16. Deus é uma ilusão?

 

DEEPAK

Não há como escapar ao fato de que o mundo não é o que parece. Entre os grandes pioneiros da física quântica, eu mencionei Niels Bohr, quando declarou que o que aceitamos como real se baseia no irreal. Em seu discurso, ao receber o Prêmio Nobel de 1932, Werner Heisenberg concluiu que o átomo “não tem absolutamente propriedades físicas diretas ou imediatas”. Na época, o Universo passava por um esmaecimento, e decerto não se tornou mais sólido desde então. O mistério e a maravilha não precisam da permissão da ciência para existir, contudo, nesse caso, eles obtiveram a permissão.

Isso ainda nos deixa longe do Deus benigno e criador, mas a espiritualidade não defende o Deus patriarcal da convenção. Ela lida com a alteração da consciência. O famoso mestre espiritual indiano J. Krishnamurti falava, uma tarde, diante dos Alpes Suíços. Krishnamurti sempre insistia em travar um rigoroso debate com sua plateia – uma de suas principais doutrinas era que ninguém devia seguir cegamente um guru ou alguém que se declarasse um homem santo –, e, nessa ocasião, a troca de repente eclodiu. As pessoas pareciam atônitas com a mudança de consciência que ele propunha.

Em vez de se aprofundar, Krishnamurti virou-se na direção de um pico nublado, a distância. “Se, por um momento, vocês conseguissem realmente ver aquela montanha, vocês entenderiam tudo”, murmurou. “A realidade está escondida de nós, mas está em toda parte esperando para ser percebida.”

Se você não conseguir perceber as coisas de uma nova maneira, os ensinamentos espirituais não passam de ficção. Mas como aqueles que têm uma percepção normal, como nós, chegam a esse estado? Como podemos, na verdade, ver a montanha? Primeiro, precisamos entender o que quer dizer essa visão “normal”. No estado de vigília, no cotidiano, nós estamos:

1. Ofuscados por sensações corpóreas, informações vindas dos cinco sentidos e condicionamentos passados.

2. Restringidos pelo cérebro e suas limitações físicas.

3. Embotados, seguindo os desgastados canais de percepção e vendo o mundo hoje exatamente como o víamos ontem.

4. Hesitantes quanto ao nosso propósito e nossa destinação.

5. Assolados pelos medos ou lembranças ocultas do passado.

6. Cegos para o que jaz além das fronteiras que separam a vida e a morte.

Como se pode perceber, o ato de ver apresenta alguns problemas. Felizmente, há formas de se escapar dessas limitações da consciência cotidiana. As escrituras religiosas baseiam-se nessas jornadas do “normal” ao extraordinário, porém, o mesmo acontece com uma música inspirada, com a arte e a poesia, sem mencionar as súbitas experiências espirituais que a vida pode proporcionar a quase qualquer um. (Mais da metade das pessoas que responderam a uma pesquisa do Instituto Gallup relatou que ao menos uma vez na vida vira luzes ao redor de outra pessoa, entrou ela mesma num halo de luz, sentiu a presença dos mortos ou percebeu uma aura.) No entanto, a ciência só irá se satisfazer quando essas experiências puderem ser replicadas; sempre que uma pessoa “entra na luz” – expressão genérica para o ingresso num estado mais elevado de consciência –, em geral, falta alguma coisa: uma forma de repetir a jornada em outra ocasião.

A vida espiritual preenche esse vazio. Propicia um caminho para uma consciência mais elevada, que é universal. Vou tentar oferecer um mapa viável para essa jornada, pois se trata de uma região cujo valor foi comprovado muitas vezes ao longo dos séculos.

Estágio 1: Abertura. Temos uma poderosa experiência pessoal que nos eleva para fora de nossa consciência do dia a dia. Pode ser uma súbita visão interior, capaz de mudar a vida para sempre, ou uma sensação de consciência da unidade; ou, ainda, uma simples sensação de saber que você está seguro, que tudo em sua vida tem uma razão e um propósito.

Estágio 2: Revisar o significado da vida. Seja aos poucos, seja de repente, percebemos que a vida material não é o que parece na superfície. Há um propósito mais alto, que implica uma mente e uma consciência, maior que a mente do indivíduo.

Estágio 3: Tornar-se parte do plano. Se a realidade mais elevada passa a fazer mais sentido que a vida cotidiana, começamos a encontrar maneiras de nos transformar. Aumenta nosso desejo de viver num plano diferente.

Estágio 4: Seguir o caminho. Com uma visão em mira, agora nós levamos a sério o processo de atingir uma realidade superior. A meta é Deus ou uma consciência mais elevada, e deve-se encontrar uma maneira de chegar lá.

Estágio 5: Iluminação. A consciência superior se torna uma realidade viva. A mudança está completa. Não temos mais outra forma de ver o mundo a não ser como um aspecto do divino. Na verdade, o sagrado e o não sagrado não têm mais significados distintos. Existe apenas a luz da consciência para onde olhar.

Acredito que qualquer vida com um significado mais profundo se encaixa nesse modelo, sem levar em conta a religião. Aliás, uma das maiores falhas das religiões é afirmar que têm a patente do caminho para Deus. No Ocidente, sentimos falta de um modelo não religioso para a iluminação, mas estamos chegando lá. Ironicamente, podemos agradecer à ciência por nos forçar a descartar noções preconcebidas e a só confiar em provas concretas. A razão nos diz que Buda, são Paulo, santa Bernadete de Lourdes e Sri Ramakrishna passaram por uma experiência em comum. Assim como os cientistas averiguam que a maçã e a rosa se ligam pelo mesmo gênero, podemos acomodar exemplos únicos de despertar espiritual no mesmo modelo.

Thoreau escreveu sobre “o solitário assalariado de uma fazenda nos arredores de Concord, que passou pelo renascimento” e conjecturou se sua “experiência religiosa específica” não seria verdadeira. Isso leva a uma passagem em Walden que me assombrou por décadas, desde que li o livro pela primeira vez:

Zoroastro, milhares de anos atrás, fez o mesmo percurso e teve a mesma experiência, que, sendo sábio, sabia ser universal, e tratou seus vizinhos de acordo, e dizem até que inventou ou estabeleceu a adoração entre os homens.

Podemos sorrir diante da ingenuidade de se referir à religião de um visionário da antiga Pérsia e à sua “experiência religiosa específica”. Nascido em alguma época entre os séculos VIII e X a.C., aquele era um recém-chegado, quando comparado aos visionários védicos da Índia. Mas compartilho o aspecto essencial realçado por Thoreau, e também o que ele aconselha ao solitário assalariado de uma fazenda perto de Concord: “Que ele comungue então humildemente com Zoroastro, e com a influência libertadora de todos os grandes vultos, inclusive de Jesus Cristo, permita que a ‘nossa igreja’ seja defenestrada.”

Em linguagem contemporânea, isso quer dizer que a pessoa que tem um súbito despertar deve se espelhar na grande tradição da iluminação. A segunda referência, para deixar a igreja de lado, já ocorreu numa escala mais ampla.

Sua vida e sua mente estão em algum lugar no continuum do despertar, mesmo quando damos as costas para as religiões de massa. O processo consciente de chegar a bons termos com uma realidade superior é pessoal e espontâneo, jamais programado. Incontáveis pessoas revisaram sua visão do mundo material e decidiram trilhar o caminho espiritual – mas depois pararam. Infelizmente, enquanto divindade for sinônimo do Deus das religiões organizadas, o caminho espiritual tem pouca chance de se tornar um pensamento dominante. As crenças promovem sua própria agenda. Elas querem seguidores que não apresentem dúvidas. Insistem em que seus dogmas foram transmitidos por Deus, mesmo quando a história revela que foram elaborados por poderosos sacerdotes. Tantas agendas trabalham contra o encontro com o divino que a situação originou uma piada cínica. Deus revelou a verdade, e o demônio disse: “Pode deixar que eu organizo.”

Mas o caminho espiritual existe e pode ser seguido. Quando você deixa de procurar o Deus tradicional, surge um objetivo diferente em seu lugar: a transcendência. Transcender significa ir além. O processo deveria ser considerado natural; aliás, nós transcendemos o tempo todo. Quando uma criança de três anos tem um acesso de raiva para obter alguma coisa, a mãe não desce até o nível da exigência infantil do filho. Ela sabe que existe algo por trás daquilo: a criança está cansada, nervosa ou ansiosa. A mãe transcende o contexto criado pelo acesso de raiva para atingir um plano diferente de experiência. Buda e Jesus fizeram a mesma coisa. No contexto de uma humanidade confusa e sofredora, eles não recomendavam o prazer como substituto da dor. Apontavam soluções que iam além do nível do problema. Sem transcendência, nossa experiência do sofrimento nunca vai mudar.

O pioneiro psicólogo americano William James resumiu o mistério de encontrar Deus numa afirmação simples: “Em toda nossa volta há infinitos mundos, separados pelos mais tênues véus.” O segredo é que esses véus são feitos de consciência bloqueada e constrita, enquanto os outros mundos são feitos de consciência livre e expandida. O caminho espiritual significa remover os véus que cobrem nossa própria percepção, e isso exige dedicação. O que faz com que o esforço valha a pena é saber que o despertar pode surgir a qualquer momento.

Uma parábola simples me vem à mente. Numa remota cidade, vivia um talentoso escultor. Suas obras enfeitavam as ruas e parques da cidade, e todos achavam que eram muito bonitas. Mas o artista vivia recluso, estava sempre fora do alcance. Um dia, chegou um visitante. Admirando muito as estátuas, ele insistiu em conhecer o escultor. Mas ninguém sabia dizer onde encontrar o artista. Na verdade, ficou evidente que ninguém na cidade já o vira alguma vez; as esculturas simplesmente apareciam, como que por conta própria. Então, um ancião deu um passo à frente e disse que tinha a sorte de ter conhecido o esquivo escultor.

“Como o senhor conseguiu isso?” – perguntou o visitante. O ancião respondeu: “Fiquei diante desses maravilhosos trabalhos, em contínua admiração. Quanto mais olhava, mais eu via. Enxerguei uma complexidade e uma sutileza que ultrapassam tudo que eu já tinha visto antes. Não conseguia deixar de me maravilhar. De alguma forma, o escultor deve ter percebido meu envolvimento, pois, para minha surpresa, ele apareceu a meu lado. Eu lhe perguntei: ‘Por que me escolheu para se mostrar, quando ninguém nunca o encontrou, não importa quanto o tenha procurado?’ Ele respondeu: ‘Nenhum criador consegue deixar de se revelar quando seu trabalho é apreciado da forma como você aprecia o meu.’”

Podemos ver nessa historieta o único artigo de fé necessário. Se você mergulhar fundo na própria consciência, vai encontrar um lugar de paz e silêncio. Mas, com o tempo, esse lugar vai revelar muito mais que isso. A fonte da criação reside ali, e, quanto mais você vivenciá-la, mais rica e bonita torna-se a criação. Para além do sofrimento está a alegria; a transcendência leva ao mundo da luz. Vá até lá e veja por si mesmo, não em busca de Deus, mas em busca da realidade.

No fim, talvez o artista não consiga resistir – sua apreciação do que ele criou o atrairá até você. Com isso, o divino não será mais uma projeção ou fantasia. Não será um pai ou uma mãe desejados. As escoras da realização do desejo não serão mais necessárias quando você estiver face a face com sua experiência interna do divino. Você não vai dar muita importância a coisas como visões de mundo. Elas são apenas o caminho das pedras para a mente. Enfim, será irrelevante se o inominável assumir ou não o rosto de Deus. A realidade em si é muito melhor quando vista com a mesma clareza que a luz do dia.

 

LEONARD

Décadas atrás, quando eu ainda caminhava até a escola todos os dias, carregando uma lancheira, decidi que a ciência física tinha a chave dos mistérios que eu queria compreender – tanto os do Universo ao meu redor (que fazia o Sol brilhar, as estrelas cintilarem, a elegante borboleta ser como era) quanto os da minha mente. Por milhares de horas eu digeri leituras, artigos e livros, por outras milhares de horas explorei o cosmo com a ajuda da matemática. Será que eu poderia entender tudo? Ou qualquer coisa? O que significa entender?

Na faculdade, meus amigos e eu acreditávamos numa hierarquia de verdades, como as camadas da atmosfera da Terra. A matemática formava a camada mais externa e a mais sagrada esfera das verdades – o céu, o mundo das ideias puras. Logo abaixo estava a estratosfera, consistindo na física teórica, as verdades fundamentais de tudo que é palpável. As regiões menos rarefeitas, mais abaixo, eram aquelas onde localizávamos as ciências aplicadas, espessas, turbulentas e poluídas de fatos intermináveis e intrincados detalhes. Mas a filosofia, a metafísica e a teologia eram mais difíceis de localizar. Nossa atitude em relação a esses temas variava de acordo com o filósofo, com a obra específica que estávamos lendo, com nosso estado de espírito e até com quanto havíamos bebido. Baruch Spinoza, o grande filósofo racional e artesão de lentes, por exemplo, escreveu um livro chamado Ética, uma inesquecível crítica da religião e da moralidade tradicionais do século XVII. Ele parecia celestial em sua estrutura matemática de definições, axiomas, provas e proposições, mas decepcionante nos argumentos pouco precisos em termos matemáticos, que relacionava à estrutura formal. Meus amigos e eu descobrimos que podíamos nos banquetear em suas ideias, mas depois não sabíamos ao certo o que tínhamos comido. No fim, tínhamos simpatia pela abordagem de Spinoza, mas éramos céticos quanto à base convincente de suas ideias.

As disciplinas da ciência e da matemática eram diferentes. Nós nos deleitávamos com sua precisão. Comemorávamos as metodologias desenvolvidas para evitar as armadilhas da subjetividade e dos desvios humanos. E, ao sabermos como se havia chegado àquelas conclusões e como tudo permanecia em aberto para mudá-las, caso as evidências assim o demonstrassem, nos sentíamos seguros de que podíamos confiar no que nos diziam.

Embora muitos discutam hoje a validade das “teorias meramente científicas”, essas mesmas pessoas dependem da ciência em todos os aspectos da vida, sem ao menos pensar a esse respeito. O poder do método científico é a razão pela qual os publicitários proclamam que seus detergentes foram “cientificamente” aprovados para remover manchas, enquanto ninguém gastaria um centavo para anunciar que a metafísica demonstrou como os adstringentes adoçam o hálito. Contestadores aparecem na televisão e no rádio para negar a realidade da evolução ou da teoria do big bang, mas se, por alguma razão, o debate se resume a manchas de café em vestidos brancos, ou como tratar uma pneumonia, eles acham fácil distinguir a realidade da ilusão – e ficam ao lado dos cientistas.

Claro, ninguém emprega o método científico para distinguir verdade e ilusão no que diz respeito às próprias vidas. Você pode pensar que a pessoa com quem se casou é o parceiro ou parceira ideal, mas essa mesma pessoa iria franzir o cenho se você se casasse uma dúzia de vezes para reunir provas acerca de sua teoria. Você pode pensar que seus grandes talentos lhe garantem o sucesso profissional, mas não vai recomeçar a carreira para verificar essa hipótese. Pode acreditar em vida após a morte, mas não vai se apressar a realizar o único experimento que poderia confirmar se você está certo. Nós construímos nossas visões de mundo por meio de experiência, intuição, educação, dos livros e diálogos com pessoas cujas ideias respeitamos e em quem confiamos. Tomamos decisões sobre o que é verdade e o que é mentira, mas a maioria de nós pouco pensa sobre como chegamos a nossas convicções. Acreditamos que somos racionais – e portanto estamos certos – e depois corremos para o próximo compromisso. No entanto, há fatores que afetam nossas convicções mais do que a maioria percebe. Isso se manifesta de forma visível quando chegamos, em particular, a temas de grande importância pessoal. É fato conhecido entre os psicólogos, por exemplo, que o peso da prova que as pessoas em geral exigem varia com a importância do que está sendo “provado” – e que é nossa mente subconsciente que ajusta o dial.

Há muitos exemplos dessa atividade subconsciente na literatura científica. Estudos mostram que: é preciso um monte de provas irrefutáveis para nos convencer de que somos imbecis, mas basta a mais tênue informação para nos persuadir de nosso talento ou genialidade; integrantes de um partido, ao examinar as pesquisas sobre uma questão política, podem encarar a mesma metodologia como errada ou coerente, caso os resultados se encaixem ou não com suas convicções; os jurados tendem a ignorar sólidas evidências de culpa quando simpatizam com o réu, mas as consideram convincentes se não gostarem do acusado.

Em um estudo, os pesquisadores apresentaram a dois grupos de voluntários documentos adaptados de um julgamento por homicídio em que tanto a promotoria quanto a defesa haviam se servido de argumentos de peso. Os documentos incluíam partes da transcrição do julgamento, bem como o artigo de um jornal da época que se mostrara neutro a respeito da culpabilidade do réu. Mas os dois grupos tiveram acesso a material um pouco diferente. O artigo de jornal mostrado a um grupo citava os vizinhos descrevendo o réu como alguém desagradável. Quando indagados se consideravam que a promotoria tinha comprovado a culpa, baseados na transcrição do julgamento, os sujeitos que haviam sido levados a acreditar que o réu não era simpático tendiam muito mais a concluir que a promotoria realmente provara seu ponto de vista.

Em todas essas instâncias, as pessoas pensavam estar sendo objetivas, mas a objetividade era uma ilusão. Na verdade, nossas análises cotidianas dependem de convicções e desejos preexistentes. Quando queremos chegar a certa conclusão, nosso cérebro pode alterar a maneira como percebemos e pesamos os dados e analisamos os argumentos. E – mais importante – nosso cérebro age, assim, abaixo do nível de consciência. Por isso, é bem possível crer honestamente no que desejamos acreditar, ainda que um observador objetivo possa chegar a outra conclusão. Às vezes os psicólogos chamam isso de raciocínio motivado, uma força a ser levada em conta ao examinar por que podemos escolher acreditar numa sedutora visão de mundo envolvendo a consciência universal e um universo amoroso.

Vamos analisar a interpretação de Deepak sobre a experiência de “entrar na luz” ou enxergar uma aura ao redor de alguém. Segundo um estudo publicado no periódico britânico The Lancet, cerca de 10% dos pacientes cardíacos ressuscitados de morte clínica relatam experiências “fora do corpo” ou “semelhantes à morte”. Como devemos interpretá-las? Deepak associa essas experiências a um “estado mais elevado de consciência”. A explicação se encaixa bem na visão de mundo de Deepak, que, assim como o budismo, postula um reino mental impalpável. Mas essa é apenas uma forma desejável de interpretar o evento, ou há provas de apoio a essa visão? Por meio de muito esforço e pela aplicação de novas tecnologias para examinar o cérebro, cientistas vêm estudando esses eventos e chegaram a uma conclusão bem diferente.

Por exemplo, David Comings, neurocientista especializado em estados de consciência alterados, descobriu que experiências de quase morte parecem ocorrer quando o cérebro é privado de oxigênio por prolongado período de tempo, pouco antes de uma lesão cerebral. Experiências fora do corpo também parecem ter uma base física. Isso foi ilustrado recentemente, de forma dramática, no caso de uma mulher de 43 anos que relatou sentir certa “leveza” e afirmava estar flutuando mais ou menos dois metros acima da cama, perto do teto, vendo-se de cima, deitada no leito. Ela não estava à morte, mas tinha eletrodos implantados numa parte do lóbulo temporal chamada giro angular direito. Os eletrodos faziam parte do tratamento para um caso grave de epilepsia, mas também permitiram que os pesquisadores sondassem os efeitos de um pequeno estímulo elétrico no cérebro. Como relatou o cético profissional Michael Shermer em The Believing Brain, os pesquisadores descobriram que, ao variar esse estímulo, eles podiam não somente induzir experiências fora do corpo como também controlar a que altura da cama o paciente dizia estar flutuando.

Richard Dawkins escreveu que, ao assistirmos a um grande truque de mágica, é difícil não pensarmos: “Deve ser um milagre” – embora se saiba muito bem que não se trata disso. É mais difícil ainda acreditar no miraculoso quando temos algum interesse velado numa interpretação que a ciência contradiz. Fenômenos exóticos e mal-compreendidos, como as experiências fora do corpo, são um refúgio para “provas” de ideias não encontradas em contextos já bem-compreendidos. No entanto, ainda que um fenômeno não seja bem-compreendido, vale a pena lembrar que, ao longo da história, muitas vezes o inexplicável, a longo prazo, acabou por ganhar uma explicação natural. Até hoje, nenhum cientista foi obrigado a preencher qualquer lacuna na mensagem da famosa charge de Sidney Harris que diz: “Então, aconteceu um milagre.”c

Podemos ter boas razões objetivas para os pontos de vista que mais prezamos, ou não. De qualquer forma, é melhor saber avaliar o quanto uma evidência se mostra convincente. Nem sempre é fácil. Se você perguntar a uma amiga por que ela acredita em Deus ou numa presença superior, ela provavelmente não vai responder que chegou àquela convicção a partir de uma série de experimentos controlados. O mais provável é que diga que sentiu, ou que apenas sabe. Será que Deus é uma ilusão só percebida pelos que estão em busca de uma presença divina? A ciência é o melhor método que conhecemos para descobrir a verdade sobre o Universo material, mas os poderes dela têm um limite. A ciência não lida com o significado da vida, nem pode, por enquanto, explicar a consciência. Ela nunca será capaz de explicar por que o Universo segue leis. Então, por mais que lance dúvidas sobre convicções espirituais e doutrinas como representações do mundo físico, a ciência não concluiu – e nem pode concluir – que Deus é uma ilusão.

Já que Deepak gosta de parábolas, também vou apresentar uma história ilustrativa, simbólica, porém verdadeira. Em 1969, Richard Feynman inventou um modelo de hádrons – partícula como o próton e o nêutron, que interage através de uma força chamada força forte e que, como o nome indica, é a mais poderosa força da natureza. No modelo de Feynman, um hádron é como um saco contendo pártonsd se agitando livremente dentro dele, mas que são restritos e não saem dali. Feynman usou sua imagem dos pártons para explicar certos dados relativos ao que acontece quando hádrons colidem uns com os outros em altas energias, e funcionou bem, o mesmo que dizer que a teoria foi confirmada. Mas como os pártons precisam ficar dentro do saco – dentro do hádron –, nós não os vemos. Será que são verdadeiros ou apenas uma ilusão, meros construtos do modelo intelectual de Feynman? Essa é uma questão metafísica, porém, embora tenha ficado famoso ao declarar que fora “proibido pelos médicos de discutir metafísica”, ele abordou o tema. Feynman escreveu que, à medida que nos ajudam a entender o que está acontecendo, os pártons podem ser úteis como um “guia psicológico”; se “continuarem a servir dessa forma para produzir outras expectativas válidas, eles acabariam claramente se tornando ‘reais’, talvez tão reais quanto qualquer outra estrutura teórica inventada para descrever a natureza”.

Se esses “guias psicológicos” são úteis na física, não há razão para não empregar guias semelhantes na nossa vida espiritual, desde que nos ajudem a entender o Universo – e que sejam compatíveis com nossas observações. Muita gente acredita intuitivamente num poder superior, extraindo consolo, força e coragem dessa convicção. Quando a fé parece real para uma pessoa, e quando essa convicção específica não leva a um conflito com aquilo que observamos no mundo físico, a ciência não dirá nada em contrário. Se, no entanto, nos pedirem para acreditar num Deus que criou o Universo alguns milhares de anos atrás, enquanto temos provas convincentes de que o Universo é muito mais velho que isso, então surge um conflito. Mas as exigências da ciência não excluem as recompensas da espiritualidade. Na verdade, até Albert Einstein, quase sobre-humano em sua clareza de pensamento e capacidade de raciocínio, exultava com seu sentido de conexão espiritual com o Universo. Nesse caso, era a própria “racionalidade” desse Universo que moldava sua vida espiritual:

Quem já passou pela intensa experiência dos bem-sucedidos avanços [na ciência] é tocado por uma profunda reverência pela racionalidade tal como ela se manifesta na existência. Por meio do entendimento se atinge uma emancipação de longo alcance dos grilhões de esperanças e desejos pessoais. … Assim, me parece que a ciência … contribui para uma espiritualização religiosa do nosso entendimento da vida.

c  Sidney Harris: famoso cartunista americano, publica sobretudo charges sobre ciência, matemática e tecnologia, em revistas como New Scientist e Playboy. Na charge aqui citada, dois homens estão diante de um quadro-negro onde se vê um imenso cálculo matemático; na passagem da primeira para a segunda parte do cálculo, vem a frase: “Então, aconteceu um milagre”. (N.T.)

d  Hipotética partícula elementar que seria constituída de nêutrons e prótons. (N.T.)