LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS AO PODER DE TRIBUTAR
Sumário: 2.1 A relação tributária como relação jurídica – 2.2 As garantias como rol não exaustivo – 2.3 Quando as garantias configuram cláusulas pétreas: 2.3.1 As limitações que constituem garantias individuais do contribuinte; 2.3.2 As limitações que constituem proteção a outras cláusulas pétreas – 2.4 Princípios ou regras? – 2.5 A Legalidade: 2.5.1 Demais matérias sujeitas à reserva legal; 2.5.2 Exceções ao princípio; 2.5.3 Legalidade e delegação legislativa; 2.5.4 Legalidade e medida provisória – 2.6 Princípio da isonomia: 2.6.1 Acepções do princípio; 2.6.2 A isonomia tributária na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal; 2.6.3 Isonomia e capacidade contributiva – 2.7 O princípio da não surpresa: 2.7.1 Princípio da irretroatividade; 2.7.2 Princípio da anterioridade do exercício financeiro; 2.7.3 Princípio da anterioridade nonagesimal ou noventena – 2.8 Princípio do não confisco: 2.8.1 A configuração de confisco; 2.8.2 Perspectivas dinâmica e estática da tributação do patrimônio; 2.8.3 Pena de perdimento e confisco; 2.8.4 Taxas e princípio do não confisco; 2.8.5 Multas e princípio do não confisco – 2.9 Princípio da liberdade de tráfego – 2.10 Vedações específicas à União – a proteção ao pacto federativo: 2.10.1 O princípio da uniformidade geográfica da tributação; 2.10.2 Vedação à utilização do IR como instrumento de concorrência desleal – princípio da uniformidade da tributação da renda; 2.10.3 Princípio da vedação às isenções heterônomas – 2.11 Princípio da não discriminação baseada em procedência ou destino – 2.12 Exigência de lei específica para concessão de benefícios fiscais – 2.13 Imunidades: 2.13.1 Diferenciação de institutos assemelhados; 2.13.2 Imunidades e isenções; 2.13.3 Classificações doutrinárias das imunidades tributárias; 2.13.4 As imunidades tributárias em espécie; 2.13.5 Imunidade tributária da música nacional; 2.13.6 Demais imunidades previstas na CF/1988.
O Estado existe para a consecução do bem comum. Justamente por conta disto é que goza, no ordenamento jurídico, de um conjunto de prerrogativas que lhe asseguram uma posição privilegiada nas relações jurídicas de que faz parte, afinal, se o interesse público deve se sobrepor ao interesse privado, deve-se admitir em certos casos a preponderância do ente que visa ao bem-comum nas suas relações com os particulares.
Uma das situações em que a prevalência é claramente visualizada é a possibilidade de cobrança de tributos. O Estado possui o poder de, por ato próprio – a lei –, obrigar os particulares a se solidarizarem com o interesse público mediante a entrega compulsória de um valor em dinheiro.
Percebe-se que o Estado possui um poder de grande amplitude, mas esse poder não é ilimitado. A relação jurídico-tributária não é meramente uma relação de poder, pois, como toda relação jurídica, é balizada pelo direito e, em face da interferência que o poder de tributar gera sobre o direito de propriedade, o legislador constituinte originário resolveu traçar as principais diretrizes e limitações ao exercício de tal poder diretamente na Constituição Federal.
Seguindo a esteira deste raciocínio, o CESPE, no concurso para Juiz do Estado de Sergipe, realizado em 2004, considerou errada a seguinte assertiva: “O poder de tributar decorre de uma relação de poder e não de uma relação jurídica, de modo que seu exercício não depende de previsão expressa no texto constitucional”.
A Carta Magna estatui as principais limitações ao exercício da competência tributária, mas não necessariamente todas. Isto é percebido pela simples leitura do art. 150 da CF. O dispositivo inaugura a Seção denominada “Das limitações do poder de tributar”, deixando claro que as garantias que estatui existem “sem prejuízo de outras (...) asseguradas ao contribuinte”.
Assim, é lídimo afirmar que as garantias ali estatuídas formam um rol não exaustivo, pois existem outras estipuladas em dispositivos diversos da Constituição Federal (art. 5.º, inciso, XXXIV, por exemplo), além daquelas que decorrem do regime e dos princípios adotados pela própria Carta ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (CF, art. 5.º, § 2.º).
Nessa linha, no concurso para Advogado da União, realizado em 2002, o CESPE propôs a seguinte afirmativa (correta): “O poder de o Estado criar e cobrar tributos não é ilimitado no Estado democrático de direito; no caso brasileiro, esse poder sofre diversas limitações: boa parte delas, mas nem todas, está no capítulo que regula o Sistema Tributário Nacional”.
Boa parte das limitações constitucionais ao poder de tributar está protegida contra mudanças que lhe diminuam o alcance ou a amplitude, por configurarem verdadeiras garantias individuais do contribuinte.
Relembre-se, todavia, que a norma constitucional que define as “cláusulas pétreas” (CF, art. 60, § 4.º) não proíbe quaisquer Emendas sobre aquelas matérias, vedando apenas as mudanças tendentes a abolir o que ali está enumerado. Nessa linha, é correto afirmar que é possível a realização de emendas que ampliem ou melhorem a proteção que a Constituição Federal atribuiu ao contribuinte; o que não é possível é a supressão ou diminuição das garantias.
Nessa linha, quando a Emenda Constitucional 3/1993 tentou autorizar a criação do Imposto Provisório sobre a Movimentação Financeira (que deu origem à CPMF, hoje extinta), excluindo-o da regra que impõe que a cobrança só pode ser feita no exercício financeiro seguinte ao da publicação da lei instituidora (princípio da anterioridade – CF, art. 150, III, b), o Supremo Tribunal Federal entendeu que a Emenda era inconstitucional por tender a suprimir garantia individual do contribuinte (STF, Tribunal Pleno, ADI 939-2/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 15.12.1993, DJ 18.03.1994, p. 5.165).
O Tribunal não acatou o argumento de que a Emenda seria constitucional por apenas criar uma nova exceção a uma regra que já possui várias. O raciocínio da Corte foi correto, visto que, se existe uma regra com previsão das respectivas exceções, a ampliação destas põe em risco aquela. Caso se admita que se ampliem as exceções já existentes para a anterioridade, a tendência é de que as exceções suplantem a regra, passando esta à condição de exceção. De outra forma, é possível afirmar que a criação de novas exceções a uma regra existente tende a abolir a própria regra e, estando esta protegida por cláusula pétrea, haverá inconstitucionalidade.
Diferente é a situação em que há um reforço à garantia.
A título de exemplo, a Emenda Constitucional 42/2003 estendeu genericamente aos tributos (como regra que comporta exceções) a exigência de um prazo mínimo de 90 dias entre data da publicação da lei que instituísse ou majorasse uma contribuição social para a seguridade social e a data de sua efetiva cobrança. Não houve qualquer inconstitucionalidade, pois se estava ampliando uma garantia do contribuinte.
Em suma, as Emendas Constitucionais que ampliarem garantias individuais do contribuinte são válidas; já aquelas que diminuírem, criarem exceções ou de qualquer forma enfraquecerem tais garantias são inconstitucionais por tenderem a aboli-las.
Como ressaltado, as denominadas cláusulas pétreas possuem tal status por conta da proteção contra Emendas, conferida pelo § 4.º do art. 60 da CF.
Quando se fala em limitações ao poder de tributar como cláusula pétrea, deve-se tomar o cuidado de analisar o conteúdo de cada limitação, verificando a possibilidade de enquadramento em uma das situações petrificadas pelo legislador constituinte originário (CF, art. 60, § 4.º).
Dessa forma, ao contrário do que muitos afirmam, a configuração de uma limitação constitucional ao poder de tributar como garantia individual do contribuinte não é a única situação que possui o condão de lhe atribuir o status de cláusula pétrea.
No mesmo julgamento em que considerou o princípio da anterioridade garantia individual do contribuinte e, portanto, impossível de ser excetuado via Emenda Constitucional, o Supremo Tribunal Federal considerou também inconstitucional a previsão de que o novel Imposto Provisório sobre a Movimentação Financeira não seria sujeito à imunidade tributária recíproca, que impede que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituam impostos sobre patrimônio, renda ou serviços uns dos outros (CF, art. 150, VI, a).
A regra imunizante é verdadeiro corolário da federação, pois, a título de exemplo, se fosse lícito à União cobrar imposto sobre patrimônio, renda ou serviço de um Estado, correr-se-ia o risco de utilização do poder de tributar como mecanismo de pressão da União sobre o Estado, pondo em risco a autonomia, principal sustentáculo da federação, forma de Estado petrificada pelo legislador constituinte originário.
Também se considerou inconstitucional a previsão de que o IPMF não obedecesse à imunidade dos templos de qualquer culto (CF, art. 150, VI, b). A imunidade, denominada religiosa, protege a liberdade de culto, que é um direito individual.
Na mesma linha, também foram consideradas protegidas por cláusulas pétreas a imunidade dos livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão (protegendo a livre difusão do pensamento e barateando o acesso à informação, garantias individuais), bem como a proteção a diversas instituições cujas atividades são consectários de outras garantias constitucionalmente protegidas (liberdade sindical, liberdade de criação e filiação a partidos políticos etc.).
Por ser extremamente pertinente, transcreve-se o trecho mais esclarecedor da Ementa (ADI 939-7-DF):
“A Emenda Constitucional 3, de 17.03.1993, que, no art. 2.º, autorizou a União a instituir o IPMF, incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no § 2.º desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica ‘o art. 150, III, b, e VI’, da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros):
1. o princípio da anterioridade, que e garantia individual do contribuinte (art. 5.º, § 2.º, art. 60, § 4.º, inciso IV, e art. 150, III, b, da Constituição);
2. o princípio da imunidade tributária recíproca (que veda a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que é garantia da Federação (art. 60, § 4.º, inciso I, e art. 150, VI, a, da CF);
3. a norma que, estabelecendo outras imunidades, impede a criação de impostos (art. 150, III) sobre: b): templos de qualquer culto; c): patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; e d): livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão” (STF, Tribunal Pleno, ADI 939-7/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 15.12.1993, DJ 18.03.1994).
Em passagem que já se tornou clássica, Celso Antônio Bandeira de Melo afirma que “princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”.
Assim, é somente com a compreensão do conteúdo e do alcance dos princípios que se consegue entender as diversas normas integrantes de um determinado ramo do direito e, por conseguinte, o todo, formado pelo ordenamento jurídico.
A moderna doutrina considera que boa parte dos denominados princípios constitucionais tributários, por não poderem ser ponderados quando parecem conflitar com outros princípios, seriam na realidade regras, visto que são disjuntivos, aplicando-se ou não a cada caso concreto, sem qualquer ponderação.
A título de exemplo, a isonomia (tratar igualmente quem é igual, e desigualmente quem é desigual, na proporção das desigualdades havidas) seria um verdadeiro princípio, pois pode ser objeto de ponderação, permitindo a concessão de uma isenção que beneficie grandes empresas para que estas se instalem em regiões subdesenvolvidas, tudo para garantir um objetivo traçado pela própria Constituição, qual seja estimular o desenvolvimento equilibrado entre as diversas regiões do País.
Já a anterioridade seria uma regra aplicável ou não a cada caso concreto. É um verdadeiro tudo ou nada. Dessa forma, como será detalhado adiante, a anterioridade se aplica ao aumento do Imposto sobre a propriedade Territorial Rural-ITR, não havendo o que ponderar. A mesma regra não se aplica ao aumento do Imposto de Importação – II, também não havendo o que ponderar.
Essa doutrina fala em regra da anterioridade, regra da irretroatividade etc.
Todavia, na linha do objetivo desta obra, seguir-se-á a terminologia consagrada, que denomina as limitações constitucionais ao poder de tributar como verdadeiros Princípios Constitucionais Tributários.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5.º, II, estabeleceu que “ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Como o tributo é uma prestação pecuniária compulsória, obrigando ao pagamento independentemente da vontade do sujeito passivo, o dispositivo constitucional transcrito bastaria para que a criação ou aumento de tributo estivesse sob os domínios do princípio da legalidade.
Todavia, referindo-se especificamente à matéria tributária, o art. 150, I, da Magna Carta proíbe os entes federados de “exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”. Além disso, recorde-se que o tributo, por definição legal (CTN, art. 3.º), é prestação “instituída em lei”.
Caso se opte por seguir a lição dos constitucionalistas, segundo a qual a submissão de matéria específica à regulação por lei é manifestação do princípio da reserva legal, enquanto a submissão da criação de quaisquer obrigações ao domínio da lei (CF, art. 5.º, II) seria decorrência do princípio da legalidade, seria mais adequado denominar o princípio tributário esculpido no art. 150, I, da CF/1988 de reserva legal. Não obstante, há de se ressaltar que as provas de concurso público têm geralmente denominado o princípio como legalidade tributária.
A palavra “exigir”, constante do transcrito art. 150, I, da CF, possui o sentido de cobrar o tributo. Como a cobrança depende, por óbvio, da prévia instituição da exação, o dispositivo acaba por impor que o tributo só pode ser criado por lei, seja ordinária, casos em que pode haver a utilização de Medida Provisória, ou complementar (somente no caso de Empréstimos Compulsórios, do Imposto sobre Grandes Fortunas – IGF, e dos Impostos ou Contribuições Residuais – conforme os arts. 148; 153, VII; 154, I e 195, § 4.º, todos da CF).
Conforme afirmado, a Constituição Federal veda que União, Estados, Distrito Federal e Municípios exijam ou aumentem tributos sem lei que o estabeleça. Todavia, a literalidade do texto constitucional exige menos do que sua essência impõe, conforme se passa a explicar.
Existe um princípio em direito denominado paralelismo das formas. Tal princípio impõe que se um instituto jurídico foi criado por meio de uma regra jurídica de determinada hierarquia, para promover sua alteração ou extinção é necessária a edição de um ato de hierarquia igual ou superior.
Assim, se uma lei criou determinado tributo, somente outra lei – ou uma Emenda Constitucional – pode extingui-lo, sendo irracional imaginar a extinção de um tributo por meio, por exemplo, de um decreto. A consequência imediata é que, no ponto em que a Constituição exige lei para a instituição de tributos, também o faz, implicitamente, para a respectiva extinção.
Na mesma linha, a exigência de lei para a majoração de tributo traz ínsito o mesmo requisito para a respectiva redução.
Por outros motivos, existem outras matérias tributárias reservadas à lei.
Em virtude de o patrimônio público ser, por princípio, indisponível, a concessão de benefícios fiscais ou autorização de prática de atos que gerem impactos sobre o crédito tributário ou sobre sua exigibilidade somente pode ser feita por lei (CF, art. 150, § 6.º).
Já em face da amplitude do princípio da legalidade estatuído no art. 5.º, inciso II, da CF, a multa tributária, por gerar uma obrigação a ser adimplida pelo infrator, somente pode ser estatuída em lei.
Enfim, o conjunto de matérias submetidas à reserva legal se encontra resumido no art. 97 do Código Tributário Nacional, conforme enumeração abaixo:
“I – a instituição de tributos, ou a sua extinção;
II – a majoração de tributos, ou sua redução;
III – a definição do fato gerador da obrigação tributária principal e do seu sujeito passivo;
IV – a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo;
V – a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas;
VI – as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades”.
De fundamental importância é conhecer as matérias que não estão sujeitas ao princípio da legalidade, podendo ser disciplinadas por meio de ato infralegal (decreto presidencial, por exemplo).
O Supremo Tribunal Federal entende que o art. 97 do Código Tributário Nacional foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 e, interpretando o dispositivo a contrario sensu, conclui que as matérias ali não constantes não estão abrangidas pelo princípio da legalidade.
Os casos mais relevantes são a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo (expressamente ressalvada pelo § 2.º do mesmo art. 97) e a fixação do prazo para recolhimento (jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – RE 172.394/SP, RE 195.218/MG).
Quanto à primeira exceção, deve-se tomar cuidado para não confundir a atualização do valor monetário da base de cálculo com o aumento desta mesma base de cálculo (este reservado à lei).
O exemplo mais marcante é o IPTU. Tendo por base de cálculo o valor venal do imóvel, o IPTU é calculado tomando por referência tabelas que estipulam o valor do metro quadrado de área construída do imóvel nas diversas zonas do Município. Os valores estipulados são corroídos pelo fenômeno inflacionário e quando o Município, utilizando-se de índices uniformes, resolve atualizá-los, pode fazê-lo por meio de Decreto do Prefeito, pois não se está a aumentar a base de cálculo, mas apenas a se impedir que ela seja artificiosamente diminuída.
Digno de nota é que, conforme já decidido pelo STF, como a legislação sobre direito financeiro encontra-se no âmbito da legislação concorrente (CF, art. 24, I), os entes federados podem utilizar-se de índices locais para a correção monetária dos seus tributos. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, têm-se entendido que a liberdade para que os Municípios estipulem o índice de correção monetária para o IPTU é relativa, tendo por limite o “índice oficial de correção monetária”. Nesta linha, a Súmula 160 do STJ:
STJ – Súmula 160 – “É defeso, ao Município, atualizar o IPTU, mediante decreto, em percentual superior ao índice oficial de correção monetária”.
Em provas de concurso público, têm sido cobradas questões que versam sobre o incontroverso: a possibilidade de correção mediante decreto. A título de exemplo aponta-se a pedagógica questão cobrada pelo CESPE, no concurso para Procurador do INSS, realizado em 1999 (assertiva CERTA): “Considere a seguinte situação hipotética: Em determinado município, foi promulgada lei definindo os elementos para a cobrança válida do imposto predial e territorial urbano (IPTU), que tinha como referência a área construída do imóvel. Dois anos depois da entrada em vigor, a secretaria municipal de finanças remeteu exposição de motivos ao prefeito sugerindo a edição de decreto que atualizasse os valores do imposto devido à desvalorização da moeda. Concordando com a exposição de motivos, o prefeito baixou decreto atualizando monetariamente os valores do IPTU. Nessas circunstâncias, apesar do princípio da legalidade, o decreto é juridicamente válido”.
Relativamente ao prazo para o pagamento do tributo, o Supremo Tribunal Federal entende ser possível a fixação por decreto, em virtude de não ter sido enumerado entre as taxativas matérias que o art. 97 do CTN submete à reserva de lei.
Outro ponto de importância é que, apesar de o princípio da legalidade não possuir exceções quanto à criação de tributos, contempla-as, todavia, para sua majoração. No texto originário da Constituição Federal 1988 eram previstas apenas quatro exceções, quais sejam a possibilidade de alteração, dentro dos limites legais, das alíquotas dos impostos de importação (II), de exportação (IE), sobre produtos industrializados (IPI) e sobre operações financeiras (IOF).
A Constituição prevê que as alterações são de competência do Poder Executivo, mas não estipula qual espécie de ato normativo deste Poder concretizará a alteração. Apesar de a maioria da doutrina entender que o ato deve ser um Decreto Presidencial, deve-se repisar que a Constituição Federal de 1988 não afirma isto.
Na prática, as alíquotas dos tributos aduaneiros (II e IE) têm sido alteradas por Resolução da Câmara de Comércio Exterior – CAMEX, enquanto o IPI e o IOF têm suas alíquotas alteradas diretamente por decreto. Em ambos os casos, a alteração tem sido feita por ato do Poder Executivo, não havendo desobediência ao texto constitucional, conforme já decidido pelo STF (Pleno, RE 570680/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 28.10.2009, DJ 04.12.2009, p. 1.024).
Em provas de concurso, principalmente o CESPE costuma afirmar que os quatro impostos citados podem ter suas alíquotas alteradas por Decreto do Presidente da República. A afirmação é tida por correta, pois, em virtude da hierarquia das normas, se uma Resolução da CAMEX pode alterar a alíquota dos tributos aduaneiros, o Decreto Presidencial também o pode.
Com o advento da Emenda Constitucional 33/2001, foram previstas duas outras exceções ao princípio da legalidade no tocante a alterações de alíquotas. Ambas se referem à tributação de combustíveis.
A primeira permite ao Poder Executivo reduzir e restabelecer as alíquotas da CIDE-combustíveis (o Presidente da República tem usado o Decreto como via normativa para o exercício da competência prevista no art. 177, § 4.º, I, b, da CF/1988).
A segunda permite aos Estados e ao Distrito Federal, mediante convênio (realizado no âmbito do CONFAZ, conforme será estudado em momento oportuno), definir as alíquotas do ICMS-monofásico incidente sobre combustíveis definidos em Lei Complementar (CF, art. 155, § 4.º, IV).
Percebe-se que, no caso da CIDE-combustíveis, a liberdade é menor que a prevista para a alteração das alíquotas de II, IE, IPI e IOF, pois se restringe à redução e ao restabelecimento. A palavra “restabelecer” tem amplitude menor que a palavra “aumentar”, pois no restabelecimento a alíquota não pode superar o percentual anterior a uma redução porventura realizada.
Assim, se uma alíquota de 20% foi reduzida a 10%, o restabelecimento, sem sujeição ao princípio da legalidade, só permite a volta a 20%. Para que se ultrapasse este percentual, é necessária a edição de lei em sentido estrito ou medida provisória.
Já no caso do ICMS-monofásico, a alíquota é fixada diretamente por convênio, de forma que tanto a redução quanto o aumento podem ser feitos por convênio, sendo exceções à legalidade. A palavra “restabelecidas”, que aparece na alínea c do inciso IV do § 4.º do art. 155 da CF/1988, impede apenas que o aumento acima do patamar anterior à uma redução realizada seja feito sem obediência à anterioridade.
Em resumo, quanto à CIDE-combustíveis, a redução e restabelecimento de alíquotas podem ser feitos por decreto, sem obediência à legalidade nem à anterioridade. Já quanto ao ICMS-monofásico, incidente sobre combustíveis definidos em Lei Complementar, a definição (inclusive redução e aumento) de alíquotas pode ser feita por convênio, sem obediência à legalidade, mas se o aumento ultrapassar o mero restabelecimento de patamar anteriormente fixado, deve-se obedecer à anterioridade.
Assim, no tocante às novas exceções que a EC 33/2001 trouxe para o princípio da legalidade, os tributos objeto de discussão podem ter suas alíquotas alteradas da seguinte forma:
TRIBUTO |
Exceção à legalidade |
Exceção à anterioridade |
Ato normativo |
CIDE-combustíveis |
Redução e restabelecimento de alíquotas |
Redução e restabelecimento de alíquotas |
Decreto |
ICMS-monofásico-combustíveis |
Fixação de alíquotas (inclusive redução e aumento) |
Redução e restabelecimento de alíquotas |
Convênio (CONFAZ) |
O estudo da anterioridade e suas exceções será feito adiante.
Teoricamente nada impede a utilização da Lei Delegada em matéria tributária. Todavia, desde a edição da Constituição Federal de 1988, o Presidente da República só editou duas leis delegadas (as LD 12/1992 e 13/1992), ambas concedendo gratificação a servidores públicos.
Não há dúvida de que a inutilidade prática do instituto deve-se ao fato de o Presidente da República possuir grande liberdade na edição de Medidas Provisórias, cuja utilização, ao contrário das leis delegadas, independe de qualquer autorização do parlamento, sendo condicionada apenas à existência dos desmoralizados requisitos de relevância e urgência e a algumas poucas limitações materiais que guardam certa semelhança com as estipuladas para as leis delegadas.
Todavia, em teoria, é possível que, havendo delegação do Congresso Nacional por meio de Resolução, o Presidente da República edite Lei Delegada, observados os limites estatuídos pelo parlamento, podendo o ato de delegação prever a apreciação parlamentar do projeto elaborado, em sessão única, vedada qualquer emenda (delegação atípica).
A possibilidade de autorização parlamentar para que o Chefe do Executivo elabore Lei Delegada (CF, art. 68) não se confunde com a hipótese de o mesmo parlamento autorizar o Executivo a elaborar um decreto ou regulamento disciplinando matéria ainda não regulada em lei (inexistente no direito brasileiro, salvo nas restritas hipóteses do inciso VI do art. 84 da CF/1988). Essa segunda delegação não pode ser feita, visto que, nas matérias reservadas a determinada espécie normativa, não se entremostra viável a delegação da respectiva regulamentação a outra espécie de ato.
Contudo, a possibilidade de elaboração de Leis Delegadas sobre as mesmas matérias deve-se a dois argumentos básicos.
Em primeiro lugar, porque a norma a ser elaborada possui hierarquia legal e, respeitadas as limitações materiais constitucionalmente estabelecidas (CF, art. 68, § 1.º), pode disciplinar todas as matérias sujeitas à reserva de lei, até porque, mesmo delegada, a norma elaborada é lei.
Em segundo lugar, porque a Constituição autoriza. O argumento, apesar de formal, é importante, uma vez que é pacífico em sede doutrinária e jurisprudencial que a delegação de funções típicas entre os poderes de Estado só é possível nas exaustivas hipóteses previstas no texto constitucional.
Sabendo que a exigência de lei para a criação de tributo tem por significado, ao menos teórico, a necessidade de autorização popular para que o Estado lhe cobre determinada exação, não há que se imaginar que os representantes do povo abdiquem de forma genérica do nobre mister que lhes é atribuído. As prerrogativas do legislador são, portanto, indisponíveis.
É possível, contudo, que o legislador atribua ao regulamento a incumbência de complementar conceitos jurídicos que a lei deixou indeterminados, sem que se tenha por ferido o princípio da legalidade.
A título de exemplo, as Leis 7.787/1989 e 8.212/1991 definiram os elementos essenciais para a cobrança da Contribuição ao Seguro de Acidentes de Trabalho (SAT), estipulando alíquotas diferenciadas de acordo com o “grau de risco leve, médio ou grave” da “atividade preponderante” exercida pela empresa.
Os conceitos de “grau de risco”, “leve, médio ou grave” e de “atividade preponderante” foram definidos em Decretos do Presidente da República, o que levou ao ajuizamento de ações diretas de inconstitucionalidade, alegando que o princípio da legalidade estrita ou “cerrada” impediria a definição pela via regulamentar de conceitos imprescindíveis para a cobrança válida de tributo.
Seguindo lapidar voto do então Ministro Carlos Velloso, o STF esposou o entendimento de que “os decretos regulamentadores, ao tratarem da atividade econômica preponderante e do grau de risco acidentário, delimitaram conceitos necessários à aplicação concreta da Lei 8.212/1991, não exorbitando o poder regulamentar conferido pela norma, nem ferindo princípios em matéria tributária” (STF, Tribunal Pleno, RE 343.446-2/SC, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 20.03.2003, DJ 04.04.2003).
Em suma, devem constar na lei todos os elementos essenciais para a criação de um tributo (fato gerador, alíquota, contribuintes e base de cálculo). A exigência não impede, contudo, que o regulamento aclare conceitos jurídicos indeterminados adotados pela lei. Nesta situação, o decreto regulamentar indicará o caminho a ser seguido para a fiel execução da lei, conforme previsto no art. 84, IV, da CF.
A utilização de medida provisória em matéria tributária já foi objeto de intermináveis controvérsias em sede doutrinária. Alegavam alguns autores que o Direito Tributário e o Direito Penal eram ramos do direito em que o princípio da legalidade se mostrava mais rígido, de forma que a instituição de tributos e a tipificação de crimes e contravenções só poderiam ser feitas por lei em sentido estrito.
Em sede jurisprudencial, o STF não demorou a definir que, em se tratando de matéria tributária, o uso da medida provisória era plenamente possível, desde que observados os seus requisitos constitucionais (relevância e urgência).
Com o advento da Emenda Constitucional 32/2001, a Constituição Federal passou a prever que, ressalvados o II, o IE, o IPI, o IOF e os impostos extraordinários de guerra, a medida provisória que implique majoração de impostos só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se for convertida em lei até o último dia daquele em que foi editada (CF, art. 62, § 2.º). Assim, estabelecidos requisitos para o uso da medida provisória em matéria tributária, fica claro que a utilização é lícita.
Ressalte-se que a restrição relativa à necessidade da conversão em lei no exercício da edição da medida provisória aplica-se exclusivamente aos impostos, de forma que, no tocante às demais espécies tributárias, a regra da anterioridade deve ser observada, tomando como referência a data da publicação da MP e não de sua conversão em lei.
No concurso para Auditor-Fiscal da Receita Federal, realizado em 2005, a ESAF propôs a seguinte assertiva: “a medida provisória que majore contribuição para o financiamento da Previdência Social somente poderá surtir efeitos no exercício seguinte se convertida em lei até o último dia do exercício precedente”.
Na divulgação do gabarito oficial, o item foi absurdamente considerado correto. O erro foi sanado após os recursos de forma que a assertiva foi, finalmente, considerada ERRADA.
Na mesma linha, a regra, tão frequente em provas de concurso, também foi objeto de cobrança pela ESAF, na prova de Direito Constitucional do concurso para Analista do MPOG, realizado em 2005: “Majoração do imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários, feita por meio de medida provisória, por força de disposição constitucional, só produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se a medida provisória houver sido convertida em lei até o último dia do exercício financeiro em que foi editada”.
A afirmativa está ERRADA, pois, como visto, o IOF é uma das exceções exaustivamente previstas no art. 62, § 2.º, da CF.
Há impedimento constitucional à utilização de medida provisória em matéria tributária cuja disciplina está reservada à lei complementar (CF, art. 62, § 1.º, III).
Dessa forma, a título de exemplo, a Constituição Federal reserva à lei complementar a estipulação de normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre a definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados no seu texto, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes (CF, art. 146, III, a). Como consequência, não é possível a utilização de medida provisória para disciplinar quaisquer dessas matérias, de forma a responder com um sonoro “NÃO” à seguinte pergunta, formulada pela ESAF na prova para AFRF, realizada em 2003: “É admitida a edição de medida provisória para estabelecer, em matéria de legislação tributária, normas gerais sobre a definição de base de cálculo do imposto de competência da União sobre propriedade territorial rural?”
Pelo mesmo motivo, os tributos cuja criação é atribuída à lei complementar não podem ser instituídos via medida provisória.
O entendimento foi cobrado pela ESAF no concurso para Auditor do Paraná, realizado em 2003, na questão a seguir transcrita (assertiva ERRADA): “É permitida a edição de medida provisória para instituir empréstimo compulsório, no caso de comprovada necessidade de atendimento a despesas extraordinárias que decorram de calamidade pública ou de guerra externa”.
Por fim, a Constituição Federal estatui uma última restrição à utilização de medidas provisórias que pode ter importantes repercussões em matéria tributária. Trata-se de regra também decorrente da Emenda Constitucional 32/2001, que deu ao art. 246 da CF/1988 a seguinte redação:
“Art. 246. É vedada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada entre 1.º de janeiro de 1995 até a promulgação desta emenda, inclusive”.
Registre-se que, em termos práticos, está impedida a edição de medidas provisórias para regulamentar artigos da CF/1988 cujas redações tenham sido alteradas pelas Emendas Constitucionais de n. 5/1995 a 32/2001. No que concerne à matéria tributária, a restrição aplica-se às seguintes Emendas:
– a de n. 12/1996 (que outorgou competência à União para a instituição da CPMF, hoje extinta);
– a de n. 20/1998 (com importantes repercussões sobre as contribuições para financiamento da seguridade social);
– a de n. 21/1999 (que prorrogou a CPMF, hoje extinta);
– a de n. 29/2000 (que autorizou a progressividade fiscal do IPTU e a diferenciação das respectivas alíquotas com base no uso e na localização do imóvel);
– a de n. 31/2000 (que instituiu o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza – cuja vigência expira no final de 2010 – vinculando-lhe a receita de diversos tributos).
Tornou-se célebre a lição dada por Rui Barbosa quando afirmou, na sua Oração aos Moços:
“A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”.
A isonomia possui, portanto, uma acepção horizontal e uma vertical.
A acepção horizontal refere-se às pessoas que estão niveladas (daí a nomenclatura), na mesma situação e que, portanto, devem ser tratadas da mesma forma.
Assim, contribuintes com os mesmos rendimentos e mesmas despesas devem pagar o mesmo imposto de renda.
A acepção vertical refere-se às pessoas que se encontram em situações distintas e que, justamente por isso, devem ser tratadas de maneira diferenciada na medida em que se diferenciam.
Assim, a pessoa física que possui salário de quinhentos reais mensais está isenta do imposto sobre a renda; enquanto aquela cujos rendimentos são de cinco mil reais mensais se sujeita a uma alíquota de 27,5% do mesmo imposto. Mesmo que os rendimentos sejam idênticos, o tratamento deve ser diferenciado se, por exemplo, há uma diferença relevante quanto a número de filhos, despesas com saúde, educação, previdência, entre outras.
O legislador constituinte, seguindo a lição, estipulou, no art. 150, II, da CF/1988, que é vedado aos entes federados “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente (...)”.
Tratou da isonomia no seu sentido horizontal, pois exigiu que se dispensasse tratamento igual aos que estão em situação equivalente, mas deixou implícita a necessidade de tratamento desigual aos que se encontram em situações relevantemente distintas (sentido vertical).
Por tudo, é lícito afirmar que, havendo desigualdade relevante, a Constituição não apenas permite a diferenciação como também a exige.
Como consequência e a título de exemplo, haveria inconstitucionalidade (por omissão) se a lei do imposto de renda não previsse as chamadas deduções da base de cálculo do imposto (saúde, educação, dependentes), pois a inexistência das deduções redundaria num tratamento idêntico dispensado a pessoas em situações claramente distintas.
Imaginem-se duas pessoas com rendimentos de cinco mil reais mensais. A primeira solteira e com gastos muito pequenos com saúde e educação próprias; a segunda casada, com filhos matriculados em escola privada e responsável pelo pagamento de plano de saúde para toda a família. Seria absurdo que ambos pagassem o mesmo valor a título de imposto de renda, o que demonstra a imprescindibilidade da previsão das deduções como meio de se assegurar isonomia.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, o princípio da isonomia tem fundamentado decisões que ilustram com maestria a aplicação prática do princípio.
A Emenda Constitucional 41/2003 trouxe profundas reformas ao sistema próprio de previdência dos servidores públicos. Entre essas mudanças está a previsão constitucional de cobrança de contribuição previdenciária dos servidores inativos e dos pensionistas, considerada constitucional pelo STF.
Estipulou-se que os inativos e pensionistas de todas as esferas da federação, em gozo de benefícios na data de publicação da Emenda, passariam a pagar contribuição previdenciária. O grande problema foi que, para os inativos e pensionistas da União a incidência era sobre a remuneração que excedesse sessenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social. Já para os beneficiários dos Estados, Distrito Federal e Municípios, a contribuição incidiria sobre a remuneração que excedesse cinquenta por cento do mesmo limite.
A agressão à isonomia era gritante. Por que um inativo de Estado ou Município com provento idêntico a um inativo da União deveria ser mais onerado do que este?
O STF, julgando a ADI 3.105, pôs fim ao tratamento discriminatório desarrazoado. O seguinte excerto, extraído da Ementa, resume o pensamento da Corte (grifou-se):
“Servidor público. Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões. Sujeição à incidência de contribuição previdenciária. Bases de cálculo diferenciadas. Arbitrariedade. Tratamento discriminatório entre servidores e pensionistas da União, de um lado, e servidores e pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de outro. Ofensa ao princípio constitucional da isonomia tributária, que é particularização do princípio fundamental da igualdade” (STF, Tribunal Pleno, ADI 3.105/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 18.08.2004, DJ 18.02.2005).
Outra situação em que o STF entendeu haver tratamento discriminatório sem fundamento em desigualdade que justificasse a diferenciação foi quando entendeu insubsistente pretensão de contribuinte que, fundamentado em lei do Município de Niterói-RJ, pretendia ver reconhecida isenção do IPTU exclusivamente como decorrência de sua qualidade de servidor público (AI 157.871-AgR).
Veja-se que não existe uma diferença intrínseca de capacidade contributiva ou de qualquer outro parâmetro relevante que justifique um tratamento tributário diferenciado – seja melhor ou pior – tomando por base o exercício de cargo público.
Neste ponto, ressalte-se que, no mesmo dispositivo em que enuncia o princípio da isonomia, o legislador já estipula que a ocupação profissional ou função exercida pelo contribuinte não pode ser tomada como parâmetro para diferenciação.
A proibição tenta acabar com a situação anterior à Constituição Federal de 1988, quando algumas classes de pessoas conseguiam aprovar leis que, mudando a denominação jurídica das respectivas remunerações (normalmente denominando boa parte dos rendimentos de “ajuda de custo”), conseguiam diminuir consideravelmente a carga tributária a que estariam sujeitas em condições normais.
Justamente por isso, a Constituição Federal de 1988 completou a proibição de tratamento diferenciado com base em ocupação ou cargo com a cláusula “independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.
A COFINS e a CSLL são duas contribuições para financiamento da seguridade social. A primeira incide sobre a receita ou o faturamento (CF, art. 195, I, b) sendo, portanto, paga por todos os contribuintes, lucrativos ou não. Já a segunda incide sobre o lucro líquido, de forma que os contribuintes que registram prejuízos no exercício não estão sujeitos a seu pagamento.
Ao majorar a alíquota da COFINS de 2% para 3%, a Lei 9.718/1998 previu que o contribuinte sujeito a ambas as contribuições teria o direito de abater até um terço da COFINS com a CSLL, quando obtivesse lucro no exercício.
Os contribuintes alegaram que a lei agredia a isonomia, pois tratava de maneira beneficiada as empresas lucrativas, negando qualquer benefício àquelas que mais precisavam ser ajudadas, as que obtiveram prejuízos.
O raciocínio é inteligente, mas o STF enxergou a mesma situação de uma maneira completamente diversa. Entendeu que a isonomia estava sendo respeitada, pois a lei apenas tentava atenuar a carga tributária das empresas sujeitas a dupla tributação.
Por ser extremamente didático, transcreve-se o trecho mais relevante da Ementa:
“Alegada ofensa ao princípio da isonomia. Por efeito da referida norma, o contribuinte sujeito a ambas as contribuições foi contemplado com uma bonificação representada pelo direito a ver abatido, no pagamento da segunda (COFINS), até um terço do quantum devido, atenuando-se, por esse modo, a carga tributária resultante da dupla tributação. Diversidade entre tal situação e a do contribuinte tributado unicamente pela COFINS, a qual se revela suficiente para justificar o tratamento diferenciado, não havendo que falar, pois, de ofensa ao princípio da isonomia” (STF, Tribunal Pleno, RE 336.134/RS, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 20.11.2002, DJ 16.05.2003).
A Lei 9.317/1996 – cuja revogação pela Lei Complementar 123/2006 ocorreu no dia 1.º de julho de 2007 – instituiu o Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das microempresas e das empresas de pequeno porte – SIMPLES, tomando como parâmetro para inclusão dos contribuintes na sistemática a receita bruta anual.
Todavia, mesmo que não superados os limites de receita estabelecidos pela Lei, alguns contribuintes foram excluídos da sistemática, como, por exemplo, as sociedades constituídas pelos profissionais liberais.
A Confederação Nacional das Profissões Liberais – CNPL ajuizou ação direta perante o STF argumentando que a exclusão das sociedades de profissionais liberais das vantagens tributárias e administrativas decorrentes do SIMPLES, independentemente da receita bruta auferida por tais sociedades, consistiria num tratamento diferenciado para contribuintes em situações equivalentes e, portanto, agressão ao princípio da isonomia.
O Tribunal considerou que o objetivo do tratamento diferenciado dado às microempresas e empresas de pequeno porte é dar-lhes condições de concorrer com as grandes empresas, protegendo aquelas contra eventuais abusos de poder econômico, assim como diminuir a informalidade, mantendo-as como a grande fonte de empregos no País.
Entretanto, conforme se extrai do voto que conduziu o julgamento (Min. Maurício Correia), “as sociedades civis de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissão regulamentada não sofrem o impacto do domínio do mercado pelas grandes empresas; não se encontram, de modo substancial, inseridas no contexto da economia informal; em razão do preparo científico, técnico e profissional dos seus sócios estão em condições de disputar o mercado de trabalho, sem assistência do Estado; não constituiriam, em satisfatória escala, fonte de geração de empregos se lhes fosse permitido optar pelo ‘Sistema Simples’”.
Como conclusão, o Tribunal prolatou Acórdão em que se afirma (grifou-se):
“Não há ofensa ao princípio da isonomia tributária se a lei, por motivos extrafiscais, imprime tratamento desigual a microempresas e empresas de pequeno porte de capacidade contributiva distinta, afastando do regime do simples aquelas cujos sócios têm condição de disputar o mercado de trabalho sem assistência do Estado” (STF, Tribunal Pleno, ADI 1.643/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 05.12.2002, DJ 14.03.2003).
Ressalte-se que, pelos seus fundamentos, a decisão da Suprema Corte, é plenamente aplicável ao denominado Supersimples, instituído pela Lei Complementar 123, de 14 de dezembro de 2006, que, no seu art. 17, traz regra semelhante àquela declarada constitucional pelo Tribunal. Pela relevância e atualidade da matéria, transcreve-se o dispositivo:
“Art. 17. Não poderão recolher os impostos e contribuições na forma do Simples Nacional a microempresa ou a empresa de pequeno porte:
(...)
XI – que tenha por finalidade a prestação de serviços decorrentes do exercício de atividade intelectual, de natureza técnica, científica, desportiva, artística ou cultural, que constitua profissão regulamentada ou não, bem como a que preste serviços de instrutor, de corretor, de despachante ou de qualquer tipo de intermediação de negócios”.
Em matéria de tributação, o principal parâmetro de desigualdade a ser levado em consideração para a atribuição de tratamento diferenciado às pessoas é, exatamente, sua capacidade contributiva.
É exato, portanto, afirmar que o princípio da capacidade contributiva está umbilicalmente ligado ao da isonomia, dele decorrendo diretamente.
A Constituição Federal trata do princípio no art. 145, § 1.º, nos seguintes termos:
“Art. 145. (...)
§ 1.º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
Conforme ressaltado no Capítulo 1, item 1.4.3.3 (“A Base de Cálculo das Taxas”), apesar de a Constituição Federal de 1988 ter previsto a aplicação do princípio da capacidade contributiva apenas para os impostos, a jurisprudência do STF entende que nada impede sua aplicação a outras espécies tributárias.
A aplicação aos impostos “sempre que possível” decorre do entendimento de que todos os impostos incidem sobre alguma manifestação de riqueza do contribuinte (auferir renda, ser proprietário, importar, transmitir bens). Manifestada riqueza, aparece a solidariedade social compulsoriamente imposta: o Estado, por lei, obriga o particular a entregar-lhe parte da riqueza, parte esta que será redistribuída para toda a sociedade por meio das atividades estatais. Por conseguinte, considera-se justo que cada pessoa seja solidária na medida de suas possibilidades, visto que quem mais tem renda, quem mais possui, quem mais importa, quem, enfim, mais manifesta riqueza, tem uma possibilidade maior de contribuir com a sociedade sem comprometer sua subsistência (capacidade contributiva).
Quem ganha pouco é isento do imposto de renda porque o Estado reconhece que praticamente todos os seus rendimentos estão comprometidos com suas necessidades básicas (ausência de capacidade contributiva). Quem tem rendimentos maiores contribui na medida destes, pois tem capacidade contributiva para fazê-lo.
Assim, a imposição constitucional de progressividade do imposto de renda é exemplo de regra teleologicamente (finalisticamente) ligada aos princípios da capacidade contributiva e da isonomia.
Na esteira desse entendimento, no julgamento do RE 423.768 (Noticiado no Informativo STF 433), o Relator Ministro Marco Aurélio afirmou que “o § 1.º do art. 145 possui cunho social da maior valia, tendo como objetivo único, sem limitação do alcance do que nele está contido, o estabelecimento de uma gradação que promova justiça tributária, onerando os que tenham maior capacidade para pagamento do imposto”.
É fundamental registrar que em 2013, no julgamento do Recurso Extraordinário 562.045/RS, o Supremo Tribunal Federal promoveu uma importantíssima alteração de um tradicional entendimento. Como o dispositivo ora analisado, antes de impor a graduação dos impostos de acordo com a capacidade econômica do contribuinte, exigiu que eles tivessem caráter pessoal (ambas as exigências a serem cumpridas “sempre que possível”), a Corte entendia que a progressividade como técnica de graduação do tributo de acordo com a capacidade contributiva somente seria aplicável aos impostos pessoais, e não aos impostos reais.
Tal conclusão decorria da ideia de que os impostos reais, por definição, não levam em consideração características do contribuinte, mas sim da coisa (res) tributada. Assim, somente quando o imposto fosse pessoal a capacidade contributiva da pessoa tributada deveria ser analisada. Já no tocante aos impostos reais, a progressividade dependeria de expressa previsão constitucional, o que somente ocorre no tocante ao ITR (art. 153, § 4.º, I) e ao IPTU (arts. 156, § 1.º, I, e 182, § 4.º, II).
Foi esse raciocínio que presidiu a edição pelo STF da Súmula 656, afirmando que “é inconstitucional a lei que estabelece alíquotas progressivas para o imposto de transmissão inter vivos de bens imóveis – ITBI com base no valor venal do imóvel”. Foi também o mesmo entendimento que orientou o Supremo a somente admitir a progressividade fiscal do IPTU a partir da edição da Emenda Constitucional 29/2000, que expressamente autorizou a utilização da técnica para o tributo (Súmula STF 668).
No novo julgamento, o STF analisou a progressividade do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD criado pelo Estado do Rio Grande do Sul. A evolução tem que ser contextualizada com o fato de que o Senado Federal, ao cumprir a determinação constitucional para que estabeleça alíquotas máximas do ITCMD, além de prever o teto de 8%, estatuiu a possibilidade de adoção de alíquotas progressivas com base no valor do quinhão que cada herdeiro receber (SF – Resolução 9/1992, arts. 1.º e 2.º). Se a tese que fundamenta a jurisprudência então prevalente houvesse sido mantida, seriam consideradas inconstitucionais tanto a Resolução Senatorial quanto a Lei gaúcha. Mas o Tribunal entendeu que “essa progressividade não é incompatível com a Constituição Federal nem fere o princípio da capacidade contributiva”. Abraçando tal tese, o STF abre a possibilidade de uma futura revisão (ou até cancelamento) dos entendimentos cristalizados nas Súmulas 656 e 668, passando a admitir, de maneira mais ampla, a progressividade de impostos reais, tendo em vista a presumível maior capacidade contributiva dos sujeitos passivos que são proprietários, adquirentes ou alienantes de bens de valores mais elevados.
Não obstante, enquanto tal modificação não ocorrer de maneira expressa, recomenda-se aos que se preparam para provas de concursos públicos que continuem a considerar corretas as assertivas que afirmem literalmente o que consta das citadas Súmulas. A probabilidade maior de abordagem do novo entendimento nos concursos é em questões que se refiram diretamente ao ITCMD ou que, de maneira mais ampla, considerem incorretas assertivas que afirmem que a progressividade de alíquotas de impostos reais somente pode ser implementada quando houver expressa autorização constitucional nesse sentido.
Visando a aparelhar o Estado de instrumentos jurídicos aptos a capacitá-lo a fazer valer, na prática, o princípio da capacidade contributiva, a Constituição Federal de 1988, no mesmo art. 145, § 1.º, ora objeto de discussão, facultou à administração tributária “identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
O próprio legislador constituinte fez uma ponderação entre a finalidade social do tributo e a intimidade dos particulares, entendendo que, dentro da razoabilidade, esta não pode servir como obstáculo intransponível ao Estado, quando este busca tributar cada um na medida de sua capacidade contributiva. Assim, a lei obriga a que cada contribuinte declare anualmente à Secretaria da Receita Federal sua atividade, sua renda, seu patrimônio, seus negócios relevantes.
Com fundamento no mesmo instituto, após o advento da Lei Complementar 105, de 10 de janeiro de 2001, tornou-se possível ao fisco requisitar diretamente às instituições financeiras (sem necessidade de ordem judicial) informações protegidas por sigilo bancário.
A requisição deve ser excepcional, só se justificando quando não haja outro meio à disposição da Administração Fazendária de obter as informações indispensáveis à consecução de seu mister constitucional.
Nessa linha, a própria Lei Complementar 105/2001 estatui, no seu art. 6.º (grifo não consta do original):
“Art. 6.º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente”.
A redação é muito aberta, pois parece atribuir à autoridade administrativa competente uma ampla discricionariedade para definir, em cada caso, o que justifica e o que não justifica a chamada “quebra de sigilo”.
Porém, o Poder Executivo federal cuidou de regulamentar a matéria, retirando boa parte dessa discricionariedade ao estipular, no art. 3.º do Decreto 3.724, também de 10 de janeiro de 2001, em que casos o exame dos dados protegidos por sigilo bancário pode ser considerado “indispensável” pela autoridade fiscal. Segue-se, a título ilustrativo, a transcrição das hipóteses:
“I – subavaliação de valores de operação, inclusive de comércio exterior, de aquisição ou alienação de bens ou direitos, tendo por base os correspondentes valores de mercado;
II – obtenção de empréstimos de pessoas jurídicas não financeiras ou de pessoas físicas, quando o sujeito passivo deixar de comprovar o efetivo recebimento dos recursos;
III – prática de qualquer operação com pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada em país enquadrado nas condições estabelecidas no art. 24 da Lei n. 9.430, de 27 de dezembro de 1996;
IV – omissão de rendimentos ou ganhos líquidos, decorrentes de aplicações financeiras de renda fixa ou variável;
V – realização de gastos ou investimentos em valor superior à renda disponível;
VI – remessa, a qualquer título, para o exterior, por intermédio de conta de não residente, de valores incompatíveis com as disponibilidades declaradas;
VII – previstas no art. 33 da Lei n. 9.430, de 1996;
VIII – pessoa jurídica enquadrada, no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), nas seguintes situações cadastrais:
a) cancelada;
b) inapta, nos casos previstos no art. 81 da Lei n. 9.430, de 1996;
IX – pessoa física sem inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) ou com inscrição cancelada;
X – negativa, pelo titular de direito da conta, da titularidade de fato ou da responsabilidade pela movimentação financeira;
XI – presença de indício de que o titular de direito é interposta pessoa do titular de fato”.
O conjunto de restrições demonstra que a ponderação (capacidade contributiva e finalidade social do tributo versus direitos individuais) não significa o total abandono de um princípio em favor de outro, pois as prerrogativas atribuídas à administração tributária existem desde que “respeitados os direitos individuais” e “nos termos da lei”.
Não obstante os nobres objetivos visados pela norma, existe considerável corrente doutrinária sustentando haver inconstitucionalidade da previsão. O fundamento desta tese é que o sigilo bancário, apesar de não ser uma garantia absoluta – algo inexistente no direito brasileiro –, somente poderia ceder em face de ordem judicial, e não como decorrência de decisão de natureza administrativa.
Passada uma década da edição da lei, em fevereiro de 2011, o STF finalmente apreciou a matéria. Entretanto, além de não pôr fim à insegurança jurídica que permeia o tema, tornou-o ainda mais controverso. Em um primeiro julgado, em sede cautelar, o Plenário entendeu, por maioria de 6 votos a 4, que é constitucional o art. 6º, da Lei Complementar nº 105/2001. O raciocínio seguido pela maioria foi o de que a possibilidade de requisição de informação sigilosa pela administração tributária não significaria quebra de sigilo bancário, mas mera transferência de informações sigilosas que continuariam protegidas, tendo em vista as regras sobre sigilo fiscal.
Posteriormente, o mesmo Plenário, por maioria de 5 votos a 4, tomou decisão diametralmente oposta, considerando a norma inconstitucional quando do julgamento do mérito do mesmo caso (RE 389.808). Na prática, a inversão do entendimento se deu em virtude da ausência do Ministro Joaquim Barbosa e da mudança de voto do Ministro Gilmar Mendes, que acatou argumento do Relator Marco Aurélio no sentido de que o princípio da dignidade da pessoa humana impõe o necessário respeito à inviolabilidade das informações do cidadão, que somente pode ceder com intervenção jurisdicional.
Tendo em vista as incertezas que cercam a questão, espera-se que, já com sua composição completa (à época dos julgamentos, um dos cargos de Ministro da Corte se encontrava vago), o Supremo resolva definitivamente a controvérsia. Enquanto tal pronunciamento não ocorre, imagina-se temerária a abordagem da matéria em provas objetivas de concurso público. De qualquer forma, em caso de questionamento sobre o posicionamento do STF, sugere-se a adoção do segundo entendimento (inconstitucionalidade da norma), por ser mais recente e por configurar um julgamento de mérito.
A segurança jurídica é, ao lado da justiça, um dos objetivos fundamentais do direito. É fundamento para vários institutos no ordenamento jurídico brasileiro, como o do direito adquirido, o do ato jurídico perfeito, o da coisa julgada, o da prescrição, o da decadência etc.
A ideia sempre presente é a da certeza do direito, da certeza de que as situações consolidadas pelo passar do tempo também estarão juridicamente asseguradas.
Em matéria tributária, o princípio ganha colorido especial, pois, para o contribuinte, não basta a segurança com relação aos fatos passados (irretroatividade da lei), também se faz necessário um mínimo de previsibilidade quanto ao futuro próximo.
Um caso hipotético serve para exemplificar essa necessidade.
Suponha-se que uma determinada pessoa, passando por uma concessionária de veículos, apaixone-se por um determinado modelo. O cliente em potencial adentra no estabelecimento, informa-se sobre o preço do veículo desejado, bem como sobre as opções para financiamento da diferença entre tal preço e o valor disponível para “entrada”.
Imagine-se que se ofereça ao potencial comprador a possibilidade de dividir a diferença em três vezes sem juros (o que lhe é financeiramente impossível) ou em doze, dezoito, vinte e quatro... até sessenta meses (com juros). Fazendo as contas, o hipotético cliente percebe que, financiando o objeto de desejo em um número muito elevado de parcelas, vai ser tão onerado pela taxa de juros, que pagará, ao fim, uns dois ou três veículos idênticos ao que compra. Caso divida o débito em um número menor de parcelas, irá pagá-lo mais rápido, sendo menos onerado pelos juros; essa possibilidade, no entanto, encontra limites nos seus rendimentos.
A decisão mais sensata seria fazer o financiamento no menor número de parcelas possível, sem comprometimento da solvabilidade, ou seja, da capacidade de pagar a dívida contraída.
Assim raciocina o comprador hipotético, decidindo pelo financiamento do saldo em doze prestações, já se preparando para um ano de aperto no orçamento.
Alguns dias depois o adquirente do veículo é surpreendido por um aumento da alíquota do imposto de renda das pessoas físicas, de forma que, refazendo seus cálculos, percebe ser impossível o adimplemento do financiamento da forma planejada, e parte em busca de alternativas.
A Economia só oferece duas: aumentar receita ou diminuir despesas.
A primeira é inviável para aqueles que já dedicam o seu dia a um trabalho formal. A segunda pode ser viável, mas, com as compras parceladas e o uso do cartão de crédito, torna-se difícil fazer cortes relevantes de um mês para o outro. É preciso tempo.
Nesse ponto aparece o Direito impondo ao Estado que dê um prazo razoável para que o contribuinte se utilize das soluções que a Economia oferece e reorganize seu orçamento.
Inicialmente, além da garantia de que não se cobra tributo em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado (irretroatividade – CF, art. 150, III, a), o legislador constituinte apenas impediu a cobrança no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que instituiu ou aumentou a exação (anterioridade – CF, art. 150, III, b).
Na prática, a garantia mostrou-se frágil e insuficiente. O costume de “deixar tudo para a última hora” fazia com que, em dezembro, o Governo partisse desesperadamente em busca de aprovar no parlamento diversas inovações tributárias, já sabendo que, se a aprovação ficasse para janeiro, os respectivos efeitos seriam adiados por um precioso ano.
A título de exemplo, no dia 31 de dezembro de 1994, um sábado, o então Presidente da República editou e fez publicar a Medida Provisória 812/1994, limitando a compensação de prejuízos no cálculo do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (tornando-o mais oneroso). O Diário Oficial daquele dia só circulou efetivamente na segunda-feira, 2 de janeiro de 1995.
Ao analisar o caso, o STJ assim se manifestou:
“Quando da publicação da Medida Provisória 812/94, em 31 de dezembro de 1994, ainda estava em curso o período de apuração do imposto de renda do ano-base de 1994. Pouco importa que o Diário Oficial só tenha circulado no dia 02 de janeiro de 1995, pois, o que determina a vigência da lei, neste caso, é a data de sua publicação. Recurso especial provido” (STJ, 2.ª T., REsp 318.849/SP, Rel. Min. Franciulli Netto, j. 07.03.2002, DJ 24.06.2002, p. 252).
No STF, o entendimento foi o mesmo (ver Informativo 184), o que demonstra que se a garantia, por si só, já era frágil, a maneira como o Poder Judiciário a tratava acabava por torná-la um quase inútil ornamento constitucional.
Registre-se que a esdrúxula situação foi relembrada em questão proposta pelo CESPE, no concurso para provimento de cargos de Juiz Federal do Tribunal Regional da 1.ª Região, com provas realizadas em 2009, considerando-se correta a seguinte assertiva: “Atende ao princípio da anterioridade de exercício a publicação, no Diário Oficial, da lei instituidora de imposto no dia 31/12, sábado, apesar de a sua circulação dar-se apenas na segunda-feira”.
Tendo em vista o reconhecimento da fragilidade do princípio da anterioridade como regra assecuratória do princípio da não surpresa, num raro caso de Emenda Constitucional que, ao menos em parte, beneficia o contribuinte, a EC 42/2003 estendeu como regra para os tributos em geral o princípio da noventena, que até então só era aplicável às contribuições para financiamento da seguridade social por força do art. 195, § 6.º, da CF/1988.
Assim, foi incluída no art. 150, III, uma alínea c afirmando que é vedado cobrar tributos “antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”, observando-se ainda a alínea b (anterioridade).
Agora, anterioridade e noventena (também chamada de anterioridade nonagesimal) trabalham em conjunto, devendo ser observadas simultaneamente. Como resultado, a regra passa a ser a existência de um prazo mínimo de noventa dias para a cobrança do tributo, que, mesmo assim, só pode ser feita no exercício financeiro subsequente ao de sua instituição ou majoração.
Em suma, é lícito afirmar que o princípio da segurança jurídica traduz-se, em matéria tributária, no princípio da não surpresa, que traz como corolários os princípios da irretroatividade, da anterioridade e da noventena.
Nos precisos termos constitucionais, é vedado aos entes tributantes cobrar tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado (CF, art. 150, III, a).
Há uma imprecisão terminológica na redação do dispositivo. Os fatos anteriores à lei que cria o tributo não podem ser designados por “fatos geradores”, justamente por que a nova lei não pode atingi-los e eles não são aptos a fazer surgir obrigações tributárias.
Nessa linha de entendimento, o Código Tributário Nacional, no seu art. 105, afirma que “a legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes”.
Apesar de ser difícil entender como algo pode ser aplicado “imediatamente” a fatos futuros, os objetivos do legislador são bastante claros, quais sejam: a) impedir a tributação de fatos que, no momento da sua ocorrência, não estavam sujeitos à incidência tributária; e b) garantir que a tributação já verificada é definitiva, não podendo ser objeto de majoração por legislação posterior.
As maiores discussões sobre o princípio da irretroatividade residem nos fatos geradores que o CTN denomina de “pendentes”.
A controversa existência desses fatos decorre de uma não menos controversa classificação dos fatos geradores dos tributos como periódicos ou instantâneos.
Segundo essa classificação, são periódicos os fatos geradores que se prolongam no tempo, sendo considerados ocorridos nos instantes legalmente determinados, gerando, a cada período concluído, uma nova obrigação tributária, como é o caso do IPVA, cujo fato gerador ocorre anualmente, no dia 1.º de janeiro. Em contrapartida, são instantâneos aqueles fatos geradores que ocorrem num momento preciso da linha do tempo, dando ensejo ao surgimento, em cada caso de ocorrência, de uma nova obrigação tributária, como é o caso do imposto de importação, cujo fato gerador se verifica a cada entrada de mercadoria estrangeira no território nacional.
Os fatos geradores periódicos podem ser divididos em periódicos simples e periódicos compostos (complexivos). São periódicos simples aqueles que tomam por base um único evento, que se prolonga no tempo, como é o caso dos impostos sobre a propriedade. No IPTU, por exemplo, a propriedade de determinado imóvel é fato único, mas os seus efeitos se mantêm indefinidamente no tempo. São periódicos compostos (complexivos) os fatos geradores compostos de diversos eventos que devem ser considerados de maneira global, dentro de um determinado período de tempo legalmente definido. O fato gerador do imposto de renda, por exemplo, é periódico composto (complexivo), pois é formado por um conjunto de eventos (recebimentos mensais de renda, investimentos financeiros, alienações de bens com lucro etc.) que, globalmente considerados, implicam aumento patrimonial do contribuinte dentro de um determinado exercício financeiro.
O grande problema da classificação é que, nos fatos geradores ditos periódicos, a lei estipula exatamente o instante da completude e perfeição, o que faz com que tais fatos possam ser tratados como instantâneos, sendo-lhes aplicável a legislação vigente na data em que a lei define como verificado o fato gerador do tributo.
Seguindo essa doutrina, jamais os fatos poderiam ser considerados “pendentes”, pois das duas uma: ou o período legal se completou e o fato é passado; ou, não se tendo completado, o fato é futuro, não devendo haver dúvida sobre a legislação a ser aplicada.
Os casos mais interessantes relativos aos fatos geradores ditos periódicos referem-se à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido e ao Imposto de Renda.
A Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL – e o Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas – IRPJ – seguem as mesmas normas de apuração e pagamento. Exemplificando-se com a sistemática de apuração anual, uma mudança da legislação (majorando os tributos) verificada no decorrer do exercício seria anterior à data em que os respectivos fatos geradores se reputariam perfeitos e acabados (31 de dezembro), o que poderia gerar dúvida sobre a possibilidade de aplicação da inovação ao cálculo do IRPJ e da CSLL incidentes sobre o lucro auferido durante todo o exercício, tendo em vista o princípio da irretroatividade.
Em face de a CSLL, ao contrário do IRPJ, não estar submetida ao princípio da anterioridade do exercício (estudado adiante), surgem especificidades na análise dos efeitos no tempo advindos de eventual alteração legislativa que majore as respectivas cargas tributárias específicas. Por conseguinte, nesta obra a análise será feita em separado.
A Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL – não está sujeita ao princípio da anterioridade do exercício financeiro (explicado adiante), dependendo a produção de efeitos decorrentes de eventual majoração apenas da obediência a um período mínimo de noventa dias entre a data da publicação da lei e o fato gerador. Aqui surge a pergunta crucial: se a lei majoradora da CSLL fosse publicada até o dia 2 de outubro de 2008 (quando faltam 90 dias para que se atinja o dia 31 de dezembro), poderia atingir os lucros percebidos desde o início do exercício?
Considerando que o fato gerador “definitivo” do tributo apenas se verifica em 31 de dezembro de cada exercício financeiro, a resposta seria positiva, independentemente da adoção da teoria do fato gerador complexivo, pois, para aqueles que admitem tal figura jurídica, durante o transcorrer do exercício, o fato gerador estaria pendente; para os que não a adotam, o fato seria futuro. De qualquer forma, nos termos do art. 105 do CTN, a conclusão seria a mesma: a aplicabilidade da nova legislação.
O raciocínio transita na contramão da segurança jurídica, por permitir a majoração de carga tributária sobre lucros já auferidos pelo contribuinte, quando este planejava sua vida econômico-financeira imaginando estar submetido a uma carga tributária que, posteriormente, veio a se mostrar mais gravosa.
Não obstante o absurdo da situação, o Supremo Tribunal Federal seguiu a malfadada tese, prestigiando a forma – ao ater-se à definição legal da data da ocorrência do fato gerador no último dia do exercício financeiro – e desprezando o conteúdo – ao desconsiderar a manifesta retroatividade econômica advinda da situação legitimada. Nas palavras da Corte, “se o fato gerador da obrigação tributária relativa à contribuição social reputa-se ocorrido em 31 de dezembro, conforme a orientação do STF, a lei que esteja em vigor nessa data é aplicável imediatamente, sem contrariedade ao art. 5.º, XXXVI, da Constituição” (AI-AgR-ED 333.209/PR – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – julgado em 02.03.2007).
Seguindo à risca o entendimento da Suprema Corte, a ESAF, no concurso para provimento de cargos de Analista Tributário da Receita Federal, realizado em 2009, considerou correta a seguinte assertiva: “o Supremo Tribunal Federal tem como referência, para análise da irretroatividade, o aspecto temporal da hipótese de incidência, ou seja, o momento apontado pela lei como sendo aquele em que se deve considerar ocorrido o fato gerador”.
Registre-se, por oportuno, que o STF bloqueou a tentativa de cobrança da CSLL com base em lei publicada após o dia 2 de outubro. No entender do Ministro Moreira Alves, a lei que majora contribuição para financiamento da seguridade social somente “entra em vigor” (melhor seria falar em produção de efeitos, não em vigência) 90 dias após a publicação. Se, após esse prazo, o fato gerador anual já houvesse ocorrido, somente seria possível a aplicação da nova lei ao fato gerador relativo ao exercício subsequente (RE 146.733-9/SP – Rel. Min. Moreira Alves – julgada em 29.06.1992).
O imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza – IR – é tributo sujeito ao princípio da anterioridade do exercício financeiro e, por conseguinte, as leis que o tornem mais gravoso somente poderiam gerar efeitos a partir do primeiro dia do exercício seguinte ao de sua publicação.
Não obstante tal entendimento, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a Súmula 584 parece simplesmente desprezar tanto a anterioridade quanto a irretroatividade, ao enunciar o seguinte:
STF – Súmula 584 – “Ao imposto de renda calculado sobre os rendimentos do ano base aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração”.
Não obstante as impiedosas críticas da doutrina, existem diversos precedentes em que o STF reafirma a plena vigência da Súmula, sem, contudo, enfrentar os irrefutáveis argumentos favoráveis à superação do enunciado. A título de exemplo, podem ser transcritas as lamentáveis palavras da Corte, constantes da Ementa do julgamento proferido no RE 194.612 (Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 24.03.1998, DJ de 08.05.1998):
“3. Com efeito, a pretensão da ora recorrida, mediante Mandado de Segurança, é a de se abster de pagar o Imposto de Renda correspondente ao ano-base de 1989, pela alíquota de 18%, estabelecida no inc. I do art. 1.º da Lei 7.968, de 28.12.1989, com a alegação de que a majoração, por ela representada, não poderia ser exigida com relação ao próprio exercício em que instituída, sob pena de violação ao art. 150, I, a, da Constituição Federal de 1988.
4. O acórdão recorrido manteve o deferimento do Mandado de Segurança. Mas está em desacordo com o entendimento desta Corte, firmado em vários julgados e consolidado na Súmula 584, que diz: ‘Ao Imposto de Renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração’. Reiterou-se essa orientação no julgamento do RE 104.259-RJ (RTJ 115/1336).
5. Tratava-se, nesse precedente, como nos da Súmula, de Lei editada no final do ano-base, que atingiu a renda apurada durante todo o ano, já que o fato gerador somente se completa e se caracteriza, ao final do respectivo período, ou seja, a 31 de dezembro. Estava, por conseguinte, em vigor, antes do exercício financeiro, que se inicia a 1.º de janeiro do ano subsequente, o da declaração.
6. Em questão assemelhada, assim também decidiu o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do R.E. 197.790-6-MG, em data de 19 de fevereiro de 1997. 7. R.E. conhecido e provido, para o indeferimento do Mandado de Segurança. 8. Custas ‘ex lege’”.
É interessante notar que no voto do Ministro Relator apenas é discutida – e de maneira superficial – a matéria relativa à irretroatividade, sem se analisar a necessidade de obediência à anterioridade. Da análise dos precedentes invocados para a decisão, percebe-se que o primeiro é fundamentado na aplicação imediata e não discutida da Súmula 584 (RE 104.259-RJ); o outro é referente à CSLL, tributo que, conforme explicado acima, não obedece à anterioridade (RE 197.790-6-MG).
Acredita-se que no momento em que o STF vier a analisar a matéria levando em conta o princípio da anterioridade, finalmente haverá a necessária evolução e a Súmula 584 será devidamente sepultada. Há um Recurso Extraordinário em julgamento no Tribunal (suspenso em virtude de pedido de vista do Min. Cezar Peluso) que pode definir a matéria. Sugere-se que o leitor se mantenha atento ao futuro resultado (RE 183.130).
No âmbito do STJ, há precedentes expressamente afirmando a inaplicabilidade da Súmula 584 do STF sob o entendimento de que ela foi “construída à luz de legislação anterior ao CTN” e que a tributação do Imposto de Renda deve decorrer “de concreta disponibilidade ou da aquisição de renda” (REsp 179.966/RS).
Em provas de concurso público, diante da carência de pronunciamentos mais recentes do Supremo Tribunal Federal, tem-se adotado o posicionamento do STJ, mais favorável ao contribuinte, conforme demonstra a questão abaixo, extraída da prova para Técnico da Receita Federal realizada em 2003:
“De acordo com a Lei 10.637/2002, o imposto de renda devido na declaração de rendimentos das pessoas físicas deve ser calculado mediante utilização da seguinte tabela:
Base de Cálculo em R$ |
Alíquota (%) |
Parcela a deduzir |
Até 12.696,00 |
— |
— |
De 12.696,01 a 25.380,00 |
15 |
1.904,40 |
Acima de 25.380,00 |
27,5 |
5.076,90 |
Sabe-se que, de acordo com a lei, essa foi a tabela utilizada para cálculo do imposto devido na declaração apresentada em 2003, relativa ao ano-calendário de 2002.
Suponha que em 10 de dezembro de 2003 seja publicada uma lei com a seguinte redação:
Art. 1.º O imposto de renda devido na declaração de rendimentos das pessoas físicas deve ser calculado mediante utilização da seguinte tabela:
Base de Cálculo em R$ |
Alíquota (%) |
Parcela a deduzir |
Até 10.000,00 |
— |
— |
De 10.000,01 a 20.000,00 |
15 |
1.500,00 |
De 20.000,01 a 30.000,00 |
20 |
2.500,00 |
Acima de 30.000,00 |
30 |
5.500,00 |
Art. 2.º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
As informações a respeito do contribuinte João da Silva são as seguintes:
Ano-calendário de 2003
Rendimentos do trabalho assalariado: R$ 60.000,00
Contribuição para a Previdência Social da União: R$ 6.600,00
Despesas de locomoção, escrituradas em Livro Caixa: R$ 2.500,00
Despesas médicas: R$ 3.400,00
Despesas com aluguel: R$ 3.720,00
Isto posto, assinale a seguir a opção que indica corretamente o valor do imposto de renda devido na declaração de João da Silva, relativa ao ano calendário de 2003 (data de entrega, até 30.04.2004):
a) R$ 9.500,00;
b) R$ 8.750,00;
c) R$ 8.673,10;
d) R$ 6.962,60;
e) R$ 7.634,00”.
Apesar de não se estar, neste momento, estudando legislação do imposto de renda, para se resolver a questão e chegar à conclusão que agora interessa, é preciso saber que das despesas enumeradas no enunciado da questão podem ser deduzidas da base de cálculo do imposto de renda apenas a contribuição para previdência social e as despesas médicas. As despesas com locomoção e aluguel não podem ser deduzidas.
Abatendo as despesas dedutíveis (R$ 6.600,00 + R$ 3.400,00) dos rendimentos (R$ 60.000,00) encontra-se a base de cálculo do IR (R$ 50.000,00).
Aplicando a tabela progressiva da Lei 10.637/2002 (R$ 50.000,00 × 0,275 – R$ 5.076,90), obtém-se o imposto devido de R$ 8.673,10, o que dá a resposta correta, conforme gabarito divulgado (letra “c”).
Caso se optasse por seguir os dizeres da Súmula 584 do STF, o caminho seria aplicar a lei vigente no exercício da entrega da declaração, ou seja, aquela publicada em dezembro de 2003. Assim, o imposto devido seria de R$ 9.500,00 (R$ 50.000,00 × 0,3 – R$ 5.500,00), que corresponderia à alternativa “a”, considerada errada pela banca, mesmo após os recursos.
Registre-se que a tabela progressiva hoje vigente e as alterações a entrarem em vigor nos exercícios subsequentes, até o ano de 2010, estão previstas na Lei 11.482, de 31 de maio de 2007.
De qualquer forma, seguindo o posicionamento adotado pela ESAF, pode-se ter a segurança de que o entendimento esposado na Súmula 584 do STF deve ser desconsiderado para efeito de concursos públicos.
Todavia, em caso de cobrança literal da Súmula (segundo entendimento sumulado pelo STF...) a assertiva se torna “blindada” contra discussões, estando indiscutivelmente correta.
O entendimento também parece ser o mesmo nas provas do CESPE, conforme demonstra o seguinte item (CORRETO) cobrado na prova para Auditor-Fiscal da Previdência Social realizado em 2000: “Se o Congresso Nacional aprovar lei instituindo o IR sobre os rendimentos dos Planos Garantidores de Benefícios Livres (PGBLs) e essa lei for publicada no Diário Oficial do dia 31.12.2001, o imposto incidirá sobre os fatos geradores ocorridos a partir do dia seguinte, 1.º.01.2002”.
Claro que a questão tem por fundamento principal o princípio da anterioridade, mas se a Súmula 584 do STF fosse aplicada na literalidade (como já o foi pela própria Corte – RE 104.259-RJ), seria possível que a nova lei se aplicasse ao próprio exercício de 2001, visto que o fato gerador só se teria por verificado no último átimo do dia 31 de dezembro de 2001, posteriormente à possível vigência da lei. Relembre-se que a declaração do imposto de renda relativo aos fatos ocorridos em 2001 (ano-base) só é apresentada em 2002 (ano-exercício).
Um último ponto é digno de nota. O princípio da irretroatividade da lei tributária, conforme enunciado no art. 150, III, a, da CF, não possui qualquer exceção. O princípio, contudo, não é incompatível com a possibilidade de leis com efeito retroativo, como as expressamente interpretativas e as que versem sobre infrações e sejam melhores para os infratores (estes casos, que serão detalhados em momento oportuno, estão expressamente previstos no art. 106 do Código Tributário Nacional).
Em questões de concurso público deve-se tomar muito cuidado com o teor do enunciado. A título de exemplo, no concurso para AFRF, área Tecnologia da Informação, realizado em 2005, a ESAF considerou CORRETA uma afirmativa que dizia: “A Constituição não prevê exceção alguma ao principio da irretroatividade da lei”.
Já o CESPE, no Concurso para Advogado da União, realizado em 2002, considerou CORRETA uma assertiva que parecia dizer o oposto, conforme abaixo transcrito: “O princípio da irretroatividade da lei tributária não é incompatível com a existência de leis tributárias que produzam efeitos jurídicos sobre atos pretéritos”.
A diferença entre os dois itens era bem simples. A assertiva cobrada pelo CESPE não se referia restritivamente à irretroatividade do art. 150 da CF. Já o item cobrado pela ESAF falava especificamente na Constituição Federal que, é verdade, prevê exceção à irretroatividade da lei penal, o que tornaria a assertiva errada se não fosse o fato de o enunciado limitar a análise aos dispositivos constitucionais que compõem a seção “Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar”. Transcreve-se o enunciado: “Nos arts. 150 a 152, a Constituição Federal dispõe acerca de importantes princípios em matéria tributária, que visam, ao mesmo tempo, limitar o poder dos entes tributantes e proteger os contribuintes. Em relação aos princípios constitucionais tributários, julgue os itens abaixo”.
Conforme já visto, a Constituição Federal de 1988 veda à União, Estados, Distrito Federal e Municípios cobrar tributos “no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou” (CF, art. 150, III, b).
Em primeiro lugar, deve-se prestar atenção para o fato de a regra tomar como marco temporal a data da publicação da lei, ao passo que o já estudado princípio da irretroatividade toma como base a data da vigência dessa mesma lei.
É importante ressaltar que o princípio existe para proteger o contribuinte, não impedindo, portanto, a imediata aplicação das mudanças que diminuam a carga tributária a que o contribuinte está sujeito (casos de extinção ou redução de tributos) ou que não tenham qualquer impacto sobre essa carga tributária.
Apesar de ser um posicionamento discutível, o Supremo Tribunal Federal entende que a norma que se restringe a mudar o prazo para pagamento de tributo, mesmo antecipando-o, não agrava a situação do contribuinte, não se sujeitando à regra da anterioridade do exercício (STF, 1.ª T., RE-AgR 274.949/SC, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 13.11.2001, DJ 01.02.2002, p. 100).
Digna de destaque, portanto, a ampla facilidade de que desfruta o Estado para alterar o prazo de pagamento dos tributos, além de poder fazê-lo por ato infralegal (é exceção à legalidade, conforme explanado no item 2.5.2), não precisa obedecer a qualquer prazo para que a cobrança seja feita na nova data fixada (é exceção à anterioridade do exercício e à noventena, como se verá adiante).
Da mesma forma que é exceção ao princípio da legalidade, a mera atualização monetária do valor do tributo ou da sua base de cálculo, por não significar majoração do mesmo, não se sujeita à anterioridade. O entendimento é pacífico no âmbito do STF, conforme demonstra o seguinte excerto (grifou-se):
“Substituição legal dos fatores de indexação – Alegada ofensa às garantias constitucionais do direito adquirido e da anterioridade tributária – Inocorrência – Simples atualização monetária que não se confunde com majoração do tributo. (...) A modificação dos fatores de indexação, com base em legislação superveniente, não constitui desrespeito às situações jurídicas consolidadas (CF, art. 5.º, XXXVI), nem transgressão ao postulado da não surpresa, instrumentalmente garantido pela cláusula da anterioridade tributária (CF, art. 150, III, b)” (STF, 2.ª T., RE-AgR 200.844/PR, Rel. Min. Celso de Mello, j. 25.06.2002, DJ 16.08.2002, p. 92).
Em suma, a ideia fundamental do princípio é proteger o contribuinte contra a imediata aplicação de normas que aumentem a carga tributária a que ele já está sujeito (casos de instituição ou majoração de tributos).
Por fim, é importante registrar que, apesar de se tratar de posicionamento bastante discutível, o STF entende que não configura aumento de tributo a mera redução ou extinção de desconto legalmente previsto, não sendo o caso, portanto, de incidência do princípio da anterioridade. Nesta linha, analisando a constitucionalidade de lei paranaense que reduziu os descontos concedidos a quem paga antecipadamente ou em dia o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) no Estado, o Tribunal seguiu o voto do Ministro-Relator Gilmar Mendes, no sentido de que “a redução ou a extinção de um desconto para pagamento de um tributo sob determinadas condições previstas em lei, com o pagamento antecipado em parcela única, não pode ser equiparada à majoração do tributo em questão” (ADI 4.016/PR).
A Constituição Federal prevê as exceções ao princípio da anterioridade, no seu art. 150, § 1.º, e nos dispositivos indicados no esquema a seguir:
As quatro primeiras exceções (II, IE, IPI e IOF) existem porque esses impostos possuem características marcantemente extrafiscais, constituindo-se em poderosos mecanismos de intervenção no domínio econômico, postos nas mãos do Poder Executivo Federal.
A título de exemplo, quando o Estado quer proteger determinado setor da indústria nacional, para dar-lhe fôlego na concorrência contra produtos estrangeiros, uma das medidas mais adequadas é a majoração das alíquotas do imposto de importação incidente sobre os bens e insumos produzidos pelo setor. A iniciativa estatal poderia ser praticamente inócua se fosse necessária a obediência de prazo para que a nova alíquota passasse a ser aplicada concretamente às importações. Sendo sensível a esta necessidade, o legislador constituinte, além de excluir parcialmente os impostos reguladores do princípio da legalidade quanto às alterações de alíquotas, também os excetuou da anterioridade.
Neste ponto, faz-se necessária uma importante observação. Parte da doutrina já classifica o IPI como um imposto fiscal. Aliás, entre os impostos, é o segundo maior arrecadador federal (o maior é o imposto de renda). Por conta disto, a arrecadação do IPI é extremamente relevante, não podendo ser considerada mero “efeito colateral” de um tributo que visa precipuamente à intervenção no domínio econômico, como se diz costumeiramente dos tributos extrafiscais.
Sendo o IPI tratado como fonte de arrecadação, foi necessário criar um mecanismo de defesa para o contribuinte contra as majorações repentinas de sua incidência. Atento à questão, o legislador constituinte derivado, ao estender o princípio da noventena para a maioria dos tributos, não excetuou o IPI, que passou a ser o único dos impostos ditos reguladores cujos efeitos das majorações porventura realizadas estão sujeitos a prazo (noventena).
No que concerne aos empréstimos compulsórios de guerra ou calamidade pública e aos impostos extraordinários de guerra, a não sujeição à anterioridade deve-se à indiscutível urgência na obtenção de recursos para enfrentar as graves situações que autorizam a instituição dos tributos. Não seria razoável, por exemplo, o País entrar num esforço de guerra, instituir um tributo para financiar tal esforço e esperar o exercício seguinte para começar a cobrança. Neste caso a segurança nacional prepondera sobre o interesse particular de não ser surpreendido por imediata majoração de carga tributária.
As contribuições para financiamento da seguridade social, desde a promulgação da Constituição, sujeitam-se à regra específica de não surpresa: o princípio da noventena, posteriormente estendido pela EC 42/2003 para os demais tributos (com exceções). Assim, da mesma forma que o IPI, tais contribuições estão livres da anterioridade do exercício financeiro e sujeitas à noventena (ou anterioridade nonagesimal).
Por fim, as duas últimas exceções são, na realidade, exceções parciais, ambas criadas pela EC 33/2001. Trata-se do restabelecimento das alíquotas do ICMS-monofásico incidente sobre combustíveis definidos em Lei Complementar e das alíquotas da CIDE-combustíveis.
É importante registrar que, em ambos os casos, a Constituição Federal permite a redução e o restabelecimento das alíquotas sem obediência à anterioridade. Quanto à redução, o dispositivo é despiciendo, visto que o princípio só é aplicável para os casos de aumento de carga tributária, qualquer que seja o tributo. No que concerne ao restabelecimento, a regra é inovadora, pois permite que, após a realização de uma redução, seja possível uma majoração subsequente, sem obediência à anterioridade, desde que respeitado, como teto, o percentual anterior (ver exemplo citado no item 2.5.2).
Como visto, o princípio da anterioridade protege o contribuinte contra os efeitos imediatos de agravamento (majoração) da carga tributária a que está sujeito.
Quando determinado contribuinte é beneficiado por isenção legalmente concedida, há uma diminuição da carga tributária a que está sujeito, não havendo que se falar em qualquer prazo para que o benefício possa gerar efeitos concretos.
Já no caso de revogação de uma isenção concedida, a situação é oposta, pois, indiscutivelmente, a mudança legislativa tem como consequência um acréscimo no sacrifício financeiro realizado pelo contribuinte.
Aparentemente seguindo o entendimento, o Código Tributário Nacional, em seu art. 104, III, estabelece que “entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o patrimônio ou a renda que extinguem ou reduzem isenções”.
Não há unanimidade sobre o dispositivo se referir ou não à anterioridade. O problema inicial é que a anterioridade exige que a produção de efeitos da lei que aumenta carga tributária somente se dê no exercício seguinte ao da publicação; já o dispositivo transcrito se refere à vigência da mesma lei. Para alguns, a diferença dos textos é apenas falta de técnica legislativa. Para outros, o art. 104, III, do CTN estipula mais uma garantia do contribuinte, diferente da anterioridade.
Caso se considere que o dispositivo estipula nova garantia, deve-se entender que ela somente se aplica aos impostos sobre o patrimônio ou a renda.
Há de se ressaltar que o STF entende que a revogação de isenção não se equipara à criação ou à majoração de tributo, sendo apenas a dispensa legal do pagamento de exação já existente, de forma que o tributo volta a ser imediatamente exigível, não sendo aplicável o princípio da anterioridade (RE 204.062). A decisão é antiga e um tanto quanto nebulosa, visto que não deixa claro a que espécies de tributo se aplica. Em provas de concurso público têm sido cobrados tanto a literalidade do que afirma o CTN quanto o posicionamento do STF. A título de exemplo, no certame para Advogado da União, realizado em 2002, o CESPE, na mesma questão, incluiu dois itens seguidos com os dois entendimentos. Digno de nota é que quem não conhecia os dois teria a tendência de imaginar que uma das duas assertivas estaria necessariamente errada, pois são contraditórias entre si, conforme abaixo transcrito: “Segundo o Código Tributário Nacional, os dispositivos de lei que revoguem isenções relativas a impostos sobre o patrimônio ou a renda somente entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua publicação, salvo se a lei dispuser de maneira mais favorável ao contribuinte”; “Conforme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal as isenções não condicionadas ou sem prazo definido podem ser revogadas a qualquer tempo por lei e, uma vez revogada a isenção, o tributo volta a ser imediatamente exigível, sendo impertinente a invocação do princípio da anterioridade”.
As duas assertivas estão indiscutivelmente CORRETAS. Perceba-se que a banca “blindou” os itens contra recursos, ao afirmar a fonte em que o candidato deveria se basear para julgá-los (“segundo o CTN” e “Conforme a jurisprudência do STF”).
Conforme já analisado, são possíveis a instituição e a majoração de tributo por intermédio de medida provisória. Porém, se o tributo instituído ou majorado for um imposto, a cobrança só poderá ser realizada no exercício subsequente caso a medida provisória tenha sido convertida em lei até o último dia daquele em que tenha sido editada (CF, art. 62, § 2.º).
Quando da promulgação da Constituição Federal, a obediência a um prazo mínimo de noventa dias entre a data da publicação de uma lei que majorasse ou criasse tributo era aplicável exclusivamente às contribuições para financiamento da seguridade social, por força do art. 195, § 6.º, da Magna Carta.
Parte da doutrina denominava o princípio de anterioridade mitigada. O interessante é que, ao denominar de mitigada (sinônimo de suavizada, aliviada), a “anterioridade” aplicável a tais contribuições, a doutrina parecia imaginar que o princípio consistiria uma garantia menor ao contribuinte, uma restrição menor ao Estado.
Na prática, o que se percebeu foi justamente o contrário. A anterioridade do exercício transformou-se numa garantia meramente formal, dado o costume de concentrar a publicação das alterações na legislação tributária no final do exercício.
Assim, a anterioridade dita mitigada acabava por ser uma garantia bem mais eficiente para o contribuinte, pois lhe assegurava um período mínimo de dias para que readequasse seu orçamento, preparando-o para o aumento de carga tributária.
Tornou-se um clamor dos contribuintes que a “noventena” passasse a ser regra geral e, num raro caso de Emenda Constitucional que beneficiou o contribuinte, a EC 42/2003 promoveu a mudança desejada, incluindo, no art. 150, III, da Constituição, uma alínea c, cujo texto é bastante parecido com aquele constante no art. 195, § 6.º, da CF/1988, destinado exclusivamente às contribuições para a seguridade social.
A única diferença aparentemente relevante é que o texto inserido pela EC 42/2003 exige o cumprimento do prazo de 90 dias nos casos de instituição ou aumento de tributo, enquanto o art. 195, § 6.º, exige o cumprimento em caso de instituição ou modificação, parecendo, pela literalidade, ser uma regra mais ampla.
Entretanto, o STF, entendendo que a anterioridade nonagesimal existe para proteger o contribuinte contra mudanças que repercutam negativamente no seu patrimônio, decidiu que o art. 195, § 6.º, só é aplicável no caso de instituição ou majoração. O legislador constituinte derivado, já conhecendo o posicionamento do Tribunal, ao estender a regra aos demais tributos, o fez já com uma redação mais clara, coincidente com o pensamento da Suprema Corte.
Alguns autores continuam atribuindo à regra do art. 195, § 6.º, o título de “anterioridade nonagesimal”, enquanto se referem à extensão feita pela EC 42/2003 como “noventena”. Assim, a anterioridade nonagesimal (ou mitigada) seria um princípio aplicável às contribuições para financiamento da seguridade social, enquanto a noventena seria outro princípio, aplicável às demais espécies tributárias (com exceções). Não há sentido, contudo, na atribuição de nomenclaturas diferentes a um único princípio que submete as diferentes espécies tributárias às mesmas restrições. É o caso de se aplicar a lição doutrinária segundo a qual somente se devem classificar institutos jurídicos em espécies diferenciadas, se os respectivos regimes jurídicos forem diferentes.
Portanto, não havendo qualquer diferença relevante entre a restrição estatuída pelo art. 195, § 6.º, e aquela prevista no art. 150, III, c, ambos da Constituição Federal, as duas serão denominadas de princípio da noventena ou anterioridade nonagesimal. Aos que se preparam para provas de concursos públicos, ressalta-se que a terminologia aqui defendida tem sido a adotada pelas bancas. A título de exemplo, a Fundação Carlos Chagas, no concurso para provimento do cargo de Agente Fiscal de Rendas do Estado de São Paulo, realizado em 2006, formulou questão cujo enunciado era o seguinte: “NÃO se aplica o princípio da anterioridade nonagesimal (noventena criada pela Emenda Constitucional 42/2003) ao imposto sobre: (...)”. Deixando de lado as alternativas, percebe-se que a banca, ao colocar, entre parênteses a palavra “noventena” logo após a expressão “anterioridade nonagesimal”, demonstrou entender que as expressões são sinônimas, referindo-se ao mesmo instituto jurídico.
De maneira ainda mais clara, a Fundação Getúlio Vargas, no concurso para provimento de cargos de Fiscal da Receita Estadual do Estado do Amapá, realizado em 2010, considerou correto o seguinte asserto: “A anterioridade nonagesimal foi estendida à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a fim de vedar-lhes a cobrança de tributos antes de decorridos noventa dias da data em que tenha sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, comportando, dentre suas exceções, o imposto sobre a renda”.
Controvérsias terminológicas à parte, em termos práticos, o relevante é entender que, a partir do advento da EC 42/2003, em homenagem ao princípio da não surpresa, anterioridade (anual ou “do exercício”) e noventena (anterioridade nonagesimal) passaram a ser, em regra, cumulativamente exigíveis.
Dessa forma, se um tributo vier a ser majorado ou instituído por lei publicada após o dia 3 de outubro (quando faltam 90 dias para o término do exercício financeiro), a cobrança não mais pode ser feita a partir de 1.º de janeiro seguinte, sob pena de infringir a noventena (publicada a lei “em meados de outubro”, a cobrança deve se verificar “em meados de janeiro”). Já se a publicação da lei instituidora ou majoradora ocorrer no início do ano, a cobrança não pode ser feita imediatamente após o transcorrer de noventa dias, pois o princípio da anterioridade do exercício exige que se espere o início do ano subsequente.
Resumindo, instituído ou majorado tributo, a respectiva cobrança só poder ser realizada após o transcorrer de, no mínimo, noventa dias da data da publicação da lei instituidora/majoradora e desde que já atingido o início do exercício subsequente.
Algumas observações precisam ser feitas no que concerne ao cumprimento do princípio da noventena, quando um tributo a ele sujeito é instituído ou majorado por meio de medida provisória.
A situação deu ensejo a uma discussão no âmbito do Supremo Tribunal Federal acerca do termo inicial da contagem do prazo de noventa dias, se a data da edição da medida provisória ou da sua final conversão em lei.
Acrescente-se a isso o fato de que, anteriormente à Emenda Constitucional 32/2001, as medidas provisórias possuíam vigência por apenas trinta dias, o que levou à adoção da terrível prática de suas sucessivas reedições (cuja possibilidade foi ratificada pelo STF). Naquela época, estavam sujeitas à noventena apenas as contribuições sociais para financiamento da seguridade social.
A título de exemplo, suponha-se que o Presidente da República tivesse editado uma primeira medida provisória (MP1) majorando a alíquota da COFINS (contribuição para financiamento da seguridade social). No trigésimo dia de vida da MP1, para evitar a perda de vigência, era editada uma segunda medida provisória (MP2), cujo conteúdo era idêntico ao da MP1, com o acréscimo de um artigo que convalidava os efeitos produzidos por esta. No trigésimo dia de vigência da MP2, editava-se a MP3, convalidando os efeitos da MP1 e da MP2. Quando a MP3 completava trinta dias, editava-se a MP4, convalidando os efeitos das medidas provisórias anteriores e se iniciava a cobrança, considerando-se que toda a história (desde a edição da MP1) já completava os noventa dias exigidos pela Constituição Federal.
Os contribuintes alegavam que não importava o número de medidas provisórias editadas, pois todas perdiam sua eficácia após 30 dias, de forma que nenhuma completaria os noventa dias exigidos pelo art. 195, § 6.º, da CF/1988. Como consequência, a contagem do prazo somente iniciaria se, e quando, houvesse conversão em lei de uma das medidas provisórias editadas.
Discordando dos contribuintes, o STF entendeu que, se não houvesse mudança relevante no texto nas reedições, o prazo deveria ser contado da edição da primeira medida provisória, pois, em face da continuidade normativa, não haveria surpresa do contribuinte. Contudo, no caso de mudança substancial no texto da medida provisória, no momento de sua conversão em lei, o prazo deveria ser contado da publicação da lei de conversão (RE 169.740).
Após o advento da EC 32/2001, as medidas provisórias passaram a ter vigência por sessenta dias, prorrogáveis por mais sessenta. Por conseguinte, na metade do prazo de prorrogação, completam-se os noventa dias para o início da cobrança do tributo. Se a medida provisória for convertida em lei sem alteração substancial do texto, a cobrança continua. Se a conversão se der com alteração substancial, deve-se reiniciar a contagem da data da publicação da lei de conversão. Caso a medida provisória seja rejeitada ou perca a eficácia por decurso de prazo (120 dias), o tributo (ou a majoração) deixa imediatamente de ser cobrado. Neste caso, houve cobrança com base na medida provisória durante 30 dias, cabendo ao Congresso Nacional disciplinar por decreto legislativo as relações jurídicas geradas, ou seja, definir se haverá ou não devolução dos valores recolhidos (CF, art. 62, § 3.º). Caso o Congresso silencie e não edite o decreto legislativo no prazo de 60 dias, as relações jurídicas geradas conservam-se regidas pela MP, ou seja, na prática, os valores pagos não são devolvidos (CF/1988, art. 62, § 11).
Esquematicamente, levando em conta os períodos anteriores e posteriores ao advento da Emenda Constitucional 32/2001, a sistemática da medida provisória é seguinte (com as observações acima expendidas).
Ressalte-se, por oportuno, que devem ser simultaneamente observadas as regras relativas à anterioridade do exercício financeiro, caso o tributo não seja exceção a tal princípio. Na mesma linha, se o tributo criado ou majorado for um imposto, a cobrança a partir do exercício subsequente dependerá da conversão da medida provisória em lei (CF, art. 62, § 2.º), conforme explanado no tópico a seguir.
A Constituição Federal prevê, no mesmo § 1.º do art. 150, as seguintes exceções ao princípio da noventena:
A lista das exceções à noventena é bastante semelhante à das exceções à anterioridade. Conforme já fora ressaltado, dos “impostos reguladores”, apenas o IPI é sujeito a uma das regras (noventena) os demais (II, IE e IOF) são exceções a ambas.
Estranhamente, o imposto de renda, de finalidade marcantemente fiscal, talvez o tributo que mais merecesse uma eficaz regra de proteção ao contribuinte, ficou livre da noventena. Assim, ainda é possível que uma majoração do imposto de renda por meio de lei publicada em 31 de dezembro gere efeito a partir do dia seguinte, visto que o tributo só obedece à anterioridade do exercício.
Somente não é possível que volte a ocorrer algo exatamente igual ao verificado em 31 de dezembro de 1994 (ver item 2.7), uma vez que, desde a Emenda Constitucional 32/2001, a cobrança a partir do primeiro dia do exercício seguinte depende da conversão em lei da medida provisória até o dia 31 de dezembro (pois se trata de majoração de imposto).
Quanto aos impostos extraordinários de guerra e aos empréstimos compulsórios de guerra externa ou calamidade pública, a mesma urgência que justifica a não submissão à anterioridade do exercício impõe que se excetue a nonagesimal.
Já a exceção referente ao caso das bases de cálculo de IPVA e IPTU, tem fundamento bastante diferente dos demais. Ambos os tributos incidem sobre o valor de um bem (imóvel na área urbana do Município, no caso do IPTU; veículo automotor, no caso do IPVA). O momento mais propício para que as fazendas públicas estaduais e municipais procedam às revisões dos valores dos veículos e imóveis, respectivamente, é o fim de cada exercício. Primeiro, por possibilitar levar em consideração toda a variação daquele ano; segundo, e mais importante, porque as leis estaduais e municipais geralmente elegem o dia 1.º de janeiro como aquele em que se consideram ocorridos os respectivos fatos geradores.
Se não fosse a exceção constitucional dada aos dois tributos, a revisão das bases de cálculo (valores dos bens) deveria ser feita por lei necessariamente publicada até o dia 03 de outubro, sob pena de não poder ser aplicada aos fatos geradores a ocorrerem no 1.º de janeiro subsequente.
A rigor, apesar de a terminologia “não confisco” ter-se consagrado pelo uso, o que o art. 150, IV, da Constituição quer proibir é a utilização do tributo “com efeito de confisco” e não que o tributo configure confisco, pois esta segunda proibição já é decorrente da própria definição de tributo, uma vez que confisco, no Brasil, é punição e o tributo, por definição, não pode ser sanção por ato ilícito.
Em termos menos congestionados, tributo confiscatório seria um tributo que servisse como punição; já tributo com efeito confiscatório seria o tributo com incidência exagerada de forma que, absorvendo parcela considerável do patrimônio ou da renda produzida pelo particular, gerasse neste e na sociedade em geral uma sensação de verdadeira punição. As duas situações estão proibidas, a primeira (confisco) pela definição de tributo (CTN, art. 3.º); a segunda (efeito de confisco) pelo art. 150, IV, da CF/1988.
Não obstante as diferenciações terminológicas, as expressões (“vedação ao confisco” e “vedação ao efeito de confisco”) têm sido usadas como equivalentes e, em provas de concurso público, a distinção somente pode ser feita quando o candidato perceber que o examinador está utilizando a tese aqui esposada (ex. quando nas alternativas de uma questão aparecem ambas as expressões em sentidos claramente diversos).
O princípio da vedação ao efeito confiscatório também poderia ser denominado de princípio da razoabilidade ou proporcionalidade da carga tributária. A ideia subjacente é que o legislador, ao se utilizar do poder de tributar que a Constituição lhe confere, deve fazê-lo de forma razoável e moderada, sem que a tributação tenha por efeito impedir o exercício de atividades lícitas pelo contribuinte, dificultar o suprimento de suas necessidades vitais básicas ou comprometer seu direito a uma existência digna.
O conceito de efeito confiscatório é indeterminado, sujeito a alto grau de subjetividade e varia muito de acordo com as concepções político-filosóficas do intérprete. Isso não impede, contudo, que, em casos de notória ausência de razoabilidade de uma exação ou de um conjunto de exações, o Poder Judiciário reconheça a existência de um verdadeiro abuso do direito de tributar, tendo em vista a absorção de parcela substancial do patrimônio ou renda dos particulares.
De certa feita, o Supremo Tribunal Federal estava julgando uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra dois dispositivos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. O primeiro previa que “as multas consequentes do não recolhimento dos impostos e taxas estaduais aos cofres do Estado não poderão ser inferiores a duas vezes o seu valor”; o segundo afirmava que “as multas consequentes da sonegação dos impostos ou taxas estaduais não poderão ser inferiores a cinco vezes o seu valor”.
A votação foi unânime no sentido de que os pisos estipulados para as multas agrediam o princípio da vedação ao confisco. O voto do Ministro Sepúlveda Pertence lembrou passagem em que o Ministro Aliomar Baleeiro conduziu o primeiro Acórdão do STF julgando inconstitucional o Decreto-lei por versar sobre matéria não compreendida no âmbito da segurança nacional. Dizia o jurista que não sabia o que era segurança nacional; mas certamente sabia o que não era: batom de mulher ou, o que era disciplinado no Decreto-lei, locação comercial.
Seguindo a lição de Baleeiro, Pertence afirmou:
“Também não sei a que altura um tributo ou uma multa se torna confiscatório; mas uma multa de duas vezes o valor de um tributo, por mero retardamento de sua satisfação, ou de cinco vezes, em caso de sonegação, certamente sei que é confiscatório e desproporcional”.
O posicionamento da Corte sobre o caso pode ser resumido com o seguinte excerto, da lavra do Relator Ministro Ilmar Galvão (grifou-se):
“Fixação de valores mínimos para multas pelo não recolhimento e sonegação de tributos estaduais. Violação ao inciso IV do art. 150 da Carta da República. A desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua consequência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o patrimônio do contribuinte, em contrariedade ao mencionado dispositivo do texto Constitucional Federal” (STF, Tribunal Pleno, ADI 551/RJ, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 24.10.2002, DJ 14.02.2003, p. 58).
Como visto, o princípio da vedação ao efeito de confisco é expresso em cláusula aberta ou conceito jurídico indeterminado, cabendo ao prudente arbítrio do juiz, em cada caso que lhe for submetido, avaliar a existência ou não de confisco. Contudo, alguns parâmetros estão claramente delineados na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conforme se percebe do seguinte trecho, extraído do acórdão proferido nos autos da ADC 8-MC (grifou-se):
“A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte considerado o montante de sua riqueza (renda e capital) – para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os houver instituído (a União Federal, no caso), condicionando-se, ainda, a aferição do grau de insuportabilidade econômico-financeira, à observância, pelo legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutralizar excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder Público. Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre que o efeito cumulativo – resultante das múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal – afetar, substancialmente, de maneira irrazoável, o patrimônio e/ou os rendimentos do contribuinte” (STF, Tribunal Pleno, ADC-MC 8/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 13.10.1999, DJ 04.04.2003, p. 38).
Assim, nos termos da jurisprudência da Corte, não se deve analisar o tributo isoladamente, pois pode ser que o seu peso individual não aparente gerar efeito confiscatório, mas, ao ser acrescido a outros tributos incidentes sobre a mesma manifestação de riqueza e cobrados pelo mesmo ente, a razoabilidade desapareça.
No julgamento da ADI 2.010, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal foi instado a analisar se era confiscatória a criação de alíquota progressiva de contribuição previdenciária para servidores públicos federais ativos. As alíquotas aumentavam de acordo com o rendimento do servidor e, para rendimentos considerados mais elevados (superiores a R$ 2.500,00), chegavam ao patamar de 25% (vinte e cinco por cento). Esse patamar, para alguns, já seria confiscatório por si só, mas, para outros, poderia ser considerado razoável.
Dando-se à lei o benefício da dúvida, admita-se que se está diante da chamada zona cinzenta; que não se trata, como asseverou o saudoso Aliomar Baleeiro, do “batom de mulher”.
Na análise do caso, porém, os Ministros lembraram que os servidores públicos com maiores rendimentos já estavam sujeitos a uma alíquota de imposto de renda de 27,5% (vinte e sete e meio pontos percentuais). Assim, alguns servidores entregariam para o mesmo ente (a União é a credora das duas exações) praticamente metade (a sistemática de cálculo não permite a simples soma de alíquotas) dos seus rendimentos.
O tributo em questão saía da zona cinzenta e se configurava claramente confiscatório. Assim entendeu a Suprema Corte, conforme demonstra a manifestação do Relator Ministro Celso de Mello (grifou-se):
“Não obstante as ponderações feitas, entendo que possui inquestionável relevo jurídico a arguição de que as alíquotas progressivas instituídas pelo art. 2.º da Lei 9.783/1999 – especialmente porque agravadas pelo ônus resultante do gravame tributário representado pelo imposto sobre a renda das pessoas físicas – revestir-se-iam de efeito confiscatório vedado pelo art. 150, IV, da Constituição” (STF, Tribunal Pleno, ADI-QO 2.010/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 13.06.2002, DJ 28.03.2003, p. 62).
Em provas de concurso público, as bancas examinadoras tendem a tratar a matéria de maneira subjetiva, principiológica. Entretanto, no concurso para Auditor-Fiscal da Seguridade Social, realizado em 2002, a ESAF foi responsável pela elaboração de uma assertiva no mínimo polêmica, por tangenciar a ideologia. O item problemático foi o seguinte: “É vedado à União elevar a alíquota do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, de 27,5% para 41%, incidente sobre renda líquida igual ou superior a R$ 120.000,00, auferida no ano civil por pessoa física, por força da disposição constitucional vedatória da utilização de tributo com efeito de confisco, bem assim da que prevê a graduação de impostos segundo a capacidade econômica do contribuinte”.
A afirmativa é muito problemática, pois, para alguns, a alíquota proposta é exagerada, e para outros – entre estes a ESAF –, razoável. Abaixo se explica o raciocínio provavelmente seguido pelo examinador.
Em primeiro lugar, renda líquida igual ou superior a cento e vinte mil reais anuais (dez mil reais mensais) é bastante superior à média nacional, colocando o contribuinte numa posição privilegiada na pirâmide social brasileira.
Em segundo lugar, quando se fala em alíquota incidente sobre rendimentos que superem determinado valor, deve-se atentar para o fato de que, mesmo quem ultrapassa tal valor, tem garantido que uma parcela dos seus rendimentos – igual ao valor limite – continua sendo tributada pelas alíquotas menores. Assim, na situação proposta pela ESAF, o contribuinte com renda líquida de doze mil reais mensais só teria o excesso (dois mil reais) tributado pela alíquota de 41%, já os outros dez mil reais seriam tributados com as alíquotas aplicáveis aos demais contribuintes.
Com base nesse raciocínio, a ESAF entendeu que o contribuinte com renda líquida anual superior a cento e vinte mil reais possui uma capacidade contributiva que justifica a tributação do excedente a esses cento e vinte mil reais com uma alíquota de 41%. Seria um tratamento desigual, mas proporcional à desigualdade da situação em que o contribuinte se encontra. A assertiva proposta foi, portanto, considerada INCORRETA.
O raciocínio é razoável, como também é razoável o adotado pelas pessoas que porventura entendam que é absurdo que uma pessoa trabalhe todo um mês e tudo o que venha a produzir a partir de um certo limite tenha que ser praticamente dividido com um sócio que não trabalha, o Estado.
A tributação do patrimônio pode ser analisada sob as perspectivas estática e dinâmica.
Na perspectiva estática, analisa-se a tributação do patrimônio em si mesmo, não havendo preocupação em se aferir potenciais mutações que acresçam o valor do bem tributado. Como exemplos, têm-se o IPVA, o IPTU e o ITR, que incidem normalmente sobre a propriedade de determinado bem, em certo momento na linha do tempo, sendo calculados sobre o valor do bem tributado numa data especificada em lei.
Na perspectiva dinâmica, levam-se em consideração as potenciais mutações que constituam acréscimos patrimoniais, como é o caso do rendimento produzido por um imóvel (aluguel).
Perceba-se que a propriedade estaticamente considerada é um fato perene, que se protrai no tempo. Assim, somente por ficção é que se afirma que a cada dia 1.º de janeiro ocorre novo fato gerador do IPTU. Como o fato é único e a riqueza tributada não é renovável, a repetição ano a ano da cobrança resultaria em confisco, pois, a cada incidência, parcela da riqueza do contribuinte estaria sendo entregue ao Estado, num lento (às vezes nem tanto) processo confiscatório. Não obstante este raciocínio, a mesma Constituição que proíbe a existência de tributo com efeito confiscatório expressamente autoriza a tributação do patrimônio, deixando entrever que não só o aspecto estático deve ser levado em consideração para que se configure vedado efeito confiscatório.
Para solucionar o aparente conflito, parte da doutrina propõe que se leve em consideração a riqueza que o bem tributado é capaz de gerar. Assim, admitindo-se que determinado imóvel é capaz de gerar anualmente rendimento de aluguéis equivalente a 6% do seu valor venal, tal rendimento deveria também ser considerado para a análise do caráter confiscatório ou não do tributo.
Seguindo-se essa linha de raciocínio, seria correto afirmar que o imposto sobre o patrimônio, sob a perspectiva estática, pode ser confiscatório, não o podendo ser sob a perspectiva dinâmica, de forma a levar em consideração a possibilidade de a propriedade tributada gerar renda.
A matéria não é pacífica em sede doutrinária, havendo autores que analisam a mesma classificação (perspectivas estática e dinâmica da tributação) de uma maneira totalmente diversa.
Não obstante as controvérsias, a ESAF, no concurso para provimento de cargos de Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, com provas realizadas em 2009, exigiu conhecimento sobre a matéria e considerou corretas as seguintes assertivas:
“a) os impostos sobre o patrimônio podem ser confiscatórios, quando considerados em sua perspectiva estática” e
“b) o imposto de transmissão causa mortis, na sua perspectiva dinâmica, pode ser confiscatório”.
A primeira assertiva foi considerada correta provavelmente seguindo o raciocínio detalhado acima. A segunda assertiva também o foi, diante do entendimento de que a transmissão da propriedade imobiliária não é riqueza renovável, de forma que, mesmo sob uma perspectiva dinâmica, haveria confisco.
Registre-se que a ESAF negou provimento aos recursos interpostos contra a questão e, no parecer que fundamentou a manutenção do gabarito, a banca transcreveu trecho de famosa palestra de Aires Barreto (Vedação ao efeito de confisco, publicada na Revista de Direito Tributário. São Paulo, v. 64, 1994, p. 10), afirmando que “podem ser confiscatórios os impostos sobre o patrimônio – quer considerados na sua perspectiva estática (propriedade imobiliária), quer na sua perspectiva dinâmica (transmissão de propriedade imobiliária)”.
De qualquer forma, convém registrar que a jurisprudência brasileira tende a analisar o princípio do não confisco sob a ótica da razoabilidade e da proporcionalidade, conforme detalhado nos itens anteriores. No que concerne às provas de concurso público que abordam a matéria, a tendência é a adoção da citada perspectiva jurisprudencial, sendo excepcionais as questões como a proposta pela ESAF, analisada acima.
A pena de perdimento de bens foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, notadamente pelo art. 5.º, XLVI, b. Não há que se confundir possibilidade de aplicação de pena de perdimento com tributo confiscatório. O tributo não é sanção por ato ilícito (CTN, art. 3.º). A pena de perdimento tem, como a própria designação demonstra, caráter punitivo.
Nada impede, portanto, que, em casos de comprovação de graves infrações tributárias, a legislação específica preveja como punição o perdimento de bens.
O STF adota esta linha de raciocínio, como bem demonstra o seguinte excerto:
“Importação – Regularização fiscal – Confisco. Longe fica de configurar concessão, a tributo, de efeito que implique confisco decisão que, a partir de normas estritamente legais, aplicáveis a espécie, resultou na perda de bem móvel importado” (STF, 2.ª T., AI-AgR 173.689/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 12.03.1996, DJ 26.04.1996, p. 13.126).
Com relação às taxas, a análise da ocorrência ou inocorrência de confisco é feita de maneira diferente. O motivo da diferenciação é que, ao contrário do imposto, as taxas não se fundamentam primordialmente na solidariedade social; não têm por fato gerador uma manifestação de riqueza do contribuinte.
As taxas têm caráter contraprestacional, remunerando o Estado por uma atividade especificamente voltada para o contribuinte. Justamente por conta disso, a verificação de caráter confiscatório da taxa é feita comparando-se o custo da atividade estatal com o valor cobrado a título de taxa.
Se é correto afirmar que é difícil definir com precisão o custo de uma determinada atividade estatal, também é lícito afirmar que, em determinadas situações, o valor cobrado do contribuinte é exagerado, desproporcional. Nesses casos, o confisco está configurado.
Nessa linha, são extremamente pedagógicas as seguintes palavras do STF (grifou-se):
“A taxa, enquanto contraprestação a uma atividade do Poder Público, não pode superar a relação de razoável equivalência que deve existir entre o custo real da atuação estatal referida ao contribuinte e o valor que o Estado pode exigir de cada contribuinte, considerados, para esse efeito, os elementos pertinentes às alíquotas e à base de cálculo fixadas em lei. Se o valor da taxa, no entanto, ultrapassar o custo do serviço prestado ou posto à disposição do contribuinte, dando causa, assim, a uma situação de onerosidade excessiva, que descaracterize essa relação de equivalência entre os fatores referidos (o custo real do serviço, de um lado, e o valor exigido do contribuinte, de outro), configurar-se-á, então, quanto a essa modalidade de tributo, hipótese de ofensa à cláusula vedatória inscrita no art. 150, IV, da Constituição da República” (STF, Tribunal Pleno, ADI-MC-QO 2.551/MG, Rel. Min. Celso de Mello, j. 02.04.2003, DJ 20.04.2006, p. 5).
Para uma análise mais detalhada da questão relativa à base de cálculo das taxas e a necessidade de correlação com o valor da atividade estatal, remete-se o leitor ao item 1.4.3.3 do Capítulo 1.
Conforme se pode perceber no Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar a ADI 551 (item 2.8.1), apesar de o texto literal do art. 150, IV, constitucional anunciar o não confisco como princípio a ser aplicado aos tributos, a restrição é também aplicável às multas tributárias.
Perceba-se que, na decisão citada, o STF considerou inconstitucional a cobrança de multas, uma no valor de duas vezes o montante do tributo não pago, e outra no valor de cinco vezes o montante do tributo sonegado. O raciocínio tem sido seguido à risca em provas de concurso público, conforme demonstra o seguinte item, considerado incorreto pelo CESPE no concurso para provimento de cargos de Juiz Federal do TRF da 1.ª Região, com provas aplicadas em 2009: “Contra a imposição de multas por sonegação fiscal ou mesmo pelo não recolhimento do tributo, não se pode argumentar com a proibição constitucional de utilização de tributo com efeito de confisco, já que de tributo não se trata”.
O inciso V do art. 150 da CF proíbe os entes federados de “estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público”.
O objetivo do legislador constituinte foi evitar que os entes políticos criassem tributos (normalmente taxas) incidentes sobre a passagem de pessoas e bens em seus territórios. A situação era relativamente comum no passado; os tributos eram criados com finalidade arrecadatória, mas acabavam por constituir restrições ao direito que possuem as pessoas de se locomover livremente no território nacional de posse dos seus bens (hoje previsto no art. 5.º, XV, da CF/1988).
A regra possui exceções. A primeira é a possibilidade de cobrança do ICMS interestadual. Como um gravame incidente também sobre operações que destinam a outro Estado determinados bens e sobre a prestação de determinados serviços, o tributo interestadual acaba por constituir uma limitação ao tráfego de bens pelo território nacional. Como a cobrança tem fundamento constitucional, é plenamente válida, não havendo que se discutir sua legitimidade.
No que se refere ao pedágio, a questão é bastante controversa, principalmente com relação a sua natureza jurídica (tributária ou não).
Por uma questão de lógica, é possível afirmar que o legislador constituinte originário imaginou o pedágio como um tributo. O raciocínio é bastante simples: só se exclui de uma regra algo que, não fora a disposição excludente, faria parte da regra.
Assim, não faz sentido afirmar que “todo ser humano possui direito à liberdade, excetuados os gatos e cachorros”. A frase não faz sentido, pois gatos e cachorros não são seres humanos, portanto não fazem parte da regra, não precisando ser excetuados.
Na mesma linha de raciocínio, se a Constituição Federal de 1988 afirmou que sobre determinada situação não se pode instituir tributos, ressalvada a cobrança de pedágio, é porque, para o legislador constituinte, o pedágio é tributo.
Atente-se para o fato de que o pedágio considerado como tributo, nos termos constitucionais, é apenas aquele cobrado pelo Poder Público pela utilização de vias por ele conservadas.
A expressão Poder Público engloba tanto um órgão da administração direta como as pessoas jurídicas de direito público integrantes da administração indireta (uma autarquia, por exemplo). Neste caso, o regime jurídico da exação será o tributário, de forma que a cobrança estará sujeita a todas as restrições daí decorrentes (legalidade, anterioridade do exercício, noventena, entre outras).
O Supremo Tribunal Federal entende que o pedágio-tributo tem natureza de taxa de serviço (RE 181.475-6). O fato gerador seria a utilização (efetiva) da rodovia. A base de cálculo deve ser fixada em lei, de forma que guarde relação direta com o custo do benefício prestado ao contribuinte, devendo levar em consideração, portanto, elementos como peso e dimensões do veículo, número de eixos e a distância percorrida.
Atualmente, entretanto, o pedágio tem sido cobrado por particulares em regime de concessão, permissão ou autorização. O regime inerente a tais formas de delegação a entidades de direito privado é o contratual. Também terá natureza contratual o pedágio cobrado, que, em tais casos, terá a natureza de preço público ou tarifa (aqui as expressões são usadas como sinônimas).
Seguindo a mesma linha de raciocínio, a Lei 10.233/2001, ao instituir a Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, previu no seu art. 26:
“Art. 26. Cabe à ANTT, como atribuições específicas pertinentes ao Transporte Rodoviário:
(...)
VI – publicar os editais, julgar as licitações e celebrar os contratos de concessão de rodovias federais a serem exploradas e administradas por terceiros;
(...)
§ 2.º Na elaboração dos editais de licitação, para o cumprimento do disposto no inciso VI do caput, a ANTT cuidará de compatibilizar a tarifa do pedágio com as vantagens econômicas e o conforto de viagem, transferidos aos usuários em decorrência da aplicação dos recursos de sua arrecadação no aperfeiçoamento da via em que é cobrado”.
Perceba-se que, no caso de concessão da administração e exploração de rodovias por terceiros (particulares), o valor cobrado pela utilização será necessariamente tarifa (preço público), exação de direito privado não beneficiada pelas vantagens decorrentes do direito público, nem sujeita às respectivas restrições.
A Constituição Federal de 1988 traz, em seu art. 151, três vedações voltadas especificamente à União. O claro objetivo do dispositivo é proteger o pacto federativo, impedindo ao ente que tributa em todo o território nacional a utilização deste poder como meio de submeter os entes menores à sua vontade, tolhendo-lhes a autonomia.
São regras protegidas por cláusula pétrea, em virtude de se configurarem como verdadeiras garantias da Federação (CF, art. 60, § 4.º, I).
Este princípio está previsto no inciso I do art. 151 da CF e veda à União “instituir tributo que não seja uniforme em todo o território nacional ou que implique distinção ou preferência em relação a Estado, ao Distrito Federal ou a Município, em detrimento de outro, admitida a concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes regiões do País”.
Não pode a União, portanto, estipular diferentes alíquotas do imposto sobre a renda, nos distintos Estados da federação. Caso a alíquota fosse menor, a título de exemplo, no Estado de São Paulo, os demais Estados estariam sendo ilegitimamente diferenciados, o que poria em risco a federação.
O mesmo dispositivo que prevê a regra traz também a exceção, ao permitir a diferenciação com a finalidade extrafiscal de diminuir as diferenças de desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes regiões do País.
A possibilidade está em plena consonância com o art. 3.º da Magna Carta, que inclui, entre os objetivos da República Federativa do Brasil, o de reduzir as desigualdades sociais e regionais. Foi com fundamento nesse objetivo que a Constituição Federal de 1988 previu, no art. 40 do ADCT, a manutenção da Zona Franca de Manaus, com suas características de área livre de comércio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais, pelo prazo de vinte e cinco anos, a partir da promulgação da Constituição.
Há alguns casos em que o benefício concedido parece caminhar na contramão do princípio da isonomia. A situação é praticamente inevitável, pois, ao conceder benefícios fiscais com o objetivo de atrair grandes empresas para regiões menos desenvolvidas do País, acaba-se por negar o mesmo tratamento a empresas de menor potencial econômico que estejam instaladas nas regiões mais prósperas. A benesse não é extensiva, portanto, a entidades que estão entre as que mais dela precisam, mas terá como consequência uma melhoria na qualidade de vida de um grupo bem maior de pessoas, justamente as residentes em regiões subdesenvolvidas, e que têm nas ações do Estado uma das últimas esperanças de melhoria de suas condições econômico-sociais.
O Supremo Tribunal Federal entende que a concessão de isenção se funda no juízo de conveniência e oportunidade de que gozam as autoridades públicas na implementação de suas políticas fiscais e econômicas. Portanto, não cabe ao Poder Judiciário, que não pode se substituir ao legislador, estender isenção a contribuintes não contemplados pela lei, a título de isonomia (STF, 1.ª T., RE 344.331/PR, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 11.02.2003, DJ 14.03.2003, p. 40).
A decisão citada manteve acórdão do TRF da 4.ª Região, que foi redigido de maneira extremamente pedagógica, o que torna oportuna a transcrição do seguinte excerto:
“É constitucional a exigência do IPI na alíquota de 12% sobre a produção do açúcar na região sul, conforme estabelecido no art. 1.º do Decreto 2.501/1998, bem como o tratamento diferenciado dado aos estabelecimentos produtores localizados nos Estados das Regiões Norte e Nordeste (art. 2.º), por se tratar de medida de política econômica para o fomento do equilíbrio regional. Não há ofensa aos princípios federativo, da igualdade genérica e tributária, da uniformidade dos tributos federais, da seletividade e da livre concorrência previstos nos arts. 1.º, 5.º, 150, inc. I, 153, § 3.º, inc. I, e 170, inc. IV, da CF/1988”.
Segundo o art. 151, II, da CF/1988, é vedado à União “tributar a renda das obrigações da dívida pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como a remuneração e os proventos dos respectivos agentes públicos, em níveis superiores aos que fixar para suas obrigações e para seus agentes”.
A restrição, aplicável exclusivamente ao imposto sobre a renda, visa evitar que a União utilize o tributo como um meio de concorrer deslealmente no “mercado” de títulos da dívida pública e na seleção de servidores públicos.
Em primeiro lugar, deve-se entender que quando um particular adquire um título da dívida pública emitido por um ente federado, o adquirente está, em termos práticos, concedendo um empréstimo ao ente.
O particular realiza o investimento por interesse na taxa de juros que remunera tal título. Quando o ente emissor do título quitar sua obrigação, pagando o valor do principal mais os juros legais, o particular estará obtendo um rendimento do capital aplicado, estando sujeito, por conseguinte, ao pagamento do imposto sobre a renda.
Perceba-se que não se está a tributar o rendimento do ente federado que emitiu o título (o que seria vedado pelo art. 150, VI, a, da CF/1988); o que se tributa é a renda gerada pela operação, que é rendimento do particular adquirente do título.
No que concerne a tais operações, o que a Constituição Federal impede no art. 151, II, é que a União tribute os rendimentos gerados pelos títulos estaduais e municipais de maneira mais gravosa que aqueles gerados pelos títulos que ela própria emite. Se assim não fosse, a União poderia concorrer deslealmente no mercado de títulos, pois haveria a tendência de o investidor preferir adquirir títulos federais em face da tributação privilegiada.
A segunda vedação constante no dispositivo impede que a União tribute os rendimentos dos servidores públicos estaduais e municipais de maneira mais gravosa do que aquela estipulada para os servidores públicos federais.
A rigor, a previsão expressa da restrição é desnecessária, visto que a mesma já seria consequência natural do princípio da isonomia, estatuído no art. 150, II, da CF, dispositivo em que se proíbe qualquer distinção de tratamento que tome por base ocupação profissional ou função exercida.
Supõe-se que a explicitação do dispositivo dentro de um artigo que protege a federação e, de maneira mais específica, dentro de um inciso que tenta evitar a concorrência desleal, tem por objetivo demonstrar que o tratamento tributário beneficiado aos servidores públicos federais teria como consequência uma concorrência desleal da União na seleção dos seus servidores públicos, pois seria possível imaginar que os melhores servidores se sentiriam mais atraídos por fazer carreira no serviço público federal, se, diante de remunerações semelhantes, existisse tratamento mais gravoso nos serviços públicos estadual e municipal.
A isenção é forma de exclusão do crédito tributário (assunto a ser detalhado em capítulo futuro) consistente na dispensa legal do pagamento do tributo. É benefício fiscal concedido exclusivamente por lei, em regra elaborada pelo ente que tem competência para a criação do tributo.
Assim, é lícito afirmar que o poder de isentar é natural decorrência do poder de tributar. Em outras palavras, a regra é que as isenções sejam autônomas (ou autonômicas), porque concedidas pelo ente federado a quem a Constituição atribuiu a competência para a criação do tributo. A regra está prevista no art. 151, III, cuja redação veda à União “instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios”. Por simetria, é também possível afirmar que os Estados não podem conceder isenção de tributos municipais.
A vedação é importante garantia protetora do pacto federativo, pois impede que os entes maiores, por ato próprio, interfiram na arrecadação dos entes menores, pondo-lhes em risco a autonomia.
A proibição é novidade da Constituição Federal de 1988, pois se contrapõe à Constituição de 1967, que, no seu art. 19, § 2.º, dispunha que “a União, mediante lei complementar e atendendo o relevante interesse social ou econômico nacional, poderá conceder isenções de impostos estaduais e municipais”.
Seguindo a linha aqui exposta, no concurso para AFRF, realizado em 2005, propôs o seguinte item: “Com o advento da Constituição de 1988, a concessão da isenção heterotópica passou a ser proibida (art. 151, III)”.
O gabarito apontou a assertiva como correta, uma vez que efetivamente a proibição de concessão de isenção heterotópica é novidade introduzida pela Constituição Federal de 1988. Todavia, o item deveria ter sido anulado em virtude da existência de exceções à regra, como será analisado a seguir.
Da maneira como o art. 151, III, da CF/1988 foi escrito, parece que o princípio constitui um obstáculo intransponível à existência das chamadas isenções heterônomas (ou heterotópicas), ou seja, aquelas concedidas por ente diferente daquele que tem competência para a criação do tributo.
Entretanto, o legislador constituinte originário achou por bem criar duas exceções expressas à regra, ambas relativas à exportação, ambas partes integrantes da diretriz econômica universalmente seguida de que não se deve exportar tributos, mas sim mercadorias e serviços.
A primeira exceção consta do art. 155, § 2.º, XII, e, da CF/1988 e permite que a União conceda, por meio de lei complementar, isenção heterônoma do ICMS incidente nas operações com serviços e outros produtos destinados ao exterior, além dos mencionados no art. 155, § 2.º, X, a, da CF.
A disposição fazia sentido quando a mencionada alínea a imunizava do ICMS nas exportações apenas os produtos industrializados, excluídos os semielaborados definidos em lei complementar.
A partir da EC 42/2003, todavia, o ICMS deixou de incidir, por expressa disposição constitucional (imunidade), sobre operações que destinem quaisquer mercadorias para o exterior e sobre os serviços prestados a destinatários no exterior.
Por conta da nova redação, a possibilidade de a União conceder isenção do ICMS nas exportações deixou de possuir qualquer utilidade, dada a amplitude da imunidade assegurada pela própria Constituição.
Há de se ressaltar, entretanto, que o agora inútil dispositivo não foi revogado expressamente, ainda podendo ser objeto de cobrança em provas para concurso público.
Aliás, alguém mais purista poderia defender que a imunidade das mercadorias nas exportações não abrangeria todos os bens, pois o conceito de mercadoria só abrange os bens cuja finalidade é comercial, de forma que a saída do território brasileiro de um bem a título de doação (um presente, por exemplo) não seria imune ao ICMS, de forma que a União poderia conceder isenção heterônoma, evitando a cobrança.
Possibilidades doutrinárias à parte, em provas de concurso público aconselha-se que o candidato conheça o dispositivo constitucional, ciente de sua perda de utilidade, mas lembrando que não houve revogação expressa do texto.
A segunda exceção se refere à possibilidade de a União conceder, também via lei complementar, isenção heterônoma do ISS, da competência dos Municípios nas exportações de serviços para o exterior (art. 156, § 3.º, II).
Não há dúvida quanto à vigência do dispositivo e, apesar de alguns argumentos em sentido contrário, o entendimento majoritário é de que se trata de uma exceção à regra da vedação à existência de isenções heterônomas.
Por fim, tecnicamente, é possível vislumbrar uma terceira exceção ao princípio que veda a concessão de isenções heterônomas. É a possibilidade de o tratado internacional conceder isenções de tributos estaduais e municipais.
Seguindo-se a interpretação estrita do art. 151, III, da CF, tal possibilidade não existiria, pois a celebração do tratado internacional, assim como sua aprovação parlamentar, são realizadas no âmbito federal (Presidente da República e Congresso Nacional).
Assim, se o tratado concedesse uma isenção de tributo de competência dos Estados ou Municípios, haveria flagrante desrespeito à restrição constitucional, pois o benefício estaria sendo concedido pela União, o que é expressamente proibido.
Entretanto, entendendo que, no sistema presidencialista adotado pelo Estado brasileiro, o Presidente da República, agindo como Chefe de Estado, firma tratados internacionais em nome da soberana República Federativa do Brasil (Estado Brasileiro) e não em nome da autônoma União, o STF decidiu que a concessão de isenção na via do tratado não sujeita a vedação à concessão de isenção heterônoma.
Nessa linha, pode-se citar o acórdão proferido nos autos da ADI 1.600, em cuja Ementa expressamente se afirma que o “âmbito de aplicação do art. 151, CF, é o das relações das entidades federadas entre si. Não tem por objeto a União quando esta se apresenta na ordem externa” (STF, Tribunal Pleno, ADI 1.600/UF, Rel. Min. Sydney Sanches, rel. p/ acórdão Min. Nelson Jobim, j. 26.11.2001, DJ 20.06.2003, p. 56).
Os casos concretos mais relevantes se referem ao Acordo Geral Sobre Tarifas e Comércio – GATT –, tratado internacional multilateral do qual o Brasil faz parte, que, ao prever a equivalência de tratamento entre o produto importado, quando este ingressa no território nacional, e o produto similar nacional (regra do tratamento nacional), acaba por estender àquele isenções eventualmente concedidas a este (ver Capítulo 3, item 3.2.2.1.4).
Seguindo à risca o entendimento esposado pelo STF, a ESAF, no concurso para provimento do cargo de Procurador da Fazenda Nacional, realizado em 2007 (primeira prova – anulada em virtude de caso fortuito), considerou incorreta a seguinte assertiva: “A União não pode criar situação de isenção ao ICMS, por via indireta, ou seja, por meio de tratado ou convenção internacional que garanta ao produto estrangeiro a mesma tributação do similar nacional”.
Não obstante os efeitos práticos do entendimento, a matéria tornou-se controversa sob o ponto de vista puramente teórico, quando o próprio STF, apesar de reafirmar a possibilidade de o tratado internacional, impedir a cobrança de tributos estaduais e municipais, passou a dizer que tal situação não se enquadrava no conceito de isenção heterônoma.
Pela relevância do acórdão, transcreve-se abaixo sua ementa (RE 229.096/RS – grifos não constam do original):
“Direito Tributário. Recepção pela Constituição da República de 1988 do acordo geral de tarifas e comércio. Isenção de tributo estadual prevista em tratado internacional firmado pela República Federativa do Brasil. Artigo 151, inciso III, da Constituição da República. Artigo 98 do Código Tributário Nacional. Não caracterização de isenção heterônoma. Recurso extraordinário conhecido e provido. 1. A isenção de tributos estaduais prevista no Acordo Geral de Tarifas e Comércio para as mercadorias importadas dos países signatários quando o similar nacional tiver o mesmo benefício foi recepcionada pela Constituição da República de 1988. 2. O artigo 98 do Código Tributário Nacional ‘possui caráter nacional, com eficácia para a União, os Estados e os Municípios’ (voto do eminente Ministro Ilmar Galvão). 3. No direito internacional apenas a República Federativa do Brasil tem competência para firmar tratados (art. 52, § 2.º, da Constituição da República), dela não dispondo a União, os Estados-membros ou os Municípios. O Presidente da República não subscreve tratados como Chefe de Governo, mas como Chefe de Estado, o que descaracteriza a existência de uma isenção heterônoma, vedada pelo art. 151, inc. III, da Constituição. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido.”
Neste ponto cumpre esclarecer que, dentro do contexto analisado, a palavra “heterônoma” quer demonstrar que a norma impeditiva da tributação não decorre da autonomia do ente federado que tem competência para instituir o tributo, tendo sido editada por outro ente. É por isso que se pode afirmar com absoluta precisão que, ao contrário das isenções, as imunidades são sempre heterônomas, uma vez que são concedidas diretamente pelo texto constitucional, não havendo autonomia do ente competente para a cobrança do tributo estabelecê-las.
Foi nessa linha que o CESPE, no concurso para Procurador do INSS, com provas realizadas em 1999, considerou correta assertiva afirmando que a imunidade é “uma limitação heterônoma constitucional ao poder de tributar”.
Se a própria jurisprudência do Supremo entende que tratado internacional sobre matéria tributária tem força de lei, quando tal espécie de norma impede a cobrança de um tributo, a benesse concedida é uma isenção. Como o ente responsável pela edição da norma – República Federativa do Brasil, pessoa jurídica de direito público internacional – é diferente daquele competente para a instituição do tributo, a isenção é ineludivelmente heterônoma. Aliás, se não o fosse, o que seria? Autônoma?
A rigor, a situação ora analisada realmente não é uma exceção à norma constante do art. 151, III, da CF/88, pois tal dispositivo é direcionado expressamente à União, somente podendo ser consideradas verdadeiras exceções os casos em que ela (a União) possa isentar tributo alheio (casos do ICMS-exportações, com as citadas ressalvas, e do ISS-exportações).
Entretanto, há de se recordar que o princípio federativo tem como corolário natural a impossibilidade de concessão de quaisquer isenções heterônomas, o que impede, por exemplo, que os Estados-membros concedam isenções de tributos de competência dos seus Municípios (apesar de não haver vedação expressa neste sentido em nenhum dispositivo constitucional). Assim, é lídimo afirmar que a possibilidade de concessão de isenções em tratados internacionais é uma exceção ao princípio que veda isenções heterônomas, que é bem mais amplo que a disposição constante do art. 151, I, da CF/88 (direcionada, repise-se, apenas à União).
Apesar do equívoco de ordem técnica, resta firmar o tradicional aviso aos que se preparam para as provas de concurso público, tendo em vista de que nelas o argumento da autoridade (STF) vale mais que a autoridade (poder de persuasão) do argumento. Assim, em tais certames, aconselha-se ao candidato considerar possível a concessão de isenção de tributos estaduais e municipais mediante tratados internacionais, mas não qualificar tal hipótese como isenção heterônoma, tendo em vista o transcrito acórdão lavrado por nossa Suprema Corte.
Em face do exposto, a visualização das regras e exceções pode ser feita da seguinte forma:
Há de se relembrar que as custas judiciais são tributos da espécie taxa, pagos pela prestação do serviço público específico e divisível da jurisdição. Assim, sujeitam-se às limitações tributárias, entre as quais a da vedação à concessão de isenções heterônomas.
Ocorre que existem leis federais estipulando casos de isenção de custas judiciais, mesmo quando o processo tramita na justiça estadual. Trata-se da isenção de um tributo da competência dos Estados dada por lei nacional. Há fortes indícios de inconstitucionalidade das leis que abrigam tais normas.
Apesar de o assunto já ter sido debatido em votos, o STF ainda não tem um pronunciamento direto sobre a matéria.
No âmbito do STJ, apesar de não se referir diretamente ao art. 151, III, da CF/1988, existe uma súmula que parece caminhar no sentido da impossibilidade de a União conceder isenção de custas judiciais relativas a processos que tramitem no âmbito da justiça estadual. É a seguinte a redação da súmula:
STJ – Súmula 178 – “O INSS não goza de isenção do pagamento de custas e emolumentos, nas ações acidentárias e de benefícios propostas na Justiça Estadual”.
Este princípio é previsto no art. 152 da CF como aplicável exclusivamente aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, vedando-os estabelecer diferenças tributárias entre bens e serviços de qualquer natureza em razão de sua procedência ou destino.
Também aqui se tem uma importante regra protetiva do pacto federativo, visto que se proíbe que os entes locais se discriminem entre si.
A título de exemplo, não é lícito a um Estado criar adicionais, redutores ou quaisquer outras diferenças de tratamento tomando por base a procedência ou o destino da mercadoria.
Relembre-se, entretanto, que a União – e somente ela – está autorizada a estipular tratamento tributário diferenciado entre os Estados da federação tendo por meta diminuir as desigualdades socioeconômicas tão comuns no Brasil (item 2.10.1). Providências semelhantes, portanto, não são lícitas aos Estados e Municípios, sob pena de grave risco ao pacto federativo.
A linha de raciocínio até aqui adotada, ligando umbilicalmente o princípio da não discriminação e o pacto federativo, parece conduzir ao entendimento de que a impossibilidade de tratamento diferenciado com base na procedência ou destino do bem ou serviço só é aplicável no âmbito interno, não impedindo o tratamento diferenciado quando o bem ou serviço é procedente do exterior.
Contudo, se a vedação constitucional proíbe discriminação com base em procedência, não podem os Estados, por exemplo, estatuir alíquotas mais elevadas de IPVA para veículos importados.
Essa proibição tem sede constitucional e é ratificada pela chamada cláusula do tratamento nacional, que prevê a equivalência de tratamento entre o produto importado, quando este ingressa no território nacional, e o produto similar nacional.
Para uma análise detalhada da matéria relativa à cláusula do tratamento nacional, prevista no Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – GATT, do qual o Brasil é signatário, recomenda-se a leitura do item 3.2.2.1.4 do Capítulo 3. Lá será analisada a jurisprudência do STJ e do STF sobre a matéria e a maneira como são elaboradas questões de prova envolvendo o assunto.
Um dos princípios basilares do direito público é a indisponibilidade do interesse e do patrimônio público.
O gestor público administra patrimônio de outrem, não podendo praticar atos de que resultem impactos negativos sobre tal patrimônio sem a autorização do verdadeiro titular das disponibilidades, o povo.
Em um Estado Democrático de Direito, o povo pode autorizar a prática de atos que configuram disponibilidade do patrimônio público por meio da elaboração de lei.
O crédito tributário é parte do patrimônio público. Os benefícios fiscais ora extinguem (remissão), ora excluem (isenção, anistia), ora diminuem (redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido) o crédito tributário.
Como consequência, não é possível a concessão de benefícios fiscais por intermédio de qualquer ato infralegal. A restrição tem o salutar efeito de diminuir bastante a margem de manobra do Poder Executivo, dificultando-lhe a tentadora possibilidade de se utilizar da desoneração tributária como moeda de troca por vantagens pessoais da autoridade administrativa. Foi se referindo expressamente a este fundamento, que o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional lei paraense que autorizava o Poder Executivo a conceder, mediante regulamento, remissão e anistia (ADI 3.462). Na ementa do julgamento, o Supremo, com tintas fortes e fundado no princípio constitucional da “Separação de Poderes”, fez menção expressa à reserva absoluta de lei formal, uma vez que, conforme já detalhado neste Capítulo (item 2.5.3), o Parlamento, que tem o nobre mister de legislar, não pode se sentir proprietário de tal atribuição e aliená-la ao Executivo. Recorde-se que é possível ao Chefe do Executivo editar leis delegadas, desde que autorizado pelo Parlamento nos termos do art. 68 da Constituição Federal (referente ao Presidente da República, mas aplicável, por simetria, às demais esferas). Todavia, lei delegada é lei formal, mesmo que elaborada num processo legislativo peculiar, o que não se pode dizer do regulamento.
Apesar de a matéria se referir a uma limitação constitucional ao poder de tributar, a norma isentiva, por não estar regulando tal limitação, mas sim excluindo a tributação, poderá ser uma lei ordinária, salvo nos casos em que o próprio tributo isentado só possa ser criado por lei complementar.
Em estrita consonância com o princípio, a Constituição Federal impõe, em seu art. 150, § 6.º, que qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g.
Perceba-se que, além de positivar o princípio, a Magna Carta fez mais.
Em primeiro lugar, exigiu que a lei que veicular o benefício seja específica, regulando exclusivamente benefícios fiscais ou o correspondente tributo ou contribuição (a rigor uma redundância, visto que as contribuições citadas são tributos).
O motivo da exigência de especificidade da lei é evitar a prática, infelizmente tão comum no parlamento, de esconder benefícios fiscais dentro de leis que tratam de matéria totalmente diversa da tributária.
Na praxe legislativa brasileira, os projetos de lei ganham nomes que lhes identificam o conteúdo e facilitam a discussão da matéria. Assim, em vez de se falar em números se fala na “lei geral das microempresas”, “lei dos transgênicos” etc.
Um grave problema ocorreria se, por exemplo, fosse escondida, dentro de uma hipotética lei que cria o “dia do homem”, uma anistia às multas tributárias das empresas que descumpriram regras da legislação do IPI.
Seria possível que a lei tramitasse no Congresso Nacional sem que a maioria do parlamento tomasse conhecimento do benefício, o que configuraria uma agressão ao princípio da indisponibilidade do patrimônio público, pois os representantes do povo não teriam efetivamente analisado o mérito da questão.
Também é possível imaginar a perniciosa inclusão, por parte da oposição, de benefício fiscal dentro de uma lei importante, de interesse da situação, como mecanismo para “negociar” uma aprovação conjunta.
Não se deve dar ao citado § 6.º uma interpretação tão restritiva ao ponto de considerar inconstitucional a concessão de um benefício fiscal por uma lei que não trate exclusivamente de matéria tributária, pois a finalidade da restrição constitucional é impedir a inserção de benefícios fiscais em leis de conteúdo totalmente alheio àquele relativo ao benefício.
Nesta linha, transcreve-se abaixo pedagógica lição formulada pelo Ministro Relator Ilmar Galvão, constante do voto proferido nos autos da ADI 1.379:
“Na verdade, o mencionado dispositivo constitucional não impede que uma lei que contemple, v.g., um programa de financiamento agropecuário ou de incremento à construção de casas populares contemple a atividade com determinado incentivo fiscal. O benefício fiscal, aí, acha-se inter-relacionado com objetivo da lei, encontrando-se, portanto, atendido o requisito da especificidade. O que, a todas as luzes, teve por escopo a emenda constitucional em tela foi coibir velho hábito que induzia nosso legislador a enxertar benefícios tributários casuísticos no texto de leis, notadamente as orçamentárias, no curso do respectivo processo de elaboração, fenômeno que, no presente caso, não se verifica” (STF, Tribunal Pleno, ADI-MC 1.379/AL, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 24.04.1996, DJ 22.08.1997, p. 38.759).
Um caso emblemático discutido sob as luzes do citado comando constitucional foi a previsão contida no art. 13, § 3.º, da LC 123/2006, que isentou de contribuições sindicais as microempresas e empresas de pequeno porte optantes pelo Simples Nacional (Supersimples). Tal Lei, estudada no Capítulo 15 desta obra, não versa exclusivamente sobre contribuições sindicais ou sobre concessão de isenções. A norma institui um tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte, englobando medidas de caráter não apenas tributário, mas também previdenciário, trabalhista, administrativo, dentre outras.
Não obstante, ao julgar Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada contra a regra isentiva, o STF percebeu que há total correlação entre ela e a criação de um tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e empresas de pequeno porte, nos termos estatuídos na LC 123/2006 em cumprimento à previsão constante do art. 146, III, “d”, da CF/1988.
Em termos mais técnicos, pode-se afirmar que há pertinência temática entre a isenção concedida e a Lei em que ela foi inserida. De maneira bastante cuidadosa, a Suprema Corte também verificou que constam dos arquivos do Congresso Nacional registros sobre discussões relativas ao benefício fiscal, de forma a demonstrar cabalmente que não ocorreu o principal problema que se quis evitar com o multicitado art. 150, § 6.º, da CF/1988, qual seja, a aprovação de uma norma exonerativa sem discussão pelo Parlamento.
Tendo em vista a importância do julgado, transcreve-se abaixo o trecho mais relevante da respectiva Ementa (ADI 4.033/DF):
“1. Ação direta de inconstitucionalidade ajuizada contra o art. 13, § 3º, da LC 123/2006, que isentou as microempresas e empresas de pequeno porte optantes pelo Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – Simples Nacional (‘Supersimples’). 2. Rejeitada a alegação de violação da reserva de lei específica para dispor sobre isenção (art. 150, § 6º, da Constituição), uma vez que há pertinência temática entre o benefício fiscal e a instituição de regime diferenciado de tributação. Ademais, ficou comprovado que o Congresso Nacional não ignorou a existência da norma de isenção durante o processo legislativo. (...)
3.1. O fomento da micro e da pequena empresa foi elevado à condição de princípio constitucional, de modo a orientar todos os entes federados a conferir tratamento favorecido aos empreendedores que contam com menos recursos para fazer frente à concorrência. Por tal motivo, a literalidade da complexa legislação tributária deve ceder à interpretação mais adequada e harmônica com a finalidade de assegurar equivalência de condições para as empresas de menor porte”.
Outro ponto relevante, também consagrado na jurisprudência do STF, é a impossibilidade de o Poder Judiciário, invocando o princípio da isonomia, substituir o juízo discricionário do legislador e estender a outras pessoas benefícios fiscais que a lei só destinou expressamente a determinada categoria de contribuintes. Nas palavras da própria Corte, “entendimento diverso, que reconhecesse aos magistrados essa anômala função jurídica, equivaleria, em última análise, a converter o Poder Judiciário em inadmissível legislador positivo, condição institucional esta que lhe recusou a própria Lei Fundamental do Estado” (STF, 1.ª T., AI-AgR 142.348/MG, Rel. Min. Celso de Mello, j. 02.08.1994, DJ 24.03.1995, p. 6.807). O raciocínio, incontroverso em sede jurisprudencial, é frequentemente abordado em concursos públicos. A título de exemplo, no concurso para provimento do cargo de Procurador do Distrito Federal, realizado em 2004, a ESAF considerou CORRETA a seguinte assertiva: “Não se admite que o Judiciário, em obséquio ao princípio da isonomia, estenda isenção tributária a contribuintes não contemplados pela lei que a instituiu”.
Por fim, a ressalva constante no final do dispositivo (sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g) traz uma restrição maior à concessão de benefícios fiscais do ICMS. Como se verá mais à frente, o ICMS é o tributo com maior quantidade de regras constantes da própria Constituição. O motivo é que o Brasil, diferentemente da imensa maioria das federações, optou por atribuir aos entes regionais (Estados) a criação do ICMS.
A consequência de se atribuir a entes menores a criação e administração de um tributo que grava toda a economia é óbvia: guerra fiscal. Para minimizar o problema, a Constituição traz um arsenal de regras que tenta conter a competição predatória entre os Estados-membros.
Talvez a mais importante dessas regras seja exatamente o art. 155, § 2.º, XII, g, da CF/1988, exigindo que a concessão de benefícios fiscais de ICMS seja precedida de deliberação conjunta dos Estados e do Distrito Federal, conforme regulado em lei complementar.
Atualmente a “deliberação conjunta” toma a forma de convênio celebrado no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ, órgão formalmente inserido na Estrutura do Ministério da Fazenda, mas com assento garantido aos diversos titulares das fazendas estaduais (Secretários Estaduais da Fazenda ou cargo equivalente).
A matéria está regulada pela Lei Complementar 24/1975, segundo a qual a concessão de benefícios fiscais relativos ao ICMS dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes.
Dentro de 10 dias, contados da data final da reunião em que o convênio foi firmado, a resolução nela adotada será publicada no Diário Oficial da União. Após esse prazo, o Poder Executivo de cada Unidade da Federação disporá de 15 dias para publicar decreto ratificando ou não os convênios celebrados, considerando-se ratificação tácita dos convênios a falta de manifestação no prazo assinalado. Tais regras também se aplicam às Unidades da Federação cujos representantes não tenham comparecido à reunião em que hajam sido celebrados os convênios.
A não ratificação pelo Poder Executivo de todas as Unidades da Federação (no caso de concessão de benefício) ou de, no mínimo, quatro quintos das Unidades da Federação (no caso de revogação total ou parcial de benefício) implica rejeição do convênio firmado.
Até 10 dias depois de findo o prazo de ratificação dos convênios, deve ser publicada no Diário Oficial da União a informação relativa à ratificação ou à rejeição. Os convênios entrarão em vigor no trigésimo dia após tal publicação, salvo disposição em contrário, vinculando, a partir daí, todas as Unidades da Federação, inclusive as que, regularmente convocadas, não se tenham feito representar na reunião em que o ato foi celebrado.
A sistemática estudada configura a única exceção à regra segundo a qual os benefícios fiscais somente podem ser concedidos por lei, não sendo possível a adoção de procedimento semelhante para outros tributos além do ICMS. Nessa linha, o STJ considerou inválida Resolução aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais e pela Câmara de Vereadores do Município de Belo Horizonte na qual se ratificava convênio firmado entre tais entes e concessionárias de serviço público, concedendo, a estas, isenções de tributos municipais. A Corte, invocando o art. 176 do CTN e os dispositivos constitucionais ora analisados, declarou a invalidade da sistemática. Pela relevância do julgado, transcreve-se a respectiva ementa (REsp 723.575-MG, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 03.08.2007):
“TRIBUTÁRIO – IMPOSTOS MUNICIPAIS – ISENÇÃO CONCEDIDA POR MEIO DE RESOLUÇÃO LEGISLATIVA: ILEGALIDADE – VIOLAÇÃO DO ART. 176 DO CTN.
1. Nos termos do art. 176 do CTN, a isenção tributária somente pode ser concedida mediante lei específica, com exceção do ICMS, que se dá mediante convênio firmado entre todos os Estados (art. 150, § 6.º c/c 155, § 2.º, XII, g, da CF/1988).
2. Ilegalidade da concessão de isenção de tributos municipais por resolução legislativa.
3. Recurso especial provido”.
É relevante registrar que o fato de um ente da Federação não cumprir as premissas constitucionais para a concessão de benefícios fiscais não autoriza os demais a, invocando um suposto direito à proteção da economia local, conceder, definitiva ou transitoriamente, qualquer benefício semelhante. Não há “compensação de inconstitucionalidades” ou “direito de vingança”. Nesta linha, o Supremo Tribunal Federal suspendeu absurda norma paranaense que previa o seguinte:
“Havendo concessão, por qualquer outro Estado ou pelo Distrito Federal, de benefício fiscal ou eliminação direta ou indireta da respectiva carga tributária, com inobservância da legislação federal que regula a celebração de acordos exigidos para tal fim, e sem que haja aplicação das sanções nela previstas, fica o Poder Executivo autorizado a adotar medidas similares de proteção à economia paranaense”.
Nas precisas palavras do STF, “o dispositivo da referida lei estadual traduz, em verdade, permissão para que o Estado do Paraná, por meio do Poder Executivo, desencadeie a denominada ‘guerra fiscal’” restando, portanto, “caracterizada, em princípio, a ofensa ao disposto no art. 155, § 2.º, XII, g, da CF” (ADI 3.936 MC/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 19.09.2007).
A necessidade de edição de convênio para a concessão de benefícios fiscais de ICMS sempre foi considerada um verdadeiro dogma na jurisprudência brasileira, de forma que, em todos os casos em que o benefício foi outorgado sem a prévia celebração de convênio e a questão foi submetida ao Judiciário, a decisão foi invariavelmente a declaração de inconstitucionalidade da norma concessiva.
Contudo, em maio de 2010, o Supremo Tribunal Federal surpreendeu ao ratificar uma concessão de benefício fiscal do tributo sem necessidade de convênio autorizativo. O caso objeto de discussão era uma lei paranaense que concedia isenção do ICMS nas contas de água, luz, telefone e gás utilizados por templos de qualquer culto. Registre-se que a situação não era abrangida pela imunidade religiosa, uma vez que os contribuintes de direito do tributo seriam as respectivas concessionárias e não a igreja, mera consumidora do serviço (de água ou telefone) ou da mercadoria (gás ou energia elétrica). Assim, a hipótese era de incidência do ICMS, mas com dispensa do pagamento (isenção), de forma a desonerar o templo de qualquer culto.
O STF entendeu inexigível a celebração de convênio, porque a concessão de isenção a templo de qualquer culto não tem aptidão para deflagrar guerra fiscal ou gerar risco ao pacto federativo. Por óbvio, o Estado do Paraná não editou a lei visando a atrair para o seu território todas as igrejas em detrimento dos demais Estados e do DF. Assim, tendo em vista a remansosa doutrina no sentido de que a exigência de acordo visa a evitar guerra fiscal, e o entendimento de que, no citado caso, não havia risco de deflagração de conflito, o Tribunal entendeu ser desnecessária a submissão da matéria ao CONFAZ.
Adotando este raciocínio no Voto que conduziu o julgamento unânime do Plenário do STF, o Ministro Marco Aurélio (Relator) afirmou que “a proibição de introduzir-se benefício fiscal, sem o assentimento dos demais estados, tem como móvel evitar competição entre as unidades da Federação e isso não acontece na espécie”. Sintetizando o posicionamento, a ementa do Acórdão foi lavrada atestando que “longe fica de exigir consenso dos Estados a outorga de benefício a igrejas e templos de qualquer crença para excluir o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços nas contas de serviços públicos de água, luz, telefone e gás” (ADI 3.421/PR).
A decisão pode ser considerada “revolucionária”, de forma que, em provas de concursos públicos, certamente aparecerão questões abordando a matéria de, basicamente, duas formas: a) citando situação idêntica ao caso julgado, afirmando não ser necessária a formalização de convênio autorizativo para a exclusão do ICMS das contas dos serviços públicos de água, luz, telefone e gás; e b) abordando genericamente a desnecessidade de formalização de convênio autorizativo para a concessão de benefício fiscal de ICMS quando o benefício não tenha aptidão para deflagrar guerra fiscal ou para gerar risco ao pacto federativo.
Basicamente, três diferentes institutos jurídicos podem excepcionar a regra, que é o pagamento do tributo. São eles: a não incidência (que abrange as imunidades); a isenção; e a fixação de alíquota zero.
Sob o aspecto jurídico, o fenômeno da incidência está ligado à ocorrência na realidade fática da hipótese abstratamente prevista na lei tributária como necessária e suficiente para o surgimento da obrigação tributária (CTN, art. 114).
Assim, a não incidência refere-se às situações em que um fato não é alcançado pela regra da tributação. Tal fenômeno pode decorrer, basicamente de três formas:
a) o ente tributante, podendo fazê-lo, deixa de definir determinada situação como hipótese de incidência tributária.
A título de exemplo, pode-se imaginar que um Estado, tendo competência constitucional para instituir o imposto sobre transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos, cria o tributo por meio de lei que prevê, como fato gerador do tributo, apenas os casos envolvendo bens imóveis. Nessa hipótese, a doação de um bem móvel não é idônea a fazer nascer a obrigação tributária, de forma que não ocorre a subsunção do fato à norma. Portanto, não há incidência tributária.
b) o ente tributante não dispõe de competência para definir determinada situação como hipótese de incidência do tributo, uma vez que a atribuição constitucional de competência não abrange tal fato.
É o caso da propriedade de uma bicicleta, que, por não ser veículo automotor, não é fato idôneo para ensejar o nascimento de obrigação do pagamento do IPVA.
c) a própria Constituição delimita a competência do ente federativo, impedindo-o de definir determinadas situações como hipóteses de incidência de tributos. Neste caso, o próprio desenho das competências tributárias fica redefinido de forma a obstar a própria atividade legislativa da pessoa tributante. Trata-se do instituto da imunidade.
Nos dois primeiros casos, é lídimo dizer que ocorreram situações de não incidência pura e simples, também denominada não incidência tout court por parte da doutrina. Na última hipótese, tem-se uma não incidência constitucionalmente qualificada, que configura a própria definição de imunidade.
A isenção consiste na dispensa legal do pagamento do tributo. Assim, o ente político tem competência para instituir o tributo e, ao fazê-lo, opta por dispensar o pagamento em determinadas situações.
Pela importância e peculiaridades dos institutos da imunidade e da isenção, o aprofundamento dos conceitos e da diferenciação entre ambos será feito no tópico a seguir (2.13.2).
Nos casos de alíquota zero, o ente tributante tem competência para criar o tributo – tanto que o faz –, e o fato gerador ocorre no mundo concreto, mas a “obrigação tributária” dele decorrente, por uma questão de cálculo, é nula.
Poder-se-ia perguntar o que levaria o legislador a instituir um tributo com alíquota igual a zero. Na realidade, os casos de alíquota zero normalmente se referem aos tributos regulatórios (II, IE, IPI e IOF), que, conforme já estudado, podem ter suas alíquotas alteradas por ato do Poder Executivo. Em determinados momentos, querendo incentivar certa atividade, o Presidente da República pode optar por diminuir a alíquota de um destes tributos a zero (desde que esse percentual esteja dentro dos limites estipulados em lei).
A título de exemplo, é normal que a alíquota do imposto de exportação da imensa maioria das mercadorias seja reduzida a zero, como parte da política de incentivo à exportação.
Em resumo, os quatro casos que resultam no não pagamento do tributo são os seguintes:
As imunidades são limitações constitucionais ao poder de tributar consistentes na delimitação da competência tributária constitucionalmente conferida aos entes políticos.
Para ajudar na compreensão, pode-se imaginar um conjunto em que estejam incluídos todos os veículos automotores licenciados no Estado do Rio de Janeiro.
O art. 155, III, da CF, ao conferir aos Estados a competência para instituir o imposto sobre a propriedade de veículos automotores, acaba por afirmar que o Estado do Rio de Janeiro tem competência para criar IPVA sobre os veículos integrantes do conjunto proposto.
Agora, atente-se para a regra constante no art. 150, VI, a, da CF. Ela impede que os entes tributantes instituam impostos sobre patrimônio, renda e serviços uns dos outros. Como consequência, o Estado do Rio de Janeiro não pode instituir IPVA sobre veículos que, mesmo licenciados dentro do seu território, pertençam aos Municípios, a outros Estados, ao Distrito Federal ou à União.
O desenho da competência tributária do Estado do Rio de Janeiro está, portanto, alterado. Perceba-se que o conjunto de veículos automotores pertencentes a entes federados e licenciados no Rio de Janeiro é subconjunto do primeiro conjunto proposto, este integrado por todos os veículos automotores licenciados no Estado.
Assim, a visualização gráfica da delimitação da competência do Estado do Rio de Janeiro é alterada, o que demonstra com precisão que as normas imunizantes são regras que atuam no âmbito da delimitação de competência, e não no seu exercício.
Nessa linha, no concurso para Técnico da Receita Federal (Área Tributária e Aduaneira), realizado em 2006, a ESAF propôs uma questão em que constava a seguinte afirmativa: “A Constituição, ao definir a competência, excepciona determinadas situações que, não fosse a imunidade, estariam dentro do campo da competência, mas por força da norma de imunidade, permanecem fora do alcance do poder de tributar”.
A assertiva é verdadeira, pois, como se percebe no exemplo proposto, se não fosse a regra imunizante, os veículos automotores pertencentes aos entes políticos estariam inseridos no campo da competência do Estado do Rio de Janeiro, mas, em virtude da imunidade, não estão sujeitos ao poder de tributar do Estado.
Aliás, este raciocínio traz a mais essencial diferenciação entre isenção e imunidade.
A isenção opera no âmbito do exercício da competência, enquanto a imunidade, como visto, opera no âmbito da própria delimitação de competência.
Ainda utilizando o exemplo citado, imagine-se um outro subconjunto do grande conjunto composto pelos veículos automotores licenciados no Estado do Rio de Janeiro. O subconjunto agora proposto é composto por veículos adaptados pertencentes a pessoas portadoras de deficiências físicas que exijam adaptação dos respectivos automóveis.
Pergunta-se: o Estado do Rio de Janeiro tem competência para instituir IPVA incidente sobre a propriedade dos veículos integrantes desse novo subconjunto?
A resposta é SIM, pois não há qualquer regra constitucional excetuando tal subconjunto.
Imagine-se, agora, que o Estado do Rio de Janeiro editou lei instituindo isenção de IPVA para as pessoas que possuem veículos adaptados às suas deficiências físicas.
Pergunta-se: o Estado do Rio de Janeiro continua possuindo competência para tributar tais veículos?
A resposta é SIM. O Estado continua possuindo competência, só que resolveu não exercê-la, dispensando o pagamento do IPVA incidente sobre os veículos integrantes do novo subconjunto.
Perceba-se que o desenho da competência do Estado não se altera com a concessão de isenção, pois, como afirmado, a isenção opera no exercício e não na delimitação da competência.
A consequência da diferença essencial entre imunidade e isenção é que, como a imunidade delimita uma competência constitucionalmente atribuída, é sempre prevista na própria Constituição, pois não se pode criar exceções a uma regra numa norma de hierarquia inferior àquela que estatui a própria regra. Já a isenção está sempre prevista em lei, pois atua no âmbito do exercício legal de uma competência.
A situação proposta poderia ser graficamente representada da seguinte forma:
Em face da diferenciação, é importante ressaltar que não importa como o texto constitucional foi redigido: se impede a cobrança de tributo, limitando a competência tributária, o caso é de imunidade.
Ressalte-se que a Constituição Federal usa diversas terminologias para se referir às imunidades, embora em nenhum momento em que estatui regras tributárias use a própria palavra imunidade. Mas, como ressaltado, não importa a terminologia usada, se a limitação consta da própria Constituição, trata-se de uma imunidade.
Como exemplo curioso, o art. 195, § 7.º, da CF/1988 estatui que “são isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei”.
Apesar de o dispositivo prever que os requisitos para que as entidades mencionadas gozem do benefício serão estipulados em lei, o caso é de imunidade e não de isenção, pois é a própria Constituição Federal de 1988 e não a lei que prevê a impossibilidade de cobrança do tributo.
Nessa linha, são pertinentes as seguintes palavras do Supremo Tribunal Federal (grifou-se):
“A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal já identificou, na cláusula inscrita no art. 195, § 7.º, da Constituição da República, a existência de uma típica garantia de imunidade (e não de simples isenção) estabelecida em favor das entidades beneficentes de assistência social. Precedente: RTJ 137/965. Tratando-se de imunidade – que decorre, em função de sua natureza mesma, do próprio texto constitucional –, revela-se evidente a absoluta impossibilidade jurídica de a autoridade executiva, mediante deliberação de índole administrativa, restringir a eficácia do preceito inscrito no art. 195, § 7.º, da Carta Política, para, em função de exegese que claramente distorce a teleologia da prerrogativa fundamental em referência, negar, à entidade beneficente de assistência social que satisfaz os requisitos da lei, o benefício que lhe é assegurado no mais elevado plano normativo” (STF, 1.ª T., RMS 22.192/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 28.11.1995, DJ 19.12.1996, p. 51.802).
Diversas são as classificações a que a doutrina tributarista submete o instituto da imunidade tributária, tendo em vista os critérios, parâmetros e características que individualizam os regimes jurídicos adotados pelo legislador constituinte quando este resolve vedar a tributação de certo fato.
Nesta obra, serão analisadas as mais importantes classificações, assim consideradas aquelas que contribuírem didaticamente com a análise sistemática do quadro traçado pela Constituição e, na linha de um dos objetivos desta obra, aquelas que tenham sido abordadas nas provas dos concursos para provimento de cargos públicos. Seguindo essas diretrizes, passa-se à análise das classificações.
O legislador constituinte, ao estabelecer as imunidades, toma como base parâmetros que podem levar em consideração as pessoas beneficiadas pela exceção (imunidades subjetivas); os objetos cuja tributação é impedida (imunidades objetivas) ou as duas coisas ao mesmo tempo (imunidades mistas).
A título de exemplo, a regra imunizante que impede a tributação de patrimônio, renda ou serviços dos entes políticos (CF, art. 150, VI, a) é subjetiva (ou pessoal), pois um veículo pertencente ao Município de São Paulo não pode ser tributado por conta do ente a que pertence. Se tal veículo for vendido a um particular, automaticamente passa a ser sujeito ao IPVA, o que demonstra que não é o bem que é imune, mas sim a pessoa que é sua proprietária.
Como exemplo de imunidade objetiva, pode-se citar a que protege os livros, jornais periódicos e o papel destinado à sua impressão (CF, art. 150, VI, d). Não importa quem é o proprietário do livro, quem vende, quem compra. Se é livro, é imune.
Por fim, um bom exemplo de imunidade mista é aquela que impede a incidência do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) sobre pequenas glebas rurais, assim definidas em lei, quando as explore o proprietário que não possua outro imóvel (CF, art. 153, § 4.º, II).
Tal imunidade é mista porque depende de aspectos subjetivos (o proprietário possuir apenas um imóvel) e objetivos (a área da pequena gleba estar dentro dos limites da lei).
Nessa linha, a ESAF, no concurso para Técnico da Receita Federal realizado em 2006, propôs as seguintes assertivas: “As imunidades podem ser definidas em função de condições pessoais de quem venha a vincular-se às situações materiais que ensejariam a tributação”; “As imunidades podem ser definidas em função do objeto suscetível de ser tributado”.
Ambas as assertivas são corretas, a primeira versando sobre as imunidades subjetivas; a segunda, sobre as objetivas.
É importante registrar que a imunidade subjetiva não exime as pessoas por ela protegidas da condição de responsáveis pela retenção de tributo, conforme designado por lei. Assim, se ente imune ao imposto de renda faz pagamento tributável a pessoa não imune, deverá efetuar a retenção na fonte e o respectivo recolhimento nos termos legais.
São ontológicas as imunidades que existiriam mesmo sem previsão expressa do texto constitucional, uma vez que são fundamentais para atendimento ao princípio da isonomia (principalmente do seu corolário, o princípio da capacidade contributiva) e ao pacto federativo. Nessa linha, são consideradas ontológicas as imunidades das instituições de educação e assistência social sem fins lucrativos (CF, art. 150, VI, c), tendo em vista sua falta de capacidade contributiva, uma vez que seus parcos recursos devem ser destinados à sua importante atividade-fim. Também é ontológica a imunidade recíproca (CF, art. 150, VI, a), por se configurar em cláusula protetiva do pacto federativo.
São políticas as imunidades que visam à proteção de outros princípios em virtude de uma opção política do legislador constituinte, como é o caso da imunidade dos templos de qualquer culto e dos livros, jornais, periódicos e do papel destinado à sua impressão.
No concurso para provimento de cargos de Analista em Planejamento, Orçamento e Finanças da SEFAZ/SP, realizado em 2009, a ESAF, apesar de não exigir o conhecimento dos detalhes destas espécies de imunidade, abordou a matéria ao propor questão cujo enunciado era “As imunidades tributárias são classificadas em:” e a alternativa correta grafava “ontológicas e políticas”.
A Constituição Federal, ao estabelecer uma regra imunizante, pode fazê-lo de forma geral, estabelecendo vedações a todos os entes tributantes, abrangendo diversos tributos. Assim ocorre com o famoso art. 150, VI, da CF/1988, que impede que qualquer ente político institua qualquer imposto sobre patrimônio, renda e serviços das diversas entidades previstas nas alíneas a, b e c, bem como sobre os objetos constantes na alínea d (livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão). São hipóteses de imunidades genéricas (ou gerais).
A generalidade das vedações decorre da importância dos valores protegidos pela regra imunizante, como é o caso do pacto federativo (na imunidade recíproca da alínea a), da liberdade religiosa (na imunidade de templos de qualquer culto prevista na alínea b) e da liberdade de expressão e de informação (na imunidade cultural da alínea d).
Em outros casos, o legislador restringe a aplicação da imunidade a um determinado tributo de competência de determinada pessoa política, de forma a atender a certa conveniência ou a determinado e restrito valor. Como exemplos, podem ser citadas as imunidades ao IPI e ao ICMS nas operações de exportação (previstas, respectivamente, nos arts. 153, § 3.º, III e 155, § 2.º, X, a, ambos da CF/1988) e a imunidade ao ITBI que beneficia diversas operações societárias (CF/1988, art. 156, § 2.º, I). Tais imunidades são classificadas como específicas (ou tópicas).
No ordenamento jurídico brasileiro, a regra é que as imunidades estejam expressamente previstas no texto constitucional. Não obstante, entende a doutrina que certas imunidades existiriam implicitamente, mesmo que não estivessem expressas na Constituição.
Assim, as imunidades expressas no texto são consideradas explícitas (ou expressas). Aquelas que existem como decorrência dos princípios constitucionalmente consagrados, mas não estejam previstas no texto constitucional são consideradas implícitas.
É difícil imaginar um exemplo de imunidade implícita no direito brasileiro, tendo em vista o modelo de Constituição analítica adotado no País. Contudo, para entender bem a classificação, é possível citar um famoso exemplo, colhido do direito norte-americano.
Não há, na sintética Constituição dos Estados Unidos da América, qualquer dispositivo estatuindo expressamente a denominada imunidade tributária recíproca (proibição de que os entes políticos que compõem a federação tributem patrimônio, renda ou serviços uns dos outros). No entanto, em 1971, o governo central criou um banco nacional, com o objetivo de regular o comércio e a moeda. O Estado de Maryland tributou a filial deste banco e o procedimento foi contestado judicialmente, dando ensejo à histórica decisão da Suprema Corte (McCulloch vs. Maryland) na qual o juiz Marshall afirmou que “o poder de tributar envolve o poder de destruir”, não se podendo permitir que os serviços e instrumentos de uma esfera de governo fiquem à mercê de outra.
A situação demonstra que, no direito norte-americano, a imunidade tributária recíproca é implícita, decorrendo diretamente do pacto federativo. Conforme afirmado, no direito brasileiro, não há um exemplo claro já reconhecido judicialmente, o que não impede que a construção doutrinária e jurisprudencial venha atestar em casos concretos imunidades implícitas relativas ao acesso a determinados serviços, ao exercício de profissões etc.
Percebe-se que as imunidades classificadas anteriormente como políticas são sempre explícitas e as imunidades ontológicas, em virtude de existirem por si mesmas, como decorrência dos princípios basilares constantes da Constituição, podem ser explícitas ou implícitas.
A imunidade é considerada incondicionada quando a norma constitucional que a prevê gera seus efeitos independentemente de regulamentação, possuindo eficácia plena e aplicabilidade imediata. Como exemplos, podem ser citadas as imunidades recíproca e cultural (CF, art. 150, VI, a e b).
Quando a norma imunizante é classificada como de eficácia limitada, ficando a sua aplicabilidade e o gozo do benefício a depender da edição de regulamentação infraconstitucional, a imunidade é considerada condicionada.
Como exemplos, têm-se as imunidades das instituições de educação e assistência social sem fins lucrativos que somente gozam do benefício se cumprirem os requisitos estabelecidos em lei complementar, conforme detalhado no item 2.13.4.3.
Conforme analisado, sempre que a Constituição Federal diretamente limita a competência tributária atribuída aos entes políticos, está conferindo uma imunidade.
Teoricamente, as regras imunizantes podem suprimir a competência tributária para quaisquer espécies tributárias, bastando a respectiva previsão constitucional.
Na atual Carta Magna, a título de exemplo, existem imunidades relativas a taxas (CF, art. 5.º, XXXIV), impostos (CF, art. 150, VI), e contribuições para a seguridade social (CF, art. 195, § 7.º).
As mais importantes imunidades, contudo, são aquelas constantes do art. 150, VI, da CF/1988. Estas, como deixa claro a redação constitucional, são aplicáveis exclusivamente aos impostos.
No seu art. 150, VI, a, a CF proibiu União, Estados, Distrito Federal e Municípios de instituírem impostos sobre patrimônio, renda ou serviços uns dos outros.
Trata-se de cláusula pétrea, por configurar importante regra protetiva do pacto federativo ao impedir a sujeição de um ente federativo ao poder de tributar do outro (ADI 939).
Conforme já ressaltado, a imunidade recíproca somente se aplica aos impostos, não impedindo, a título de exemplo, que um Município institua taxa pela coleta domiciliar de lixo, cobrando-a, também, pelo serviço prestado nas repartições públicas federais e estaduais localizadas em seu território.
Por força do disposto no § 2.º do citado art. 150, a imunidade prevista é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados às suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes. Parte da doutrina denomina a regra de extensão de “imunidade tributária recíproca extensiva”.
Percebe-se que a extensão da imunidade tributária recíproca às autarquias e fundações públicas não lhes confere uma garantia de igual amplitude àquela conferida aos entes políticos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios).
A diferença fundamental é que, nos precisos termos constitucionais, para gozar da imunidade, as autarquias e fundações precisam manter seu patrimônio, renda e serviços vinculados às suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes, restrição esta não aplicável aos entes políticos.
Assim, se a União der a um imóvel uma utilidade totalmente desvinculada de suas finalidades essenciais (instalação de um campo de golfe, por exemplo), não perderá a imunidade tributária.
Já se o INSS, autarquia federal, fizer a mesma coisa, a imunidade estará afastada, voltando os fatos a caracterizar “fatos geradores” dos tributos porventura cabíveis.
Outro ponto de fundamental importância é que o Supremo Tribunal Federal entende que a imunidade tributária recíproca, prevista no art. 150, VI, a, da CF abrange as empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviços públicos de prestação obrigatória e exclusiva do Estado (RE 407.099/RS e AC 1.550-2). Esse entendimento é interessantíssimo, pois a extensão da imunidade recíproca a entes da administração indireta só abrange, expressamente, as autarquias e fundações públicas.
Além disso, o § 3.º, também do art. 150, expressamente exclui da imunidade o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com a exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário.
A primeira novidade surgiu quando o STF apreciou a possibilidade de extensão da imunidade recíproca à Empresa de Correios e Telégrafos.
A conclusão a que facilmente se chegaria em face dos dispositivos constitucionais citados seria que a ECT, por ser uma empresa pública (e não uma autarquia ou fundação pública) e por cobrar preços ou tarifas por seus serviços, não estaria protegida pela cláusula imunizante.
Todavia, o STF entendeu que a ECT, por prestar serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do Estado, goza da imunidade, pois, ainda no entender da Corte Suprema, a extensão prevista no citado § 2.º do art. 150 aplica-se às Empresas Públicas.
Daquele julgamento, colhe-se importante excerto, extraído do voto do Ministro Carlos Velloso, afirmando o seguinte (grifou-se):
“Visualizada a questão do modo acima – fazendo-se a distinção entre empresa pública como instrumento da participação do Estado na economia e empresa pública prestadora de serviço público – não tenho dúvida em afirmar que a ECT está abrangida pela imunidade tributária recíproca (CF, art. 150, VI, a), ainda mais se considerarmos que presta ela serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do Estado, que é o serviço postal, CF, art. 21, X (Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit., p. 636).
Dir-se-á que a Constituição Federal, no § 3.º do art. 150, estabelecendo que a imunidade do art. 150, VI, a, não se aplica: a) ao patrimônio, à renda e aos serviços relacionados com a exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados; b) ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário; c) nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel, à ECT não se aplicaria a imunidade mencionada, por isso que cobra ela preço ou tarifa do usuário.
A questão não pode ser entendida dessa forma. É que o § 3.º do art. 150 tem como destinatário entidade estatal que explore atividade econômica regida pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário. No caso, tem aplicação a hipótese inscrita no § 2.º do mesmo art. 150” (STF, 2.ª T., RE 407.099/RS, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 22.06.2004, DJ 06.08.2004, p. 62).