afirmação for verdadeira para o Universo, também deve valer para nós, e isso significa que o espaço não está vazio; em sua fonte, ele é humano (além de muitas outras coisas). Jesus afirma a mesma coisa de maneira mais poética, no Evangelho de Tomé, quando diz: “Rachai um pedaço de madeira, e eu estarei lá. Levantai a pedra, e ali me encontrareis.”

Então, o que significa “humano”? Somos tão complexos e diversos que podemos ver nossa espécie da perspectiva que escolhermos. Acho fácil sentar-me numa poltrona e concordar com Hamlet quando ele exclama: “Que obra-prima, o homem! Quão nobre pela razão! Quão infinito pelas faculdades! Como é significativo e admirável na forma e nos movimentos! Nos atos, quão semelhante aos anjos! Na apreensão, como se aproxima dos deuses!”

De repente sinto-me transportado para o período do fim do Renascimento, para um mundo cheio de confiança, ainda ancorado na origem divina dos seres humanos. Mas outra pessoa poderia escolher um livro-texto sobre antropologia e se transportar, na mesma velocidade, para o Triângulo de Afar, no nordeste da Etiópia, onde paleontólogos escavaram o mais antigo fóssil remanescente de nossos ancestrais hominídeos. As pessoas dos tempos modernos tendem a ver essas coisas materiais – esqueletos, dentes fossilizados, uma fratura no crânio indicando o ataque de outro animal – como provas científicas convincentes. Ao mesmo tempo, ossos e fósseis superaram conceitos há muito reconhecidos. Não foi só a religião que Darwin desbancou, mas também séculos de antropocentrismo, da convicção de que os seres humanos eram as criaturas mais privilegiadas da criação. De repente, nos tornamos nada mais que um elo na corrente biológica. Lucy, o mais famoso exemplo de Australopitecos afarensis, está muito distante de Hamlet, cerca de 3,2 milhões de anos. Cada passo atrás nos deixa mais perto do reino animal e mais longe da especial atenção de Deus.

Mas temos de ir até o extremo oposto, a fim de avaliar o que significa ser apenas humano – ou principalmente humano –, a partir de restos enterrados. Alguém já disse que entender a mente humana por meio de evidências físicas é o mesmo que encostar um estetoscópio do lado de fora do estádio Astrodome de Houston para aprender as regras do beisebol. A espiritualidade não contesta os paleontólogos e suas arrebatadoras descobertas de hominídeos ainda mais antigos que Lucy. (O mais recente candidato, anunciado em 2009, é Ardi, abreviatura para Ardipithecus ramidus – o esqueleto de um macho datado de 4,4 milhões de anos atrás, mais de 1 milhão de anos mais antigo que Lucy, e distante de um ancestral comum ainda não descoberto de todos os hominídeos, situado mais ou menos há 10 milhões de anos.) O que a espiritualidade contesta é que qualquer estrutura física, seja ela remota ou atual, nos conte a história toda. O reducionismo pode rastrear a estrutura física do corpo até os níveis atômico e molecular, mas em nenhum momento dessa trajetória as características físicas nos informam que somos criativos, cheios de sonhos e desejos, únicos e diferentes uns dos outros, dotados de memória e capazes de muitas coisas importantes para a nossa história. Assim como precisamos de uma teoria de tudo na física, necessitamos de uma teoria de tudo no que diz respeito ao ser humano.

Ao perguntar de onde surgiu a vida humana, a espiritualidade tem duas vantagens sobre a ciência. A primeira, que parece ser a mais simples, é na verdade a mais profunda: a espiritualidade aceita a imprevisibilidade. Para os antigos sábios védicos, todo o Universo era Lila, uma expressão brincalhona e extravagante de Deus. O elemento de espontaneidade não pode ser descartado da história humana. No laboratório, é possível tornar os ratinhos felizes alimentando-os, e cada vez que eles dão uma mordiscada na comida, um centro específico de prazer se ilumina em seu cérebro. Pode-se dar um passo adiante e treinar os ratinhos a esperar a comida sempre que ouvem uma campainha ou um zumbido (uma variação do famoso condicionamento de cães de Pavlov). Quando os ratos ouvirem esse som, os centros de prazer em seu cérebro também vão se iluminar, mostrando que os animais antecipam o prazer, assim como nós, quando pensamos nas próximas férias nas Bahamas ou num presente de Natal perfeito.

As estruturas do cérebro nos ratos e nos homens são parecidas, mas essa semelhança prova muito pouco, pois, ao ver um prato de comida os homens podem pensar coisas como “Estou fazendo regime”, “Está malpassado demais; eu gosto de carne bem-passada”, “Estou muito ocupado agora para comer” ou “E o que fazer com as crianças famintas na África?” Nós seres humanos temos incontáveis respostas para o mesmo estímulo. Nenhum modelo do cérebro humano pode prever que resposta você ou eu escolheremos, não apenas diante da comida, mas de qualquer outra coisa. A imprevisibilidade destrói todas as formas de determinismo, o que é fatal para as explicações físicas, pois os sistemas físicos são regidos por processos fixos. Um átomo de carbono não pode escolher se ligar ou não a um átomo de oxigênio. Ao se encontrarem, a interação está determinada. Quando dois seres humanos se encontram, eles podem não partilhar nenhuma química!

Se você perguntar em que momento a imprevisibilidade entrou no registro da evolução (isto é, quem foi o primeiro homem a dizer “Pode ficar com o meu osso de mastodonte, não estou com fome”?), as respostas científicas sempre recuam. Ouvimos sobre genes egoístas e genes altruístas fazendo com que nos comportemos de uma maneira muito humana. Mas ainda que pudéssemos localizar um gene para o egoísmo e outro para o altruísmo, não seria necessário um terceiro gene para escolher entre os dois? Afinal, podemos ser egoístas e altruístas. Onde está o gene que me mostra como selecionar esta palavra entre as mais de 30 mil do meu vocabulário, ou qual reação química determina onde eu vou almoçar entre centenas de restaurantes de uma cidade de tamanho médio?

A segunda vantagem da espiritualidade sobre a ciência é valorizar a riqueza da experiência. Você pode reduzir qualquer resposta do cérebro a ação e reação, estímulo e resposta. Imagine um limão com uma faca ao lado. Na minha imaginação, vejo uma mão pegar a faca e cortar o limão ao meio, depois observo o suco ser espremido. Quase todos nós vamos salivar ao fazer esse exercício, o que demonstra, para um reducionista, que somos como os cães de Pavlov, salivando quando ouvem a campainha. Mas cães não salivam por limões imaginários, enquanto nós fazemos isso e muito mais: criamos mundos inteiros em nossa imaginação. A riqueza da experiência interior abrange tudo que é humano; e também nos define. Nós vicejamos nos significados, definhamos e atrofiamos em sua ausência.

A neurociência procura essas características no tecido cerebral. Seu ponto de vista e seus métodos exigem essa abordagem. Mas isso dá margem a uma estranha cegueira. Na minha experiência, não é possível convencer os reducionistas a deixar de acreditar num mundo em que os processos físicos acabam explicando o significado, o desígnio e tudo mais. Estariam mais bem-servidos se percebessem um fato simples: não é possível começar em um cosmo sem sentido e chegar até a riqueza do significado da vida humana. A espiritualidade inverte o telescópio e observa a experiência em primeiro lugar. Depois, se você perguntar de onde veio a vida humana, a resposta será: o que realmente importa não tem começo nem fim. A vida humana está imbricada num domínio além do espaço-tempo, como tudo mais. A seguinte passagem vem do Evangelho de Tomé: “Se eles perguntarem ‘de onde vens?’, diga-lhes: ‘Nós viemos da luz, do lugar onde a luz se fez por conta própria.’” A beleza dessa passagem é que ela vale tanto para a ciência quanto para a espiritualidade.

 

LEONARD

Em 1522, os habitantes do distrito de Autun, na França, ficaram furiosos ao descobrir que os ratos tinham comido a colheita de cevada. Os animais não eram donos da cevada, nem tinham sido autorizados a comê-la. Os aldeões foram ao tribunal e conseguiram uma intimação ordenando que os ratos fossem julgados. Parece estranho, mas o Êxodo diz: “Se um boi atacar um homem ou uma mulher, e eles morrerem, o boi terá de ser apedrejado.” Então, por que os ratos deveriam estar acima da lei? Na verdade, segundo os registros, em toda a Europa, entre o século IX e o XIX, uma grande variedade de animais que violaram leis humanas foram a julgamento exatamente como as pessoas. Bois, porcos e touros eram encarcerados, torturados para confessar e até enforcados pelo mesmo verdugo que executava os homens. Em Autun, um oficial de justiça foi até uma área onde se acreditava residir os supostos ofensores, e foi lida uma solene notificação, em alto e bom som, exigindo que os ratos comparecessem ao tribunal. Quando eles não apareceram, um advogado de defesa designado pela corte argumentou que seria preciso mais tempo para que fizessem a viagem até o tribunal. Quando não apareceram pela segunda vez, o advogado arguiu que não se podia esperar que os ratos corressem o risco de ser mortos por gatos hostis para atender à intimação. Esses julgamentos, na verdade, não diziam respeito a vingança contra animais malignos. Os sistemas legais tratam de algo mais que castigo e intimidação: a questão é manter a ordem social, e, nesses casos, a necessidade de seguir os papéis sociais atropelava todas as dúvidas para saber se pássaros têm alma, se abelhas são dotadas de más intenções ou se ratos do campo são capazes de armar uma trapaça.

A organização em redes sociais é um aspecto diferenciador da nossa espécie. Claro que não encontramos ordem social apenas entre os seres humanos, mas também em animais como formigas, cupins e abelhas. Um de nossos companheiros mamíferos também vive em sociedades altamente organizadas – o rato-toupeira pelado. Esses animais constroem sua casa em colmeias subterrâneas apoiados numa força de trabalho especializada e mantidos por uma só rainha procriadora. Sozinho, um rato-toupeira pelado não poderia se manter aquecido, conseguir alimento ou evitar os predadores, por isso, não duraria muito. Mas mesmo esse animal altamente socializado, ao esbarrar com outros de sua espécie, não conjectura se a busca por alimento o deixou estressado, não analisa o que sente sobre a situação dos predadores nem formula questões sobre os roedores famintos na África. Um ser humano, por outro lado, pode ajudar um estranho idoso a atravessar a rua, conjecturar sobre como outra pessoa se sente e não confiar num médico que use argola no nariz. Além disso, os homens desenvolveram uma cultura, o que outras espécies só apresentam sob forma muito rudimentar. As pessoas são naturalmente miméticas. Por isso, mesmo quando ainda vivíamos na floresta, éramos capazes de aprender coisas novas, atitudes que iam além do instinto, ao observar uns aos outros, vantagem que a maioria das outras espécies não possui. Podem ter se sucedido milhares de gerações de ursos até se desenvolver a densa pelagem, mas nossa espécie só precisava que um só homem tivesse a ideia de esfolar um urso para fazer um casaco de pele, possibilitando assim que nossa espécie ficasse sempre aquecida. Hoje nos baseamos em descobertas humanas feitas ao longo de milhares de anos e partilhamos nosso conhecimento com o mundo todo.

Os laços que cimentam a sociedade humana são muito mais complexos que os existentes entre outros animais. Mesmo comparada aos de nossos parentes mamíferos mais próximos, nossa capacidade social se destaca. A família taxonômica a que os seres humanos pertencem é chamada hominídeos, e nosso gênero, uma espécie de “subfamília” de parentes mais próximos, se chama Homo. Nossa espécie, o Homo sapiens, é uma entre mais de uma dúzia de gêneros de Homo, sendo que os mais conhecidos, além de nós, são os neandertalenses, o Homo habilis e o Homo erectus, todos eles, claro, mortos há muito tempo – talvez por falta daquelas habilidades sociais mencionadas. Muitas dessas espécies não humanas se envolveram em atividades semelhantes às dos homens, como o uso de ferramentas, o domínio do fogo, o enterro dos mortos e rituais culturais, como pintar o próprio corpo. Mas nenhuma vivia numa sociedade tão complexa quanto a nossa.

Quais são os talentos específicos que nós homens desenvolvemos e que nos possibilitam interagir de forma tão eficaz com tantos outros seres humanos, viver em cidades com mais de 1 milhão ou até 10 (ou mais) milhões de habitantes? Um desses talentos é a linguagem. A linguagem não só facilita muito as interações sociais como também possibilita a transmissão de conhecimento pela sociedade e ao longo das gerações. Golfinhos e macacos podem trocar sinais, mas só os seres humanos têm capacidade de explicar a seus filhos os matizes complexos. Um código moral também é importante. Nossos ancestrais primatas podem não ter tido necessidade de se preocupar com uma sociedade em crise por causa de fraudes em investimentos, mas em geral as pessoas que vivem juntas são melhores na relutância que demonstram para bater na cabeça dos outros com uma pedra. Talvez pareça que os seres humanos estão sempre em guerra, mas nossa resistência em matar é na verdade tão forte que uma pesquisa feita pelo Exército dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial concluiu que 80% dos combatentes não conseguiam atirar no inimigo, mesmo quando atacados.

Os seres humanos também são capazes de gestos altruístas mais deliberados e abrangentes que outras espécies, e certas estruturas do nosso cérebro relacionadas ao processo de recompensa entram em ação quando participamos de atos de cooperação mútua. Até bebês de seis meses avaliam os outros baseados no comportamento social. Em uma experiência, alguns bebês observavam um “escalador” que consistia em um disco de madeira com grandes olhos na superfície. O escalador começava a subir uma rampa, tentava chegar ao topo, mas não conseguia. Passado algum tempo, às vezes um “triângulo auxiliar” – com olhos semelhantes na superfície – vinha de baixo e ajudava o escalador com um empurrão. Outras vezes, um “quadrado daninho” se aproximava do alto da rampa e empurrava o escalador circular para baixo. Os organizadores do experimento investigavam se os bebês, sem interferência ou envolvimento de um espectador, tomariam alguma atitude em relação aos quadrados daninhos. E foi o que aconteceu, a julgar pela tendência dos bebês de tentar pegar os triângulos auxiliares, e não os quadrados daninhos. Mais ainda, quando o experimento foi repetido com um espectador auxiliar ou neutro, e depois com um daninho ou neutro, os bebês preferiram os triângulos amigos ao bloco neutro, e preferiram o bloco neutro aos antipáticos quadrados. Muito antes de conseguir verbalizar a atração ou o repúdio, nós temos um sentido de moralidade – somos atraídos pelos bons e repudiamos os não bons.

Outra característica que distingue os seres humanos de outras espécies é nosso desejo e nossa capacidade de entender o que outros da nossa espécie pensam e sentem. Essa capacidade é chamada de “teoria da mente” ou “TdM”, para abreviar. A TdM nos permite entender o comportamento passado de outras pessoas e prever os desdobramentos de sua atitude em circunstâncias presentes ou futuras. Só os seres humanos têm uma organização social e relações que exigem muito da TdM de cada um, e, embora os cientistas ainda debatam se alguns primatas não humanos usam a TdM, caso usem, parece ser num nível rudimentar. Nos homens, porém, uma simples TdM se desenvolve nos primeiros anos de vida, e aos quatro anos quase todas as crianças já são dotadas da capacidade de avaliar os processos mentais de outras pessoas. É isso que nos possibilita organizar grandes e sofisticados sistemas sociais, desde comunidades agrárias até grandes corporações. Quando essa característica é disfuncional, como no caso dos autistas, as pessoas podem ter dificuldade para viver em sociedade.

Todas essas características – em especial a TdM – exigem certa quantidade de poder cerebral, e por isso as vantagens da interação social para a sobrevivência podem ser um fator ainda mais importante na evolução do cérebro humano que as habilidades ou a capacidade de tomar decisões, possibilitadas pelo cérebro.

As características em debate vão ao cerne do que nos torna humanos, e estamos nos aperfeiçoando cada vez mais no mapeamento das áreas do cérebro responsáveis por elas. Mas Deepak vê como fonte da nossa humanidade, algo menos tangível, que vai além do físico.

Deepak argumenta que a espiritualidade tem a vantagem de incluir a imprevisibilidade e a espontaneidade como elementos-chave na “história humana”. Diz que a busca da base física da essência humana vai fracassar, pois somos imprevisíveis, que “a imprevisibilidade destrói todas as formas de determinismo”, e por isso é “fatal para as explicações físicas”. Isso não é verdade. A teoria quântica, por exemplo, é famosa pelos limites que impõe à previsibilidade, e os físicos se dão muito bem com ela. Mesmo sem apelar para as leis esotéricas da teoria quântica, podemos encontrar inúmeros exemplos de imprevisibilidade que não violam as leis do mundo material. Um exemplo é o planeta anão Plutão, que apresenta uma órbita caótica: seu trajeto não pode ser previsto a longo prazo – mas isso não quer dizer que Plutão desobedeça as leis de Newton. Ou considere o caminho de um simples pedregulho rolando por uma encosta rochosa. Nenhum físico acredita que pode prever o trajeto, mas ninguém acha que o caminho percorrido pelo pedregulho está além de uma explicação física. Ao tomar um caminho imprevisível, um furacão parece se mover com intenção própria, mas não é o que acontece.

A verdadeira questão no argumento de Deepak é o livre-arbítrio. Embora ela tenha importantes implicações na nossa visão de nós mesmos, do ponto de vista prático sua relevância é problemática. Isso porque, tenhamos ou não livre-arbítrio em princípio, na prática parece que temos, pois nosso comportamento é muito difícil de prever. Não existe contradição em dizer que nossas decisões são determinadas pelas leis da física, ainda que ainda não saibamos como prever esse comportamento com exatidão. Assim como o planeta anão Plutão, os seres humanos podem muito bem ser tão complexos que nossas atitudes e decisões continuem para sempre imprevisíveis, até certo ponto. Mas dizer que não podemos prever as atitudes das pessoas é uma afirmação sobre nossos poderes de previsão, não sobre se temos livre-arbítrio.

Deepak escreve que um átomo de carbono não tem escolha a não ser se ligar a outro átomo de carbono, mas (ele insinua) o que torna os seres humanos especiais é que podemos escolher, por termos livre-arbítrio. O livre-arbítrio é um tema extremamente fértil. A psicologia moderna e a neurociência abordaram o assunto utilizando uma série de técnicas, desde estímulos elétricos diretos a sofisticadas imagens do cérebro e à neurofisiologia animal. Na verdade, a ciência está desafiando nossa compreensão intuitiva e tradicional a respeito das escolhas humanas: experimentos diversos parecem indicar que elas são muito mais automáticas e restritas do que gostaríamos. Vamos considerar nosso gosto em relação à beleza facial. Parece algo muito pessoal, definido por nossa sensibilidade individual, embora talvez também influenciado pela cultura em que vivemos. Inúmeros estudos mostram que homens e mulheres, a despeito de cultura e de raça, costumam concordar sobre os rostos mais atraentes – e que essas preferências surgem muito cedo na vida. A chave? Rostos com feições mais próximas da média são considerados mais atraentes. Então, se você estiver em busca de astros de cinema, a receita é simples: jogue uma centena de rostos aleatórios de homens e mulheres num computador gráfico especialmente programado e tire uma média. Não é romântico, mas funciona – os rostos resultantes dessas manipulações são os que consideramos atraentes. Nosso senso de moralidade também parece ser basicamente inato. Estudos mostram que, quando confrontados com uma situação que envolve questões morais, as pessoas chegam a um julgamento moral de forma rápida e inconsciente, e só uma fração de segundo depois estabelecem uma razão consciente para justificar o que sentem, baseadas em valores práticos ou religiosos.

Até agora as evidências apoiam a visão de que os arranjos físicos de todos os átomos e moléculas, bem como as leis da natureza que os governam, determinam nossas ações futuras, da mesma forma que determinam as ações do Sol ou o crescimento de um botão de rosa. Mas a ciência não provou que não existe uma consciência imaterial moldando nossas decisões, nem está claro se algum dia conseguiremos provar a ausência de um fenômeno, como a “alma”, que não tenha uma manifestação física. Tudo que a ciência pode dizer na verdade é que, se isso existisse, seus efeitos no mundo material já teriam sido notados, e até agora inexiste qualquer evidência concreta desses efeitos.

Pode ser difícil acreditar que a natureza governe nossas ações, e não alguma versão de um eu imaterial que transcende as leis da natureza. É muito difícil nos enxergarmos de forma precisa e objetiva. Todos os nossos julgamentos são feitos em referência às nossas convicções e expectativas anteriores, que, por sua vez, são influenciadas por nossos desejos. O especialista em ilusões Al Seckel me apresentou uma fantástica demonstração de como a expectativa pode moldar nossas convicções. Começou com um trecho de uma canção da banda Led Zeppelin: “Se houver um agito na sebe, não se assuste, /É apenas uma faxina da primavera para a rainha de maio.”1

Os versos seguintes dizem que, embora haja diversas maneiras de viver a vida, sempre se pode mudar de direção. Depois de me mostrar a canção, Seckel apresentou-a outra vez de trás para a frente, efeito fácil de obter usando-se um aplicativo de edição de som. Parece absurdo esperar que a voz de um cantor faça sentido linguístico tocada tanto para a frente quanto para trás, e realmente ouvi a versão de trás para a frente diversas vezes. Como eu tinha imaginado, ela soou totalmente descabida. Mas Seckel garantiu que aquela canção fazia sentido quando tocada ao contrário, e que Led Zeppelin teve essa intenção. Para me ajudar a entender a mensagem codificada naquela versão, ele me ofereceu uma referência – uma versão impressa do texto de trás para a frente, para eu ler enquanto ouvia. Eis o que dizia:

Ó aqui está meu doce Satã. Aquele cujo

Pequeno caminho me deixou triste, cujo poder é Satã.

Ele dará aos que estiverem com ele 666, existe uma pequena oficina onde ele nos fez sofrer, triste Satã.2

Pensei que quando ouvisse a canção de novo eu iria continuar achando a letra sem pé nem cabeça, mas, quando a acompanhei com o texto impresso, fiquei chocado ao perceber como as palavras realmente combinavam. Eu agora estava convencido de que Seckel estava certo, e tive dificuldade para entender como não conseguira distinguir aquelas palavras das primeiras vezes! Fiquei atônito. Em seguida Seckel disse que o Led Zeppelin na verdade não tinha codificado a mensagem satânica, que as palavras haviam sido inventadas. Era possível arranjar outras que se encaixassem naquela incoerência, ele explicou, e eu teria acreditado que estavam na canção, se tivesse me apresentado antes como letra.

Quando percebemos a realidade sem preconceito, como eu fiz da primeira vez, a mente julga o mundo de forma bem diferente do que quando o avalia no contexto de uma convicção ou expectativa, como fiz quando Seckel me deu o texto. Isso também se aplica à forma como percebemos a nós mesmos. Nosso “eu” é o elemento mais fundamental do nosso mundo, e não conseguimos abordar o sujeito do “eu” sem vieses ou preconceitos. Será que nosso sentimento intuitivo quanto ao lugar especial que nossa espécie ocupa no Universo (e quanto ao livre-arbítrio que nos torna tão especiais) está correto, como na compreensão das letras da canção? Ou será uma ilusão de nossa subjetividade, como na compreensão daquela letra quando tocada de trás para a frente?

Como podemos julgar a nós mesmos e a humanidade a partir do lado de fora, como se não fôssemos um de seus integrantes? Alienígenas avançados talvez nos agrupassem com esquilos e ratos – seres inferiores, meros autômatos – e vissem a si mesmos como seres diferentes, como se fossem a única espécie realmente inteligente, a única dotada de livre-arbítrio. Mas, segundo as provas da ciência até agora, eles também estariam enganados. Todos nós somos regidos pela mesma física, a física deste mundo material. Admito que é estranho pensar em mim como uma máquina biológica regida pelas mesmas leis que governam Plutão. Mas a compreensão da minha essência não diminui meu reconhecimento do valor que é estar vivo, até o amplia. Este não é um princípio científico, é só a maneira como eu me sinto.

1  If there’s a bustle in your hedgerow, don’t be alarmed now, /It’s just a spring clean for the May queen. (N.T.)

2  Oh here’s to my sweet Satan. The one whose /Little path would make me sad, whose power is Satan. He’ll /Give those with him 666, there was a little tool shed where /He made us suffer, sad Satan. (N.T.)