Log In
Or create an account ->
Imperial Library
Home
About
News
Upload
Forum
Help
Login/SignUp
Index
Copyright © G. S. Silva
Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos, incluindo ainda o uso da internet, sem a permissão expressa da Editora Viseu, na pessoa de seu editor (Lei nº 9.610, de 19.2.98).
Editor: Thiago Domingues Regina
Projeto Editorial: Vanessa Manso Bueno
Coordenação Editorial: Giselle Rocha
Revisão: Izabella Domingues Machado
Copidesque: Rafaela Cunha
Versão Digital: Amanda Tupiná
Capa: Vanessa Manso Bueno
e-ISBN 978-65-254-0961-0
Todos os direitos reservados, no Brasil, por
Editora Viseu Ltda.
contato@editoraviseu.com
www.editoraviseu.com
Dedicatória
Para Manoel R. da Silva Filho.
Para Andrea B. dos Santos da Silva.
A tempestade se agravava à medida que o tempo passava. Raios riscavam os céus num abrir e fechar de olhos. O tamborilo nas janelas ecoava por toda a casa. Após um feixe de luz, que se incidiu a poucos metros, um aterrorizante estrondo retumbou pela rua.
BUM!
— AH! – bramou Paula.
— Caramba! – exclamou Marie. – Como você é medrosa.
— Eu não sou medrosa – retorquiu a irmã, com lágrimas escorrendo pelo rosto.
Marie levou as mãos à boca para abafar o riso. O rosto de Paula corou. Parecia que havia virado um balão vermelho, prestes a estourar.
— Essa menina irá completar treze anos daqui a três dias e ainda sente tanto medo toda vez que começa a chover. Tenho receio de um dia deixá-la sozinha em casa.
Só de ouvir as palavras “sozinha” e “chuva”, o estômago de Paula se revirou. Mal queria pensar em um dia ficar sozinha em casa com uma tempestade dessas.
— Acalma-se, Verônica. Cada um deve enfrentar seus medos no tempo certo. Não podemos nos precipitar. Ela pode acabar se traumatizando. Você, por exemplo, lembra da vez que o professor Walter nos fez reunir em grupos, em prol de apresentar as guerras europeias do século XVIII e XIX? Assim que você tomou posse da palavra e começou a pronunciar o nome de Napoleão…
— Sim, lembro-me muito bem desse importuno. Mal pude falar a despeito do maior déspota republicano francês sem desmaiar. Acabei parando na ala hospitalar.
— Viu? Não levava jeito e tinha medo de apresentações. E olha você hoje! Foi eleita deputada de nosso estado, com o segundo maior número de votos e com o melhor discurso e campanha.
— E teria sido a primeira se aquele demagogo safado…
Os dois adentram no quarto das gêmeas.
— Pai – disse Paula –, Marie fica zombando de mim. Disse que sou medrosa. Eu não sou, não é? – terminou ela, que mal podia se expressar, em razão dos soluços que eclodiram com o choro.
— Claro que não – disse o Sr. Milton, revolvendo seus dedos aduncos, cansados de tanto trabalhar na oficina e com diversos calombos em detrimento de consertar motores todos os dias com diversos tipos de ferramentas nos cabelos ruivos e longos de Paula, com a intenção de acalmá-la. Então ele retoma: – Você foi apenas… hum… surpreendida.
— Doze anos de surpresa? – indagou Marie, indignada.
O Sr. Milton franziu a testa e a olhou rispidamente. Logo, imediatamente, ela se desculpou.
Em questão de aparência, uma das poucas coisas que as diferenciava era o corte de cabelo. Sendo o de Paula longo e encaracolado, e o de Marie um chanel, quase na altura das orelhas. Ambas tinham sardas nas bochechas, olhos castanho-claros, peles brancas como se tivessem feito greve de sol (Marie nem tanto, pois gostava de brincar na rua), usavam macacões azul-claros com algumas partes em branco, meias exageradamente grandes e listradas e uma camisa listrada por baixo do macacão nas cores preto e vermelho, para não despir os ombros.
Da Doutora Helena Aurora dos Anjos
A jovem estudante, do colégio Guilherme de Almeida, Paula Milton Garcia, de 11 anos, tem a minha vedação, direto do hospital Águas Novas, de participar da competição escolar devido à apresentação de uma doença mental rara que desembarcou em nosso tempo.
Esportofobia.
Isso acarreta ao paciente diversas séries de venetas, vertigem alastrada, náuseas, vômitos e, principalmente, convulsões febris.
Em suma, a Srta. Paula deve repousar em períodos esportivos, longe de quadras, de campos e de corridas.
Do outro lado do espelho, Marie tinha uma personalidade forte e ousada. Tinha um espírito de Hércules, uma coragem de Perseu e uma simpatia de Hades. Uma coisa que não herdou de seus pais foi a facilidade em lidar com as responsabilidades e com os problemas. Ela sempre admirou a mãe por seus feitos corajosos: falar em público em seus discursos, enfrentar seus concorrentes sem titubear e dizer cada palavra com eloquência e prosódia.
— Por que todo ano a gente passa o Natal na casa do vovô? – perguntou Marie, impaciente.
— Porque ele é a nossa família – respondeu o Sr. Milton. – E o vovô adora que passemos o Natal com ele. Não sei o porquê de você estar reclamando. Todo ano tenho que me esforçar pra desvencilhá-las da casa dele, pois as histórias imaginárias dele realmente lhes cativam.
— São reais, papai! – exclamou Paula.
— Que nem os seus atestados – retrucou a Sra. Verônica, com uma pequena risada invadindo seus lábios. – E, por falar no vovô, já estamos atrasados.
As gêmeas haviam subido para o quarto antes de partirem para a casa do avô. Cada uma pretendia vestir sua roupa predileta. Inclusive o tênis, o qual tinham um gosto pouco diferente entre si.
— Usarei meu novo All Star branco – comentou Marie.
— Branco de novo? – perguntou Paula. – Seus pés vão acabar virando blocos de neve. Por que não usa algo parecido com os meus?
Marie sempre adorou usar roupas brancas. Em geral, sempre gostou de tudo que fosse branco (desastroso para quem lava suas roupas). Um dia, quando ainda mal completara oito anos, pediu a seu pai que lhe desse um cachorro branco, para combinar com o seu cavalo branco, o qual pediria no seu aniversário.
— Os seus são muito esquisitos – respondeu Marie, apontando com o dedo indicador direito para o par de tênis da irmã. Era demasiado preto, com a parte da sola branca, porém foi preenchida por nomes e desenhos em canetinha roxa.
— Esquisito é esse seu cabelo – rebateu Paula, batendo com o pé no chão assoalhado. – Por que não ilustra esse capô de fusca enferrujado? – finalizou Paula, referindo-se à franja bem-feita que encobertava a testa de Marie.
— Já viu o seu? – perguntou Marie, com os punhos cerrados e de cara fechada. – Parece um ninho de passarinhos, sempre bagunçado.
— CALA BOCA, CAPACETE DE ALIENÍGENA!
— MULHER DA SELVA!
Com um solavanco, Marie voou para cima de Paula. As duas começaram a rolar pelo chão, com uma puxando o cabelo da outra. Paula nunca tivera medo da irmã, mesmo sabendo que era mais fraca. Inspirou um pouco de alento e força, dos quais utilizou para dar alguns golpes nas ilhargas de Marie.
— Por que essa demora? O que será que estão fazendo lá em cima? – reclamou a Sra. Verônica.
— Acalme-se, querida – disse o Sr. Milton. – Irei verificar o porquê de elas estarem demorando tanto.
O Sr. Milton deixou as chaves na ignição e sua esposa no banco dianteiro. Abriu a porta da garagem que dava acesso à cozinha. Passou por ela e se adiantou na sala, a qual era debaixo do quarto das garotas. Por um instante, passou a pensar que ouviu uns ruídos e algumas pancadas no cômodo acima. Acelerou os passos. Galgou dois degraus por vez. Por fim, chegou na porta do quarto que, antes mesmo de abrir, já escutava a gritaria, como dois animais selvagens brigando por comida.
— Ai, meu Deus! – exclamou o Sr. Milton ao abrir a porta, pois se espantou ao ver as duas se agarrando. – Parem já com isso! – ordenou enquanto tentava separá-las. – O que pensam que estão fazendo?!
— Ela estava caçoando do meu cabelo – disse Paula, em lágrimas outra vez; não de tristeza, mas de ódio e revolta.
— Foi ela quem começou! – protestou Marie.
— Não foi! – replicou Paula.
E quase no mesmo instante, uma partiu pra cima da outra. Teriam se agarrado outra vez se o Sr. Milton não tivesse impedido.
— Não quero saber quem começou a briga – disse ele num tom severo. – Hoje é um dia especial para nossa família. E, sem dúvida, uma ocasião sem brigas.
Paula fez uma cara duvidosa para o pai e disse:
— Logo, existem dias para brigar, papai? – perguntou a garota. – Então posso bater nela no nosso aniversário?
— Eu que vou encher sua cara de sopapos – disse Marie, quase avançando em uma investida.
— Ninguém vai bater na outra no aniversário ou em qualquer outra data. O que quero dizer é…
“Fon!”
Ouviu-se a buzina do carro. Era Verônica, como que fazendo um sinal para que se apressassem.
— Vamos logo! Já estamos muito atrasados – esbravejou ela, impaciente.
— Quando voltarmos, conversaremos sobre isso – disse o Sr. Milton. – Calcem os tênis e levem um pente para arrumar ambos os cabelos. Parece até que passou um furacão neles. Se sua mãe vir isso, estarei, sem sombra de dúvida, morto.
Os três rumaram em direção ao corredor, que dava acesso às escadas para a sala. Nas paredes, havia diversos quadros da família por toda a parte. O mais bonito, sem dúvida, era o maior: oval, bordado, não só de um pintura amarela-girassol, mas de alguns ornamentos que simbolizavam os integrantes da casa. Esse quadro fora dado de presente para a família no primeiro Natal pós-nascimento das gêmeas, que nasceram no mesmo dia do feriado. Fora o próprio avô que lhes presenteou. Onde dissera:
— A pequena brava aqui – dizia ele, olhando para o berço de Marie – será muito valente e destemida. Nunca se acovardará. Terá um coração de leão. Assim como a mãe.
O Sr. Milton deu algumas tosses de preocupação no canto do berçário.
— Ah! Mas essa aqui – continuou enquanto colocava Paula no colo – será meiga, doce, gentil… hum… e um pouco assustada. – Ele deu uma pequena espiada para o Sr. Milton por trás dos óculos redondos e retomou: – Ela é bem parecida com você, Milti – e finalizou com um sorriso simpaticíssimo.
— Já falei para a Verônica fazê-lo parar de chamar assim – pensou o Sr. Milton. Não tinha muitas coisas que lhe irritavam, exceto não lhe chamarem pelo nome, o qual tinha tanto orgulho de ter herdado de seu pai. No colégio, Verônica sempre lhe chamava de Mil ou Ton, como um apelido carinhoso. Isso o fazia ficar amargado, porque “Milton” soava com maior respeito. Não essas abreviações ridículas. E o que ele poderia fazer? Reclamar? Murmurar? Acabara de conhecer a garota dos seus sonhos. Não poderia simplesmente dizer a ela:
— É Milton. Apenas Milton. M, i, l, t, o, n. Entendeu? Não sou seu cachorrinho para me colocar apelidos tão enfadonhos.
Com certeza, hoje, estaria morando sozinho, chuchando o polegar e trabalhando em sua antiga oficina, pois, afinal, foi com a ajuda da esposa que ele conseguiu abrir seu próprio negócio. Sabia consertar carros como ninguém. Entendia tudo de peças, modelos de carros, ferramentas adequadas para cada tipo de serviço, etc.
Os três estavam à porta do carro. O Sr. Milton abriu a porta para as garotas. Ambas se sentaram nas janelas, o mais afastadas possível uma da outra e de caras bem fechadas.
— O que aconteceu lá em cima? – indagou Verônica, com uma cara que assustaria uma selva repleta de panteras.
As gêmeas se entreolharam com um pavor nos olhos. Sabiam que lidar com o pai e com a mãe eram coisas totalmente diferentes. O Sr. Milton gostava de conversar baixinho, acalmar a situação e sempre achar uma oportunidade de entender ambos os lados. Todavia, do outro lado, Verônica era como uma fornalha ardente, sempre em chamas e consumindo tudo o que viesse pela frente, inclusive, por vezes, o próprio marido. A mulher tinha um instinto direto da selva, conseguia detectar problemas (vasos quebrados, roupas jogadas pelo chão, copos, que mal caindo, já os ouvia quebrando, tempo demais no banheiro, entre outros) a quilômetros de distância.
— Nada não, mãe – respondeu Marie.
— Então como há um talho, feito à unha, no rosto da sua irmã? – retorquiu Verônica. Essa mulher tinha um olho de águia.
— Foi o Silver – disse Paula, mencionando o pequeno cachorro da casa. – As garras dele estavam enormes.
— Eu sei – replicou a mãe. – Por isso as cortei antes de ontem. – Verônica tirou o cinto para conseguir virar para trás e encarar as duas. – Vocês estavam brigando, não é? Quando voltarmos da casa do vovô colocarei ambas de castigo e…
— Mamãe, não é justo! – argumentou Paula. – Foi Marie que…
— Não quero saber quem fez o que com a outra para começarem a brigar – interrompeu Verônica, oscilando o olhar bravo para as garotas. – Quando voltarmos, ambas ficarão sem seus computadores e não poderão assistir TV. Tudo isso por um mês. Entenderam?
— Mas… – acudiu Marie.
— Quer aumentar para dois meses?
Ambas consentiram em silêncio.
— Vamos indo – disse Verônica ao marido.
— Sim se… senhora – afirmou Milton, com a voz um pouco trêmula. – Coloquem os cintos.
Enfim, partiram para a casa do avô.
No caminho, Marie apertava o camafeu, cujo próprio avô filigranou. Nele estava representada uma espécie de grande estrela cor-de-âmbar, com diversas asas envolvendo-a, como uma espécie de proteção. Abaixo do corpo celeste, havia algo que lembrava uma espada de dois gumes. Era reluzente, com algumas flores de amendoeira, em relevo, desenhadas nela. No cabo, havia diversos tipos de letras em um idioma totalmente desconhecido, as quais iam se conduzindo de forma espiral até um pouco abaixo do cabo, onde havia, quase indescritível em razão do tamanho do objeto, um leão rugindo para cima. A garota quase nunca se desgrudava do presente. Apenas tirava-o para dormir. Era quase parte do corpo dela.
Paula deu uma olhada para o utensílio da irmã:
— Parece que nunca estraga, não é? – perguntou Paula, levantando o braço esquerdo em prol de mostrar sua pulseira, na qual havia um berloque pendurado. Parecia ser feito pelo mesmo material do camafeu de Marie.
— O meu é mais bonito.
— Claro que não.
Poderia ser um pouco diferente do de Marie, porém não deixava de ser bastante lindo. Ao invés de ter uma grande estrela, havia uma grande árvore centralizada, com uma rama bem frutífera, conquanto que os frutos não fossem homogêneos. Tinha um caule bem espesso, folhas de primavera, verdejantes. Pétalas de rosas choviam sobre ela. E, quase sendo arraigado, um escudo de prata quadrático apoiava-se sobre a árvore. Uma grande águia, a grasnar, dourada era o seu emblema.
— Ambos são bem bonitos – disse o Sr. Milton. – E foram feitos com bastante zelo e cuidado pelo vosso avô.
— É verdade – consentiu Verônica. – Nunca o vi colocando tanto esforço apenas para fazer esses ornamentos.
— Ele nos deu quando estava contando as intrigas dos países Bilim e Tirim, de sua crônica Bérnia – disse Paula.
A forte e a barulhenta chuva transformou-se em uma garoa plácida e calma. Com isso, veio o tédio acompanhar a viagem das gêmeas.
Não há sombra de oliveira que pode nos parar
A luz de nosso eterno amado contemplar
À noite as margaridas choram
As rosas sem ti fanam
— Quem seria esse tal amado? – inquiriu Verônica.
— Péridon! – respondeu Paula, com grande empolgação. – Uma estrela parecida com o nosso Sol. As flores do jardim da princesa Hanidi o contemplam, pois é ele que traz o sustento e o vigor a elas. Dizem que não são as flores que cantam, mas outras criaturas. Mesmo assim, a rainha das flores é alguém de grande importância.
— Como também o grande imperador do deserto prateado – acrescentou Marie –, Ametraton. Com um cetro ornado com rubis e safiras sagradas, ele faz com que toda a areia prateada esteja em seu nome, e os seus súditos se curvem aos seus pés. Em verdade, não houve sequer uma criatura que sobreviveu ao enfrentar o príncipe dos olhos dourados.
— De fato – surpreendeu-se o Sr. Milton –, o avô de vocês é o único que consegue, além de aguçar suas imaginações, por um momento, uni-las em algo que realmente gostem.
A família Garcia se distanciava cada vez mais de sua urbe em direção ao sítio no qual o avô das garotas residia. Prédios, casas, carros, todos os aspectos urbanos sumiam aos poucos. Estrelas apareciam no céu escuro, que logo se tornou iluminado. Uma boiada mugia por trás do cercado. A estrada começou a se desnivelar, em razão do pequeno outeiro que iam subindo. Residências formavam uma espécie de orla iluminária em derredor do monte. A última casa era do avô das garotas, bem no centro do cimo. Esse as aguardava sentado no balanço do grande cedro, o qual fora inserido como um integrante da família desde a infância do bisavô delas.
— Ah, finalmente vocês chegaram! – anunciou ele, felicíssimo.
A escuridão volvia a casa do avô das irmãs. As duas garotas logo foram para o seu devido cômodo, com a cama de Marie à esquerda, e a de Paula à direita. O chão era assoalhado. Havia uma escrivaninha que ambas compartilhavam, com diversos lápis, canetas, desenhos de uma enorme ave de bronze com olhos de fogo, feras aladas, cavaleiros… As mais diversas criaturas fantásticas que uma criança pode engendrar. No centro do quarto, havia uma esplêndida fortaleza, com a mais alta das torres chegando à cintura de Paula que, pela sua idade, não era tão alta. Sua construção foi inspirada por uma das mais diversas estórias do avô.
— Não posso acreditar! – exclamou Paula. – É a fortaleza triunfante do Lorde Hovs. As quatro entradas abóbadas, adornadas com as rosas negras do jardim sagrado localizado no cimo do monte da Aliança. As setes torres do triunfo, representando os sete maiores comandantes dessa dinastia avassaladora.
— Está perfeito! – disse Marie, com os olhos fitados em uma das janelas da fortaleza, analisando todos os pormenores. Ela sempre amou a ordem e a justiça e, de fato, fazia isso com total maestria. Certa vez, em uma viagem com a família, sua mãe as levou para o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista. Só de contemplar a estátua da senhora Imperatriz, Leopoldina, e sua filha, Isabel, Marie não conseguiu resistir à efusão de pensamentos de ser uma comandante de uma nação. Senhora Garcia – dizendo um general, imaginado pela garota, batendo continência a ela. Marie sonhava em ser uma líder: comandar exércitos, ter o préstimo de elaborar uma tática de guerra e levantar uma grande espada como sinal de comando às tropas. Mal sabia ela que… bom, deixarei você descobrir.
Por outro lado, Paula era um pouco mais calma e doce; bastante, se comparar à irmã. Não se impressionava com os tordins, criaturas com olhos azuis, corpos acinzentados com escamas, asas desprovidas de penas, pois à luz do dia submergiam nas águas profundas do rio Janeph. Eram revestidos com uma armadura de bronze e uma cauda com aspecto amedrontador. Estavam sobre os pináculos das torres. Nem tampouco com os vigias sobre as muralhas ou a regularidade perfeita das casas que circuncidavam as torres. Em geral, não a impressionava a fortaleza em si. Porém, sem sombra de dúvida, sua alma, tanto no imaginário quanto na vida real, sobrenadava sobre qualquer campo florido, bosques e florestas e se amigava facilmente com qualquer criaturinha meiga (não era à toa que seu lugar favorito era o Jardim Botânico de São Paulo). Sendo assim, a garota vivia sonhando com a ilha das flores, onde Hanidi vivia. A localização do castelo da princesa no mundo de Tokarisen (outro mundo do avô, porém mais citado e detalhado. Às vezes, parecendo mais lembranças do que estórias) era um pouco diferente do habitual. Ao invés de estar flutuando sobre as águas de um oceano como uma ilha qualquer, ela flutuava, de maneira estática, a muitos quilômetros de altura. Além disso, era orbitada por dezenas ou até milhares de pétalas vermelhas, as quais formavam uma espécie de cúpula. Funcionavam da seguinte maneira: de acordo com os raios emitidos pelo sol, as pétalas abrem uma passagem para que a luz encontre a ilha, como se uma esfera estivesse se abrindo. Ao meio-dia, quando o Sol está localizado exatamente em cima da ilha, é possível avistar completamente o castelo. Porém, à noite, é como se visse um pequeníssimo planeta vermelho no ar. E, embaixo dessa massa de terra flutuante, havia um mar infestado por dragões brancos que adormecem na primavera e saem das águas para voar no inverno. Geralmente são inofensivos. Os corpos deles são alimentados pela aura do frio, ou seja, nenhuma criatura tem a chance de virar presa deles. Todavia, no verão, tornam-se ríspidos e atiçados. Por isso, nessa época do ano, nenhuma criatura mágica ousaria singrar por essas águas.
— Ora, vovô deve ter ficado muito tempo trabalhando nisso – disse Paula.
Após algumas horas de divertimento, as duas resolveram passear um pouco pela casa. Elas andaram de um lado para outro no corredor, indecisas por onde começar. Até que ambas se lembraram que no verão passado tinham feito uma espécie de acampamento no sótão. E, num átimo, ambas saíram em direção às escadas. Foram galgando dois degraus por vez para chegarem mais depressa. Chegando no último andar da casa, havia uma espécie de corda, à frente de uma janela, com uma argola na extremidade para ser puxada. Paula parou bem embaixo do fio:
— Hum. – A garota esticava o braço, franzia a testa e colocava a língua de fora e todos dos mais engraçados gestos para alcançar o objeto.
— Está querendo alcançá-lo ou assustá-lo? – perguntou Marie, com um sutil ar de deboche.
— Ora, cala-se! – respondeu Paula, num tom ríspido. – E me ajude logo a pegá-lo.
— Você é muito baixinha – disse Marie, afastando a irmã com o braço para tentar pegar a argola. – Hum – fez Marie, acompanhada pelos mesmos gestos desajeitados de Paula para alcançar a argola.
— Espero que você se lembre da igualdade de nossas alturas – mencionou Paula, risonha.
— A madame Sherlock tem alguma outra sugestão? – perguntou Marie.
— Vamos pedir para o papai – respondeu Paula.
— Já se esqueceu que o papai, a mamãe e o vovô foram no mercado comprar o peru de Natal?
— E o que nós iremos fazer?
— Bom, a gente pode ir no porão pegar uma vassoura.
— No porão não – disse Paula, assustada.
— Grande seja o Eterno! Como é muito medrosa – afirmou Marie, revirando os olhos.
— Não, não sou – replicou Paula. – Bom… só que… e se tiver uma… uma… aranha-gigante-devoradora-de-cabeças lá embaixo?
— Uma… o quê!? – indagou Marie, rindo. – Vai! vamos, e vamos, e vamos – repetia Marie enquanto agarrava a mão de Paula e a conduzia pelas escadas.
— Ei, por que tenho que ir também? – dizia Paula enquanto relutava para descer as escadas.
— Relaxe. Eu te protejo – falou Marie em um tom fatigo de voz.
— Mas é muito escuro – protestou Paula.
— Valha-nos, poderosas lâmpadas – retorquiu Marie.
A garota estava fazendo demasiado esforço para puxar a irmã, que estava tentando se sentar a cada degrau da escada para dificultar a chegada até a porta do porão.
Agora, as duas estavam diante da enorme porta a qual tinha um formato perfeito de abóbada e uma aparência lúgubre e tenebrosa, como as de um mosteiro abandonado: bastante empoeirada e desgastada. Havia, também, para o terror de Paula, uma teia de aranha no topo da porta. Marie tentara girar a maçaneta, no entanto, foram em vão seus esforços para empurrar.
— Ajude-me aqui – disse Marie à irmã.
— É uma estupidez a gente fazer uma coisa dessas – respondeu Paula, levantando-se. – Devíamos esperar o papai chegar.
Paula se posicionou um pouco ao lado de Marie, quase atrás. Ambas começaram a empurrar a porta com a maior força que tinham. Abriu-se um pouco. – Vamos tomar distância e empurrar – disse Marie, sobre um ar de excitação. As duas foram até o primeiro degrau da escada, pois havia uma pequena distância entre ele e a porta. Então Marie começou a contar:
— Três… Dois… e um.
Então, num átimo, as duas se chocaram com a porta, fazendo-a abrir. Porém as duas foram rolando escada abaixo. Pôde-se ouvir o gemido de dor de Marie.
— Obrigado por amortecer – agradeceu à Marie.
— De nada, querida irmã – respondeu Marie com um sorriso ríspido e sarcástico. A menina olhou em derredor para encontrar algum interruptor. Havia um ao lado da escada.
— Caramba, vovô é quase tão bagunceiro quanto a gente – disse ela após ter acendido a luz.
— É possível?! – exclamou Paula, surpreendida.
O lugar estava totalmente desolado. Caixas estavam jogadas por todos os lugares. Algumas ferramentas e diversos livros espalhados pelo chão. E, num dos cantos do porão, onde todo o negrume do mundo nascia, havia um armário bem saliente, no qual continha um gigantesco cadeado e correntes para certificar que ninguém o abrisse.
— O que será que tem aqui dentro? – perguntou Marie, aproximando do armário.
— Não sei – respondeu Paula. – Melhor a gente não mexer. Olha, achei a vassoura. Vamos embora.
— E sem saber o que há dentro do armário? Nem morta. Vamos procurar no quarto do vovô a chave.
E com uma lufada de enxerimento, as duas galgaram escada acima. Após dois lances de escada, elas estavam bem em frente à porta do avô, que estava bem escancarada.
— Você já está conseguindo ler os livros poéticos? – perguntou Marie, sem conseguir enxugar uma gota de estupefação.
— Ora, em qual parte está? – inquiriu Paula.
— Ainda na lei, como uma criança normal.
— Que esquisito.
Decerto, Paula sempre teve mais facilidade para as letras e as artes. Contudo tinha uma ínfima dificuldade com as exatas, quase tanto a de um porco tentando voar.
Havia diversas cousas coligidas no chão e na mesinha. Caixas e mais caixas contendo alguns rolos escritos na língua estranha, fotos da família, algumas miniaturas de diversos instrumentos musicais, harpa, lira, bandolins, saltérios, adufes, etc. E diversos outros objetos que corroboram a fama de um homem colecionador. Porém não havia chave em canto nenhum do cômodo. Paula mal conseguia esconder em seu semblante sua profunda preocupação. Era como tentar esconder o oceano num barco.
— Acho que a gente devia pegar a vassoura e ir para o sótão – opinou Paula.
— Acho que você devia ajeitar mais o cabelo – retrucou Marie, impaciente. – E, afinal, acho que já estou quase encontrando…
— Encontrando o quê? – disse uma voz cansada, porém carregando uma indomável autoridade, atrás das garotas. Era o avô cosido à porta. Havia uma aura intimidadora em seu olhar. Mesmo um espírito corajoso não poderia olhá-lo diretamente que logo desviaria os olhos. Mas, em geral, o avô das garotas tinha um jeito doce e brincalhão. Brincalhão, mas não estúpido.
— Nada – respondeu Marie. – Nós só estávamos procurando algum objeto para puxar a corda do sótão. Não é, Paula?
— Hã? Ah, sim… Claro. – A garota não tinha a mesma astúcia da irmã para mentir, nem tampouco a malícia.
— Sua bochecha está bastante vermelha, Paula – observou o avô (era reação nervosa do corpo quando mentia). – Ademais, poderiam ter usado a vassoura que deixaram no porão.
— Eu falei para ti apagar a luz quando a gente saiu – segredou Marie, bem próximo ao ouvido de Paula.
— Mas não há do que se preocuparem – disse o avô, sorrindo –, pois vosso pai já o fizera.
— Nossa, mas que notícia mais… – Marie procurava um adjetivo para se expressar, tudo para disfarçar que estavam procuram uma chave no quarto – magnífica! Claro. Não poderia ser melhor. – Marie começou a puxar pelo braço de Paula em direção à saída do quarto, dizendo que era melhor elas se apressarem para brincar antes do jantar.
As irmãs estavam no corredor quase começando a subir as escadas quando o avô as chamou. E disse-lhes: – A porta para o mundo mágico não pode ser aberta por fora, mas somente por dentro. – E deu-lhes uma pestanejada.
Ambas aceitaram o alvitre, fazendo um sinal com a cabeça.
— O que ele quis dizer? – perguntou Marie.
— Deus o sabe – respondeu Paula.
— Aí, Marie, acende a luz – disse Paula. – Acho que pisei em alguma coisa.
— Ah! Mas se você quebrou um dos meus templários. – Marie dava passos pesados e ruidosos em direção ao interruptor.
À luz, aquele lugar parecia mais um paraíso de puerícia. Não era uma cova bagunçada, fedorenta, empoeirada ou um ambiente que somente a velhice pode tragar. Digamos que, ao entrar no sótão, qualquer adulto rejuvenesceria, trazendo a inocência e a alegria consigo. Bem, vamos a ele: era bastante espaçoso, iluminado, diversos tipos de chapéus, de futebol, de vôlei, de basquete e, até mesmo, um de mago (sendo este o mais cogitado e disputado pelas irmãs), estes estavam situados numa das paredes. Noutra havia pintada uma perfeita arte para um cenário de jogos de RPG, turbilhões com raios saindo de dentro, faias voando por todos os lados, um mago de veste azul-celeste, um chapéu em formato de cone, rosto enraivecido e olhos com faíscas vermelhas, o qual encarava um dragão revestido com sua pele mais resistente do que o aço e emanando uma densa fumaça negra de sua boca, capaz de evaporar o próprio enxofre. Também havia uma mesa quadrática centralizada, sobre a qual tinha diversos dados, bonecos de batalha, cavalos, um arsenal de espada e um caderno de anotações que as garotas usavam para administrar o jogo.
— Por que você deixa o ataque do seu personagem tão fraco? – perguntou Marie. – Não sabe que é impossível vencer uma batalha sem força?
— Claro que não – respondeu Paula. – Não é necessário atacar quando se pode formular diversas armadilhas – rebateu ela com um olhar triunfante. – Por isso meu personagem é fraco, porém com grande inteligência.
— E qual será a tática para que eu não fique nervosa por chamá-las para jantar e vocês não me responderem? – inquiriu uma voz saindo da entrada do sótão. Verônica poderia vencer qualquer guerra com seu olhar intimidador.
— Já vamos, mamãe – disse Paula, choramingando. – A gente só queria jogar uma antes do jantar.
— Agora – atalhou a mãe.
Após jantarem, as garotas se dirigiram para suas camas (uma ao lado da outra, as quais elas costumavam empurrá-las para que se ajustassem, isto é, para que se tornassem uma). Como Marie, porém, tinha um pequeno defeitinho no nariz que a fazia assoviar por ele, Paula dormia invertida, de frente para a porta.
— É tão alto o som? – perguntou Marie.
— Quase tanto a de um apito de juiz de futebol – respondeu Paula.
Quando o relógio da parede marcava duas horas da manhã, Paula é acordada pelo som suave e doce vindo da direção da porta. Ao olhá-la, pôde ver uma bela lira. Era dourada como ouro. Era ouro. Até as cordas. Porém só estava a metade aparecendo, sendo a outra encoberta pela porta.
— Marie – disse Paula, baixinho. Também dava empurrões com os pés para acordar Marie –, que nojo! Você babou no meu pé.
— O que foi? Estou com a boca ressecada. – A garota inverteu o corpo para ficar de frente com a irmã. – Você já está grande para ir no banheiro sozinha.
— Não, olha para trás. – Paula, de tanta ansiedade, virou o corpo da irmã para a porta. Todavia, neste mesmo momento, o som havia parado e só ficou a lira imóvel.
— O quê? É só uma lira. Deve ser do vovô. Ele deve estar propondo alguma charada, assim como fez no ano passado quando colocou as nossas bicicletas no guarda-roupa.
— Mas ele não sabe tocar nenhum instrumento – Paula falava por cima da cabeça de Marie.
— Tocar? – perguntou Marie, endireitando a cabeça para cima para olhar em direção à irmã. – Eu não ouvi nada.
Naquele instante, a lira estava sendo empurrada para dentro do quarto – o que chamou a atenção das irmãs. Em um sobressalto de susto, ambas estavam na cama de Paula. Agora não havia somente a lira, mas sim uma mão que a acompanhava. Não era, no entanto, uma mão normal; tinha o formato como a de um humano qualquer, porém era bastante peluda. Lembrava o pelo de um leão. E o pouco do braço que aparecia estava vestido como uma daquelas roupas de tempos antiquíssimos. A mão-leão começou a tocar a lira outra vez, com uma melodia um tanto triste.
— Ele disse pra a gente ajudá-lo – comentou Paula se escondendo atrás da irmã.
— Ele? Ele quem? Ficou doida? – respondeu Marie, perplexa. A garota havia se virado para falar com a irmã quando percebeu que abruptamente ficou escuro. A porta se fechou tirando a luz que vinha do corredor. Rapidamente, Marie acendeu a luz do quarto e viu Paula tremendo debaixo dos cobertores. – Ele quem? Sai daí. – A garota tirou os cobertores e percebeu que a irmã ficou até debaixo do lençol.
— Aquela coisa disse… – Paula dizia com os olhos de gato assustado – disse pra gente ajudar a tirar a esposa dele do armário lá embaixo, no porão.
— Do quê? Eu não ouvi nada – retorquiu Marie. – Olha aqui, se você estiver fazendo alguma brinca…
A quase discussão teve de ser interrompida, pois as garotas começaram a ouvir o som da lira vindo do corredor. Marie foi em direção à porta, abriu-a e espiou fora. Fez um sinal com o braço esquerdo para chamar Paula até ela. Agora as duas estavam espiando pelo corredor, no qual, ao final, viu-se de novo a mão-leão tocando o instrumento e começando a descer o primeiro lance de escadas.
— Hum. Você disse armário lá embaixo? – indagou Marie. – Ah, porão.
Num átimo, Paula estava de volta debaixo do lençol.
— Vamos, Paula. Precisamos ver quem é – disse Marie.
— Não precisamos, não – protestou Paula.
— Vamos lá, vamos lá. Se essa coisa fosse perigosa teria nos atacado. Certo? – argumentou Marie.
— Não, não tem nada certo aqui – retrucou Paula. – Ei, me espera, doida – disse ela, correndo atrás da irmã, pois não queria ficar sozinha no quarto.
As duas pararam bem no primeiro degrau, hesitando a descida. Porém, degrau por degrau, foram descendo vagarosamente. Foi-se o primeiro lance. Paula estava ofegante de medo, mas Marie empolgada: – Vamos. Está demorando muito! – disse ela. Agora estavam nas escadas que davam acesso ao porão. Antes de começarem a descer, elas viram a mão-leão, porém, diferentemente da outra vez, agora as duas mãos estavam expostas, uma afiando a lira e a outra fazendo sinais para que as garotas descessem. Com passos cuidadosos, as irmãs foram gradativamente chegando ao porão. Estavam com os olhos fitados para o lado que a mão-leão tivera aparecido, no entanto, não havia nada lá. Elas esquadrinharam o cômodo e não encontraram a criatura. Todavia, de súbito, ouviram alguma coisa se remexer no armário e se aproximaram dele.
— Caramba! – exclamou Marie. – Vovô está colecionando coisas estranhas. Como nós iremos abri-lo? Até agora não entendi a porta para o mundo mágico não poder ser aberta por fora, mas somente por dentro, isso não faz sentido. Hum. – Marie começou a roer as unhas, olhou para baixo e fez um barulho de vibração com a boca, indicando que estava pensando.
— Não tem como abrir uma porta por dentro – argumentou Paula. – Será que é… – Não só gêmeas de aparência, mas também de tiques. Agora, ambas estavam na mesma posição, fazendo o mesmo zumbido com os dedos anelares na boca e olhando para baixo, em direção às três sombras. – Marie… por que… por que estou vendo três sombras?
Paula segurou a mão de Marie e as duas viraram para ver quem estava atrás delas. Bom, neste caso, o que estava atrás delas: a criatura se encontrava na mesma pose de pensamento das irmãs, com o dedo na boca e olhos fitados no chão. E que olhos. Eram maiores do que os de um ser humano, com cores que lembravam uma floresta em chamas. As orelhas pareciam as de um cachorro em guarda, mas um pouco mais redondas, como as de um felino. Vestia um belo libre rubro. Estava descalço. Sua aparência, nos braços e nas pernas, apesar de terem o formato de um homem, trazia à lembrança a essência de um leão. Os cabelos – ah, que cabelos – longos e com um tom amarelo-alaranjado. Mas, conquanto tivesse uma aparência um pouco temida, a expressão em seu olhar era um tanto – sendo franco – estúpida. Talvez inocente. O que fez as garotas não gritarem no primeiro caso.
— O que é essa coisa? – sussurrou Paula.
Porém Marie não a respondeu. Encarava a criatura atônita. Enquanto a própria continuava a encarar os próprios pés. No entanto, ela ergueu os olhos em direção a Marie. Pareceu que essa ação foi o suficiente para que a garota estivesse prestes a dar um brado que toda a vizinhança pudesse ouvir. Antes que tal confusão fosse acionada, a criatura pôs as duas mãos na boca de Marie para impedi-la, movimentou seus pés até a lira, a qual se encontrava perto, e começou a tocá-la.
— Ele disse para você se acalmar – disse Paula a Marie. – E que a gente ajude a tirar a noiva dele de dentro do armário. – Fascinante como a garota conseguia entender a língua do instrumento.
— Mas ele… ou ela… essa coisa aí não disse nada – respondeu Marie, ofegante após tirar as mãos-leão da boca.
A criatura pega sua lira do chão e toca algumas notas com tom feroz e, logo após, algumas suaves.
— Ele disse que é ele. E o nome dele é Kinorel – respondeu Paula.
— Kino… O quê?! – exclamou Marie, perplexa. – Ah, claro. Você fala a língua dos instrumentos, o rei da selva resolve fazer uma visita e pede o favor de tirar sua noiva de dentro do armário.
De súbito, alguma coisa dentro do armário começou a se revirar. Como se, de toda a forma, quisesse sair dele. Kinorel tange sua lira.
— Ele pediu para tentarmos tirar ela de lá – disse Paula. Kinorel acrescenta mais algumas notas. – E… precisamos abri-lo por dentro.
— Paula, não dá pra abrir um armário por dentro – respondeu Marie. Então começou a andar de costas para o armário. E continuou: – O que será? Não pode ser isso. Vou chegar perto pra testar. – Ela fecha os olhos e faz um sinal de desdém com a boca. – E com poder da minha imaginação a porta vai… – Nesse ínterim, ouviu-se um barulho de trancamento e destrancamento da porta. A garota recua até Paula e Kinorel para comentar: – Nunca duvidei!
As gêmeas se entreolharam com muita dúvida daquela situação. Paula disse que ao menos elas deveriam tentar, porém Marie afirmou risonha, sem esconder sua incredulidade. As duas se posicionaram à frente do móvel empoeirado e, olhando-o mais detalhadamente, aquele armário parecia velho demais e sua aparência não lembrava algo contemporâneo, mas sim tinha um aspecto um pouco medieval. Quando ambas estavam defronte dele, deram-se as mãos, de forma intuitiva, fecharam os olhos e começaram a falar em voz bem baixinha:
— Abra-se, abra-se, abra-se.
Após alguns longos segundos, resolveram abrir os olhos para ver o que aconteceu. E, à medida que os abriam, sentiam as mãos suarem de nervosismo. Afinal, o que era aquele armário? Para onde daria? E por que deveria ser aberto por dentro?
Quando elas abriram totalmente os olhos – ora, vejam – ainda estava trancado. Paula começou a coçar a cabeça de dúvida.
— Ora, mas não era isso que devíamos fazer? – resmungou ela, impaciente.
Então pôde-se ouvir um som novo atrás delas. Algo que lembrava o oriente. Um som tranquilo e um pouco desconhecido. Uma cítara.
Mesmo por baixo daquele capuz verde-claro (mesma cor do libre que estava usando) e com cachecol prateado que cobria um pouco de seu rosto, era nítida a semelhança feminina de Kinorel sentada na escada, com seu instrumento em forma de trapézio apoiado em suas pernas. Ela fita as gêmeas com seriedade e tange a cítara num tom suave e belo.
— Prazer em vos conhecer, madames – disse Paula, interpretando o que aquela criatura estava dizendo através do instrumento. – Meu nome é Tsitarel.
— Jingle Bell? – perguntou Marie.
— Acho que é Babel – retorquiu Paula.
Tsitarel franziu o cenho e fitou, com aqueles olhos amarelo-claros, como dois laburnos, as garotas do outro lado do cômodo e tangeu outra vez sua cítara.
— Por favor, sem comentários desnecessários – disse Paula, sendo a voz de Tsitarel. Ela e Kinorel levantam-se juntos e tocam seus instrumentos. – Vosso avô nos informou que Marie, o Coração-Bravio, e Paula, o Lírio-da-Aurora, estariam prontas para serem conduzidas a Tokarisen e ajudar-nos a resgatar nosso lar.
As gêmeas assumiram uma certa posição de dúvida. – Certamente aconteceu algum engano – pensou Paula. – Essa situação está mais complicada que as aulas de matemática. – Enfim, as duas fizeram um gesto com as mãos indicando que iam pensar. Depois de uma árdua conversa de mais ou menos trinta segundos, onde vinte foram uma relutância para terem alguma ideia, as duas finalmente decidiram e responderam:
— Quem são vocês e o que está havendo?
Simultaneamente as orelhas de Kinorel e de Tsitarel abaixaram de decepção. Os dois tentaram pensar em uma resposta elaborada. Então Kinorel teve uma ideia. Em uma bolsa que Tsitarel carregava, ele tentou encontrar alguma informação que ajudasse nessa situação complicada. E, no fim, mostraram uma foto que tinham do avô em um lugar que parecia um prado de relva amarelada. Porém sem sucesso. As duas irmãs continuavam confusas e aturdidas. Então Tsitarel começou a subir as escadas e Kinorel tocou algumas notas.
— Sigam-nos – disse Paula a Marie.
As duas são conduzidas com bastante relutância para o lado de fora da casa. Marie tateou os pés no chão naquele campo do sítio. – Que gelado! Esqueci meus chinelos – pensou ela. As duas criaturas estavam à frente das garotas e admiravam a bela lua retesada no céu. Parando ao lado do cedro com o balanço, Tsitarel tange sua cítara e Paula começa a interpretá-la:
— Não temos outra saída além de mostrá-las por si próprias – Kinorel assobia. O cedro começa a se contorcer por inteiro, tornando-se numa nova forma. Alguns galhos foram encaracolando e tomavam uma certa diferença de altura entre eles, formando uma escada. E ela levava até o topo da árvore, onde se encontrava um arco de galhos.
Kinorel e Tsitarel galgaram os degraus de galhos. Logo atrás vinham Marie e Paula (esta já se encontrara com o nariz avermelhado, pelos poucos segundos que estavam naquela friagem da noite). Quando chegaram ao topo da árvore, diante do marrom iluminado pela lua, Tsitarel diz a Paula que, ao atravessarem o portal, não devem – sob hipótese alguma – largarem as mãos, pois não havia “sabão” para duas bolhas. Enfim, Kinorel guarda sua lira e a cítara da companheira na bolsa que carregava. Os dois meio-leões ficam defronte do arco e dão as mãos um para o outro. Suas orelhas agitam-se de excelsa empolgação, começam a caminhar em direção ao portal e, de repente, puff. Sumiram-se, como o vapor jogado ao horizonte.
— Vamos pegar alguma coisa na geladeira e ir pra cama? – perguntou Paula.
Marie olha diretamente para a casa do avô. Ela imaginou apenas um verão normal, e como se arrependeria se não cruzasse aquele portal. Sem dúvida. Alguma coisa tinha se acendido no coração da garota. Seja loucura ou seja coragem. Bom, sabe-se muito bem qual das duas Paula se identificou.
— Você tá doida?! – berrou Paula enquanto estava sendo puxada por Marie.
— Vamos nessa!
As duas tiveram que colocar a mão no rosto para impedir a claridade que incidia em seus olhos. De fato, há pouquíssimos segundos estavam sendo guiadas pela luz da lua – que era o único recurso para enxergarem naquele negrume da noite – e as poucas coisas que podiam vislumbrar eram as casas situadas morro abaixo, pois o avô das garotas morava bem no píncaro da colina. No entanto, agora mal poderiam olhar o horizonte com aquele sol erguendo dentre as nuvens bem à frente delas.
Por falar em nuvens, as gêmeas demoraram para perceber que estavam andando sobre o firmamento. Em verdade, não andavam, mas sim caíam. Ah, nunca outrora se ouviu gritos tão estridentes no céu de Tokarisen desde a grande batalha das Brasas-Gélidas – travada entre os dragões do Vale-da-Pez-Ardente e os Nerquis (seres amantes do frio das montanhas). Contudo, foquemos em como nossas aventureiras irão escapar dessa enrascada.
— Ai, meu Deus – grasnou Paula, desesperada. A pobre garota bracejava a mão esquerda (a direita segurava a de Marie) parecendo que alçaria voo. As pernas? Nem as sentia mais em razão do medo. Arfava descontroladamente. Apertava tanto a mão da irmã que estava virando uma grande uva roxa. Chorava e chorava e chorava. Marie, tomada por um alento de coragem e confiando na tal bolha da qual Tsitarel comentara, resolveu agarrar as rédeas da situação.
— Calma! – gritou Marie, pois o som do vento em oposição à queda era ensurdecedor. – Vai ficar tudo bem! Confie em mim!
Palavras bravias para uma garota de queda incerta. Contudo, conquanto não tirasse o medo da irmã, foi o suficiente para interromper os gestos descontrolados que Paula produzia no ar, os quais carregavam o enorme risco de fazer com que elas desatassem as mãos.
Alguns instantes depois, ambas viam o solo abaixo, incrivelmente vermelho na costa de um mar branco. Talvez houvesse uma maior admiração pela paisagem por parte das gêmeas se não estivessem caindo.
Marie, mesmo numa situação desesperadora, não deixou sua ardilosidade e sua percepção de fora. Notou, a alguns metros de queda, com o desvanecimento das nuvens, Kinorel e Tsitarel. Os dois tentavam mexer seus braços e pernas de modo sincronizado, como se estivessem conduzindo para um lugar específico. E era mesmo. Estavam tentando passar por um círculo mágico flutuante.
Prestai a atenção nos detalhes a seguir de como nossa pequena Marie teve de tomar as decisões e as ações precisas, na esperança de evitar uma queda terrível: primeiro, em meio ao ar, teve que convencer a irmã de todos os passos: – Não precisa abrir os olhos – esbravejou ela –, só fazer o que lhe disser. – E lá se caíram. – Inclina seu lado direito – e Marie erguia o lado esquerdo de seu corpo –, agora abaixa. – Ora iam para a esquerda, ora para a direita. Ora Marie elogiava pelo acerto da irmã, ora enlouquecia pelo erro. – Assim não! – bradava ela. – Abaixe um pouco mais o braço. – E assim iam. Marie (por ser a única de olhos abertos) percebeu que Kinorel e Tsitarel estavam demasiados à frente. Então a garota não pensou duas vezes: – Inclina o corpo pra baixo, mas nem tanto. – As meninas diminuíram a distância entre elas e o casal de meio-leões. Porém, agora, aceleraram ainda mais suas velocidades. Não havia como mudarem de direção. Kinorel e Tsitarel passam pelo círculo mágico. Mal pestanejara Marie e já pôde ver uma grande bolha transparente passar ao lado delas. As duas também passam pelo círculo e sentem um pequeno baque contra o corpo. Marie olha ao redor.
— Paula, abra os olhos – disse ela.
Um vislumbre magnífico invade as retinas da garota. Daquela bolha brilhante, na qual flutuavam e desciam gradativamente, podiam observar uma imensa floresta de cores matizadas. Abaixo delas, bordando uma praia (que iremos investigar em breve), era um verde-vivo. Depois, ao lado de um rio que morria no mar, as folhas eram em branco. Mais ao longe, laranja. Assim, as meninas observaram essa flora formidável.
— Olha! – exclamou Marie. – É Kinorel e Tsitarel.
De fato, os dois trotavam na areia da praia, que por sinal era avermelhada.
Quando a bolha chegou à superfície, ela estourou e as duas desabaram na areia.
— Cof cof. Droga, tem areia no meu cabelo – reclamou Paula.
— Ninguém mandou deixá-lo crescer tanto – respondeu Marie. – Devia aparar essa crina de cavalo.
— Cale-se.
Quando as gêmeas chegaram ao encontro dos meio-leões, perceberam que Kinorel enchia seus odres com a água do mar. – Não pode fazer isso – comentou Marie. – A água é salgada. Não dá pra beber. – Tsitarel, sentada na areia vermelha, arrumava seus equipamentos quando ouviu sobre o comentário da água do mar de Tokarisen e deu uma pequena risada. Marie indignou-se. Kinorel pega sua lira e a tange.
— Nosso mundo, Tokarisen, é bastante diferente do seu – interpretou Paula. – Aqui, a maioria de nossa água é potável. Mesmo em contato com areia. Aliás, é ela quem nos oferece um gosto mais rebuscado. – Ele abaixa e termina de encher o odre. Quando o tira, pôde-se perceber um remanescente branco da água (e, se não fosse pelas ondulações que o mar fazia, poderia facilmente se confundir com uma terra branca, pois as águas eram alvas como a neve). Kinorel oferece um pouco do líquido a Paula. A garota toma-o lentamente e se prepara para o gosto amargo em sua boca. No entanto, era doce como os refrigerantes de sua terra.
— Hum, tem gosto de soda – afirmou ela.
— Como!? – inquiriu Marie, perplexa. – Deixe-me ver isso.
Paula passou o odre à Marie. A garota dá duas goladas fervorosas.
— Não, não tem – respondeu ela. – O gosto é de suco de morango.
Verdadeiramente, agora, as duas ficaram totalmente desnorteadas. Tsitarel toca sua cítara e Paula começa a traduzi-la para irmã.
— A água branca com a substância contida na areia vermelha é simplesmente uma dádiva. À medida que vocês a engolem, o sabor transforma-se na bebida a qual possuem maior deleite.
Formidável, diria eu. O leitor pode sentir o gosto de sua bebida predileta na boca? Bem, vejamos que outras coisas interessantes ainda podemos encontrar.
Tsitarel tange sua cítara. Paula, a intérprete, toma a voz.
— Nossa aventura durará alguns meses – Tsitarel faz uma pausa e depois volta a tocar o instrumento –, talvez quase um ano. Precisamos atravessar o Deserto, escalar as Montanhas sem sentido, encarar a floresta do grito e…
— Com licença – interrompeu Marie, ríspida –, é… um deserto? Senhora meio-leoa, nós somente temos doze anos. Nosso pai, de juízo pleno, não nos permite andar sozinhas depois das seis horas na rua. Quem dirá num deserto. E sem contar, é claro, não gosto muito de calçar meus chinelos, coisa irritante aos meus belos pés, acho que escalar montanhas descalça não seria muito adequado.
De fato, a garota estava profundamente certa. Quem em são juízo deixaria uma criança de doze anos escalar uma montanha sem os devidos equipamentos? Porém nossa meio-leoa já se prontificou para tal alvitre.
— Não se preocupem – afirma ela por intermédio de Paula. – Tudo o que iremos precisar está no deserto e na bolsa de Kinorel. Aliás, antes de partirmos rumo ao nosso objetivo, tenho-lhes duas observações: nós, os meio-leões, chamamo-nos por harakes. E a outra é que temos a solução para seus pés.
Naquele momento, Kinorel tira da bolsa um par de sandálias velhas. Marie as olhou com um pequeno menosprezo.
— Nossa! – Ela as pega e as esquadrinha. – Sempre quis uma destas. Agora, sim, em verdade, sou uma garota de sucesso.
Os harakes riem de forma nada discreta.
Tsitarel levanta-se e bate em seu manto, tirando toda a areia. Em seguida, junta-se com Kinorel para guardar os odres na bolsa. Por fim, Kinorel observa ao redor do mar branco e tange sua lira com o volume mais alto de costume. Marie espera pela tradução da irmã, mas não é o que acontece. Então resolve cutucá-la e perguntar o que o harake estava dizendo.
— Não sei – responde Paula. – É uma língua totalmente esquisita.
Kinorel toca sua lira por mais alguns instantes. Então as águas emitem ruídos semelhantes a rosnados, como os de um cachorro (foi o que pensaram as gêmeas). Figuras de lobos, todavia com duas caudas, saltam das águas. Três, para ser exato. Eles trotam em direção às garotas e aos harakes. Ah, como eles eram grandes. Um deles se aproxima de modo lúgubre, com seus olhos azul-escuros, de Paula. Defronte a ela, o lobo inclina seu focinho até o rosto da menina e – ora, essa – começa a lambê-la alegremente.
— Ai, não – lamenta Paula. – Vou ter de tomar outro banho.
— Bem, pelo jeito que você suou dentro da bolha, penso que não seja pela baba a necessidade de um banho – comentou Marie.
— Pelo seu cheiro, acho que Paula não foi a única, tampouco a primeira a suar de medo – disse de forma surpreendente aquela semelhança de lobo.
Tinha uma voz afeminada e um alento de guerreira.
— Minha nossa! – gritaram as garotas. – Esse cachorro enorme fala?
— Decerto, nós falamos – respondeu o lobo próximo a Kinorel. Este, ao contrário da fêmea, tinha uma pelugem emaranhada e cinzenta. E o último deles também tinha pelos bagunçados, mas não suficiente para o deixar feio. Pelo contrário, seus pelos e olhos brancos pareciam fulgentes com a luz do sol.
— Nós somos os guardiões dessa floresta – disse o lobo que lambeu Paula. – E nos chamem de vergs, não de cachorros, por obséquio.
— Quais são seus nomes? – indagou Marie.
— Sou a Bellolfa. Estes são Strolf – disse, direcionando-se para o verg ao lado de Kinorel –, e nosso mais novo verg em exploração – agora tinha os olhos fitados naquela jovem criatura de pelugem branca, brancura tamanha que a própria neve o reivindicaria como filho –, Snolf.
Os vergs, por mais que alguns parecessem ferozes e assustadores, tinham uma estirpe nobre. Sempre se apresentando de forma polida. Ainda estes, os quais, eras atrás, faziam parte do séquito de vários reis ao norte de Tokarisen.
— Porventura, são estas duas mancebas, inertes de aventuranças, as quais reedificarão vossa vila, Tsitarel? – perguntou Strolf. Tsitarel sorri e sinaliza positivamente com a cabeça. Ele tornou: – Bem, só ver pra crer. Mas vós, harakes, sempre fostes verdadeiramente nossos fiéis aliados. Não. Mais do que isso. Tornaram-se nossos amigos de geração em geração. Assim, têm a minha palavra: Nós vos ajudaremos.
— Com toda a certeza – emenda Bellolfa. – Snolf! – O jovem verg prontifica-se.
— Senhora! – disse ele.
— Deixo as pequeninas em sua guarda.
— Pode deixar comigo. Não irei lhe decepcionar. – Ele se direciona para as gêmeas. – Eu vos protegerei com minha vida – anunciou ele.
Snolf ladeia-se com Paula e começa a enrolar uma de suas caudas em derredor ao corpo da garota. Ele a levanta e a coloca em suas costas. Da mesma maneira o faz com Marie, contudo a posiciona atrás de Paula.
— Não se preocupem – disse ele. – Provavelmente nunca montaram num verg. Só não poderão estar em cima de mim quando estiver em alta velocidade, pois não há onde se segurarem. Todavia, como caminharemos sem pressa, então não há com que temer.
— Nunca estive tão despreocupada – respondeu Marie.
Tsitarel pega sua bolsa, tira uma espécie de mapa e a coloca no alforje amarrado no ombro de Bellolfa. Ela sobe com auxílio de umas das caudas da verg nas costas dela. A harake abre o mapa em suas mãos, o qual irá conduzi-los.
Sem escrúpulos, o grupo, por uma trilha, entra na floresta. Que bela floresta! Parecia que as árvores nunca foram, e nunca seriam, infrutíferas. Dava para sentir a doçura dos frutos só de olhar. Havia um do qual lembrava uma pera (o que deixou as gêmeas salivando). Kinorel tenta se apoiar nos galhos para subir e apanhar esta deliciosa fruta. No entanto, abruptamente, a ramagem da árvore estremeceu e a que estava ao lado na qual o harake escalava contorce-se e move seus galhos em direção à árvore amiga, acertando Kinorel em cheio.
— Devia ter pisado de leve no galho – disse Strolf. – Estamos no meio da tarde. Ela não estava, por completo, adormecida.
As árvores, naquele canto místico de Tokarisen, eram, em verdade, cheias de vida. Cada tronco, raiz, galhos, folhas e frutas são como membros corporais. Se tentar arrancar um de seus frutos, é semelhante a puxar um fio de cabelo de uma pessoa. Isso, com certeza, as irritava, fazendo com que suas folhas tornassem, de súbito, vermelhas, as quais, noutra hora, encontravam-se rosa-claro, a cor do sono da tarde. Agora, com o hórrido despertar daquela árvore, cuja uma das frutas quase foi despojada, todas as outras estavam bem despertadas. E com folhagem vermelha, ou seja, furiosas.
— Peço-lhe perdão pela negligência de meu companheiro – disse Strolf à árvore escalada por Kinorel. – Nossas duas pequenas amigas e o resto do grupo nos encontramos famintos e queríamos uma de suas frutas. Devíamos ter pedido permissão. Perdoe-nos.
Primeiro a árvore teve um ímpeto de fúria, fazendo suas folhas ficarem cada vez mais vermelhas. Mexe suas raízes como forma de indignação e contestação. Mas viu-se que as outras árvores tentam, apesar de também estarem bravas, acalmar a amiga. E, à medida que a iam tranquilizando, sua folhagem foi amarelando-se, sendo a cor costumeira. Logo, aquele bosque de árvores vermelhas foi-se tornando um ermo amarelo e belo.
Tsitarel olha para Kinorel com repreensão e rispidez. O harake apenas coça a longa cabeleira e desvia o olhar. Também, ao final do grupo, Paula e Marie dão alguns risos. Snolf mantém a postura dificultosamente, pois achou a cena cômica.
A árvore, a qual foi violada, estica seus sarmentos à trilha para onde as gêmeas se encontravam. Neles, há pendurados deliciosos frutos e de diferentes cores. – Pegue-os rapidamente para que ela não sofra – disse Bellolfa. As duas pegam num átimo e indolor. Elas comem. O gosto lembra tutti-frutti.
— Obrigada – agradecem ambas de boca cheia para a árvore. Ela as reverencia arqueando o tronco.
Após algumas horas, já com Marie dormindo e usando as costas de Paula como travesseiro, já no finzinho de tarde, os harakes, vergs e as gêmeas chegam a uma bifurcação. Eles param. Strolf sugere ao grupo a evacuação da trilha e o acampamento na mata, em prol de evitar conflitos com salteadores que talvez possam estar peregrinando.
De forma pachorra, o grupo caminha para um lugar onde todos possam se ajeitar e estar a uma distância considerável da trilha. Enfim, encontram-no. Snolf, com cansaço pesando não só nas patas, mas também nos olhos, começa a se deitar vagarosamente para não acordar Marie. Ele o faz bem, porquanto a menina não despertou. Paula desce do verg cuidadosamente, pois tinha a irmã apoiada em si. Também o faz de maneira diligente.
— É um afeto demasiado para com a família, Lírio-da-Aurora – observou Bellolfa.
— Bem – respondeu Paula, um pouco desajeitada –, em coisas cotidianas, como acordá-la para ir à escola, encobrir as besteiras, passar cola na prova de História e de Literatura, e outras fraternidades ilícitas, sou eu que costumo cuidar dela. Como se fosse a mais velha. – A menina fita o céu estrelado, reflete um pouco e volta a olhar a irmã em seu sono profundo. – Mas – tornou ela – ela sempre me protege em situações difíceis. Quando caçoam de mim por ser desajeitada em esportes, ela toma a frente pra afrontar quem quer que seja. Nos lugares fechados e escuros, sempre aterrorizantes e entupidos de aranhas, lá está ela do meu lado. Todas as vezes que enfrentei meus medos, ela sempre esteve comigo. Até mesmo despencar do céu.
— Vocês parecem ser mais do que irmãs – falou, por fim, Bellolfa, após um período de silêncio –, mas sim melhores amigas nascida da alma.
— É verdade – respondeu a garota.
— Venha. Vamos pegar alguns galhos para acender uma fogueira e nos aquecer um pouco. Todavia, depois teremos que apagá-la para não chamarmos muita atenção. Kinorel, acompanhe-nos.
Os três andam em derredor em busca de alguns galhos para acenderem a fogueira. Porém, como o leitor prestou a devida atenção, o estado de normalidade das árvores era com as folhas de cor amarelo, contudo, essas e outras, conforme iam dormindo – bem diferente da sesta da tarde –, as folhas escureciam e os troncos e galhos solidificavam como rocha, como um meio de defesa noturna. Assim, os três imploravam para as árvores despertas que lhes concedessem uns madeiros. Kinorel tinha uma melhor persuasão com sua branda lira, acalmando-as para um excelente sono profundo. Bellolfa fez uma série de acordos com as árvores, alegando que nunca mais um verg iria urinar numa delas. Paula fez uma promessa de que nunca mais iria arrancar uma amora da árvore que havia em sua escola sem pedir. Claro, a intenção fora boa, se elas soubessem o que era uma amora. Entretanto, mesmo elas tendo um apego estranho para com a menina e mesmo não entendendo bem a promessa, davam os galhos velhos (que seriam repostos por novos, como uma pele morta no corpo humano). Por fim, eles conseguiram o suficiente para algumas horas de lume e regressaram para o acampamento.
Quando chegaram, Paula notou que Marie já estava acordada. Snolf, todavia, ainda estava em sono profundo.
Os três se achegam e tomam lugares numa roda demarcada, tendo no centro uma pequena flama clamando por lenha. Paula senta-se ao lado da irmã. Ambas tinham os olhos pesados e os pés doídos.
— Perdoem-me – disse Strolf. Sei que tiveram um dia cheio e complicado, mas precisamos colocar este assunto à luz. Fiquei aturdido quando Tsitarel disse-me que não vos contou o vosso propósito aqui no nosso mundo.
— Ela nos contou que íamos ajudar a reconstruir a vila dela – atalhou Marie.
— Decerto, isso ela diz com razão – O verg olha para Tsitarel e retorna às gêmeas. – Porém ela vos disse o que teriam de enfrentar?
As garotas se entreolham assustadas e atônitas, como se tivessem esquecido uma vila inteira sob a cama.
— Por vossa reação, parece que não lhes contou – disse Bellolfa, achegando-se à roda. Ela esteve conferindo se Snolf queria participar da conversa, mas o jovem verg afirmou estar demasiado cansado da viagem.
Então prosseguiu Strolf:
— Claro – concordou ele com Bellolfa. – Há algum tempo atrás, quando pássaros gorjeavam, as flores floresciam e o sol iluminava os pastos verdes, na terra a oeste de Tokarisen viviam três reinos distintos, porém harmônicos entre si. Os harakes, mestres da música. Os faldor (seres alados), peregrinos na terra e governantes dos céus. E, por fim, sendo a raiz maléfica deste enredo, os persins (criaturas semelhantes aos humanos, diferenciando-se pelos olhos e cabelos em brasas de fogo).
“Este povo, apesar de sua história pacífica, fora amaldiçoado por uma semente perversa. Ela chamava Zalqui, o Conquistador. Nutrido por um desejo inefável de controle e inspirado por um ideal de mundo vertiginosamente perfeito e cruel, convencera uma grande parte de seus compatriotas para seu plano maligno. Sendo um prodígio das armas não somente de persuasão, mas também as bélicas. Logo Zalqui dominou toda a terra dos persins.
“Não obstante, após vários meses de negociação, conseguiu uma aliança com os faldor, os quais viram proveito em seu plano. Deles, Zalqui conseguiu a confiança de dois consórcios importantíssimos, Palkim e Valkim, general da força aérea dos faldor e mestre em táticas, respectivamente.
“Então, agora tendo o controle dos dois reinos, não demorou muito para atacarem os harakes. Ele tomara toda a vila de Veenzart (cidadela principal do povo), que se transformou em ruínas. Zalqui os escravizou com trabalho rude e forçado. Alguns conseguiram fugir, como Kinorel e Tsitarel, mas outros foram apanhados e mortos como traidores de uma pátria que não juraram lealdade. Agora ele fortalece seu império para tomar mais terras.”
As gêmeas terminam de ouvir a história. Paula fica inquieta.
— Certo – disse ela. – Então onde nós entramos nisso?
— Seu avô – começou Bellolfa –, andando sobre as terras do leste de Tokarisen, teve um encontro com Tsitarel e Kinorel, ambos desnorteados e sem esperança. Ele, provido do mesmo dom de Paula, ouvira com afinco a triste e desolada história dos harakes e se padeceu. Mas o que ele poderia fazer para ajudar? Já se encontrava velho e sem condições para batalhar. Sendo assim, ele os prometeu que suas netas iriam trazer o brilho da terra do oeste junto com o povo do norte.
— Nós duas!? – exclamou Marie. – O véio endoidou de vez. Certo que sou uma excelente atleta. Um prodígio aos doze anos. Mas acho que não seria o suficiente para derrotar esse tal de Zalqui.
Os harakes pegam seus instrumentos de cordas e os tangem. Paula traduz de imediato.
— Confiamos inteiramente em vocês, Lírio-da-Aurora e Coração-bravio. Podem não ter a certeza agora, todavia terão futuramente. O tempo envelhece não só o corpo, mas também a mente. E amadurecer significa conseguir enxergar o mundo que sempre viveu, porém de outra forma.
— Espero que vocês estejam certos – respondeu Marie.
A passos incertos andam,
Sob sombra das folhas, roncam
Co’a baba a orvalhar a pele
Suja; fedida quem fale.
Moça esquive; já desperte
Paula, devagarinho, abriu os olhos. Ela deparou-se com quatros figuras de aves, desconhecidas à sua lembrança. Assemelhavam-se com uma águia, mas com asas brancas e, conforme iam se aproximando das costas do animal, podia se ver duas linhas amarelas que se encontravam da plumagem da cauda até a cabeça, formando uma espécie de cicatriz artificial.
As palavras “antes que o monstro te acerte” matutavam na cabeça da menina. Fez-se um estralo de compreensão na mente dela. Então, levantando-se, resolveu olhar em derredor. Frente, esquerda e direita. Nada. Vagarosamente, verifica a retaguarda. Também nada. As bochechas de Paula inflamam de raiva.
— Que brincadeira de mau-gosto! – protestou ela. – Onde já se viu, sua galinha voadora. Quase me mata do coração.
Tolos, viajar irão,
Caminho sem evasão.
À direita, curta e rápida;
À esquerda, longa e protegida.
O veloz; monstro destrói
Strolf salta em direção às aves e, imediatamente, elas alçam voo. Paula fica aterrada pelas palavras por elas pronunciadas.
— Parece que as lendas a respeito de você eram verdadeiras – disse ele, ao se aproximar de Paula.
— Que lendas? – interpelou ela.
— Que você seria a companheira da natureza. Veja, essas aves que acabaram de dialogar com você são trapaceiras, rudes e egoístas. Nunca avisariam alguém por algum perigo iminente.
Paula fica impressionada por saber esse detalhe de si mesma. A única amizade que tinha para com a natureza era com as flores do Jardim Botânico, da cidade de São Paulo. A propósito, daqui a alguns meses já estava programando visitá-lo novamente.
— Deve ser por essa razão que tenho uma simpatia inexplicável contigo – disse o verg, fitando Paula.
Decerto, Paula havia notado que, de tempo em tempo, os vergs a observavam. Ela lembrou de ter sido a única a ser lambida por Bellolfa e de ter sido a primeira a ser carregada por Snolf, e não Marie.
— Pensei que era por nossa amizade – disse Paula inocentemente.
O verg ri.
— Nos conhecemos há algumas horas e tu me chamas de amigo? – indagou Strolf.
— Meu pai me disse que os verdadeiros amigos não são aqueles que nos fazem rir, mas os que não hesitam em nos revelar a verdade. E você me disse nosso propósito e destino sem escrúpulos. Agora temos uma base de amizade e de confiança.
Não é impressionante como palavras simples de uma criança podem quebrar um preceito cimentado na mente de um verg?
— Tua irmã semeaste a audácia, mas tu a sabedoria – respondeu Strolf, impressionado.
Os dois conversaram um pouco sobre provérbios antigos e ensinamentos de reis. Algum tempo depois, todos estavam acordados para prosseguirem com a viagem. Eles saem da clareira e entram na floresta. Passam por um riacho e abastecem. Em seguida, rumam à trilha do dia anterior. Chegando nela, enfrentam novamente o enigma da bifurcação.
Marie apeia-se de Snolf, coloca as mãos na testa e prepara para uma cena dramática.
— Oh! – exclamou ela – que faremos, pois, com esta dúvida? Maldita seja, bifurcação. Por que nos presenteia com essa exasperante incerteza? – Ela se ajoelha e encena um choro profundo. Paula faz um meio sorriso, como aquelas máscaras antigas, e mexe na orelha do verg, sinalizando indiferença.
— Essa realmente foi de dar câimbra no rim de tão engraçado – disse ela.
Marie, emburrada, atira-lhe a sandália na cabeça.
— Ai! – declarou Paula de dor. – Não tenho culpa que sua piada foi ruim – resmungou. Strolf toma a frente e começa a declarar as instruções:
— Vamos à direita. Mas, dessa vez, Snolf virá comigo e ficaremos a uma distância relativamente longa entre vocês.
Snolf estranha tal decisão e a contesta: – Mas eu não deveria guardar as gêmeas?
— É exatamente o que estará fazendo.
O jovem verg não compreende, porém aceita sem relutância. Paula, como estivera com Strolf quando aquele pássaro amarelo lhe advertiu do perigo, entendeu a situação e ficou acanhada. – Poderíamos ter pegado o caminho mais longo e seguro – pensou ela.
Com isso, Paula e Marie descem de Snolf. Tsitarel o faz também com Bellolfa, para acompanhar as garotas, e Kinorel continuou na caminhada. Snolf e Strolf tomam a frente. Algum tempo depois, o resto do grupo seguiram-nos. Caminharam por algumas horas. Uma branda brisa refrescava-os, o que era extremamente reconfortante, pois andaram por horas no calor da manhã. As árvores-vivas tinham as folhas na cor rosa-claro, estavam desfrutando a sesta da tarde. Tsitarel olha ao redor enquanto anda. A paisagem era bela. Porém, de súbito, suas orelhas de harakes, que se assemelham com as de uma leoa, apesar de estarem sendo abafadas pelo capuz do manto, ouvem um barulho hórrido vindo da floresta. Ela pede a parada do grupo. Bellolfa toma a frente de onde ruído tinha vindo e se prepara para o pior. Ela fica em posição de ataque e começa a rosnar. Solta um ladro selvagem.
Então grandes galhadas surgem do meio das árvores. Elas golpeiam a verg e a levantam. No ar, reinou-se um latido de dor agonizante. Ela cai atordoada no chão. O monstro ergue-se e os harakes e as gêmeas veem sua fisionomia. Ele tinha as pernas de um alce. Da cintura pra cima era semelhante a um homem, porém com couro de pele do animal. Tinha uma face terrível, com galhadas na cabeça. Também carregava um porrete nas mãos.
Em seguida, o monstro urra ferozmente. Paula desespera-se e entra na floresta, do lado oposto donde estava a criatura. Marie, Kinorel e Tsitarel a seguem sem pensar duas vezes. A criatura solta um brado lúgubre, bate o porrete no chão e parte em perseguição. De fato, o monstro tinha uns três metros de altura e era desprovido de qualquer inteligência. Era consumido por raiva e sede de sangue. Porém seu instinto era surpreendente, pois por viver demasiado tempo neste tipo de floresta, ele tinha uma destreza para desviar dos galhos das árvores com suas galhadas gigantescas. Não acertava sequer um. Assim, o grupo perdia as esperanças das árvores-vivas os ajudarem. Paula, cega e surda de tanto medo, não vê para onde correu, tampouco escutou Marie lhe chamando.
— Vamos encontrar um lugar seguro – gritou ela. – Paula!
Mas era em vão. Marie teve de apertar um pouco mais a corrida para acompanhar a irmã. Com efeito, as duas se perderam dos harakes. Agora, a alguns centímetros de distância de Paula, ela dá um salto e as duas caem no chão.
— Acalme-se – vociferou Marie.
As pequenas se debatem no chão. Marie tentou acalmar Paula, e Paula tentou não se acalmar.
Elas ouvem um urro amedrontador. O monstro se aproximava. As gêmeas se escondem nos arbustos e esperam.
Não demorou para o pesadelo com pontas achar e começar a vasculhar o local que as garotas se escondiam. Não tinha um faro surpreendente, mas possuía um terrível porrete para espionar entre as mais densas moitas. Ouve-se rochas quebrando e arbustos se despedaçando. Elas sabiam que logo ele as encontraria. Marie observou ao redor e viu uma árvore com folhas de cor-de-rosa-claro (idêntica à que Kinorel tentou arrancar um fruto) bem perto do monstro. Ela pega uma pedra e tem a ideia de tentar acertá-la em um dos seus frutos, para enfurecê-la e fazê-la atacar aquela criatura. Porém não tinha boa pontaria. Todavia Paula tinha.
— Ei – sussurrou Marie, com os nervos saltando no ouvido de Paula –, você precisa acertar aquela fruta, acima do monstrengo.
— Nem pensar! – replicou Paula. – E se eu errar? Aquela coisa vai me matar.
— Você não vai errar. Tenho certeza.
— Não!
Depois de alguma relutância, Paula cedeu com as pernas trêmulas.
Cuidadosamente, as duas saem do arbusto sem serem percebidas pelo monstro. Paula, com a pedra já em mãos, prepara-se para o feito mais decisivo de sua vida. Vida ou morte, meu caro leitor. Ela projeta o braço para ter impulso, fita o alvo e, por fim, arremessa.
Em cheio.
Aquela árvore que se zangara com Kinorel pareceu mais tolerante, pois esta acordou enxofrada até a ponta da mais vermelha de suas folhas. Ela acertou o monstro com todos os troncos e galhos que possuía, jogando-o no chão. Assim, as garotas tiveram a oportunidade de partirem em retirada. Mas não por muito tempo.
As duas escaparam pela primeira rota que encontraram. O caminho estava se tornando um declive perigoso para se correr. Mas as duas não tiveram tempo para pensar em tal acaso. Marie sente o desnivelamento do solo, perde o equilíbrio e rola ribanceira abaixo. E como as pequenas corriam de mãos dadas, Paula também teve a mesma infelicidade.
Splash! Caem num rio raso, ralando-se de todo.
Rapidamente nadam até a borda. O monstro brama com ímpeto do topo do aclive e começa a descer, espumando de raiva, atrás das meninas. Ele desaba na água bracejando. As meninas começam a correr, mas Marie escorrega numa pedra, em razão da sandália molhada. Paula a ajuda, porém o monstro já está perto e com o porrete erguido.
Quando ele ia acertá-las em cheio, Strolf e Snolf aparecem mordendo ferozmente suas pernas, fazendo-o cair. De longe, Tsitarel chama a atenção das garotas para que elas fossem até ela. E elas correram sem pensar duas vezes.
A luta entre o monstro e os vergs continuou por alguns minutos. Quando a criatura era derrubada, Strolf e Snolf pulavam em seu peitoril para rasgá-lo com suas mordidas ferozes, mas o monstro os tirava e os lançava para longe. Eles tornam a ficar de frente com a criatura. Ele urra e eles rosnam. Ele dá passos para trás e eles avançam devagar. Chegam novamente na região íngreme. Ele sobe e eles também. Quando chegou perto do topo, Bellolfa salta na garganta da besta, fazendo-a rolar morro abaixo. Foi um golpe fatal. Agora os três vergs atacavam-no, mesmo após o monstro estar inconsciente.
Fim de luta. A criatura cai inerte no chão e os vergs saem vitoriosos.
As gêmeas se aproximam de onde o combate foi travado. Marie se emociona com tal batalha, porém Paula se perturba. Nunca gostou de lutas, ainda mais as que há mortes.
— Caramba! – exclamou Marie. – Foi melhor que as lutas da TV.
— Isso não foi uma diversão – repreendeu Bellolfa. – Strolf, sabia que iríamos correr perigo por este caminho? Por que não fomos pelo outro caminho? Foi imprudência.
— Mas era necessário – rebateu Strolf. – O tempo pode se tornar um adversário terrível numa guerra. Aliás, esse sarquim – nome da criatura – está mais inteligente do que de costume. Suspeitei que fosse um deles, mas ele se escondeu na floresta e esperou que eu e Snolf passássemos para vos atacar. Não é da natureza deles ser inteligentes em batalhas ou em qualquer outra coisa. Perdoem-me. Agora precisamos acelerar o passo para sair daqui. Não sabemos se outro desse pode aparecer.
Naquele dia, então, o grupo só se preocupou em não encontrar outro sarquim.
No dia seguinte, a floresta estava calma e adorável, e foi assim por alguns dias. Eles caminhavam e recolhiam suprimentos para a viagem. De súbito, o ar ficou seco. As árvores, aos poucos, começaram a sumir e aquele imenso deserto de prata surgiu no horizonte.
Foram longas semanas de caminhada dentro da floresta-viva. Todos tinham suas roupas sujas. As gêmeas usavam o mesmo modelo de pijama, branco com algumas estrelas douradas, nada simétricas entre si. Mas assim que chegaram na divisa da floresta com o deserto, Tsitarel tirou de dentro do alforje de Bellolfa uma vestidura típica para se proteger dos raios do sol, com um capuz acoplado para as pequenas. Era triste, pois os mantos eram brancos, como se fossem novos, e o pijama das garotas estava, além de rasgado em algumas partes, encardido.
— Bom – disse Marie, ao receber sua veste –, é mais bonito do que as sandálias.
Não pense o leitor que era apenas um mar de areia prateado diante do grupo. Era um deserto diferente do que está acostumado. Havia um desnivelamento tremendo nele. A parte alta tinha a cor duma areia bem mais escura e era notável que poderia se pisar e caminhar sobre ela. Porém, por outro lado, a parte baixa lembrava, decerto, areia movediça pelos movimentos ondulantes que produzia. Mas, com a possibilidade de nadar e pescar, sua natureza se assemelhava com o próprio oceano. Tinha, aliás, até algumas embarcações, naus, veleiros, caravanas, etc. Pessoas de pele negra, porém com leves relevos que lembravam escamas, com braceletes dourados nos braços e nas pernas, um véu que encobria os rostos, deixando só seus olhos azuis, como pedacinhos do céu, à mostra; jogavam redes na parte baixa do deserto. Por um tempo, elas sumiam nas areias, contudo, após alguns minutos, voltavam lotadas de peixes.
As meninas, os vergs e os harakes entram no deserto pela parte alta, a qual se conectava com a orla da floresta-viva. O lugar parecia com cais de uma praia, porém com longas escadas para chegar na parte de baixo do deserto. O grupo decidiu andar apenas em linha reta, evitando contato com os moradores, nos quais encontrava-se uma fleuma para com eles. Nenhum deles os olhava por curiosidade. Pareciam até que não existiam para os habitantes daquela cidade. Quando os sete pararam para pedir informação a um comerciante – que, por sinal, havia um a cada dois passos –, eles simplesmente diziam: – Não aceitamos barganha. Ou pague, ou caia fora. – Strolf tentara dizer algo como: – Queremos pedir informação sobre... –, mas era interrompido pela mesma fala: – Se não comprares, aqui não viverás. – Então, o grupo desiste e tenta achar o caminho por si só.
E, afinal, para onde estavam indo?
Snolf explicou às garotas o motivo por terem que cruzar o deserto.
— Toda linha reta é o menor caminho – disse ele. – Se fossemos contornar o deserto, demoraríamos o dobro, talvez o triplo de tempo. E este povo, denominados anaquins, ainda não possuem um lado na guerra contra Zalqui. Se conseguíssemos convencer o imperador a ficar do nosso lado, teríamos uma grande vantagem.
Grande era este imperador. Toda luminária que havia naquela região, apoiados por um pequeno redemoinho de areia, tinha um busto do imperador (sendo ele o único habitante a mostrar seu rosto, juntamente com o resto da família real). Também se lia por todos os lados frases enaltecedoras sobre ele: “Tu és o pulmão das areias, ó Grande, o céu apenas chora quando estás triste, Grande Líder, os montes te invejam pela tua dureza, Luz do deserto”, e entre outras bajulações que não caberiam neste capítulo.
Agora a visão era totalmente diferente: diversos monumentos magníficos eram vislumbrados pelas garotas. Algo semelhante às esfinges rodeava aquele lugar. Contudo não havia apenas as de formatos piramidais, com a base quadrada. Havia esferas, cubos, cilindros, mas todos não eram uma forma geométrica normal, também tinham suas variações. Por exemplo, o cubo era metade no formato normal, e a outra composta por vários cilindros. Com as esferas era divertidíssimo, pois a metade de baixo era normal, e na de cima havia uma estátua típica de um soldado dos anaquins (roupas já conhecidas, mas com uma cimitarra na mão). Às vezes, podia-se encontrar duas das espadas típicas de batalha defronte uma com a outra, sobre a meia esfera, e como o formato não deixava a estátua parada, as espadas de prata retiniam entre si.
A cidade, em sua maior parte, era plana. Porém, conforme caminhavam para o seio dela, um pequeno morro erguia-se e se podia avistar uma fortaleza. Ali, encontrava-se o imperador. O grupo, sem perder tempo, começa a caminhar naquela direção.
No entanto, como uma boa aventura é feita por grandiosas interrupções, a nossa não poderia ser diferente.
Decerto, os moradores daquela cidade eram indiferentes para os viajantes. A não ser as crianças. Se havia alguma no colo ou no chão, a primeira coisa que faziam era fitar os sete. Claro, não importa o mundo em que vivemos, sempre haverá um grupo de peraltas nos rodeando. E neste caso não poderia ser diferente. Quatro garotos e duas garotas anaquianos aprontavam por todos os lados naquela cidade. Eles roubavam coisas das barracas, interrompiam o redemoinho sob as luminárias para que elas caíssem e se quebrassem, jogavam líquido nas estátuas do imperador para fazê-las feder demasiado, roubavam algumas adagas dos soldados e saiam escondidos e furtavam objetos dos viajantes. E, para o azar de nosso grupo, eles eram os únicos estrangeiros a peregrinar no deserto de prata naquela ocasião.
Arão era o nome do líder dos arruaceiros. Era o mais terrível dentre eles. Sempre os motivava a aprontarem. Vivia com um sorriso sarcástico no rosto (como se tudo em sua volta fosse ridículo). Era o mais alto, o mais rápido e o mais forte. Carregava, apenas, um defeito para um chefe, emotivo demais. Algo em seu passado o amargava de tal maneira que seus membros o obrigavam a aplicar algumas travessuras que, certamente, não levariam somente problemas a ele, mas também ao grupo.
Zaia, a mais valente do grupo. Não importava qual eram as circunstâncias ou tipo de perigo que enfrentariam, ela sempre foi a primeira a se propor a desbravá-lo. Gostava de sentir aventura nas enrascadas, pois lhe davam um sentimento de liberdade e felicidade. A não ser quando uma das tramoias do grupo falhava. Nestas vezes, ela sempre é a primeira a perder a cabeça, dizendo para um: – Deveria ter corrido mais rápido –, ou: – Você não disse que aquele vendedor não estava olhando? – E sempre sobrava para o pobre Faust.
Faust, o crânio. Como o leitor já deve estar imaginando, ele seria aquele que orquestrava os planos e prevenia o máximo de erros possíveis. Seu maior medo era que um dos guardas reais o levassem, ou um de seus amigos, para a lenda da bastilha infantil. Que lugar hórrido para uma criança. Dizia-se que o pior dos castigos era quando eles as deixavam trancadas numa escuridão tremenda, apenas levando água e comida, sem interagir com outra criança. Para um pequeno, a solidão é sempre bastante dolorosa.
Demetris e Arquedis, os irmãos sombra. Havia dois anos de diferença de idade entre eles, sendo Demetris o mais velho. Por que sombra? Simplesmente porque ambos tinham uma habilidade espantosa para a furtividade. Sabiam adentrar e sair de qualquer lugar como ninguém. Eram tão bons nisso que ganharam a alcunha de mor-senhores-das-sombras. Conseguiram até mesmo invadir a fortaleza do imperador e não foram pegos. Gênios, diria eu.
Por fim, Izabel, a língua do grupo. Bem, alguém tinha que livrá-los dos apertos, certo? E esse alguém era Izabel. Ela se vestia e tinha o semblante de uma estirpe alta da sociedade e era banhada de um poder de persuasão que deixaria o leitor incrédulo. Toda vez que o integrante do grupo era pego, lá se ia ela conversar com um dos guardas ou distraí-los enquanto os irmãos-sombra operavam o crime. Sendo a única que andava separado do grupo, no caso de alguma encrenca.
As seis crianças anaquianas projetam seus olhares para o alforje de Bellolfa e começam a tramar seu plano para furtar o que havia lá dentro. Faust projeta um estratagema simples, porém perigoso de ser executado. Eles… bem, melhor que o próprio leitor descubra pela cena a seguir.
Eles se dividem em três grupos. Zaia e Arão vão na direção de nossos aventureiros com os olhos cheios de lágrimas. Faust e Izabel observam de longe. E Demetris e Arquedis dão meia volta e avançam para cima do alforje de Bellolfa sem que ela ou os outros percebam. Arão achega-se perto de Strolf e o puxa pela pelugem, para lhe chamar a atenção. Strolf o examina com um pouco de desdém e impaciência. O garoto exclama as mais tristonhas palavras:
— Sr. Verg, forte e simpático – disse ele, forçando o soluço –, teria pô misericórdia de imperador, uma moeda pra eu dá a minha mana pra ela come?
— Pu favor – ajudou Zaia, com sua atuação barata. – Tá miseravi essa fomi minha.
O verg, com a alma gélida, responde o menino:
— Único suprimento do qual carregamos é para nossa jornada. Sinto muito.
Enquanto essa conversa amigável acontecia, Demetris e Arquedis mal tinham chegado perto de Bellolfa. Arão teve de arranjar alguma artimanha para alongar o diálogo.
— E para onde vocês irão? – indaga ele. E impressionantemente o choro e os soluços haviam desaparecido por completo.
— Não é assunto para crianças – respondeu Strolf.
— Mas então, o que elas estão fazendo com vocês? – interpelou Arão, referindo-se à Paula e à Marie.
— A missão delas não é para agora, mas para o futuro.
Marie, montada juntamente com Paula nas costas de Snolf, adorou a resposta que Strolf deu ao garoto.
— É isso aí, pirralho – disse ela. – A gente vai botar pra quebrar.
Arão, apesar de não ter gostado de ser chamado de pirralho, gostou do jeito e da empolgação de Marie. Zaia, pela primeira vez em sua vida, sentiu algo totalmente estranho vindo de seu peito. Uma raiva fervente como enxofre. Como se alguém tivesse lhe furtado uma joia rara. Como se alguém tivesse colhido sua flor preferida. Como se alguém tivesse invadido o mesmo barco que ela e passado a singrar num mar que somente lhe pertencia. Sentiu ciúmes.
Imediatamente, Zaia pisa, não com uma força ponderada, no pé de Arão. Ele a olha e vê uma tempestade em seu olhar e se lembra do seu objetivo. Por sorte, Demetris e Arquedis já estavam vasculhando o alforje de Bellolfa. Eles tiram a lira de Kinorel e começam a se afastar do grupo de viajantes, antes de darem sinal para Zaia e Arão para que partissem em retirada. No entanto, Paula, que não estava nem um pouco interessada na petição de esmola dos garotos a Strolf, começou a olhar em volta para achar algo que lhe apreciasse. Ela vê o alforje de Bellolfa aberto e franze o cenho. A alguns passos, a garota depara-se com Demetris carregando a lira de Kinorel. Ela, montada juntamente com Marie em Snolf, puxa a orelha do verg para chamar a sua atenção.
— O que houve, Lírio-da-Aurora? – indagou o jovem verg, preocupado.
— Olha! – exclamou Paula, apontando na direção dos ladrões.
Snolf dá meia volta para olhar para onde a garota estava indicando, como um cachorro perseguindo o próprio rabo. E, imediatamente, reconhece o instrumento do harake.
— Kinorel! – chamou ele, em voz alta.
Não somente o harake, mas também o nosso grupo inteiro de aventureiros havia se virado e se deparado com o furto. Tsitarel pega sua cítara e tange.
— Kinorel, sua alma foi furtada – traduz Paula, com prontidão. – Vamos! Precisamos alcançá-los.
— Ora, seus miseráveis – esbravejou Strolf, virando-se de volta para onde Zaia e Arão estavam. Porém os dois já tinham sumido.
— Não temos tempo para encontrá-los. Se pegarmos aqueles dois garotos, provavelmente acharemos os outros dois.
O grupo tentou partir em perseguição, principalmente os vergs, os quais eram dotados de maior velocidade. Contudo havia uma grande turba ao redor do grupo, semelhante a uma seara de trigo. Marie, por mero impulso por aventura, apeia-se de Snolf e leva sua irmã junto, correndo atrás dos dois garotos.
— Ei, o que você tá fazendo? – interpelou Paula, verdadeiramente, a imprudência de Marie. Porém já era tarde. Já estavam no meio da multidão, em direção para onde os dois ladrões foram.
— Eles vão fugir – atalhou Marie. – Strolf pode nos seguir pelo cheiro – deduziu ela, mal sabendo que em ambientes muito arenosos e quentes o olfato dos vergs é falho.
A cidade estava entupida de pessoas por todos os lados. As meninas, de quando em quando, batiam no braço de alguém, derrubavam as mercadorias carregadas pelos vendedores (deixando-os enfurecidos), viravam e desviravam ruas e mais ruas, tudo para não perderem os ladrões de vista. Demetris e Arquedis, ao perceberem que não haviam conseguido despistá-las, rumam a uma parte sombria da cidade. Aquele império era localizado bem no centro do deserto, onde, para a luz, não havia esconderijo. No entanto, pelas construções irregulares dos edifícios, o ambiente era volvido por uma penumbra assustadora. Os ladrões, por viverem desde muito cedo nestes ambientes, logo foram penetrando no seio daquele lugar com uma enorme facilidade. As gêmeas, após terem visto os dois virarem num beco e terem feito o mesmo, param e ficam atônitas no que veem, apenas uma gigantesca parede à vossa fronte. Marie colocou o dedo na boca e o mordeu. Em seguida, olhou ao redor para examinar melhor o local onde estavam.
— Admito – disse ela, rindo –, estamos perdidas.
Paula ficou com rosto avermelhado de raiva, parecendo um tomate. Ela franziu o cenho de amargurada, cruzou os braços, semelhante à mãe, Verônica, e respirou fundo.
— Por quê? – ela se perguntou. – Por que a cabeçuda tinha de… Como pôde? O pior é que não posso contestar se é realmente minha irmã, porque é igual a mim. Tá bom! Esquece. – Ela tentou se acalmar por mais uma trapalhada da irmã mais velha. – A gente precisa achar algum lugar. Estou com fome e irritada. E mais irritada porque estou com fome. Não quero saber. Você vai nos arranjar comida.
Sim, Paula sempre foi uma garota medrosa e sem atitude para nada. A maioria das coisas davam-lhe medo ou receio e poucas a deixavam brava. Uma delas vive com ela desde a madre da mãe, Marie. Ela a tirava do sério, e quase sempre pelas atitudes imprudentes. Marie, entre a lâmina e a parede, teve de pensar em alguma coisa para acalmar aquela fera. Por sorte, estavam bem próximos ao que parecia ser um restaurante. Ou algo que se assemelhava.
— Eis aí sua comida – disse Marie, indicando o restaurante.
Se tu estás se perguntando o porquê da irritação de Paula em relação ao suposto restaurante, dar-lhe-ei a explicação devida. Primeiro, não se parecia em nada com um restaurante comum. Não havia uma mensagem de bem-vindo numa placa ou num tapete. Havia uma mensagem feita por arames farpados dizendo: “Pague ou morra”. Esperaria uma vidraça com os lanches à mostra, correto? Bem, havia os lanches, porém dentro de algo que parecia uma carcaça de escorpião enorme. Gosta de lugares com seguranças? Então não haverá no que se preocupar, pois lá havia também as bruxas do deserto. Eram belas? Não o sei, pois cobriam quase todo o rosto, deixando somente um olho à mostra. Claro, num excelente lugar, precisa-se de um nome aprazível: boia da masmorra!
— Eu juro – disse Paula, ao cruzarem a porta do restaurante –, é bom que seja boa a comida. Senão vou te deixar careca.
Tirando o fato de as mesas flutuarem num redemoinho de areia, como as lamparinas, e em cada uma delas haver um gato preto de olhos laranjas, o lugar parecia até que bem simples e normal, sem qualquer tipo de pecúlio. As meninas, então, resolvem se assentar perto de uma janela. Assim que o fazem, o gato resolve erguer-se e se achegar perto de Marie. Ele mia, coça o olho esquerdo e mostra a língua. Ora vejam, inscrito na língua do animal, lá estava o cardápio. Marie se surpreende e acha aquilo entretido. Mas percebe que estava escrito na língua daquele povo, que era totalmente desconhecido para ela.
— Perdoe-me – disse ela ao gatinho. – Não sei ler o que está escrito.
O gato a encara por alguns segundos e inclina a cabeça para direita, e depois para esquerda. De súbito, ele pula no colo da garota e sobe até o ombro dela. Assim, ele se achega perto da bochecha dela, lambe-a, salta outra vez para a mesa, sente o gosto do rosto da menina e, por fim, torna a mostrar a língua.
— Puxa vida! – exclamou Marie, incrédula.
Floresta colorida (salada)
Floresta amarga (salada)
Rapino do mar prateado (peixe)
Fugitivo das areias (sanduíche)
Sol de prata (lanche apimentado)
Escaravelho vermelho (doce)
Os nomes não eram propícios ao apetite, mas como estavam morrendo de fome, resolveram pedir de forma aleatória.
— Um fugitivo das areias e um ferrão dourado – disse Marie ao gato.
— Um rapino do mar e um escaravelho vermelho – completou Paula.
O gato ouve os pedidos e dá um miado. De repente, suas unhas começam a sofrer um acontecimento misterioso. Em uma começou-se a escrever os números 04 e 07 e, na outra, 03 e 06, sendo o código dos pedidos anunciados. Ele efetua uma espreguiçada característica dos felinos após ter um longo e puxado dia de completa folga. E, no fim, ele desce da mesa e se direciona para a cozinha.
Alguns minutos de espera se passam. Paula reclama cada vez mais por comida. Marie já havia perdido os sentidos da audição em detrimento da fome.
Então, para efeito de alegria para as pequenas, sai da cozinha uma mulher trazendo bandejas com os pedidos. Ela os coloca sobre a mesa, fitas as garotas de curiosidade e pergunta:
— São daqui?
— Não – respondem elas.
— Sabem o que são metratons?
— Não.
— Então não têm dinheiro!
As gêmeas se olham e percebem que metratom seria a moeda daquele povo. Não havia como mentirem, porquanto haviam acabado de declarar que não sabiam nem o nome do dinheiro, quem dirá tê-lo. Paula simplesmente começa a chorar de raiva.
— Moça – implorou Marie –, por favor, minha irmã está com muita fome. – Ela nem precisava de esforço para fingir, já estava chorando. – A gente faz qualquer coisa.
— Se comerem – tornou a mulher, num tom ríspido –, somente poderão ir embora quando acabarem o serviço na cozinha e limparem o restaurante. Mesmo se não conseguirem hoje, dou-lhe abrigo. Todavia, só irão embora quando acabarem. Entenderam?
Bem, assim que elas ouviram o “se” como sinal de condição, já começaram a comer. A mulher se direcionou à entrada do restaurante e começou a trocar algumas palavras com as bruxas. Elas fazem um sinal de afirmativo com a cabeça e encaram as meninas.
— Acho que ela falou sério quando disse que só sairíamos daqui quando acabássemos o serviço – observou Paula, após comerem.
— Concordo – respondeu Marie, sem ânimo. Tornou até a mordiscar, devagar, a comida que se restou.
Após terem terminado a refeição, ou seja, enrolar o fim dela, aquela moça que as havia servido já estava defronte à mesa que estavam assentadas.
— Vejo que terminaram – disse ela, risonha. – Agora tomem. – Ela as entregou algo que parecia ser detergente. – Há muito trabalho a fazer. Então melhor se apressarem.
Paula recebeu o detergente e Marie faz uma cara de que a única atividade da qual fizera na cozinha foi pegar a comida e levar para sala de jantar.
As pequenas se dirigem à cozinha. Abrem a porta. As duas ficam estupefatas com o que veem. Logo ao centro da cozinha ficava o local onde lavariam os pratos, porém não era uma simples pia, mas uma fonte. Esta era provida de dois pavimentos: o debaixo, onde colocavam-se os pratos sujos, estava sempre com bastante espuma. E o de cima, donde jorrava a água limpa, contudo não de um jorrar normal em forma parabólica, mas as águas pareciam surfar nos ares, fazendo diversas formas e caminhos diferentes, loops, estrelas, pássaros, ondulações, etc. Um lugar intrigante para se lavar pratos. Também o que chama a atenção é o lugar onde os guardavam. Havia três fileiras, uma em cima da outra, com cerca de dez estátuas de panteras, mas a boca destas era bastante aberta, tocando as patas. E dentro de todas as bocas ficavam guardados os pratos. Porém tinha mais um detalhe. Os cozinheiros não iam manualmente pegar os pratos, eles eram trazidos por gafanhotos. Por fim, claro, o lugar onde cozinhavam de fato. Ele era dividido em três partes: a de baixo, parecida com um forno comum, no entanto, ao invés de ser uma espécie de porta, onde se abriria e se colocaria a comida, eram dentes de dragão feitos de pedra. A parte de cima era uma gigantesca chapa para aquecer os alimentos. Essa era a parte mais comum. Porém, acima da chapa, na parede, havia três tubos, um ao lado do outro, e conforme nos afastávamos destes encontrávamos outros, seria uma série de tubos para cada cozinheiro. No tubo da direita saía as verduras, no da esquerda as carnes e no do meio as chamas. Por que as chamas? Porque ali se faziam pratos especiais dos quais precisavam de uma sessão especial no lança-chamas. Minha nossa, quase me ia esquecendo de comentar sobre o teto da cozinha, uma esplêndida pintura do imperador, Ametraton, sentado em seu trono, despejando areias prateadas por todo o seu reino e olhando para o horizonte do deserto com seus olhos dourados.
As duas garotas avistam outras duas crianças lavando a louça. Um garoto e uma garota, com mais ou menos um ano de diferença entre si. As pequenas aproximam-se deles e resolvem se apresentar.
— Olá! – saudou Marie, tomando a iniciativa. – Meu nome é Marie e esta é minha irmã, Paula. Prazer em vos conhecer. Viemos ajudá-los com a louça.
As duas crianças olharam para as garotas num tom de estranheza, trocaram meia dúzia de palavras em sua língua nativa e gritaram em direção a porta que dava acesso à parte do restaurante, como se tivessem chamando por alguém. E era mesmo, pois a mesma moça que serviu Paula e Marie veio atendê-los. Ela os ouve. A mulher eleva a mão direita na testa, num sinal de que tinha se esquecido dum detalhe. Ela saiu da cozinha e, após alguns segundos, retornou com o gato-cardápio que atendeu as garotas. Ela faz com que o animal abra a boca e toca em sua língua, pegando sua saliva. Em seguida, após ter colocado o felino no chão, a mulher pede para as duas crianças, em seu idioma nativo, para abrirem a boca. Sim, ela coloca seus dedos molhados de saliva na boca dos dois. Eles fazem séries e séries de caretas, como se tivessem experimentado limão amargo. E murmuram algumas palavras em português.
— Eca! – disse a menina. – Isso é muito nojento.
— O seu dedo tinha menos saliva – retrucou o menino.
Paula e Marie, mesmo estando há algum tempo naquele mundo, continuavam a ficar com uma cara de interrogação para todo tipo de acontecimento fantástico que presenciavam. E este não poderia ser diferente.
— Vou nem perguntar – declarou Marie, em resposta à situação.
— Nem eu – corroborou Paula.
— Ainda bem – respondeu a menina anaquiana. – Porque a gente também não sabe como esses gatos funcionam.
— Olha – interrompeu a mulher que trouxe o gato e que fez o acordo com Paula e Marie –, vejo que estão se enturmando rápido. Ótimo. Deixe-me acelerar isso. Esses são meus filhos. Esta é Ana – disse ela, dirigindo-se à garota –, e este é Nero. – E agora ao garoto. Meus filhos, essas são suas companhias na limpeza de hoje. Apertem as mãos e divirtam-se.
Os apertos foram rápidos e secos, nada de efusões exageradas.
A mãe das duas crianças sai da cozinha novamente. Paula e Marie, juntamente com Ana e Nero, começam a lavar os pratos. Os primeiros minutos foram terríveis, apenas se ouvia o barulho de lavagem dos pratos. O ar de constrangimento que emana quando pessoas, ou por terem um passado não muito agradável, ou porque estão sendo obrigadas a cooperarem uma com a outra, começava a invadir aquela fonte. Marie, sempre sendo a mais espontânea, começa um assunto aleatório:
— Quando a gente vai usar o fogo?
— Só os adultos podem usar os fogões – respondeu Nero.
— Que injustiça! Duvidam de nossa capacidade só por sermos crianças? Que calúnia!
— Na verdade, é para nos proteger. Nosso povo tem uma resistência grande em altas temperaturas. Veem as escamas nos adultos semelhantes aos répteis? Quando elas, enfim, começam a aparecer em nossas peles é o sinal que estamos preparados para o calor. Mas as crianças não possuem. Ainda não temos o corpo desenvolvido. E, infelizmente, sendo vocês estrangeiras, nunca poderão usar o fogão.
— Poxa – respondeu Marie, tristonha. – Era a parte mais legal do restaurante.
— Com certeza não era – observou Ana. – Nossos quartos são mil vezes melhores. Temos diversos brinquedos.
— Já somos moças – rebateu Marie. – Não brincamos mais com brinquedos.
— Sério? E que tipo de brinquedo vocês costumavam brincar?
— Sabe, carrinhos, bonecos…
— E o que seriam essas coisas? – interrompeu Nero.
— Como assim? – indagou Paula. – São brinquedos normais.
— Claro que não – respondeu Ana.
— E o que seriam seus brinquedos normais? – inquiriu Marie.
— Armas – respondem Ana e Nero em uníssono.
As meninas ficam perplexas com tal resposta. Que tipo de criança tem como base armas para brinquedos?
Ana percebeu a incredulidade das gêmeas e desatou a rir.
— Não sei de onde vocês vieram – argumentou ela –, mas deve ser um lugar bastante chato.
— Bem, e o que vocês fazem para ser tão necessário o uso de armas como brinquedos? – perguntou Paula.
— Somos…
A mãe das crianças aparece de repente atrás deles e sussurra:
— Mandei vocês limparem, não conversarem. Se quiserem se divertir mais tarde, posso deixá-las dormir convosco esta noite e levá-las amanhã nos morros prateados de Vernas. Mas só terão diversão se terminarem as tarefas.
Por um segundo, as gêmeas puderam lembrar de Verônica, num mesmo tom ameaçador e autoritário de uma mãe.
Como se jogassem lenha ao fogo, essa chamada de atenção fez com que os quatro se concentrassem na lavagem dos pratos. Durou cerca de uma hora, pois havia pratos em abundância. Em seguida, quando se fechou o estabelecimento, pegaram os rodos e as vassouras e começaram a limpar o chão do restaurante. Um trabalho árduo e penoso para crianças. Contudo, com seus esforços, conseguiram terminar antes da hora de dormir. Os quatro resolveram pegar alguns assentos, que deixaram em cima das mesas para limparem o chão, para sentarem e descansarem alguns minutos.
— Ufa, Deus é Pai. Que cansaço! – disse Marie, sentando-se na cadeira. – Então é esse o trabalho que minha mãe tem todos os dias? Abençoada seja essa mulher!
— Alegro-me muito em saber que, pelo trabalho em que vos despejei, nasce um reconhecimento por sua mãe – disse a mãe das crianças, entrando para conferir a limpeza realizada. – Nada mal. A cozinha está limpa, e o chão reluzindo. Bom trabalho. Vamos. Subam e tomem um banho. Vou preparar um jantar especial para vocês.
Nero e Ana se alegram ao ouvir o pronunciamento da mãe. As gêmeas também, claro. Afinal, ganhariam mais uma boia de graça.
Os quatro, então, resolvem subir para o cômodo acima, onde se encontravam os quartos e os banheiros da família. Eles chegam no primeiro andar, sendo este o único acima do restaurante, e as pequenas se deparam com um corredor. Magnífico seja este corredor. Parecia um corredor de castelos da idade antiga, com uns caprichos a mais. Vários archotes acesos para alumiá-lo, estátuas de membros de gerações passadas da família o preenchiam, um tapete constituindo a genealogia do grande imperador, Ametraton, estava estendido pelo chão e, na ombreira de cada porta, havia fincado um suporte onde uma ave de prata bela repousava sobre ele. Parecia com uma pomba, porém, ao abrir os olhos, efeito observado somente à noite, vislumbrava-se uma galáxia cheia de estrelas.
Os quatro atravessam o corredor inteiro, chegando nas últimas duas portas, uma em frente da outra. Então Ana toma a palavra:
— Certo. Elas vão dormir na sala. A gente leva as camas para que durmam de modo confortável. Elas são do seu tamanho, Nero. Empreste algumas de suas roupas de caça.
— Roupas de caça? – interpelou Paula. – Só vamos dormir.
— Bem, não sei se já perceberam, mas os homens daqui não usam camiseta. Só as mulheres usam por motivos óbvios. O único homem dentre o nosso povo que usa alguma vestidura acima da cintura, tirando a cabeça, pois todos nós cobrimos nossos rostos, é o imperador. Sendo ele, também, o único que pode mostrar seu rosto.
— Que absurdo! – exclamou Marie.
— Não concordo contigo. Mas, enfim, a roupa de caça que vos referi são as que usamos quando saímos do deserto para caçar outro tipo de animais. Aqui, a única comida que conseguimos são peixes do mar-prata-escuro.
— Mar-prata-escuro?
— Sim – replicou Nero. – Não perceberam que as areias onde os barcos navegam são mais escuras? E as que pisamos mais claras?
— Verdade! – disse Paula, percebendo este detalhe minucioso.
— Para que não utilizemos o mesmo banheiro – tornou Ana –, Marie toma banho no quarto de Nero e Paula no meu, enquanto eu e o meu irmão aguardamos na sala. E deixaremos a roupa de caça dentro de uma cesta, na porta do banheiro.
— De acordo – concordam as gêmeas.
Assim, Marie entra no quarto de Nero, e Paula no de Ana.
Bem, meu caro amigo leitor, é para mim uma fadiga tremendamente exasperante explicar o que ocorreu nos dois quartos ao mesmo tempo. Portanto, narrarei a experiência de uma e depois de outra. Comecemos com o que houve no quarto de Nero.
A primeira coisa que chamou atenção de Marie ao adentrar no quarto do garoto foi notar uma espessa nuvem de areia flutuando no ar. Tinha um efeito interessante, pois as areias iam e ficavam se movimentando, mas sem perder a forma que estavam compondo. Nero nota a curiosidade de Marie e diz:
— Pode pular. É macia.
— Pular aonde? – perguntou a menina, mas já suspeitando do que Nero estava se referindo.
— Na nuvem, claro.
— Vou atravessá-la.
Nero, para poupar explicações, corre em direção à nuvem de areia, pulando em cima dela. Aterrissou. Não somente isso, porquanto parecia que aquilo era macio e reconfortante.
— Viu? – disse Nero, rindo e descendo da nuvem de areia. – Agora tente…
Mal terminara de completar seu incentivo quando percebeu Marie se jogando em cima da nuvem voadora.
— É a sua cama!? – adivinhou ela, por fim.
Podia sentir a movimentação dos grãos de areia em suas costas, dando-lhe uma sensação esquisita, mas não tirava o conforto. E, deitada como estava, viu em sua frente um arsenal de facas e adagas afiadíssimas. Mesmo sendo uma garota corajosa, sentiu um pouco de receio com tudo aquilo.
— Caramba! – exclamou ela. – Por que tem tantas facas e adagas?
— Tantas? – indagou o menino, ofendido. – Acabei de começar meu estoque. Serei da guarda real um dia. Preciso me preparar para todos os tipos de situações. E isso exige diversos tipos de adagas e facas. Tenho até para caçar cada tipo de animal. – Ele vê Marie se aproximando das armas. A princípio, não se importa, no entanto, Nero percebe que a garota se interessa por sua faca preferida. – Essa não – repreendeu, tirando a faca da mão de Marie com veemência. Ela se assusta. – Desculpe se te assustei. Foi presente do meu pai.
— Eu que deveria pedir desculpas por pegar as coisas dos outros sem pedir – respondeu Marie.
Esta faca não era uma das mais fantásticas que ele tinha. Havia outras melhores. Uma parecia que fora feita com diversos tipos de pedras preciosas diferentes, rubi, esmeraldas, prata, ouro e outros. Mas esta era feita de madeira de olmo e estava gasta e velha. Tinha uma inscrição nela que dizia: “Para o valente Nero”. Devia ter sido feita por seu pai ainda na época que Nero começou a sentir o cheiro do metal da prata.
Em uma das paredes também havia uma plantação de diversos tipos de plantas. Mas não era para refeição, mas sim para veneno. Vários tipos de veneno. O garoto era um prodígio nessa área. A garota pensou, por um momento, no trágico acontecimento caso ele confundisse, pois havia vários copos com diversos líquidos coloridos sobre uma bancada perto da plantação que podia se confundir facilmente com um bom suco.
— Quantos anos você tem? – perguntou Marie.
— Treze – respondeu Nero.
Treze anos e seus brinquedos eram literalmente mortais. Isso intrigou a menina. Se havia alguma dúvida que esse povo fosse belicoso, ela foi evaporada.
— O banheiro é na porta à sua direita – disse Nero.
— Verdade. Obrigada – disse Marie.
Agora vejamos como foi a reação com Paula.
Em relação à reação com a cama de nuvem de areia, basicamente foi a mesma. Contudo teve uma surpresa a mais, pois as areias tinham um efeito diferente, mudavam de cor. Azul, verde, vermelho, laranja. Um espetáculo para os olhos de Paula. Ademais, não havia facas ou adagas, mas sim arcos e mais arcos pendurados. Não eram como os de Nero, cada um designado para um trabalho específico. Eram colocados sobre a parede no intuito de colecioná-los. O atual que Ana usava estava sobre a cama. Brilhava como a lua retesada no céu.
— Sabe atirar? – perguntou Ana.
— Sei atirar pedras – replicou Paula.
— Venha aqui.
O quarto era um pouco maior do que o de Nero, com uma parte totalmente dedicada para praticar tiros. Vários alvos estavam posicionados em diferentes lugares. Ana trazia consigo um arco de madeira que tirou de sua coleção. Ela o concede a Paula e começa a explicar os procedimentos:
— A primeira coisa a se fazer é deixar sua posição conforme a minha.
Paula, deixando seu arco no chão, tenta se posicionar do mesmo jeito de Ana, colocando o seu pé esquerdo à frente, posicionando o direito para o lado, esticando o braço esquerdo na direção dos olhos, mas não muito alto, e simulando o segurar da corda do arco com o direito.
— Excelente – parabenizou Ana, esperançosa. – Agora faça o mesmo com o arco.
Paula pega o arco e efetua a posição ensinada. Ana pega uma flecha de uma aljava pendurada e a entrega a Paula. A garota coloca a parte da frente e afiada no meio do arco, e a traseira na corda. Ela faz força para trazer a flecha para trás.
— Certo – continuou Ana. – Agora mire naquele no ponto vermelho do alvo, prenda a respiração e solte a flecha.
Paula os faz, porém acerta alguns centímetros acima da marca vermelha.
— Nada mal para uma primeira tentativa – disse Ana. – Quem sabe com bastante treino possa ficar boa.
Mas Paula não se contentou somente com o “nada mal”. A garota era perfeccionista. Então, por mero impulso emocional, atira outra vez. Acerta. Acerta o copo d’água, quebrando-o.
— E com um pouco de paciência chegará à perfeição – observou Ana, rindo.
— Desculpa – respondeu Paula, envergonhada.
— Tudo bem. Apesar de não gostar que nada seja subtraído de mim, já não gostava daquele copo.
— Ainda bem. Acho melhor eu ir tomar banho.
— Ana conduz Paula até a porta do banheiro. No caminho, Paula se depara com algumas bestas com flechas no chão. – Ana deve entender muito de armas a longa distância – pensou ela. Enfim elas chegam na porta do banheiro.
— Vou deixar a roupa de caça aqui – disse Ana.
— Certo – concordou Paula.
O chuveiro dos anaquins era o mais incomum de todos. As diferenças eram: duas estátuas de mulheres, diametralmente opostas, segurando uma espécie de vaso na cabeça. Quando se tomava banho, a pessoa ficava exatamente no meio entre elas e acionava uma alavanca. Com isso, as estátuas esticavam os braços e inclinavam para baixo os vasos, despejando a água. Parecia que a água era armazenada dentro delas e, por pressão, chegava e ultrapassava pelo braço, enchendo o vaso. Fato curioso.
Acabado o banho, as gêmeas se direcionam para a sala onde passariam a noite.
A noite foi repleta de diversão. A mãe das crianças trouxe dois grandes bolos em formato de esferas. Estava uma delícia. Depois, começaram a contar lendas para as garotas a respeito de seu povo. Pelejas, intrigas, guerras, dissoluções, dinastias. Quando piscaram, já era a hora de dormir. A mãe e os dois futuros guerreiros se direcionam para os seus quartos. Paula e Marie conversam um pouco antes de dormir.
— Vovô ia gostar de ouvir essas histórias – disse Paula.
— Será que ele fez parte de algumas delas? – perguntou Marie.
— Vovô não é um guerreiro. Ele é o vovô.
— Suspeito. Nós já sabíamos algumas das histórias que eles contaram por causa do vovô.
— É… vendo por esse lado.
— Talvez ele tenha sido importante para eles.
— Ou veio somente em viagem.
— Pode ser. Aliás, eles vão nos levar para onde amanhã?
— Acho que se chama morros de prata de não sei de onde.
— Não sei. Espero que seja divertido. Devíamos estar procurando aqueles dois ladrões. Strolf ficará furioso.
— Pobre Snolf. Ninguém acariciará sua orelha.
— Bellolfa irá nos devorar vivas.
— Tsitarel nos dará uma melodia de sermão.
— Kinorel fará alguma besteira e não seremos castigadas sozinhas.
As duas ecoaram rios e rios de gargalhadas. Eles foram com o tempo sumindo e o som do silêncio da noite foi tomando conta. As duas adormecem sedentas pelo dia de amanhã, e Marie começa a babar outra vez nos pés de Paula.
A claridade alumiava a sala e os rostos das garotas. Marie estica seus braços até estralar os cotovelos, algo perturbador. Paula coloca o travesseiro no rosto para se proteger da iluminação. Ela também sente seu pé molhado e adivinha o que aconteceu durante a noite?
— Quando a gente voltar – disse ela – vou te dar um babadouro.
Marie, em resposta, molha o dedo indicador com saliva e enfia no ouvido de Paula. A menina perde as estribeiras e arremessa o travesseiro na irmã, que não parava de rir. Paula estava mais vermelha do que um nariz de palhaço.
— Ria, ria – pronunciou a garota. – Haverá uma manhã que acordará careca.
— Ora – respondeu Marie –, mil perdões, adorável irmãzinha. Como forma de arrependimento, devolver-lhe-ei o pente que há tanto tempo se afugenta do ninho de periquito que se formou na sua cabeça.
Essa foi em cheio. Marie podia ter ganhando alguns milímetros de cabelo nesses meses de viagem, porém Paula, como já carregava uma longa cabeleira, sofreu por não ter absolutamente nada para arrumá-la, estando, agora, emaranhada.
— Sua idiota – replicou Paula, quase em lágrimas.
— O que está havendo? – perguntou a mãe dos garotos ao entrar na sala.
— Nada – replicou Marie, dando algumas risadinhas sem graça.
— Então se apressem. Iremos daqui a alguns minutos.
Se apressarem com o que exatamente? Não estavam levando nada. O único trabalho que tiveram fora ter guardado os lençóis que usaram para dormir.
As garotas desceram outra vez para o restaurante, onde elas tomaram seu café da manhã juntamente com Ana e Nero. Assim que terminaram, pegaram suas mochilas, como jovens campistas, e rumaram direto para a estrada que levava aos morros prateados.
O restaurante no qual estavam hospedadas ficava ao leste da cidade, quase de encontro com o grande muro que a protegia. Mas este continha outra saída. E para lá eles foram. Assim que chegaram, Nero e Ana tiveram que dar uma grande justificativa do porquê estarem conduzindo as gêmeas para fora do império. Não havia muita restrição no momento de entrada, mas sim no de saída, sendo comum a um povo tão mercenário.
Saindo da cidade, havia uma estrada bem orlada por diversos e diversos montes de areia, dunas. Outrossim, eles tinham uma estrada que levava até os morros de prata, e isso era uma dádiva para aqueles que não conhecem ou vivem no deserto.
Caminharam por cerca de uma hora e meia, quando começaram chegar no pé de um dos morros. E, sem perder o mínimo de tempo, começaram a subi-lo. Passaram-se em torno de cinquenta minutos quando as gêmeas sentiram o nivelamento do solo, chegando ao topo.
Era um pouco mais seca aquela região, mas nada que pudessem se preocupar. E o que havia naqueles morros? Havia vários estandartes com flâmulas abertas. Todas elas continham um belo brasão dourado, com o desenho de olhos na cor do ouro brilhando com o raiar do sol e, abaixo deles, encontrava-se todo o império. Num cercado próximo do grupo, Marie observou uma movimentação estranha das areias e começou chegar perto daquilo. Agora não eram duas ou três ondulações, mas várias. Marie se aproxima cada vez mais, quando Ana a puxou para trás e, neste instante, um leão negro com dois pares de asas, olhos da cor vermelho-alaranjado, uma juba nem tão espessa e nem tão grande e um rabo de aspecto mais modorrento do que o habitual, emergiu das areias. Era uma besta para combate, presa por um grilhão no pescoço.
— Cuidado! – advertiu Ana à imprudência de Marie. – São os caças. São ferozes e cruéis com aqueles que não são seus donos.
— Eu percebi – replicou Marie.
— Vamos prosseguir. Está quase na hora.
— Do quê? – perguntou Paula.
— Mais fácil vocês verem para entender – interviu Nero.
Então os quatro partiram para uma certa aglomeração de pessoas que estava adiante deles. As gêmeas ficaram aguardando por algum acontecimento. E que acontecimento. De longe, viram uma grande tempestade de areia se formando. Ela vinha com grande esplendor, jamais antes visto. Ela chega aos morros, começa a envolvê-los, uma chama se forma dentro dela. Logo, toda nuvem formava um grande fogo prateado e belo. As meninas, dentro dela, ficaram simplesmente estupefatas com o que viam e ouviam. Sim, ouviam. Som suave, como um coral de milhares de crianças com vozes de anjos, ecoava dentro dela. Marie ficou de boca aberta e Paula começou a chorar.
— Por que o choro? – perguntou Ana.
— Porque é bonito – replicou Paula.
Ana foi treinada, assim como a maioria do povo, para ser um tipo de mercenária-guerreira. Não tinha tanto tempo para pensar sobre a beleza das coisas ao seu redor. Vendo a reação de Paula, ela ficou intrigada e pensativa.
A nuvem durou por mais alguns segundos e se dispersou. Logo após, Nero resolve conduzir as garotas para um local um pouco mais à frente.
Espero que o leitor não tenha esquecido de como era o “mar” daquela região do deserto. Somente com areia. Todavia, no lugar onde chegaram acharam a água habitual. No entanto, ninguém bebia dela. Somente mergulharam por alguns instantes e saíram todos sorridentes.
— Por fim – disse Ana –, temos o lago da cobiça. É só mergulharem que sentirão e quase viverão o que mais desejam.
— Como assim? – inquiriu Paula.
— Bem, é só vocês…
Splash!
Marie mergulhou sem hesitar no lago. Depois de alguns instantes, ela começou a boiar na água. – Isso, aplaudam-me. Sou vossa líder e comandante. Vencerei todas as batalhas e pelejas. Eu sou a mais forte – dizia ela.
Paula dá algumas risadas.
— Vai lá – disse Ana para Paula. – Não é tão fundo.
— Tá bom – respondeu Paula, um pouco receosa.
A garota deu alguns passos sutis e tímidos de começo. Tocou a água de leve, para senti-la. Começou a sentir uma sensação extremamente boa. Enfim, submergiu-se. Afundava, e afundava, e afundava, mas não se afogava. As águas começaram a rodar em sua volta. Via todo o seu passado sendo construído na sua frente. De repente, viu-se toda trajada com uniforme de batalha. Estava crescida e uma figura séria no rosto. Um enorme escudo carregava no braço esquerdo. Um grande exército de criaturas maléficas e perversas surgem no horizonte. Marie aparece ao lado e lhe pergunta:
— Está com medo?
— Não mais – responde Paula.
— Agora é você que me protegerá.
— Pode contar comigo.
Paula inalou um grande ar de alegria e orgulho por se sentir tão corajosa quanto Marie. Então ela começou avançar na direção dos monstros. Quando iam se confrontar, Paula vê que saiu da água.
— Então? – disse Ana. – O que achou?
— Quero ir outra vez – respondeu Paula.
— Tem um prazo de uma semana para mergulhar outra vez.
— Que injusto.
— O lago foi feito pelas lágrimas de alegria dum ancião lendário. Ele mesmo sabia que não devemos ficar mergulhando em nossos sonhos, ao invés de tentar alcançá-los e vivê-los.
— Vendo por essa ótica, tem razão. Mas ainda acho injusto.
— Vamos pedir pra mãe – disse Nero – para que vocês possam ficar por mais algum tempo. Afinal, pela despreocupação que carregam, não parecem estar com pressa. Aliás, por que entraram no deserto?
Essas palavras vieram como pedras, atingindo a memória das gêmeas em cheio. De súbito, elas se lembraram dos ladrões na entrada do império.
— Precisamos de vossa ajuda! – exclamou Paula. – Fomos roubados por um grupo, com um líder chamado Arão.
— Foram vítimas de Arão e seu grupo? – perguntou Ana.
— Conhecem eles?
— Claro! Vivem causando confusão por toda cidade.
— Sabe onde podemos encontrá-lo?
— Sem dúvida. Mas, primeiro, conte-nos o que aconteceu.
— Certo.
Se num deserto não costuma chover água, naquela volta para o restaurante choveu multidões e multidões de palavras. As gêmeas contaram cada detalhe do acontecimento. Até mesmo o que não ocorreu. Nero, um especialista em estratégias, foi bolando um plano para resgatarem a lira de Kinorel.
— Irão conosco!? – perguntou Marie aos dois irmãos.
— Sim – responderam os irmãos anaquianos. – O restaurante já está nos saturando. Queremos alguma aventura.
— Ótimo – responderam as gêmeas com grande contentamento.
Bem neste momento, chegaram na entrada leste do império. Apertaram um pouco mais o passo para que pudessem chegar o mais rápido possível na casa de Nero e Ana, em prol de elaborarem o melhor plano e pegarem o necessário para esta expedição maléfica.
Chegam e sobem correndo para o segundo andar. Ana diz às meninas para aguardarem na sala onde haviam dormido. Em seguida, após alguns breves minutos, surgem Ana e Nero. Este levava consigo duas adagas e um rascunho enorme, era seu plano. Essa, por si só, tinha um belo arco de prata com alguns adornos.
Nero pega seu rascunho e o estende numa mesa no centro da sala.
— Venham – disse ele para as gêmeas. Elas se aproximam. – Vejam – estava apontado para um pequeno mapa desenhado –, estamos localizados exatamente aqui – se referindo à parte leste do mapa –, porém eles estão ali – agora mencionava a parte oeste –, no submundo do império. Lá vivem os ladrões e os baderneiros. Os que não aceitam a política do imperador.
— Sério!? – disse Paula, perplexa. – Então se eles estão localizados nesta região, por que o Ametraton não dá um jeito?
— Bem – começou Nero a explicar –, nossa civilização é diferente da sua, prevejo. Pois nós não possuímos prisões ou bastilhas para criminosos. Temos soldados para as guerras e guardas para o imperador, mas não uma polícia. Somos assim para que a sede por ganhos não se perca. Se nos acomodarmos em delegar a responsabilidade de fazer justiça, logo viveríamos com a perda dela. E um bom mercenário tem a sua própria justiça, e não uma coletiva. Assim, vendo esses tipos de criminosos crescerem, o imperador achou uma excelente oportunidade de nós fazermos as nossas justiças. E, afinal, não são bem criminosos, porque não existe lei contra roubo. Logo, não existe crime.
Não se preocupe, bom leitor, se sua cabeça estiver girando. As das gêmeas também estavam. Entretanto, o que preocupava Paula não era o sistema político doido que foi apresentado, mas o perigo que pressentia. Nero, vendo a angústia da menina, resolve acalmá-la, dizendo:
— Acalme-se. Tenho certeza que ninguém irá se machucar ou morrer.
— Como posso acreditar em você? – replicou Paula.
— Simples. Em toda nossa história, nunca houve um homicídio em nossa civilização.
— Como pode ser possível? – perguntou Marie, mergulhando de vez no desentendimento.
— Disso não sabemos muito bem – respondeu Nero. Parece ser algo em nosso sangue mercenário. Bom, não há ganho nenhum na morte dum compatriota, não é mesmo? Mesmo que ele tenha causado bastante confusão.
Pelo menos essa resposta fez algum sentido para as meninas. Um sentido sem explicação? Sim. Mas é isso que faz uma história fantástica ser emocionante.
— Se não precisamos nos preocupar com tal perigo inexistente – continuou Paula –, por que estão levando armas?
— Para as armadilhas – replicou Ana. – Arão e seu grupo roubam os pertences das pessoas e os escondem em lugares extremamente protegidos por diversos tipos de armadilhas. Por esse motivo, as pessoas não costumam resgatar o que lhe foi roubado. Confesso-vos que as adagas de Nero são mais proativas neste tipo de missão, pois os arcos são mais efetivos em guerras. Porém, se por algum motivo precisarmos de um, aqui está.
Mal sabia ela que iriam precisar.
— Mas chega de perder tempo – retomou Ana. – Precisamos atravessar a cidade para chegar no esconderijo. Portanto nossa caminhada será longa.
— Certo – afirmaram as gêmeas.
Assim, os quatro se retiraram do restaurante e começaram a cruzar a cidade. Passaram por diversas lojas estranhas e lúgubres. Algumas vendiam artefatos, armas, peças antigas da família do imperador e, claro, vários tipos de objetos de prata: estátuas de prata, talheres de prata, roupas de prata, carruagens de prata, gente de prata. Tudo de prata. Entraram numa loja de feiticeiras cuja especialidade era produzir caldeirões de prata.
“O submundo do império”, eis o que estava escrito na placa de entrada para aquele lugar. Mas era estranho. Quando atravessaram o portão, as gêmeas se depararam com aquilo que menos imaginavam.
O lugar era calmo e bem iluminado. As pessoas andavam e conversavam da mesma maneira natural como as do resto do império. Na verdade, havia uma diferença: seus rostos estavam expostos. Como de costume daquele povo, ninguém poderia mostrar a própria face, a não ser Ametraton, o grande governador (e sua família). Sendo isto, por evidente, um sinal de rebeldia. E assim que os habitantes daquela região perceberam Ana e Nero com seus rostos cobertos, começaram a vaiá-los.
— Tolos – gritaram eles. – Vós sois a sela onde Ametraton coloca sua traseira. Vejam! Eis os escravos da própria ilusão.
E riam, e riam, e riam, todos em zombaria. Nero e Ana não se sentiram ofendidos. Apenas os ignoravam com polidez. Afinal, como uma boa mercenária que era, sabia que não havia ganhos em dar préstimo a insultos alheios.
O grupo virava e cruzava esquinas e mais esquinas. Porém nada encontraram. Por um momento, viram-se numa parte bastante bela da cidade. Uma estátua bastante alta, lembrando o tamanho do Cristo Redentor da cidade do Rio Janeiro, encontrava-se no meio do submundo do império. Perdoe-me, mas, na verdade, eram duas, sendo de dois homens compartilhando um pão. E sorriam fazendo isso.
As garotas não entenderam por hora. Contudo Nero viu aquilo como afronta para um povo mercenário. Dividir? Um ato perverso para aqueles que amam a usura e as vantagens. Ana talvez ficasse com raiva também, mas avistou algo que, certamente, era mais importante naquela hora. Um grupo imenso de crianças.
E o que há de mais num grupo de crianças, o leitor pode estar se perguntando. A turma de Arão sempre arrumava confusão por onde passava. Mas não deixavam de ser crianças apenas. Sendo assim, quando estavam a sós, eram fáceis de serem apreendidas.
— Vejam! – disse Ana, apontando para o grupo de crianças. – Devem fazer parte da malta de Arão.
— Sem dúvida alguma – confirmou Nero.
— Fiquemos e esperemos a movimentação deles. E, assim que começarem a regressar para suas supostas casas, sigamo-nos.
— Certo! – corroboraram Nero, Paula e Marie.
Os quatro tiveram que esperar por volta de quarenta minutos, pois a criançada parou ao pé das duas grandes estátuas para conversarem e rirem juntos. Mas quando um dos integrantes notou que já estava bastante tarde, resolveu adverti-los sobre a hora tardia. Assim, conversaram por mais alguns breves minutos e começaram voltar para suas supostas casas.
Ana, Nero, Paula e Marie, espertos como falcão para atacar sua presa, começam a segui-los.
Não demorou muito tempo para aquele grupo de crianças chegar ao seu destino. Parecia uma pequena fortaleza, mas sem guardas ou arqueiros para protegê-la. Estava mais para um quartel de crianças travessas.
Zaia recebeu o grupo e percebeu que estavam sendo seguidos, afinal, só estavam andando a alguns metros de distância daquelas crianças. A garota deu uma risada de perplexidade e soltou um grunhido de raiva, pois reconhecera Marie de longe. Marie ri para provocá-la de volta.
— Olha – começou a discursar Zaia –, se não são os cabelinhos de fogo. Parece que conseguiram nos achar. Mas não vão conseguir recuperar nada do que vos roubamos.
— Viemos encarar vossas armadilhas e desafios – replicou Ana.
Como num átimo, todas as crianças que moravam naquele quartel estavam reunidas e riam de Ana.
— Então – apareceu Arão, tomando posse da palavra – acham realmente que podem encarar nossas armadilhas?
— Vocês são ingênuos? – indagou Marie. – Por que nos anunciam que há armadilhas? Aí não serão armadilhas.
Nero cessa sua risada e fica estupefato. Nunca pensou nisso antes.
— Bem – respondeu ele, caçando palavras para seu argumento –, nós dizemos a respeito de nossas armadilhas para facilitar quem irá enfrentá-las – disse ele, e com razão. Nunca houve alguém que pudesse vencer todos os obstáculos impostos por eles. E ele torna: – São apenas cinco salas que terão de enfrentar. Se não conseguirem, viverão sabendo que perderam de vez aquilo que lhes pertencia e não terão ganhos nem credibilidade.
Que afronta! Isso fez com que o sangue de Nero e Ana fervilhasse.
— Nós aceitamos! – exclamou Marie, respondendo pelos quatro.
— Ótimo – respondeu Arão, sorrindo o mesmo sorriso bobo da última vez que se encontraram. Porém havia uma dose de desafio nele. – É por aquela porta – disse ele, apontando, por incrível que pareça, para a porta principal.
Seriam essas armadilhas tão terríveis que nem sequer se dão o trabalho de escondê-las? Bem, vejamos.
O grupo entra na fortaleza dos arruaceiros. Eles se deparam com uma gigantesca sala contígua com a cozinha. Claro, pelo simples fato que aquela residência era ocupada apenas por crianças, o lugar estava um caos. Roupas espalhadas pelo chão, cobertores na cozinha, gente dormindo na cozinha, brinquedos pendurados nos archotes de cera, um caos. E, no meio de toda essa bagunça, Arão conduz os quatro para um mosteiro, que, à princípio, as gêmeas acharam que fosse uma cortina jogada. Por trás dele, havia uma grande porta de metal, com um buraquinho no centro. Neste, Arão impôs uma pequena chave que tirara do bolso. A porta estrala, ele a empurra e, por fim, ela se abre. Logo, todas as crianças cuja atenção estava voltada em badernar o máximo possível tiveram seus olhares fixados para o grupo.
— Eis aí – disse Arão, pomposo, confiante de si. – Aqui está o que tanto desejam. Mas lembrem-se, se forem pegos em todas as fases da armadilha, sendo que somente a primeira tem duas fases, com as outras três, uma perderão. E isso já é uma coisa terrível para um mercenário. A perda. Seja material, seja honrosa.
— Sabemos muito bem disso – respondeu Nero, sem se sentir intimidado. – Nós conseguiremos passar por estas armadilhas e voltaremos com a lira que roubaram.
— Veremos!
Tendo decidido quem era o cão que latisse mais alto, os quatro entram na sala. A porta atrás deles se fecha, ficando numa escuridão terrível.
— Já está começando – disse Ana, com o objetivo de chamar a atenção do grupo e traçar o primeiro plano. – A primeira armadilha é bem evidente, pois é a clássica, não sabemos onde está. Por isso precisamos ficar juntos e ir cuidadosamente neste negrume. Primeiro, vamos nos encontrar – ela aumenta o volume da voz para que os outros três saibam onde encontrá-la. – Nero?
— Aqui – respondeu ele, aproximando-se de Ana.
— Paula?
— Aqui – disse a menina baixinho, porquanto não se distanciara de Ana por medo.
— Marie?
Fez-se silêncio. Ana resolve chamá-la mais algumas vezes, mas sem resposta.
Porém, bem à frente do grupo, ouve-se um ruído estranho, como se alguma coisa fosse acionada. Paula leva as mãos à cabeça e pensa: – Mas é uma idiota.
As luzes se acendem e aquele lugar fica totalmente iluminado. Era uma sala com o chão assoalhado, de paredes brancas e totalmente vazia, exceto por uma ampulheta com cerca de três metros de altura, com a parte de cima cheia de areia, e a de baixo cheia de Marie.
Ana vê que Marie caiu numa armadilha e respira fundo. Nero coça a cabeça. Paula começa a ir de encontro com a irmã aprisionada na ampulheta. Ela se aproxima do vidro e diz:
— Por que não consegue ficar um segundo quieta?
— Ora – replicou Marie, indignada –, cale-se. Parece até que não me conhece. Pare de resmungar e me tire daqui. E seja rápida, a areia está caindo.
— E como faço isso?
— Deixe-me explicar, cabelinhos de brasas ardentes – disse uma voz vinda do teto. Era Faust, o gênio da turma de Arão. Uma portinhola fora aberta no teto e Faust descia em um balanço tradicional, feito de madeira. – Esta sala foi projetada por mim e me orgulho muitíssimo por esta obra – ele olhava em derredor da sala vazia –, que obra-prima! Aqui era necessário apenas que andassem em linha e encontrariam aquela porta – ele apontou para uma porta diametralmente oposta àquela que o grupo usou para entrar na sala. –, mas, como bem sabia eu, Marie claudicou por hesito de um caminho calmo demais e deu um passo para a esquerda. Grave erro. Vocês devem responder às minhas charadas impossíveis de serem respondidas para libertá-la e continuarem seu caminho. No entanto, se passar do prazo de responder todas as perguntas corretamente ou responderem uma incorretamente, perderão e não verão mais a sua lira tão preciosa.
O garoto era um gênio da retórica.
Ana e Nero ficam reclusos com este desafio imposto, pois sabiam cozinhar e lutar, mas não desvendar charadas. Paula põe o dedo indicador na boca, do mesmo jeito que fizera no porão, remetendo o sinal que estava pensando e, também, demonstrava animação. Afinal, era algo que não envolvia perigo iminente.
Os três aceitam. Sim, os três. Pois como Marie foi pega na armadilha, não poderia participar.
Nasce da frondosa,
Precioso como a rosa,
Com graça de moribundo,
Neste instante, Nero e Ana começam a suar de preocupação. Não faziam a menor ideia do que aquilo poderia ser. Mas Paula toma a frente e pergunta:
— Pode repetir?
— O quê? – interpelou Faust, um tanto surpreso, pois parecia que Paula estava com suas engrenagens dedutivas a todo vapor. – Sim, claro – e ele repete a charada.
Paula tinha a unha do indicador direito na boca e começou a roê-la. Ela franzia o cenho e piscava os olhos. Então ela bate o punho direito na palma da mão esquerda e exclama:
— Ah, nossa, como não pensei nisso de forma mais rápida? – disse ela, por fim. – A resposta é livro.
— Não é possível! – murmurou Faust, entregando que a resposta estava certa. – Ninguém antes conseguiu nem acertar a primeira charada.
— Há – debochou Marie com veemência—, se lascou!
— Próxima, meu caro – disse Paula, confiante.
Parece que a menina agarrou as rédeas e domou a situação. Faust pronunciou a primeira charada de cabeça, pois, como ele mesmo disse, nunca ninguém adivinhou sequer a primeira. Então ele teve que mexer em sua vestimenta e procurar alguns papéis. Ele os tira e começa a lê-los.
Suas amadas são cores,
Com elas, faz mil amores,
Tais sem vida, som e fama;
Com toda a certeza, essa charada foi bem mais difícil para a pequena garota. Assim, ela fez a mesma careta e sua unha não fugiu de sua boca. Passou por volta de sete minutos pensando. E, até mesmo, deitou-se no chão para uma nova posição para pensar e deduzir. Paula desfaz a careta, levanta-se carregando uma cara de paisagem e, com ela, encara Faust. E responde:
— Pincel.
— Terrível seja Ametraton! – respondeu o impressionado Faust. – O que tem dentro da sua cabeça?
— Lasanha, hambúrgueres e pizza.
— O quê!? – interpelou Faust, desconhecendo todas essas comidas ditas por Paula. – O que é uma pizza?
— A essência da natureza e a obra-prima dos homens – replicou ela, com exaltação. – Uma comida deliciosa.
— E como se prepara?
— Bem, primeiro…
— OU! – bradou Marie. – Os dois podem trocar receitas mais tarde, mas, agora, acabem as charadas.
Tem múltiplas danças no ar,
Sem poder vê-lo dançar,
E, não sendo interrompido,
Essa, de fato, foi extremamente difícil. Paula das caretas, do dedo na boca, do deitar no chão agora estava rodeando pela sala. Isso durou cerca de quinze minutos. De quando em quando, a garota parava e mexia numa mecha de cabelo e inclinava a cabeça, fixando seu olhar num lugar específico e ali ficava. Então ela teve uma suspeita do que se tratava aquele enigma. Paula andou até Nero e Ana e pediu-lhes uma faca e uma flecha. Eles os concedem. Ela pega as duas armas, ajoelha-se e solta, primeiro, a faca, e inclina a cabeça para escutar o barulho que se fez. Depois, fez a mesma coisa com a flecha. Por fim, a garota se levanta, entrega a faca e a flecha para Nero e Ana, respectivamente, e dá a resposta para Faust:
— O som.
— Mas… como… – balbuciou Faust, incrédulo. – De onde essa menina veio?
— Ela puxou a mim – respondeu Marie, rindo de orgulho.
— Mas não sou burra – retrucou Paula.
Carrega, mas não cansa.
Nele, tudo se descansa.
Montanhas e penas, fardo.
Esta foi a mais difícil, porquanto Faust deixou muitas aberturas para diversas coisas como possibilidade. Marie, conforme a parte de baixo da ampulheta se enchia, deslocava-se para cima. Quando, neste momento, faltando cerca de cinco minutos para que toda areia da parte de cima ecoasse totalmente, a menina tinha apenas a cabeça à mostra.
Paula fez todas as poses, como de costume. Praguejava contra este desafio. – Droga – pensou ela –, esta não faz sentido nenhum. Como pode algo carregar e nele tudo se descansa? Mas que ideia de gente louca! Como alguma coisa pode carregar tudo? – A menina fitou o chão, com o dedo indicador na boca. Ela inclina a cabeça mais para baixo e dá risada. Eureca. Ela avança, faltando meros segundos para que seu tempo acabasse, e grita:
— O CHÃO!
— Naquele momento, a pequena porção de areia que restava, por algum motivo, parou de cair. Toda areia da parte de baixo retrocedeu para cima novamente, sem a necessidade de virar a ampulheta. Uma espécie de porta se formou no vidro, abrindo-se. Assim, Marie saiu tranquilamente.
— Claro – começou a se gabar –, eu sabia que iam me soltar. Jamais duvidei de vocês.
Porém o grupo não achou tanta graça nisso. Principalmente Paula, que agora tinha uma tremenda dor de cabeça.
Enquanto o grupo se zangava com Marie, a porta que era oposta à que eles entraram fez um estralo de abertura. Abriu-se. Os quatro direcionam seus olhares para ela e, como mágica, esqueceram o comentário de Marie e rumaram em direção à porta. Assim que estão a alguns passos de entrar, eles começam a ouvir um zumbido estranho e perturbador. Eles o ignoram por hora. Todavia, quando atravessam a porta, descobrem imediatamente do que se tratava.
A nova sala era desprovida de teto. Logo, a nova armadilha teria de estar acima deles. E estava mesmo. Muitos, vários e vários, milhares e milhares de insetos. Mas não eram insetos normais, afinal, estamos na terra de Tokarisen. Eles tinham a semelhança de um besouro, três pares de patas, um formato circular, cerca de quatorze a quinze centímetros de diâmetro corporal, dois pares de asas, lembrando as de uma libélula, sua camada protetora, encobrindo toda a região superior do inseto, tinha cores como se alguém tivesse derramado potes de tinta neles de maneira não intencional, sendo elas: preto, azul e branco; sua picada continha um certo tipo de veneno que, mesmo em grande dose, era capaz de apenas fazer o sujeito dormir por alguns dias.
Então os quatro entram na sala dos insetos e a porta atrás deles se fecha.
— Que nojo! – exclamou Paula, com um pouco de pavor.
— Quero um – requiriu Marie.
— Viveria desmaiando se tivesses um desses – observou Nero.
— Por quê? – indagou Marie.
— São desconfiados como meu pai e bravos como minha mãe – replicou ele. – Se, por algum motivo, sentirem-se ameaçados, despejarão seu veneno em suas veias. E seja qual for quantidade injetada, estará, com toda a certeza, perdida.
— Então – disse Paula – o que nós devemos fazer?
— Não somos nós – respondeu Ana –, mas o que devo fazer. Olhem ali – disse ela, apontando para uma espécie de objeto flutuante.
Era uma espécie de balão em embuste contendo a face do imperador Ametraton. Havia alguns desenhos jocosos nele, dentes pintados de preto, um bigode horroroso, uma enorme cabeleira bagunçada (sendo o imperador calvo), entre outros. E, preso sobre ele, um alvo brilhante.
Deve ter atravessado a mente do leitor o seguinte questionamento: “Mas isto é, por certo, um desafio, não uma armadilha”. O senhor está parcialmente certo. Porquanto o objetivo central daquela sala é acertar aquele alvo flutuando. Todavia, se por uma maré de azar eles errassem o alvo, sem sombra de dúvida acertariam um inseto, provocando a fúria do enxame que, certamente, os atacaria.
A turma de Arão não era tão maldosa se no caso de outros desafiadores chegassem até a sala e não terem a provisão de um arco e flecha como Ana, pois havia diversas pedras no chão, indicando que as pessoas teriam a paciência de esperar o alvo descer e arremessarem-nas.
Ana tira a aljava das costas em prol de se sentir mais confortável. Pede ao grupo o máximo de silêncio possível, porquanto qualquer tipo de distração poderia ser fatal. Ela toma a postura de atiradora que, apesar de ser nova, já era bem dosada de experiência. Ela escoa todo tipo de pensamento supérfluo e inútil de sua mente. Ana traça uma trajetória imaginária do alvo em sua visão, mais aguçada do que uma águia, pois, relembrando, o embuste não estava estático, mas em movimento. Em seguida, e mais difícil, tenta simular quais serão os próximos encalços aéreos dos insetos os quais circuncidavam o alvo, tendo em conta a sorte de nenhum deles ter audácia de efetuar um rasante aleatoriamente. Ana prende a respiração e chega ao êxtase de concentração. Uma gota de suor escorre pelo rosto. Ela atira. Angustiosos sejam esses segundos. A flecha trespassa o ar numa fúria violenta, emitindo um som alto, como se a própria atmosfera estivesse se ferindo e implorasse por clemência. A flecha passa perto de centenas e centenas de insetos, chegando no coração daquela nuvem formada pelos tais. Paula via algo perturbador naquele disparo, pois a seta não estava na mesma trajetória que o alvo. Por sua mente infantil estar a todo vapor, a menina começa a imaginar aquela legião de miniferas atacando-a. Assim, por excesso de medo, ela fecha os olhos. Ela ouve algo sendo acertado. Um zumbido único começa a se formar, mais alto do que antes. – Ela acertou um deles e, agora, irão nos atacar. – No entanto, conquanto estivesse confusa pelo estado de pânico, percebera que se tratava de um zumbido, não um conjunto de zumbidos em um único som. Ela resolve abrir os olhos e vê as asas da vitória. O alvo tinha uma flecha cravada bem no meio, seu balão-embuste foi estourado, mas agora voava por dois pares de asas que saíam dele, sendo elas as mesmas dos insetos, porém maiores. O alvo-inseto, com suas asas recém-formadas, voa para baixo, em direção à porta trancada que era oposta da qual o grupo havia entrado. Ele avança com tudo e se choca contra a porta. Era esperado, logo, que ele se quebrasse ou, pelo menos, que fizesse um belo estrago na porta. Não foi, porém, o que ocorreu. O alvo-inseto foi absorvido pela porta e sua imagem em relevo ficou gravada nela. Então ouve-se novamente o barulho de destrancamento.
— Essa sala foi rápida – concluiu Marie.
— Sim – concordou Ana. – Faltam mais duas.
— Não percamos tempo – observou Nero. – Vamos!
Paula, Marie, Ana e Nero, após essa breve conversa, correm para mais um desafio, ou armadilha, ou qualquer que seja a aventura. Marie é a primeira a chegar na porta. Ela a abre sem escrúpulos. Entra e sente o chão balançar um pouco. Logo, os quatro estavam reunidos naquela sala estranha, com o odor de madeira velha.
Nenhum dos quatro entenderam do que se tratava aquela sala, pois não era grande, com alguns barris empilhados e uma escada no fundo. Eles não tinham opção alguma, ao não ser subi-la. E é o que fazem. Agora o lugar era um pouco mais espaçoso e havia canhões. Os quatro não ficaram muito para inspecionar a nova sala, pois foram em direção à outra escada perto no centro dela, onde uma luminosidade era vista no topo, na qual uma portinhola encontrava-se aberta. Eles sobem e, imediatamente, preenchem o convés do barco.
Três mastros, contando com o principal, velas brancas enormes e impecáveis e uma extensão relativamente grande. Era, em verdade, uma caravela inserida naquele mundo estranho.
Os quatro estavam estupefatos e confusos com aquela situação. Nero resolve avistar o mar à sua volta e – ora, vejam – areias prateadas. Todavia, centenas de pilares, com uns quinze metros de altura, estavam fixados equidistantes uns dos outros. E isto deixou Ana e Nero amedrontados.
— Esta sala não será moleza, minhas caras – disse Nero para as gêmeas.
— Por quê? – indagaram as duas.
— Parece que nossa missão nesta sala, que não sei se estamos dentro ou fora do quartel, é navegar sem que toquemos nesses pilares malditos.
— Só isso? – interpelou Marie, indiferente. – Onde estaria o perigo que te faz suar pelos olhos e pelas calças?
— Bem, dona engraçadinha – respondeu Nero para o comentário debochado de Marie –, nosso mar desértico está habitado por animais inofensivos e feras terríveis. Uma destas é a Mambaria, uma espécie de cobra negra de razoáveis onze a doze metros de comprimento. Elas não possuem somente um par de presas, mas uma quantidade considerável. Com elas, têm a eficácia de devorarem não só pessoas, mas madeira, como essa de nosso barco. Ah, podem apostar, minhas caras, esses animais, quando veem uma presa, não há quem os impeça de concluir sua caça. Absolutamente nada. E parece que a turma de Arão conseguiu capturar vários desta espécie horrenda de cobras. – Ele coça a cabeça e torna: – Presumo, também, que sou o único a saber manejar uma embarcação. Ademais, nem sabemos qual seria a direção a singrar. Estamos numa enrascada desta vez.
— Acalma-se, Nero – disse Ana. – Nasce a flor da esperança quando diz que sabe navegar numa embarcação como esta. Diga o que devemos fazer e faremos, sem dúvida. A última sala foi um teste de controle por meros segundos. Todavia esta é diferente. Exigirá, além de um trabalho em equipe, uma série de acertos consecutivos. Afinal, como você mesmo disse, basta que nosso barco esbarre em um desses pilares e estaremos perdidos.
— Tem razão! – exclamou Nero, confiante. – Não é hora de fraquejar. Marie – disse ele à menina –, vá até a sala do capitão. Fica logo embaixo do convés de proa. Nela certamente encontrará um mapa.
— Paula – agora para irmã –, dirija-se juntamente com Ana aos mastros para soltarem as gáveas. Tenham cuidado com o mastro principal. Eu cuidarei da âncora.
Apesar de serem crianças, todos exerceram bem suas funções recebidas. Marie achou rapidamente o mapa no meio de tanta papelada. Ana e Paula, providas de uma esperteza, embora Paula não tivesse a mesma destreza de sua companheira, rapidamente abriram as velas do barco. Nero não precisou levantar a âncora, pois ela já estava desancorada, o que confundiu muito o garoto.
O estranho ia acontecer agora.
Quando estavam com o mapa em mãos e as velas soltas, um vento súbito começou a afrontar o navio e ele começou a se mover. Não entende por que isto seria estranho, caro amigo? Bem, por mais que fosse grande e extensa, ainda estavam dentro de uma sala. Por onde estava sendo assoprado tal vento? Por hora, esqueçamos o percalço e concentremos em nossa navegação.
Agora, de fato, com uma lufada forte, o barco começou a se locomover. Nero prontificou-se em agarrar a roda de leme. O menino tinha uma habilidade absurda. O barco havia ganhando velocidade, pois o vento ia se fortalecendo, e se chocaria com um pilar, porém o garoto foi mais astuto e desviou. – Preciso do mapa – pensou ele.
— Marie – chamou Nero –, traga-me o mapa. Rápido!
— Não grite comigo – replicou Marie. – Mereço ser tratada como uma dama.
— Dama das cabeças ocas – retrucou ele. – Ai! – exclamou ele, ao receber um chute da garota.
— Como lê essa coisa? – indagou a dama da cabeça oca.
— Basta você… SEGUREM-SE.
Nero se distraiu por um momento ao dar uma pequena espiada no mapa. Qualquer que seja o veículo, um ínfimo descuido pode gerar um acidente fatal. O garoto teve de fazer uma manobra arriscada para desviar de outro pilar, fazendo todos desabarem sobre o convés.
— Ora – disse Ana –, tenha cuidado, barbeiro!
— Não posso vacilar por um segundo – observou Nero. – Marie, descreva o mapa e não esconda as nuances, e seja clara.
— É muito esquisito – diz ela, esquadrinhando o mapa. – Está cheio de pontos por todos os lados, dificultando minhas habilidades náuticas.
— Os pontos são os pilares!
— Foi o que observei. Excelente percepção. Parabenizo-o por tal proeza.
— O que mais!? O que mais!? – Nero estava começando a se perguntar por que não escolhera Paula para esse designo. Estava começando a ficar crispado de impaciência.
— Não há mais nada aqui – respondeu Marie –, a não ser por uma mancha marrom extremamente mal desenhada. Que horror! Parece que tentou desenhar uma porta e, no meio disso, a pessoa teve um infarto. Preciso lhe ensinar…
— Concentre-se, menina – disse Nero, atrapalhando a interpretação artística de Marie. – Não vê um caça amigável voando na sua frente? Este é o local para o qual devemos ir. Onde ele se localiza?
— Primeiro não temos que saber onde estamos?
Se Nero ficou, nalguns momentos, irritado com os comentários de Marie, agora estava irritado por perceber que ela tinha razão e notar quão foi estúpido quando decidiu começar a navegar sem saber por onde devia ir.
— Ana! – bradou Marie, em cima do convés da proa, na traseira do barco. – Seu irmão está perdido. Precisamos de sua ajuda.
— Ora – disse Nero –, não estou perdido em coisa alguma. Só preciso saber onde estou.
— Isso se chama estar perdido e jactância elevada – retrucou Ana, achegando-se onde os dois estavam.
Paula poderia ter acompanhado Ana, porém se encontrava apavorada, pois não sabia nadar. Imagine se ela caísse do barco e se afogasse com areia? Coisa terrível! Era melhor ela abraçar o mastro principal e, no máximo, esperar por alguma ordem.
— Por mais esquisito que isso pareça – continuou Ana –, ainda estamos dentro de uma sala. Logo, em algum momento, devemos nos encontrar com alguma parede – ela pega o mapa da mão de Marie – e, como nos indica este mapa, a porta está em uma das paredes. Precisamos, apenas, navegar até um extremo e irmos pelos cantos. Uma hora nos encontraremos com nosso objetivo. Por fim, se por um acaso nos desviarmos de nossa rota e começarmos a navegar em círculos… – Ela pega uma flecha especial de sua aljava e a atira em um pilar perto. Dela emana uma nuvem de areia verde, bem radiante, como um sinalizador.
— Agora temos um ponto de partida e um objetivo claro – concluiu Nero. – Segurem-se, estou a todo vapor!
Lá se foram eles para um fim daquele oceano arenoso.
Tiveram, de fato, diversos outros obstáculos a enfrentar além dos pilares. Por algum motivo, provando-se ainda mais que se tratava de um oceano, começaram a se formar vagas de areia, uma após outra, uma mais gigante do que a outra. Ainda por cima, para extremo azar de nossos marujos, os pilares não eram engolidos pelas ondas, mas subiam junto com elas. A pior parte não era subir junto com as imensas ondas, mas descer. Tiveram uma navegação dura. Melhor dizendo, Nero teve uma navegação difícil. O garoto se manteve sob controle na presença daqueles zéfiros virtuosos que provocavam as ondas. Todavia, teve um tremendo calafrio quando a tempestade chegou. Fácil seria se num deserto chovesse água, contudo, via-se a lúgubre tempestade prateada tomar conta da visão de Nero. Agora, sem haver dúvida, teria que desviar dos pilares estando a poucos metros de distância, pois era difícil de enxergar num temporal terrível como aquele.
À mercê da misericórdia da sorte, a tempestade deixou de fustigar e amedrontar por um momento. Encontravam-se sobre uma bonança. Bonança que também se tornou um problema; acabara o vento, logo, o barco estava parado. Balançando, apesar de estar em cima da areia.
— Estou ficando enjoada – murmurou Paula.
— Não é, menina que adorava pescar? – indagou Marie. O pior lugar do mundo, para ela, era o pesqueiro. Não suportava pescar. Achava chato e entediante. Além de odiar peixe do fundo de sua alma.
— Gosto de pescar – afirmou Paula –, mas não passar por uma tempestade e ficar no meio dum mar de areia de prata.
— Não acho graça em ficar parada e esperar a boa vontade do peixe de ser pescado. E nem gosto de comer peixe. Gosto horrível.
— É relaxante pescar. E peixe frito não é ruim.
— Diga isso por si mesma.
Haviam navegado por cerca de duas horas ao todo. Enfrentaram ondas enormes e tempestades de areia sem sequer terem triscado em um dos pilares. Agora estavam certos de que não iam passar pela prova de terem de desviar de outro, pois estavam parados esperando a próxima rajada de vento. Mas como neste e naquele mundo as coisas não foram formadas por circunstâncias doces, porém amargas, tinham um novo problema a ser lidado: a fome.
— Marie – disse Paula –, vamos descer e procurar a cozinha.
— Finalmente disse algo relevante nessas últimas horas – replicou Marie, zonza de fome.
— A cozinha costuma ser perto da sala do capitão – observou Ana. – Não desçam muito, pois se por acaso os céus encherem seus pulmões e assoprarem contra as velas do barco, precisaremos de vocês aqui para as manterem sob ordem.
— Certo! – responderam as duas em uníssono.
As gêmeas, quando o assunto se trata de comida, são as primeiras a tomar partido da situação. As duas entram na sala do capitão e se direcionam para um corredor iluminado por archotes de cera. Não era extenso, tampouco largo, contendo em torno de seis ou cinco portas. Elas resolvem abrir a primeira perto delas. Um quarto fabuloso: uma cama com um cobertor rubro e um dossel de flores amarelas acima. Havia um baú defronte para a cama, o qual as meninas inutilmente tentaram abrir, porquanto estava trancado. Havia um quadro desenhado com diversos pontos. Prestai atenção neste detalhe que lhe apresento, caro amigo leitor! O pé da pessoa que dormitava naquele quarto não poderia pisar na madeira velha do barco. Não. Um tapete branquíssimo o preenchia. Por fim, havia uma espécie de escrivaninha para a pessoa do quarto fazer suas anotações. Anotações estas que as meninas não compreenderam nem ao menos o título delas.
Saindo daquele quarto, entraram no da frente. Estranho. Era idêntico ao anterior. Isso se repetia para os outros quatro restantes. Todavia, quando elas estavam entrando num dos últimos, Paula percebeu que naquele quadro cheio de pontos havia um enorme x bem num canto dele. Quando entraram no quarto ao lado direito, não era um x, mas sim um quadrado localizado na região nordeste do mapa. O que seria aquilo? Por hora, nossas garotas só acharam que haviam resolvido inovar nos dois últimos quartos por sobeja de tinta. Logo, rumaram para uma escada cosida na parede, na qual, decididas a ser esta a última, levando a sério a advertência de Ana, descem. Por sorte, assim que desceram, a primeira porta que viram fora a da cozinha.
Elas entram. Havia uma banheira enorme ao centro da cozinha, cheia de petiscos do mar arenoso. À esquerda, um tanque cheio de algo com parecer de sorvete, dos mais variados sabores. À direita, grudados na parede, ramos de árvores com frutos em seus galhos, bem maduros. Por fim, bem à frente, um pequeno alcantilado com um manancial que jorrava algo semelhante a chocolate.
Foi um banquete sem par. Ao fim dele, as meninas se encontravam estiradas no chão. A boia caíra-lhes pesado. Incrível como o sono nos abraça depois que comemos. Elas adormecem por cerca de uma hora. Acordam com a trepidação do barco, pois o vento, fraco no momento, voltara. Nesse ínterim, as duas enchem um cesto com aquelas frutas e saem da cozinha. Subindo as escadas e chegando no corredor, o navio inclina totalmente para o lado esquerdo, fazendo com que Paula derrubasse as frutas as quais carregava em um dos quartos. Ela entra e Marie a espera na porta.
— Vamos logo – apressou ela.
— Calma, oxi! – replicou Paula.
Ela recolheu rapidamente as frutas derrubadas, levantou-se para sair do quarto e viu uma movimentação estranha no quadro à frente (aquele cheio de pontos e um quadrado). O quadrado estava em movimento, descendo em direção ao sul. Como se todos os piscas-piscas acendessem numa casa na madrugada antecedendo o Natal, Paula ligou todos os pontos sobre aquele enigma.
— Marie – disse Paula –, venha aqui. Rápido!
— O que foi? – perguntou Marie, aproximando-se. – Ande! Temos que voltar para o convés. Meu limite de broncas já estourou por hoje.
— Veja – ela indica o quadrado em movimento –, o quadrado está em movimento!
— Nem me surpreendo mais com as maluquices deste mundo.
— Não, idiota. Hum… espere ele se aproximar do ponto e verá.
— O quadrado começa a traçar uma rota. Ele chega perto de um dos pontos e…
PAH!
O navio fez uma manobra perigosa e Marie caiu no chão.
— Esse Nero é desprovido da faculdade de navegar – disse Marie, levantando-se. – Espera… Quando o quadrado chegou perto de um dos pontos, o navio…
— Exatamente! – atalhou Paula. – Devemos avisar a Nero que ele está navegando na direção errada.
Esquecendo de recolher as frutas que Marie derrubou ao cair e Paula deixando o seu cesto perto do quadro, as duas sobem até o convés principal.
O zéfiro não estava para uma tempestade, mas era o suficiente para navegar em alta velocidade.
— Onde vocês estavam? – indagou Ana, perplexa. – Começamos a navegar há alguns minutos. Todo segundo faz diferença em alto mar.
— Ei – gritou o nauta –, vocês demoram e não trazem nenhuma comida?
— Temos algo importante a te dizer – interrompeu Paula.
A garota conta tudo o que aconteceu lá embaixo. Tudo, inclusive o maravilhoso banquete que comeram e o funcionamento dos quartos em relação aos quadros.
— Pelos olhos de Ametraton! – exclamou Ana. – Então este mapa – disse ela, referindo-se ao mapa encontrado na sala do capitão, o qual estava segurando – era apenas para nos enrolar. Tínhamos que investigar o navio para chegarmos à conclusão de nossa rota. Essa malta astuciosa! Disseram que era somente salas com armadilhas, mas parece que estamos enfrentando, também, testes e charadas. Bom, não importa. Por onde devemos ir?
— Para esquerda – respondeu Marie.
— Estranho, disseram que era um quadrado a representação de nosso barco no mapa? Hum, se essa é forma geométrica, como sabem qual é o lado esquerdo? Seria a frente, atrás, a bombordo ou a estibordo?
As gêmeas se entreolharam com a mesma expressão que haviam esquecido um pequeno detalhe.
— Vou verificar outra vez – disse Marie.
Concordou Paula, sem hesito. Como fora naquela vez no porão, Paula não gostava de perambular sozinha.
— Negativo – replicou Ana. – Tem que ser Paula.
— E por quê!? – inquiriu Marie, indignada.
— Quer um penhor? – Aponte qual lado do barco é o bombordo.
Marie fez uma expressão de cachorro abatido.
— Vá, Paula – determinou Ana. – E seja rápida.
— Protegei-me, ó Eterno – pensou Paula.
Paula desce vagamente até o corredor onde se encontravam as portas. Ela entra no mesmo quarto no qual tinha o quadro com o quadrado. A menina era, de fato, inteligente. Esperou Nero desviar de um dos pilares para saber onde era bombordo e estibordo na figura. O navio desvia. Rapidamente a garota identifica que quando o navio virou a bombordo, contornando o pilar, o quadrado fez o mesmo com o ponto. Por sorte, estava, agora, na mesma direção para entrar, por assim dizer, no mapa ao lado, no outro quarto, onde tinha o x. Paula, num átimo, volta rapidamente para o convés principal e anuncia as coordenadas.
— Ótimo – disse Nero. – Só precisamos seguir em frente e tudo estará de acordo. Paula, volte até o quarto e, quando estivermos perto da virada que dá acesso à direção da porta, retorne com o número aproximado de pontos para contarmos os pilares e virarmos.
É o que a garota faz. Desceu novamente até o quarto onde continha o x no quadro e aguardou.
Tudo poderia ocorrer bem, mas lembremos que Ana atirou uma flecha em um dos pilares. Grave erro! Esses tão famosos pilares são extremamente difíceis de serem quebrados por dentro, mas não por fora. Aquele minúsculo buraco feito pela seta de Ana logo se tornou uma grande fenda, cuja cobra negra não teve trabalho algum para roer e sair. Agora nadava ferozmente por alguma presa. E, por desventura de nossos quatro marujos, em pouco tempo os encontraria.
Ana e Marie revigoravam as forças para deixarem as gáveas estendidas, Nero mostrava toda sua destreza sobre o volante de leme e Paula, deitada sobre a cama do quarto que continha o tão citado x, verificava de tempos em tempos o quadro. Num certo momento, como era previsto, aquele quadrado em movimento no quarto ao lado deu as caras no de agora, à sudeste do mapa. A menina injetou a maior quantidade de atenção para o quadro. Esperou alguns minutos, contou alguns pontos e subiu de volta para o convés, anunciando quantos pilares faltava para Nero fazer a virada.
— Cerca de quatorze pilares a estibordo! – disse ela.
— Certo! – replica Nero.
Não estavam muito longe de seu objetivo agora. Poderiam se tranquilizar. Bem, poderiam.
Sentiram um enorme estrondo vindo da traseira do barco. Todos, exceto Nero, largam a vigia das gáveas e correm para a proa. Chegando lá, não avistam nada. Porém, segundos depois, veem uma cabeçorra saindo das areias, fazendo um arco negro no ar e caindo outra vez.
— O que foi isso? – perguntou Nero, amedrontado.
— Uma Mambaria escapou! – bradou Ana.
— Grande seja Ametraton! Como isso pôde acontecer? Tenho total certeza que não bati em nenhum dos pilares.
— Único pilar que tocamos – disse Paula, gesticulando os sinais de aspas para a palavra tocamos – foi o que Ana atingiu com sua flecha, para sinalização.
A menina tinha um talento absurdo para resolver qualquer quebra-cabeça, ou enigma, ou uma investigação.
— Como pode ser? – indagou Ana. Realmente, os pilares são mais fortificados por dentro do que por fora, mas não é justificável que um mero furo possa ser o suficiente para rachar toda a estrutura. Arão e sua turma devem ter feito algo. Trapaceiros!
— Não entendo muito da vida – anunciou Marie –, mas armadilhas não seriam, por si só, trapaças?
Ana tem suas respostas toldadas.
— Não percamos tempo com observações – disse ela, no fim. – Nero, aquele é o último pilar – Ana aponta para o pilar à frente. Mesmo conversando, estava atenta à contagem de pilares. – Segurem-se!
A situação ficou pesada pelo perigo. Lembremos que os anaquins não matavam uns aos outros, mas parecia que a malta de Arão desejava inovar as coisas. Todos estavam aterrorizados, principalmente Paula. Não bastara enfrentar aquela criatura na floresta-viva, agora teria de lidar com uma Mambaria. Com efeito, com as pernas trêmulas, mal podia ajudar Ana com as gáveas. Por sorte, nenhuma delas se soltou dos mastros. Se todos ficassem no convés e evitassem de cometer qualquer tipo de loucura, poderiam sair desse sufoco. Se, é claro, não tivessem Marie a bordo.
Ouve-se um estrondo na parte inferior da embarcação. Um objeto, em forma de pirâmide, girando, deixando um rastro laranja para trás, voa em direção daquela Mambaria, quase acertando um dos pilares.
Ana, prevendo o desastre que poderia acontecer, rapidamente se direciona para as escadas que davam acesso à parte dos canhões. Porém passaram-se à contagem de pilares para a qual Nero devia se atentar para fazer a curva. Então ele vira, abruptamente, o barco a estibordo e Ana cai no chão, em detrimento do movimento imprevisível. Ela se levanta e consegue alcançar as escadas. Desce. Vê Marie ativando outro canhão e tenta impedi-la, mas era tarde. O canhão dispara.
Pelo fato de a bala de canhão ter uma parte pontiaguda e ser disparada em rotação, tinha um poder devastador para perfurar qualquer coisa, inclusive uma fileira de, mais ou menos, sete pilares. E é o que acontece. As areias faziam, agora, ondulações serpenteadas em detrimento das Mambarias libertas, com fome de marujos.
No entanto, um raio de esperança iluminou os corações de nossos aventureiros. Ao longe, cerca de uns quinze pilares de distância, via-se outra embarcação, exatamente igual à que estavam navegando. Se, verdadeiramente, ao se introduzirem naquele barco e na mesma parte onde, primeiramente, viram-se quando entraram nesta maldita sala, estariam no fim.
As Mambarias encetaram uma perseguição ávida. Todavia, por estarem presas naqueles pilares escuros e desorientadas pela fome, debateram umas nas outras e brigaram entre si, o que é cordial, pois Ana, Nero, Paula e Marie têm uma maior chance de sobrevivência.
Rapidamente, estavam do lado da outra embarcação. Havia uma ponte de ligação já armada para os nossos aventureiros. Tudo o que era necessário seria Nero conseguir parar do lado dela. Ele o faz com perfeição.
— VAMOS! – gritou Nero.
Por fim, estavam na última sala.
Estranho. Era extensa, porém não como a outra que nem víamos uma parede. Podia se ver a porta do outro lado. Parece que a única opção que tinham era andar em linha reta. E é o que fazem. Andam e olham para todos os lados. Nada acontece. Continuam. Marie, como sempre, estava à frente, mas atenta para os lados e para cima. Nero, vendo algo terrível à frente, grita a Marie:
— Pare!
A garota para e olha para baixo. Foi por um triz. Ela sente que a ventania muda para um enorme furacão, bem abaixo de seus pés. Era tão grande que nem se via o fim dele.
— Ora – disse Ana –, o que é isso agora? Que desafio é este? Morrer?
— De fato – concordou Nero –, isto não faz sentido algum. Há somente um vale gigantesco em nossa frente. Não há como dar meia volta. Nem irmos por cima. Que faremos?
Ficaram por cerca de vinte minutos sem uma resposta.
Agora Nero estava brincando com sua adaga, Ana pensava, diante do abismo, com um furacão preenchendo-o, numa solução para aquele problema, Paula, cansada, deitou-se no chão e fechou os olhos e, por fim, Marie pensava na morte da bezerra. Ela ficava de tempos em tempos ora dando uma espiada no furacão (levando os seus cabelos para cima no mesmo instante), ora olhando para aquele inseto apresentado na sala dois, que estava perdido nesta. Ele pousa no chão e caminha em direção ao furacão. Marie vê e espera uma reação óbvia: que ele fosse engolido ou arremessado para longe. Todavia não é o que acontece. Assim que ele entra na área do furacão, por um momento, desce como se fosse cair, porém começa a flutuar numa espécie de pequeno furacão, compatível com o seu tamanho. Apesar de Paula ser mais inteligente que Marie, esta era provida de coragem e faria aquilo que viesse primeiramente em sua cabeça. E sabemos muito bem o que ela fez.
Ana percebe apenas o vulto de um corpo passando ao seu lado e caindo no furacão. Mas, como era previsto, ela vê Marie flutuando numa espécie de furacão adequado para o seu tamanho.
— Estão esperando o quê? – gritou Marie para os três que, a princípio, ficaram aterrorizados com a loucura efetuada pela menina. Mas agora estavam boquiabertos. Podiam ouvi-la claramente, pois o enorme furacão não emitia som algum.
Nero hesita por alguns segundos, mas resolve pular também. Cai. Depois subiu sobre um furacão.
Ana pularia em seguida, no entanto, viu que Paula estava assustada com a altura do pélago. Ela, empática e resoluta como era, resolveu se aproximar da menina e disse:
— Vou contigo. – E estende a mão para Paula.
Agora ela assente dando sua mão para Ana. As duas caminham até a beirada. Assim que chegam, Paula fecha os olhos. Ana conta até três para que elas pulassem em sincronia. Ela o faz. As duas pulam. As garotas, em alguns segundos, estavam num furacão compartilhado flutuando em direção à porta.
— Sabe – disse Ana para Paula –, não menosprezo o medo de ninguém, mas aprendi que ele é, apenas, preconceito dos nervos. E, para relaxá-los, é necessário enfrentar a situação para que eles se acostumem.
A garota entendeu a mensagem com êxito e, tomando o fôlego da coragem, resolveu abrir os olhos. As pernas ficaram duras como gesso, mas ela, agora encarando o próprio medo de altura, olhava para baixo e para os lados. Marie, de longe, estupefata pela irmã ter aberto os olhos, emociona-se de orgulho e brada:
— Ela realmente puxou a mim.
Ana, Nero e Paula caem na gargalhada.
Assim, um a um, chegaram na porta do outro lado da sala, começando por Marie, e adentraram por ela. A última a entrar foi Paula, que, para ela, apesar de ter sido primordial no primeiro desafio, neste ela teve um gosto especial.
Por fim, vencem as armadilhas-desafios de Arão.
Um odor de assoalho velho e de velas desgastadas impregnavam o lugar. Estava, por certo, bem iluminado. Sem ter uma janela, era bastante abafado. Havia todos os tipos de pertences que se possa imaginar: roupas, e joias, e quadros, e enfeites, e tudo. Objetos sem algum pingo de importância eram roubados. Quem, em sã consciência, roubaria uma maçaneta? Ou um cabideiro? Ou um escrínio sem joias? Essa turma tinha um senso de furto estranho. Mas não era hora de pensar no porquê daqueles furtos inúteis, e sim de encontrarem a lira do Kinorel.
E desciam, e subiam, e mergulhavam naqueles montes de tranqueiras. Depois de alguns minutos, beirando uma hora, começaram a imaginar que aquilo fosse outro desafio e que estavam perdendo tempo.
De súbito, ouviram o barulho dum ferrolho sendo destrancado e uma porta se abrindo.
— Então – gritou uma voz –, encontraram a lira? – O brado sarcástico era certamente de Arão. Também se ouvia uma melodia terrível de uma lira.
Arão vinha carregando o instrumento de Kinorel. Provavelmente, como foi o último dos itens presentes a ser roubado, devia ter alojado perto da porta de acesso.
— Ora – disse Ana, tomando a lira da mão de Arão –, dê-me isso. Há de me dar, também, o direito de surrar sua cara. Que espécie de armadilhas foram aquelas. Pareciam mais desafios mortais do que armadilhas em si. Você trapaceou!
— Se, porventura – retrucou Arão –, esquadrinharmos melhor, trapacear não seria uma espécie de armadilha?
— Somente no seu mundo – replicou Paula.
Arão emite uma risada com um pouco de desdém. Ainda estava chateado por perder. No entanto, tinha uma pequena dose de empolgação em seu olhar.
— Tenho que vos parabenizar pelo feito – continuou ele. – Carrego, agora, a certeza de que vocês serão úteis em nossa missão.
— Que missão? – inquiriu Marie, curiosa.
— O maior roubo da história de nossa geração.
— Não participaremos de nenhuma tramoia que envolva vocês – respondeu Nero, veemente. – Não são os patifes de maior mérito do império? Não precisam de nós em seu jogo sujo.
— Claro que precisamos de vocês no meu jogo su… em minha filosofia de vida. Nosso maior roubo requer pessoas com o vosso calibre. Afinal, o cetro de Ametraton não é algo fácil de ser furtado.
— HÁ, HÁ! – riu impiedosamente Ana. – Vocês? Roubando o cetro? Quando pretendem fazer? Antes de varrer o deserto ou depois de amamentarem um caça adulto? Ora!
— Confesso-vos que tivemos uma série de fracassos em efetuar este grande roubo. Porém vimos as capacidades de todos vocês com relação às nossas armadilhas e obtivemos a certeza de que seriam fundamentais em nosso furto majestoso.
— Nunca! – anunciou Nero. – Jamais iríamos contra Ametraton! Sem dúvida.
— De que teriam medo? – indagou Arão. – Afinal, não temos prisões, ou bastilhas, ou calabouços, ou qualquer coisa do gênero.
— Não é questão de prisão – replicou Ana –, mas de honra. Que seria, pois, um anaquim sem princípios? Se, por qualquer aventura, mudássemos quem somos, seríamos como as ondas do mar, levadas de um lado para o outro com o vento. Mas se tivermos confiança no que achamos que é certo, somos como um monte, que não cai e se mantém firme. Vejam só vocês. Se destituíram do que eram. Agora sequer podem ser chamados de anaquins.
Arão sentiu o golpe do argumento de Ana vindo, rapidamente, acertar seu orgulho. Ficou alguns segundos mudo, mas retornou a falar.
— De que adianta ter honra – arrazoou ele – se ela te prende numa treva de medo, onde somos vedados de explorar o nosso intelecto e capacidade. Pois que vários anaquins são repreendidos em mudar seu jeito de pensar com relação à vida, em prol de fazer a vontade de um ser. Isso sim é deplorável a meu ver. Mas chega de conversa fiada e vamos ao que nos interessa.
— Ao que TE interessa, creio eu – retrucou Ana.
— Nada disso – replicou Arão. – Ao que NOS interessa, pois que súdito perderia a oportunidade de frequentar o palácio de seu grande imperador?
O garoto sabia jogar sujo. As palavras “o palácio do imperador” badalaram na cabeça de nossos dois anaquins como o sino do meio-dia duma catedral. Era tentador. O sonho de nossos dois pequenos era visitar o grande palácio. Engraçado como crianças, mesmo sabendo quão errado seja alguma coisa, mudam de ideia por se tratar de algo empolgante.
— Invadiríamos o palácio? – indagou Ana, mas, desta vez, já falava em nós.
— Mas é claro – afirmou ele. – É onde o imperador mora.
Não somente Ana, mas também Nero entrou numa relutância contra aquela tentação. Ambos idolatravam Ametraton, mas queriam conhecer seu lar.
— Topamos – disse Nero. – Mas quando chegar a hora de roubar o cetro, não faremos parte.
Mais tarde ele perceberá que a cumplicidade também faz parte do roubo. Porém, enquanto é criança, sem malícia alguma, apesar de ser considerado um guerreiro, participará do crime sem hesito.
— O que estamos esperando então? – interpelou Arão, com um sorriso vitorioso estampado no rosto. – Vamos!
No fim daquela conversa, ele os conduz para fora daquele armazém de itens roubados. Notemos que Paula e Marie ficaram deslocadas da conversa. Afinal, o que poderiam argumentar? Não faziam ideia do que estavam falando. Palácio? Que diabos de palácio? Paula pensou no quão esquisito era este imperador. Por que protegeria tão bem um cetro? Poderia mandar fazer outro se roubasse. Ou, melhor ainda, poderia usar durante o dia, estando sempre no seu alcance. Bem, algumas coisas tornam-se sacras ou preciosas não por causa do material que é feito, mas sim pelo dono que as possui. Logo entenderão o porquê deste comentário. Por hora, voltemos para a cena das gêmeas.
— E agora? – perguntou Paula.
— A gente tem escolha? – retrucou Marie. – Vamos segui-los.
— Mas Strolf e os outros devem estar preocupados. O pior de tudo é que não conhecemos nada nesta cidade do império. Vamos ter que ir atrás deles neste roubo.
— Terrível! – exclamou Marie, fingindo aflição.
— Você é uma mentirosa. Mal saímos de uma enrascada para entrar em outra e você já se anima. E ainda por cima iremos furtar um objeto.
— Acalma-se. Aqui as pessoas podem roubar. Só somos condenados em razão de uma lei. Se não existe lei, logo não somos culpadas.
— É… acho que você pode estar certa. Mas…
— Então, vamos andando.
Eles atravessaram um longo corredor. Longo mesmo. Definitivamente longo. No final, encontraram uma escada e desceram, chegando naquele mesmo lugar que se encontraram para entrar na sala das armadilhas, ou seja, precisavam apenas subir a escada e recuperariam a lira roubada. Paula ficou com dor de cabeça ao notar isso e Marie riu de raiva.
Desta vez, o lugar estava vazio. Era de dia. Todas aquelas crianças estavam perambulando pela cidade aprontando alguma. Só ficaram os integrantes principais da turma de Arão: Zaia, Faust, Demetris, Arquedis e Izabel.
— Parece que conseguiram recuperar a lira – disse Zaia com desdém.
— Bom trabalho – parabenizou Faust.
— Cale-se, idiota. Não parabenizamos quem consegue recuperar seus objetos roubados.
— Nunca discutimos sobre isso. Nunca conseguiram recuperar nada de nós.
— Preceito imposto agora.
— Faremos um concílio para isto.
— Vou te dar um murro como argumento.
— Preceito imposto.
— Que estresse, hein, filha – observou Marie.
— Lá vem os cabelinhos de fogo – murmurou Zaia consigo mesma. Detestava Marie.
— Obrigada – disse Paula para Faust, agradecendo pela parabenização. – As charadas estavam realmente difíceis.
— Se estivessem realmente difíceis, ele não vos teria parabenizado – observou Zaia.
— Está bem, Zaia – disse Izabel. – Tenho certeza de que Faust melhorará na próxima. E as Mambarias na sua sala vão dar o maior trabalho para colocarmos em novos pilares.
— Teriam sido mais eficazes se tivessem me ouvido em deixá-las todas soltas – replicou Zaia.
— Noutro momento – disse Arão – podemos conversar a despeito de nosso fracasso com as nossas armadilhas. Por hora, vamos discutir sobre como efetuar nosso grande furto. Afinal, finalmente encontramos os integrantes que faltavam.
— Não me diga que… – choramingou Zaia, receosa.
— Sim – replicou Arão –, eles vão conosco.
— Esses paspalhões? – indagou Zaia, apontando para Nero, Ana e as gêmeas.
— Não trabalhamos com pessoas muito agressivas e sentimentais – provocou Marie. A garota estava salivando veneno.
— Vou lhe mostrar quem é agressiva – anunciou Zaia, precipitando em direção à Marie.
Nesse ínterim, Arão interveio na ação da amiga, impedindo-a.
— Acalme-se, Zaia – disse ele. – Não obtivemos nenhum resultado tentando roubar o cetro de Ametraton. Estávamos esperançosos por alguma luz que nos ajudasse nesse furto. Agora não precisamos mais esperar por ela. Não pode negar. Assistimos todo o percurso que eles fizeram e vimos a capacidade imensa que possuem.
— A concordância é absoluta, minha cara – anunciou Marie.
O ambiente ficou mais perigoso do que na época da grande guerra civil dos anaquins, onde o bisavô de Ametraton, Tucretaton, assumiu o poder. Mas não há espaço neste livro para redigir tal feito. Então continuemos com o tempo presente.
Zaia detestava admitir que estava errada. Resolveu, então, nadar no silêncio.
— Está decidido – disse Arão. – Nós iremos…
— Assim que comermos e descansarmos, você ia dizer – cortou Paula.
— Sim, claro. É bem justo. Ficaram lá por um tempo considerável. Durmam algumas horas e comam quando acordarem. O plano só será executado à noite. Izabel, leve as garotas para o dormitório feminino. Nero vem comigo.
— Certo – respondeu Izabel. – Sigam-me.
Ruídos e murmúrios ouviam-se por todos os lados. Ana e as gêmeas resolvem abrir os olhos e se deparam com centenas de outras garotas observando-as.
Já era de noite.
— Ei – disse uma no meio daquela turba –, por que você não tira o véu da cara? – referindo-se a Ana. Lembremos que todos os anaquins eram obrigados a usar véus para esconderem vossos rostos. No entanto, na parte oeste, estando em oposição à Ametraton, ninguém fazia jus à essa lei.
— Porque sou leal ao imperador – replicou Ana.
— E por que seria leal a alguém que nem sabe seu nome? – retrucou a outra menina.
Mesmo Ana tendo sempre uma resposta na ponta da língua, depois de adentrar no lado oeste da cidade, ouvir várias pessoas caçoarem dela por ser leal a Ametraton e discutir com Arão, ela simplesmente perde as estribeiras.
— Não importa – respondeu ela, ríspida. – Por favor – ela respira fundo –, onde está seu líder? Temos que efetuar uma missão com ele.
— Ele vos espera na cozinha – respondeu a mesma garota que lhe fez a pergunta.
— Paula e Marie – Ana, antes de terminar de chamar as gêmeas, vê-as interrogadas por outras meninas.
— Qual seria o problema de babar enquanto dorme? – indagou Marie, com rispidez, para uma garota.
— Sim… estavam realmente difíceis, mas não significa que sou mais inteligente do que Faust – replicou Paula para outra garota, após ser questionada sobre como desvendou as charadas da primeira sala.
— Depois elas podem responder todas as vossas perguntas – disse Ana, agarrando os braços de Paula e Marie e as conduzindo para fora do dormitório feminino com algumas garotas seguindo-as.
Elas cruzam o terreno para entrar no quartel, porém as gêmeas param para olhar as estrelas do céu. Veja, na floresta-viva não tiveram esta oportunidade em detrimento das copas das árvores, e no deserto ficaram alojadas na residência de seus amigos. Sendo assim, nunca puderam perceber que as estrelas, além de serem um pouco maiores, dando a entender que estavam mais próximas, eram roxas, fazendo a noite ser semelhante a um jardim de violetas.
Ficaram, de fato, alguns instantes admirando as estrelas-roxas, mas Ana, como já via todas as noites este espetáculo astronômico, teve pressa de se retirar dali. Portanto puxou as meninas para dentro do quartel.
Chegando na cozinha, sendo essa bem bagunçada, panelas por todos os lados, chão esquálido, copos a lavar, dentre outros, viram Arão, Faust e Nero assentados ao redor da mesa de jantar, aguardando-as.
— Finalmente chegaram – disse Nero. – A comida estava esfriando.
— Seria confiável comer a comida daqui? – observou Ana. – O lugar está, verdadeiramente, um chiqueiro. Poderiam, ao menos, lavarem.
— Ora – ofendeu-se Arão –, e por que faríamos uma coisa dessas? Bagunçaríamos outra vez nalgum momento.
— O ambiente sempre causa perturbações em nosso desempenho – respondeu Paula. – Assim como um campo florido pode nos levar à calmaria, um lugar desarrumado pode nos tirar a concentração.
Às vezes é difícil de acreditar que Paula era a mais nova e que era, apenas, uma criança. Era desajeitada e sem talento para a maioria das coisas. Diferente de Marie, que era talentosa em quase tudo, apesar de ser cabeça oca. Mas quando abria a boca, todos paravam para prestar atenção nela.
— Não vai dizer nada? – disse, por fim, Arão a Faust. Estava esperançoso que o amigo tivesse uma resposta para aquilo. Afinal, era o mais inteligente do grupo.
— Não dá pra ter uma resposta em algo que nunca pensamos antes – replicou ele.
— Será possível!? Ela é realmente mais inteligente do que você? – indagou Arão, estupefato com a situação. Faust sempre foi a pessoa mais inteligente que conheceu em sua vida. Se não fosse Paula, viveria acreditando que ele era o ser mais sábio de todos.
Neste ínterim, Marie chega perto do ouvido da irmã e diz:
— Como consegue prestar atenção em tudo que o pai diz?
— Incomoda-me saber que não presta atenção – replicou ela. – A mãe sempre diz que devemos absorver todos os conselhos que o pai nos dá, porque será importante nas nossas vidas no futuro.
— Antes da gente vir parar aqui, uma semana antes, ela me disse que as instruções, tanto dela quanto a do pai, são como colares preciosos. Mas não entendi.
— Colar precioso? Ah, sim. Ela quis dizer que…
— Não vão comer? – interrompeu Ana.
— Claro – respondem as duas em uníssono.
— Enquanto vocês comem – disse Faust –, irei vos apresentar o nosso plano.
O garoto pega um rolo de papel que estava jogado no chão e o abre sobre a mesa. Parecia que era a residência do imperador vista de cima. E era. Na verdade, a perspectiva não era como se estivessem bem em cima do palácio, mas um pouco afastados, para verem as estruturas abaixo. A primeira delas, preenchendo o canto esquerdo, parecia ser um estábulo, algo como uma galeria de arte à direita e, no centro, o palácio. Todavia, a residência de Ametraton tinha ornamentos ostentosos que estariam fora de alcance para qualquer ser humano. Seis estátuas. Quatro delas, duas à direita e duas à esquerda, ambas fazendo o mesmo gesto, corpo inclinado, inclusive a cabeça, e com as mãos, uma embaixo e a outra apontada, direcionadas para o palácio, como reverência. Outra estátua estava sobre a residência, sentada numa plataforma, como uma liteira sem paredes, também com a cabeça inclinada, oferecendo a última estátua, que estava nas mãos juntadas da mesma, para cima. E a última era de Ametraton assentado em seu trono. E tudo isso estava protegido por uma grande muralha, com torres de vigias em cada uma das quatro pontas.
— O lugar é extremamente protegido e só tem uma entrada – disse Faust. – Inclusive, há guardas reais no portão. Tudo isto para proteger um anaquim.
— O anaquim – retorquiu Ana.
— O espertinho assentado no sólio de idiotas – retrucou Arão.
— Escute aqui. Não ouse falar mal do imperador. Senão nós não vamos.
— Certo, certo, certo. Perdoe-me. Por respeito a vós, não farei nenhuma insolência contra Ametraton.
— Ótimo!
— Voltemos para o plano – disse Faust, impaciente. – É evidente a impossibilidade de nós conseguirmos entrar diretamente no palácio. Sendo assim, nos infiltraremos de uma forma clássica: a clandestina. Bem parecido com as cargas de navios.
— Primeiro, iremos até a casa-da-ração (lugar onde armazenam as melhores rações a serem destinadas para os caças do imperador). Em seguida, esvaziaremos todos os barris cheios de ração. Bom, agora acho que está bem evidente o que iremos fazer. Este é o plano para perfurar aquelas malditas muralhas. Mas ainda temos que entrar no palácio. E isto será feito de forma não tão estabelecida.
— O que quer dizer com não estabelecida? – indagou Nero.
— Eu posso responder essa pergunta – prontificou-se Arão, antes de Faust continuasse a falar. – Não sabemos para onde os vigias da torre estarão olhando ou o que os trabalhadores do palácio estarão fazendo e, o pior de tudo, os guardas reais estão sempre atentos, ou seja, agiremos conforme o aperto da situação.
— A segunda parte do plano é duma negligência imensurável – disse Ana. Algumas horas atrás ela estava batendo o pé, opondo-se contra o furto. Agora opinava sem escrúpulos.
— Porém – responde Arão – é a única opção que temos. Mas talvez as gêmeas tenham alguma outra tramoia em mente – disse ele, direcionando-se para Paula e Marie.
— Então o colar seria algo precioso. E não somente isto, é, também, algo que carregam… desculpe, disseram algo? – indagou Marie. A garota não prestou atenção numa só parte do plano. Ficou matutando o sermão enigmático de sua mãe em sua cabeça. Ainda por cima, como não conseguira desvendar sozinha, teve que apelar para Paula. Assim, nenhuma das duas prestou atenção.
— Tapada como uma pedra – disse Zaia, entrando na cozinha juntamente com Demetris, Arquedis e Izabel.
— Madame ignorância em pessoa – saudou Marie. – Estava morta de saudades, amiga.
— Eu não – replicou Zaia.
— Certo, certo – disse Izabel. – Declaro-vos amigas inseparáveis.
— Jogue essa praga longe de mim – disseram Marie e Zaia.
— Continuando, temos que ir agora. Se nos atrasarmos mais um pouco, não chegaremos a tempo para esvaziar os barris e entrar neles.
— Tem razão – concordou Arão. – Faust pode explicar o plano outra vez para as gêmeas. Agora, vamos todos.
Eles tiveram que caminhar por algumas horas. Nada comparado ao percurso que Ana, Nero, Paula e Marie fizeram, pois como foi dito anteriormente, cruzaram a cidade para chegar no lado oeste. Desta vez, a casa-da-ração ficava nos arredores do palácio, que este, por sinal, localizava-se no centro do império.
Por fim, chegaram.
A casa-da-ração era um enorme depósito, mas com acesso ao público. A ração mais cogitada pelos donos de restaurantes era para o gato-preto-garçom. Pelos soldados, a dos caças. Para esta, era necessária uma carta de aprovação do exército do império para ser adquirida. Ademais, era reservada, basicamente, metade do lugar. Afinal, os caças comiam feito loucos. E, por mais inacreditável que pareça, o grupo entrou neste recinto. Para isso, Izabel ficou distraindo o comerciante enquanto todo o grupo entrava. Quando chegou sua vez, ela teve que desaparecer de vista e retornar dizendo que os funcionários da parte das Mambarias estavam com problemas, fazendo com que funcionário deixasse seu posto de guardar a porta e, ainda por cima, agradecesse a garota pelo aviso.
— Não entendo esse pessoal – pensou Izabel. – Se é tão importante guardar a porta de acesso ao depósito de comida para os caças, então por que ter somente dois guardas? Gente louca.
O lugar era repleto de barris empilhados, mas havia uma parte destinada para cada dia da semana e o lugar para onde ia. Foram na sessão Q-P (Quarta-feira e Palácio). Cada um pegou um barril e o empurrou para a parte onde ficava a ração, esvaziando-o e retornando para onde estavam, deixando-os do jeito que encontraram. Aguardaram um pouco antes de entrarem nos barris, pois só levavam os mesmos para o estábulo do imperador de madrugada.
Marie tinha seus pensamentos dispersos. Esta era a única aventura que se sentia receosa e empolgada. Não é necessário dizer o porquê da empolgação vindo dela. Mas por que a angústia? A menina sempre aprontava na escola com o intuito de chamar a atenção para si. Além disso, entrava em brigas e nunca perdia uma. No entanto, certa vez teve a oportunidade de fazer algo um pouco mais ousado: pichar o muro da escola. Não aceitou, pois sendo sua mãe engajada na política, sempre deixou claro sua visão a respeito para com criminosos e ela sempre foi a maior fonte de inspiração para Marie. Sabemos, por certo, que a menina é um ser louco por aventura e confusão, mas não deixemos de lado sua parcela de justiça que, com o tempo, aumentará com o rumo de nossa história. Por hora, fiquemos com sua confusão interna.
— Eu sei que não é proibido – pensou Marie –,mesmo assim, não deixa de ser errado? Não existe lei contra explodir a privada da escola, mas é errado e dá castigo.
Honremos este argumento irrefutável da privada.
O tique-taque imaginário tamborilava na cabeça de todos os integrantes do crime. Ouve-se o barulho da maçaneta girando. Os carregadores dos barris chegaram. Era a hora do grande furto.
Rapidamente, todos se prontificaram dentro de seus barris. Dois em cada um. Certamente que as gêmeas ficaram juntas.
— E agora? – sussurrou Paula.
— E eu sei lá – replicou Marie. – Quem costuma perguntar sou eu e você responde às perguntas.
Ouviram passos de cerca de três ou quatro trabalhadores.
— Parece que os gatos pretos estão se multiplicando – disse um dos trabalhadores. – A cada dia que passa temos mais trabalho.
— Quanto maior o trabalho, mais são os nossos ganhos, e quanto maior os ganhos, maior a nossa honra – disse outro.
— Meu maior ganho do trabalho é o descanso – observou outro trabalhador. – Vamos levar logo esses barris. Quero ir para casa.
— Certo – disseram os outros.
Um a um os barris foram rolados até uma carruagem com carga. Cavalos normais a puxariam? Não, meu caro amigo leitor. Estamos em Tokarisen. Eles eram além do que isso. Na verdade, todo o aspecto era estritamente igual ao de um cavalo normal, com exceção dos olhos. Estes, pois, eram a imagem do próprio céu à noite. Em cada um deles havia uma constelação sendo projetada, iguais em cada olho, porém diferente em cada cavalo. A cor destes animais dependia da região onde se encontravam. No deserto, o amarelo era predominante.
As meninas, presumindo estarem no topo de todo o carregamento de barris, sentem o solavanco da carruagem partindo. O balançar, o espaço apertado e algumas pequenas saídas de ar para respiração geraram um certo desconforto nas gêmeas.
— Espero que o palácio desse imperador seja próximo – comentou Marie.
— Eu também – concordou Paula.
— Paula, sabe… andei pensando sobre este furto.
— Sim?
— É necessário que algo tenha uma lei para ser errado? Lembro bem o que eu disse anteriormente, mas…
Paula admirou-se muito com Marie. É a primeira vez que a irmã fica receosa por estar fazendo alguma loucura (levando em conta que ela não sabia a oportunidade que sua irmã teve de pichar o muro da escola e hesitou). Porém era a primeira vez que ela se encontrava numa questão tão difícil.
— Bem – Paula resolveu, por fim, dar uma resposta –, vovô disse que as leis são para a ordem, e a moral para nos fazer humanos.
— Mas a moral não depende de cada pessoa? O tio Fred acha indecente o uso de palavrões, mas a tia Helen não.
— Não sei… Acho que deve haver casos específicos para determinados assuntos, mas há morais universais. Por exemplo, todo o ser humano acha, ou deveria achar, que roubar é errado. Ou mentir. Todo mundo acha desleal mentir, mesmo não havendo quem nunca mentiu.
— Então este povo não tem moral?
— Claro que tem moral. A moral de anaquim. Veja, não sei como veio a existir este povo, mas o “normal” deles é serem mercenários e estarem sempre lucrando. Isto é quase instintivo para eles. Mas não quer dizer que não exista uma abertura para mudança. Arão e a turma dele são prova disso. Mesmo assim, é complicado. Há algumas controvérsias também, pois para nós não existe moral para ser humano, mas existe para ser desumano. Não entendo direito. Vovô disse que entenderíamos quando crescêssemos. Acho que agora é melhor darmos preferência ao que é, ou não, permitido.
— Sim, tem razão. Vamos roubar esse cetro.
— Mas você perde o sentimento de culpa muito rápido.
Meia hora depois, a carruagem chega na porta do palácio. Um guarda real, mesmo sabendo quem era e o que havia dentro da carga, para o veículo e faz uma série de perguntas já estabelecidas. Ele exige uma documentação. Nela, a única coisa que importa é selo de aprovação do imperador, tendo ele, qualquer um pode entrar. E os carregadores o tinham. Assim eles conseguiam a permissão para entrar, porém eram escoltados por alguns guardas.
As gêmeas não faziam a menor ideia para onde estavam sendo levadas. Pelas pequenas fendas dos barris, espiam o máximo que podem. Com bastante esforço, chegam a ver que estão dentro de um corredor de um estábulo, com lamparinas iluminando-o. Os carregadores o atravessam deixando toda a carga dos barris num local específico. Resolveram, também, não colocarem os barris um em cima do outro, mas de lado.
Haviam terminado todo o serviço e já estavam se retirando quando um dos soldados impediu um dos carregadores, dizendo:
— Não tenho intenção de atrapalhar seu descanso ou qualquer procedimento de ganhar algo, porém temos, por via de regra, que alimentar durante a manhã, encerrando todo o estoque. Mas recebemos mais um caça essa tarde e ele não recebeu comida alguma. Deve estar faminto.
— E o senhor quer que eu leve um barril para ele?
— Se não for incomodá-lo. Poderia lhe dar uma moeda em troca, mas sabe como não gostamos de perder, certo?
— Claro – disse o carregador, rindo e orgulhoso pela avareza mercenária daquele guarda real.
Os dois escolhem um barril aleatoriamente. Deitam-no cuidadosamente até o chão. O soldado fica admirado e diz:
— Encheram bem. Que peso!
— Gorda é a sua vó – pensou Marie.
As gêmeas ficaram tontas e enjoadas por estarem girando dentro do barril. Os dois, o guarda real e o carregador, abrem a tampa do barril sem notar a presença das duas, em detrimento do negrume do local e por falta de atenção. Então erguem-no para uma espécie de escorregador que dá acesso ao comedouro do caça faminto. Por fim, despejam toda a comida e as duas pequenas.
Elas deslizam e caem no comedouro. Esperam por cerca de cinco minutos, tempo suficiente para os dois saírem de perto, e elas do comedouro. Saindo, ficam aflitas, pois não sabiam que tipo de animal as esperava. Olham em derredor da cela, mas sem encontrar qualquer tipo de ser vivo.
— Acho que eles erraram a cela – comentou Marie.
— Marie… acho que não – replicou Paula, em pânico.
— Por que você acha que…
Marie perdeu o alento para falar, porquanto reviveu uma memória não tão recente, quando estava nos morros prateados, sabendo qual tipo de animal era presente naquele gigantesco estábulo, caças. Devemos lembrar que as gêmeas não estavam prestando atenção no plano de Faust, e ele esqueceu-se de comentar quais animais viviam no estábulo. Assim, as garotas viram uma ondulação se formando no chão e uma cabeça negra estava emergindo. E eis a face do grande leão negro com seus olhos vermelhos e com suas garras amedrontadoras.
Paula e Marie ficam paralisadas diante da fera. Elas resolvem, mutuamente, dar um passo em direção à saída. O caça abre suas asas negras como resposta. Elas retrocedem, mas ele não, continuando com suas asas estendidas. Mas havia algo de errado. Sua cara era de extrema fome e, certamente, em outra circunstância teria avançado sem hesito. Marie, em situações de perigo, tinha seus sentidos apurados e percebeu que o caça não estava encarando as duas, mas somente Paula. Assim, lembrou-se da estranha conexão que ela tinha com os animais daquele mundo.
— É você – anunciou Marie.
— Eu o quê, louca? – indagou Paula, perplexa.
— Ele quer interagir com você.
— Que o Eterno queime sua língua. Vá você.
— Não se lembra da floresta e dos vergs? A natureza daqui gosta de você.
— Mas e as Mambarias? Elas queriam me matar!
— Porque não é muito fácil fazer amizades quando estamos sendo mordidos por outras cobras da nossa espécie. Não acha?
— E se ele me mata?
— Aí você morre.
— Agora que não vou.
— Vai logo. Ou eu vou…
Estavam tão ocupadas discutindo que não perceberam a aproximação do caça. Era, de fato, uma excelente criatura para caçar. Sempre silenciosa. Agora ele estava defronte a Paula. Ele a encara como se dentro dele estivesse martelando duas ações: avançar e não avançar. Estava confuso de fome.
— Dê um passo para trás – sussurrou Marie.
Paula ia responder que não iria dar passo nenhum, mas não tinha outra opção. Então ela deu um pequeno passo para trás. Nada muito explosivo e vigorado.
O caça a acompanha sem desgrudar os olhos dela.
Passo a passo, Paula foi conduzindo o leão negro para o comedouro. Quando ficou bem perto, ela apontava para a comida, a fim de que o caça desviasse sua atenção. E ele o fez. Quando viu toda aquela ração, precipitou-se sobre ela energicamente, devorando-a.
Marie não perdeu tempo. Assim que o leão começou a comer, ela foi direto para a porta da cela para abri-la, mas, obviamente, estava trancada. Começou, então, a dar toques sincrônicos para chamar a atenção do grupo que estava lá fora. Passaram-se cerca de dois minutos. A menina começou a suar frio. Ela encetou o aumento gradativo do som das batidas. Com efeito, ouviu os passos de seus companheiros se aproximando.
— Estou aqui! – disse ela.
— Como foi parar aí? – perguntou Arão.
— Não interessa. Abra!
O barulho da tranca sendo aberta ecoou pela cela. A porta estava aberta. Eles entram num átimo e param atônitos para cena que veem. Marie estava de costas para o que eles estavam vendo e resolveu se virar, bebendo as águas da incredulidade. Paula estava brincando com o caça como se fosse um cachorro. Ela coçava sua barriga, mandava-o deitar, ficar em pé, fazer poses com suas asas; a cena lúgubre anterior foi totalmente apagada por esta.
— Paula – disse Marie –, temos que ir. Diz pra ele que está de saída.
— Agora que ficamos amigos? – indagou Paula, tristonha por ter que se despedir do novo amigo. – Preciso ir – disse ela para o caça.
A fera roça seu enorme focinho no rosto de Paula, como se fosse um mero gato, só que um pouco mais feroz e perigoso; era um sinal claro que sentirá falta da pequena. Assim ela partiu em retirada, mas o leão-negro a acompanhava.
— Não – advertiu Paula. – Deve ficar.
— Ela está repreendendo um caça? – interpelou Zaia, incrédula. Ninguém no império ou em Tokarisen pôde domar um caça de forma normal e amigável.
O grande leão sente-se um pouco cabisbaixo por estar se despedindo da nova amiga, mas consente em deixá-la ir.
Eles saem da cela e a trancam.
— O que é você? – perguntou Zaia, mais admirada do que nunca.
— Eu? – indagou Paula.
— Sim.
— Meu nome é Paula. – Tenho doze… quero dizer, acho que já tenho treze anos.
— Como assim acha? Desvendou todas as charadas de Faust e não sabe a própria idade?
— É que quando entramos no seu mundo, faltava um dia para o nosso aniversário.
— Vocês não são de Tokarisen? – indagou Nero.
— Não – responderam as gêmeas. – Por que acham que somos?
— Achamos que fossem do povo norte, os alruns. Uma raça de guerreiros muito habilidosos no manejo da espada. Apesar de que a cor de seus cabelos é diferente da deles.
— Será que é nesse povo o nosso destino, Marie? – perguntou Paula.
— Talvez – replicou a irmã.
— Que destino é esse? – inquiriu Izabel.
— Depois que roubarmos o cetro, teremos bastante tempo para discutir isso – replicou Arão. – Agora vamos. Podemos acordar outros caças e eles podem ser mais chamativos do que este.
Nossos salteadores rumam para a porta do estábulo para averiguar como é por dentro das muralhas. É impressionante. Primeiro, deparam-se com as magníficas estátuas mencionadas quando estavam vendo o mapa. Todas feitas de mármore. Apesar de estar de noite, o lugar estava bem iluminado, deixando à vista as estátuas, as torres de vigia, a calçada e o palácio. Todos poderiam ver qualquer mísero grão de arroz se movendo no meio daquilo tudo. E isto era um problema.
— Nos joelhos daquela estátua – disse Faust – há passagem para nos infiltrar. Não só nela, mas nas outras três. Precisamos chegar na que está em cima do palácio. Assim entraremos pelo teto. Mas como chegaremos até lá? O lugar está infestado de guardas. E mesmo que escapássemos da visão de todos eles, como fugiríamos da dos vigias das torres?
— Com uma presença maior e mais relevante do que a nossa – replicou Paula.
— E como faríamos isso?
— Com eles – respondeu Paula, apontando para três ondulações no chão, era o caça de anteriormente junto com dois amigos.
— Como você saiu da cela? – disse Marie.
— Ora, pela terra – retrucou Paula.
— Então de que serve a cela?
— Lembra de quando fomos nos morros prateados? – perguntou Ana. – Lá ficam os caças selvagens para adestramento. Depois que são treinados, entendem que devem ficar dentro das celas e alguns vêm parar aqui.
— Entendo. Mas o que vamos fazer agora? Vamos ser uma distração maior ainda com eles por perto.
— Errado – respondeu Faust. – Eles são a atração. Tenho certeza de que vieram atrás de Paula que, por algum motivo natural, gostam dela. Podemos usar isso como uma vantagem.
— Como simular uma briga? – indagou Arão.
— Como simular uma briga – consentiu Faust. – Paula, conseguiria fazê-los fingir que estão brigando?
— Acho que sim – respondeu ela. – Só espero que eles não levem isso muito a sério.
A menina começou a tentar dialogar com os três caças. Eles não entendem muito bem o que a menina queria dizer. Um começa a arranhar o chão com impaciência, o outro lambe uma das asas e o último deita como se quisesse carinho. Ela não retribui este por estar atenta aos outros. Ele se sente enciumado por causa disso. Então ele resolve morder a roupa da menina e sair voando do estábulo, levando Paula consigo. Claro, os outros não aceitam e vão atrás dele.
Paula tinha perdido, parcialmente, o medo de altura na última das armadilhas, porém não numa situação de grande perigo, como voar pendurada na boca de um caça, com enorme risco de queda e vários guardas gritando:
— Precisamos acalmá-los. Arqueiros, em posição!
Se eles vissem que não conseguiriam aquietá-los e perdessem o controle, teriam que neutralizá-los no ar. Portanto cairiam de uma queda considerável e Paula viraria espaguete.
Eles começam a voar em volta do palácio, efetuando alguns rasantes de tempo em tempo. Para eles, era apenas uma brincadeira. Paula saberia se era divertido ou desesperador se não tivesse desmaiado no primeiro rasante. O caça percebe, depois de alguns instantes, que Paula estava desacordada. Todavia não queria assustar a companheira. Assim, ele resolve efetuar um pouso na estátua que está ajoelhada, bem em cima do palácio. Isso distraiu grandemente todos os guardas.
— É a nossa chance – disse Faust.
— Mas e a minha irmã!? – indagou Marie, enérgica.
— Ela está bem próxima do teto do palácio. Basta que usemos o caminho por dentro das estátuas e chegaremos antes dos guardas. Mas é necessário irmos agora.
— Certo!
O grupo, aproveitando toda a confusão causada pelos caças, dirige-se para o joelho da estátua, onde se encontrava a porta para o interior dela.
Eles entram.
A primeira coisa com que se depararam foi um grande lance de escadas em forma de caracol. Eles sobem. Chegam numa região que seria, provavelmente, a cintura da estátua. Desta vez não tinham uma escada para chegarem até o ombro, pois era nele que chegariam na estrutura de apoio da estátua central que está acima do palácio. Ao invés disso, havia um andaime velho que certamente não precisou ser usado muitas vezes e foi deixado de lado. Agora era a única opção que tinham para subirem. Eles o arrastam com auxílio de suas rodas até a região do ombro. Um por um, foram subindo. Não quiseram subir todos de uma vez, pois tinham medo daquilo desmoronar.
Foi um momento de tensão, mas passaram ilesos.
Quando o primeiro chegou no topo, encontrou uma espécie de portinhola. Ele a abre, dando acesso a uma região totalmente escura. Quando todos chegam, alguém resolve perguntar sobre aquele lugar:
— Devemos estar na plataforma de apoio – disse Izabel. – Devemos, apenas, seguir em uma direção para nos atentarmos com alguma passagem acima de nós.
— Como iremos achar alguma passagem acima de nós? – inquiriu Zaia.
— Posso dar um jeito nisso – prontificou Ana.
Ela pega uma de suas flechas sinalizadoras e atira na parede. O local começa a iluminar, mostrando seu formato cilíndrico, ou seja, na verdade, estavam em um dos bastões que eram usados para sustentar a plataforma. Eles caminham em direção ao caminho em que há mais luz, sempre olhando para cima. Depois de terem andado por alguns minutos, acham outra portinhola.
— Essa flecha foi bem útil – observou Arão. – Seu nome será subscrito na história deste grande roubo.
— Se não abrir essa portinhola – disse Ana, nervosa –, vou subscrever outra na sua…
— Já estou indo – atalhou Arão.
A portinhola estava diametralmente oposta a Arão. O garoto, então, deduziu que deveria utilizar da magnificência furtiva de Demetris e Arquedis.
— Delego essa tarefa aos senhores – disse ele a Demetris e Arquedis.
Os dois afirmam com suas cabeças.
Assim, ambos se deslocam para baixo da portinhola. Não há o que fazer a princípio. Eis que Demetris dá um tapa, sem mesura de força, nas costas de Arquedis. O garoto se enfurece. Mas Demetris faz uma série de gestos, totalmente desvinculados de quaisquer sentidos. Arquedis compreende tudo. Não somente isto, mas já se prepara para aplicar o plano. Ele toma uma certa distância de Demetris (sendo que este segurava um frasco aberto contendo um pó vermelho). Ele despeja uma certa quantidade do pó em sua mão e balança a cabeça para dizer que estava pronto. Então Arquedis começa a correr em direção a Demetris, saltando quando estava a um metro deste. Neste ínterim, Demetris arremessa para cima o pó e Arquedis pisa no mesmo. Não somente pisa, mas ganha impulso para subir mais ainda e alcançar a maçaneta da portinhola, pendurando-se nela, pois ela se abria para cima.
— Mas – disse Marie – o que acabou de acontecer?
— Chama-se pó-de-salto – respondeu Ana. – Só pode ser utilizado em dupla e com total harmonia. Um o joga e o outro deve pular antes que o pó alcance o ponto máximo na ascendência. Caso contrário, será como pisar no vento. Isto é propriedade do exército – disse ela para Arão. – E se nossa nação estiver sob perigo e precisarmos do pó?
— Aquieta-te, minha cara – replicou Arão. – O exército fabrica toneladas deste pó por semana. E desde que Ametraton assumiu o comando, não entramos em mais nenhuma guerra por expansão territorial ou não somos invadidos faz décadas. Demetris e Arquedis tiram uma quantidade ínfima do estoque por mês. Não faz diferença alguma.
— Mas…
— Veja como é eficaz esse pó – disse Arão, citando o próximo movimento que Demetris efetuará.
Ele põe outra porção do pó-de-salto em sua mão e a arremessa para cima. Arquedis, vendo a aproximação do pó, soltando-se da portinhola, cai com os dois pés naquele punhado vermelho e salta novamente, conseguindo abrir a portinhola com um empurrão de seu corpo. Rapidamente atravessa-a e busca algum tipo de corda para puxar os outros. Ele não consegue uma corda, mas encontra uma Paula. A garota não ficara por muito tempo desmaiada. Ficou simplesmente admirando a estátua ajoelhada. Agora estava indo juntamente com Arquedis em direção à portinhola.
Se o nobre leitor estiver se perguntando: onde estão os caças que serviram como grande distração para o nosso grupo de ladrões? Bem, conforme nossos salteadores foram se infiltrando na primeira estátua, os leões-negros pousaram na grande plataforma quadrática que é apoiada pelas estátuas nas laterais do palácio; que faz a divisa entre a casa de Ametraton e a estátua do servo ajoelhado. A princípio, ficaram rodeando a pequena Paula, estirada no chão. Em seguida, cerca de três minutos depois, cansaram de esperar a amiga e resolveram bagunçar a galeria de arte do imperador.
Paula e Arquedis põem a cabeça na portinhola aberta e veem o resto do grupo abaixo deles.
— Paula! – exclamou Marie, aliviada por rever a irmã.
— A espertinha voltou – murmurou Zaia.
Ela não gostava de Marie e não tinha nada contra Paula, contudo, esta era tão parecida com a irmã que também passou a odiá-la.
— Como pretendem nos tirar daqui? – indagou Nero.
Paula olha em derredor de si. Não encontra nada que possa ajudá-la a resgatá-los. Em seguida, fita diretamente a estátua ajoelhada sobre a plataforma e vê sua porta de acesso aberta.
— Olhemos se há alguma corda dentro da estátua – disse ela para Arquedis.
Os dois rumam para a estátua ajoelhada e entram. Havia vários materiais de construção, inclusive a própria corda. Mas a menina também se deu conta de uma entrada no chão. Paula pega a corda e os dois voltam para a portinhola.
— Achamos uma corda – disse Paula, jogando uma ponta da corda para o resto do grupo enquanto ela e Arquedis seguram na outra.
Marie a agarra e se prepara para ser puxada. Paula e Arquedis começam a puxá-la, dando passos para trás.
— Precisa parar de comer tanto pão – comentou Paula.
— Perdoe-me, miss universo – respondeu Marie, com desdém.
Pouco a pouco, também com um pouco desses elogios fraternos de ambas as irmãs, Marie chega ao topo. Agora tinham três pessoas para puxar o resto dos integrantes do grupo.
Um a um, chegaram todos ao topo.
— Devemos nos infiltrar no palácio – disse Arão.
— Mas – contestou Nero – o palácio está abaixo de nós. Como passaremos pela plataforma?
— Há uma passagem dentro da estátua ajoelhada – retorquiu Paula.
O grupo, então, sem pensar, ruma para o interior da estátua. Chegando lá, encontram a tal passagem e a abrem, deparando-se com uma grande escada encaracolada que dava acesso ao palácio de Ametraton.
Eles descem toda a escada e chegam no teto do palácio. – Estranho – pensaram todos. Não havia nenhum tipo de porta de acesso para dentro do palácio. Por sorte, trouxeram a corda que os havia ajudado anteriormente e podiam usá-la para chegarem numa sacada que havia ali.
Foi uma atitude rude não mencionar a beleza do palácio. Ei-la: a entrada tinha três fontes d’água com uma estátua de um antepassado de Ametraton em cada uma, o pai se encontrava no meio. Logo à frente, degraus de mármore branco se estendiam até a porta. E, em toda a sua extensão, na fachada, várias séries de entradas abóbadas, semelhante a uma bela catedral. Claro, para a entrada principal, havia uma passagem em arco demasiada grande. Contando com o solo, havia nove andares no total. A cada dois deles, as janelas mudavam seu formato. A primeira série era de janelas em formato oval na parte de cima e quadráticas embaixo. Em seguida, dois andares de janelas feitas de madeira negra e com moldura gótica. A outra era semelhante às de palacetes antigos, com uma estrutura de gelosias. E a última com portas de vidro para acessar as sacadas.
Agora que nos informamos a respeito da beleza do palácio de Ametraton, podemos prosseguir com o crime.
Arão estende a corda para uma das sacadas. Ele a segura enquanto cada um desce por ela. No fim, Arão salta e é segurado por Nero, Demetris e Arquedis.
A porta da sacada estava aberta. Então rumam quarto adentro.
Deveriam ter pensado na ardilosidade na hora de entrar dentro do quarto, pois a criança de olhos dourados não gostou nada disso.
— Quem são vocês? – perguntou Ladrina, filha do imperador.
Todos ficam sob um semblante de pânico. Mas Izabel toma a frente e começa seu trabalho sórdido.
— Fazemos parte do novo setor de diversão – argumentou ela. – Viemos diverti-la.
— Mas nós temos um setor de diversão?
— Claro! Os anteriores eram, verdadeiramente, ruins. Por isso a senhorita não ficou sabendo.
— Deveriam ser mesmo. E do que nós vamos brincar?
Ladrina tinha por volta de sete anos. Não desconfiou de nada. Porém Izabel não possuía uma brincadeira em mente e, se começassem a brincar, aumentariam as chances de serem pegos.
— Tenho uma brincadeira ideal – observou Marie. – Que tal se brincássemos de polícia e ladrão?
Todos perderam o alento naquele momento. O que Marie tinha na cabeça em expor tal brincadeira?
— Como se brinca disso? – indagou Ladrina. – E o que é uma polícia?
— É extremamente simples – replicou Marie. – Uma pessoa será o policial. Este tem como principal função capturar um ladrão. Neste caso, ele deve achar e tocar nos outros participantes que serão os ladrões. Quando o ladrão for tocado, deverá se direcionar para a prisão, cuja localização será neste quarto. O jogo acabará quando todos os assaltantes forem pegos.
— Parece ser divertido – respondeu Ladrina.
— Ótimo! Quer ser a policial?
— Com toda a certeza.
— Então feche os olhos, conte até cinquenta e venha nos encontrar.
Rapidamente, todos se dispersam pelo palácio. Eles resolveram se dividir em dois grupos de três: Marie, Paula e Arão e Zaia, Izabel e Faust. Também em dois grupos de dois: Arquedis e Demetris e Nero e Ana. Estes não estavam, de fato, procurando o cetro, mas passeando e vislumbrando todos os corredores, quartos, luminárias, cômodos, móveis e tudo que havia dentro do palácio, embora estivessem evitando os dois últimos andares, pois tinham o risco de serem pegos por Ladrina no jogo. Ademais, havia somente quartos nestes andares. Portanto poderiam se deparar com outro integrante da família, cuja idade seja superior o bastante para discernir um crime de uma brincadeira infantil.
Arquedis e Demetris tinham um trabalho sem dificuldade em sua essência, mas árduo em sua prática. Pois conforme iam investigando cada cômodo (sendo muitos), deveriam traçar a melhor rota de fuga para todo o grupo.
Zaia, Izabel e Faust estavam zombando de todos os bustos dos antepassados de Ametraton que havia numa sala.
— Credo! – disse Zaia. – Este é muito narigudo.
— A cabeçorra deste é perfeitamente redonda – disse Izabel. – Dá até pra chutar.
— Este tinha aversão à comida – comentou Faust. – Vejam como está magrinho como um fóssil.
— Como pode haver tanta gente feia num só lugar? – perguntou Zaia. – Deveria ser um crime.
— Sem dúvida alguma! – exclamou Izabel. – Quando voltarmos ao quartel, você será detida.
— Engraçadinha. A rainha da comédia.
— Estou sempre reinando.
— Por hora, Vossa Majestade poderia proclamar a nossa saída deste cômodo chato.
— Tem razão – disse Faust. – Não tem nada para fazermos aqui.
Assim, os três se direcionaram para outro cômodo.
Marie, Paula e Arão tiveram a sorte grande de encontrarem uma das salas de jantar de Ametraton, com cerca de quarenta cadeiras para os seus convivas. No entanto, a sorte não estava transbordando, pois não tinham tempo para se sentarem e apreciarem aquele banquete. Então, em seguida, direcionaram-se para o cômodo ao lado. Era estranho. Não havia nada além de extensos tapetes estendidos no chão, todos repletos de tradições antigas escritas.
— O que significa este lugar? – interpelou Marie.
— Provavelmente – respondeu Arão – deve ser aqui onde Ametraton treina suas habilidades de luta. Posso não gostar nem um pouco desse patife, mas admito que sejam reais as lendas a respeito de ser um incrível belaz anaquiano.
— Que lendas? – perguntou Paula, curiosa.
— As de que Ametraton adorar ser encurralado por tropas inimigas para sentir a emoção no combate.
— Impressionante! – disse Marie.
— De fato – respondeu Arão. – No entanto não poderia lograr dessa diversão diversas vezes, pois apesar de ser um excelente guerreiro, sua maior destreza está acumulada nas estratégias de guerra. Sabendo o melhor local, dia, modo de agir e armas para qualquer tipo de peleja.
Arão ficou extremamente bravo e animado por elogiar Ametraton. Será que ele realmente odiava o imperador ou foi obrigado a odiá-lo?
Nesse partilhar de habilidades do imperador, Paula ficou analisando as escritas nos tapetes.
— O que está escrito? – disse ela.
— Não faço a mínima ideia – replicou Arão.
— Como?!
— Sim. Há duas línguas oficiais no império, a que vocês entraram em contato e a nobre. Esta só é conhecida aqui dentro, em prol de preservar segredos.
Uma pergunta acertou em cheio a mente de Paula.
— Arão – disse ela –, como você e os outros do oeste sabem nossa língua? Ana e Nero tiveram que engolir a saliva daquele gato preto.
— Roubamos alguns desses gatos. E, há algum tempo, um homem velho veio nos conhecer. Faz dois anos. Portanto conseguimos extrair seu idioma. Por fim, existe o fato de que, se eu não estiver enganado, os alruns falam a mesma língua que a de vocês. Por essa razão, diversas criaturas em Tokarisen devem conseguir dialogar convosco com êxito, pois o povo do norte tem uma grande influência por todo o continente.
— Será que esse tal velho era nosso avô? – perguntou Paula à irmã.
— Bem provável – interrompeu Arão. – De fato, é uma raridade encontrar humanos por aqui. Uma pena que não me recordo muito bem dele. Mas isso não vem ao caso. Não encontraremos nenhum cetro por aqui. Vamos embora.
Todos os grupos formados não obtiveram sucesso em encontrar o cetro. Verdadeiramente, o palácio era suntuoso e belo por dentro. O chão, como na entrada, era todo de mármore, nas cores preto e azul. Ademais, havia corredores abobadados com quadros com uma amálgama de elementos bélicos e majestosos em sua composição artística. Havia somente um equívoco nesta residência: a segurança interna. Não tinha sequer uma guarda rondando em qualquer corredor. Isto era extremamente estranho. E se a família entrasse em perigo? Quem os ajudaria?
Arão, vendo que estavam chegando em lugar algum, resolve, gradativamente, reunir todos os grupos separados. Ana e Nero foram os últimos a serem encontrados. Estavam sentados juntamente com Ladrina nos degraus da escada, cuja ligação era do andar sétimo para o oitavo.
— O que estão fazendo? – indagou Arão, revoltado por não estarem procurando o cetro.
— Ladrina está nos contando a história de sua família – respondeu Nero.
— E – complementou Ana – nos cansamos de procurar e ela de nos pegar.
— Procurar o quê? – perguntou Ladrina.
Todos começam a suar por uma pergunta feita por uma mera criança.
— Estávamos procurando o quarto do seu pai – disse Izabel.
Como fora na vez de Marie, todos ficaram com os olhos ardendo em fúria. Porém a menina começa a dar as devidas explicações.
— Fomos ordenados a sermos direcionados, após termos brincado com a senhorita, ao quarto de seu pai, tudo em prol de diverti-lo.
— Estranho – disse Ladrina –, papai falou que, mesmo estando na audiência, iria se divertir. Será que estaria falando a respeito de vocês?
— Com toda a certeza! – disse Marie, enfiando o nariz outra vez na conversa. – De onde nós viemos, somos conhecidos como os donos da graça.
— Promovendo uma brincadeira tão chata como aquela? – rebateu Ladrina.
— Como!? Não diga loucuras. Nem chegamos na parte de invadir e quebrar o telhado dos vizinhos.
— Mas não tenho vizinhos.
— Por isso não sentiu diversão alguma.
Ladrina não tinha nenhum argumento refinado para tal proposição confusa. Portanto resolveu aceitar sem relutância.
— Talvez – previu ela – papai os entenda.
Ela se levanta e começa a subir os degraus. Os outros a imitam. Parecia que o quarto de Ametraton ficava no meio do oitavo andar. Inclusive, era maior que todos os outros. Por falar nos outros quartos, estes estavam totalmente em silêncio e escuros, com a indicação de que, talvez, estivessem vazios.
Todos chegam à porta do quarto de Ametraton. Nesta havia duas tochas iluminando-a, uma em cada lado. E, nesta mesma porta, era notável o capricho, pois era perfeitamente redonda, feita da mais rara madeira privada da Canalva. Esta árvore pode-se encontrar cerca de dez espalhadas por Tokarisen. Nove, depois desta porta. Esta espécie não pode ser plantada, porquanto não há semente dela. Mas, como elas aparecem, o leitor deve estar se perguntando. Elas são nada mais do que uma dádiva de paz dadas pela própria natureza, pois a cada milênio passado sem qualquer tipo de guerra consumada, brota uma Canalva em qualquer lugar em Tokarisen. Qualquer lugar mesmo. Seja sobre a areia, rochas, lama, debaixo d’água, em qualquer lugar. Ela tem cerca de onze a doze metros de altura, suas folhas são brancas, seu tronco e galhos de um marrom-vivo e as frutas pequenas, rosas, deliciosas e em grande quantidade. Diversas aves querem se aninhar nela e sem qualquer tipo de disputa, pois a árvore provoca harmonia entre os pássaros. E também promove outros efeitos que serão explícitos no futuro desta história.
Arão gira a maçaneta feita de latão reluzente e abre a porta. Toda a beleza dos quartos foi derramada naquele instante. Este era digno de um quarto dum imperador. Havia um quadro que cobria todas as paredes do quarto: era do imperador vislumbrando as searas, seus rios de areia e suas construções salientes. Linhas de prata orlavam a cama de Ametraton e, acima dela, havia uma estátua de uma criança que segurava uma brasa como um abajur. Um tapete vermelho e dourado que, além da cama e dos demais móveis, encobria o chão de mármore e sustentava uma pequena coluna cilíndrica adaptada para um cetro. E lá estava ele, belo, incrustado de joias raras e era uma das poucas coisas do império que não era feito de prata, contudo, de ouro.
Os olhos de Arão inebriaram-se de vitória, pois o seu furto estava bem à frente dele. Era necessário, apenas, livrar-se da testemunha: Ladrina. Mas Izabel tomou posse da situação.
— Ladrina – disse ela –, nós assumiremos daqui. Mas, como forma de gratidão, irei lhe propor uma última brincadeira. No entanto, melhor que seja aplicada no seu quarto. Afinal – sussurrou Izabel no ouvido de Ladrina –, não queremos bagunçar o quarto do seu pai.
Ladrina, sem pensar duas vezes, inebriada de ansiedade por uma nova brincadeira, aceita, segurando a mão de Izabel e sendo conduzida para o seu quarto no andar acima.
Agora não havia o que impedisse Arão de agarrar o cetro e vencer Ametraton. Ana e Nero, embora carregassem um certo remorso pela atitude que tomaram, não fizeram nada para impedi-lo.
Então, passo a passo, olhar a olhar, suspiro a suspiro, Arão se direciona para o cetro. Ele o fita incrédulo.
Os arrogantes sempre são surpreendidos. E não foi diferente desta vez.
Todo o tapete suntuoso começa a fulgentar e, juntamente com o chão de mármore, começa a se dissolver em areia, e o mesmo acontece com todos os andares abaixo deles. O grupo gritou apavorado, mas não durou muito, pois aterrissaram no primeiro andar, o qual estavam evitando. Todos caíram sobre uma grande cama de areia. E uma voz risonha e calma debocha de Arão.
— A derrota de quem? – interpelou Ametraton. – Tirem-nos dali – ordenou a dez guardas reais perto dele.
Os guardas tiram cada um do grupo da cama de areia e abrem um compartimento encontrado no chão para guardá-la. E também tiram o cetro das mãos de Arão e o entregam nas de Ametraton.
O lugar estava cheio de guardas, integrantes da família imperial e, pasmados com toda a situação, estavam Strolf, Bellolfa, Snolf, Kinorel e Tsitarel. Era uma grandiosa assembleia que esperava sua atração principal aparecer. E ela tinha acabado de dar as caras.
— Mas o que está havendo? – inquiriu Bellolfa.
Marie mexe na aljava de Ana e retira a lira de Kinorel. E diz:
— Nós a recuperamos.
— Recuperam!? – exclamou Strolf. – Vós se desvencilhastes de nosso grupo e sumiram por dias. Nós as recuperamos.
— Receio que quem encontrou o que – disse Ametraton, emanando uma certa perversidade em sua voz – não venha ao pulsar do coração desta discussão no momento.
— Sim – replicou Bellolfa, dosada de senso –, sim. Creio que teremos bastante tempo para discutir a despeito deste infortúnio. Perdoe-me.
— Perdão é uma ova! – apregoou Arão. – Como sabia sobre o nosso plano? – indagou ao imperador.
Toda a assembleia quase perde o fôlego em razão da insolência do garoto. Ametraton retumba uma gargalhada estridente.
— Ha! Ha! Ha! Pequeno tolo, acha mesmo que vocês do oeste estavam galgando na certeza? Nunca! Jamais, por um momento que seja, estavam um passo à minha frente. Nem mesmo na vossa fundação.
— O que quer dizer com isso? – indagou Zaia.
— Simples e belo, como o cair de uma pena. Há algum tempo, desde a infância de meu pai, o oeste vem se rebelando cada vez mais. Todavia, meu pai percebeu que não havia violência nessa insurgência, mas uma negação à filosofia do império. Ele poderia criar uma polícia para repreender os rebeldes, contudo, o derramamento de sangue é puro desperdício e, também, queria ver até aonde iam. Isto continuou comigo, vendo a formação de vossa malta de arruaceiros. Confesso que vos achei mais interessantes do que o resto do oeste, pois eles se preocupam somente com manifestações e alguns atos anticulturais, como não usarem o véu para esconder totalmente os rostos. Porém vocês não desafiaram somente a mim, mas toda a nação de mercenários. Um mercenário odeia perder. Principalmente o que já era seu.
— Mas como sabia sobre o nosso plano? – gritou Arão, atônito.
— Graças a ela, meu caro ladrão – respondeu Ametraton, apontando para Izabel, que acabava de chegar à assembleia com Ladrina. – Izabel é minha filha.
— Como?! – disseram todos os integrantes da malta, exceto Demetris e Arquedis, que apenas ficaram estupefatos com a situação.
— Sim.
— Impossível! – exclamou Faust. – Izabel entrou em nosso grupo quando tinha cinco anos. E há seis anos está conosco.
— E por seis anos ela vos espiona.
— Mas todos os integrantes da família imperial têm olhos dourados, e os de Izabel são azuis, como os do povo.
— Não exatamente – rebateu Izabel. – É raro acontecer que venha a nascer uma integrante da família imperial com olhos azuis. A chance é de um a cada duzentos. Ou, talvez, trezentos. E, se acontece, recebemos cargos especiais, principalmente no exército. Porém nunca no governo.
— Como torci para que tivesse uma filha com os olhos do povo – disse Ametraton. – Meu avô e meu pai não conseguiram. Izabel foi a chave para o triunfo. Ela me informou com antecedência o que iria ocorrer.
— Não é possível – interrompeu Faust. – Eu anunciei o plano na tarde de hoje. Não daria tempo.
— Enquanto todos estavam com a atenção voltada com a sala das armadilhas – disse Izabel –, simplesmente entrei no dormitório dos garotos e vasculhei os seus projetos.
— Então – prosseguiu Ametraton – assim que fui informado da maneira que iam se infiltrar no meu palácio, ordenei que trouxessem um caça num horário desregulado para alimentação, vesti-me de guarda real e pedi àquele carregador para que despejasse a ração no comedouro do caça recém-chegado junto com duas gêmeas. Uma delas tendo uma interação estranha com os animais, assim como os três me contaram. Perfeito para uma distração.
— Como sabia em qual barril estaríamos? – interpelou Paula.
— Antes de entrar no barril com Faust – disse Izabel – fiz uma marca no de vocês duas.
— Tudo estava sob o meu controle – terminou, finalmente, Ametraton seu discurso.
Todos ficaram aturdidos. Inclusive os guardas reais, pois estes não ficaram sabendo de coisa alguma com relação ao plano louco do imperador. Arão, perdido num ermo de frustração, é molhado por uma chuva de fúria.
— Você nos traiu! – disse ele para Izabel. – Pensei que fosse nossa companheira, mas estava sendo usada por Ametraton.
— Não exatamente – rebateu Ametraton. – Apesar de meu grande poder e autoridade, não a obriguei a nada. Dei, no começo de tudo, um estímulo para uma travessura que aplicaria. Porém, com o tempo se passando, percebi que ela ficou amiga de vocês. Com isso, insisti para que retornasse ao palácio, pois uma hora teria que escolher entre vós e a mim. Contudo Izabel me disse que escolheria os dois.
— Como escolheria os dois? – inquiriu Ana, curiosa em ouvir a resposta da garota.
— No princípio – respondeu Izabel –, concordava em participar dos roubos, pois isto servia como uma forma de protesto e chamava a atenção de meu pai. Mas começou a ficar fora de controle.
“Com o passar do tempo, o ódio se agravou cada vez mais entre nós e os habitantes fora da zona do oeste. No começo, tratavam-nos simplesmente como pirralhos irritantes. Mas viramos, além de patifes, inimigos. Por diversas vezes recebemos ameaças de morte, sendo que nunca houve um homicídio desde a formação da nossa nação. Com exceção de grupo de estrangeiros, nossos roubos foram executados na presença de armas por parte dos comerciantes. Isto significa que passamos de problema para ameaça.
“Nós também inflamos o ego e a coragem do povo do oeste. Antes, quando nosso grupo nem fora formado, havia apenas a relutância contra a ideia mercenária de sempre ganhar, não importa qual fosse a circunstância. Eles eram totalmente pacíficos. Mas à medida que fomos furtando e enganando os guardas reais, o povo do oeste começou a ganhar coragem e se preparar para uma revolta. Se, por mais improvável que seja, roubássemos o cetro de meu pai? A relíquia mais importante do império. Seria mais do que um prêmio para eles, mas um alento para a peleja, ou seja, uma guerra civil. E não restou dúvida que meu pai não ficaria de braços cruzados. O oeste seria dizimado. No fim, percebi que, conquanto não seja proibido roubar, não convém.”
— Como!? – exclamou Arão, desnorteado. – Está louca! Está dizendo que um objeto como o cetro poderia causar uma guerra?
— Bem – disse Faust –, nesses últimos meses percebi que as provocações do povo do oeste passaram de passivas a quase ofensivas. O clima, de fato, ficou mais hostil entre o oeste e o resto do império depois que começamos a roubar.
Arão arfa de desespero. Há poucos segundos, considerava-se um herói para seus amigos. Agora percebe que estava arriscando a vida deles, um ato leviano.
— Impressionante – disse, por fim, Ametraton. – Mesmo estando em um estado de observação, não pude perceber a precedência de uma guerra civil. Parece que terei de fazer uma revisão na herança de trono.
Todos os filhos de Ametraton, os sessenta e sete, ficaram atônitos com tal pronunciamento. Até mesmo Ladrina que, naquele instante, passou a ser antiga herdeira do trono. Mas não houve contestação alguma, porquanto viram a capacidade de Izabel em observar o império e a bela oratória que carregava. Faltava somente experiência bélica, contudo isso se desenvolveria com o tempo.
A assembleia aplaude Izabel. A pequena se emociona.
— Não somente isso – ergueu Ametraton a voz novamente. – Vós – disse para toda a malta –, tirem os véus – ordenou o imperador, pois todos executaram o roubo com os véus para não causarem estranheza. – Os leais também – agora se referindo a Nero e Ana.
Eles obedecem. Os dois irmãos ficam por certo período de tempo se encarando, porquanto nunca viram o rosto um do outro. Sim, a face era um privilégio conquistado por pais e cônjuges.
— A princípio – continuou Ametraton –, carregando o mesmo propósito dos olhos dourados, tudo é em prol de ofuscar os plebeus e enaltecer a minha imagem, pois a única lembrança de rostos que deveriam estar em vossas mentes seriam os da família imperial – Ametraton interrompe seu discurso para analisar as seguintes palavras que irá pronunciar –, mas agora vejo que é uma tolice, pois se o povo cresce, também cresço. Sendo assim, amanhã apregoarei meu decreto: todos poderão viver sem os véus.
Em meio a tantos decretos e discursos, Marie, comumente em situações que não entende o que acontece, resolve perguntar a Paula:
— Entendeu alguma coisa?
— Claro – replicou Paula.
— O quê?
— Que estamos numa assembleia.
Era difícil para as gêmeas entenderem o que estava havendo naquele momento. Eram várias gerações que prolongaram os conflitos no império, antes da própria família de Ametraton assumir o poder.
— E as duas – disse Ametraton –, vejo que são as gêmeas perdidas das quais os vergs estavam se referindo.
— São elas mesmas, monsenhor – respondeu Strolf. – Em carne, em osso e em encrenca.
— Encrencadas por quê? – indagou Marie. – Recuperamos a lira de Kinorel.
Kinorel tange sua lira alegremente.
— Muito obrigado – traduziu Paula.
— Sua reconquista da lira não justifica sua imprudência de se separar do grupo e se perder, junto com Paula, pelo império – rebate Strolf.
O verg simplesmente tinha uma repreensão quase tão formidável quanto a de Verônica.
— Nada de admoestações em ambiente de festa – ordenou Ametraton. – Conseguiram recuperar as gêmeas perdidas. O que mais querem de mim?
Strolf dá alguns passos à frente, em direção ao imperador. Os guardas reais impõem um certo limite entre o verg e o rei das areias prateadas.
— Monsenhor – disse Strolf, com todo o seu vocabulário apurado exigido por um verg –, peço-lhe suprimento, com a promessa de devolução em dobro, para que possamos atravessar pela montanha dos norks e sobrevivermos na floresta do grito. E – Strolf hesita ao se recordar de um rosto maligno –, sem ganho algum proposto, ajude-nos na guerra contra Zalqui.
Ouve-se diversos murmúrios em toda a assembleia após Strolf mencionar uma guerra contra Zalqui.
— Posso lhe conceder o suprimento – replicou Ametraton –, mas por que colocaria meu império sob uma guerra e, ainda por cima, sem retorno iminente?
— Porque perderá tudo.
— Pois quê!? Este inseto pode, pelo que sei, ser um guerreiro melhor que eu, porém garante que seu exército é mais poderoso que o meu?
— Neste momento, o arraial de Zalqui já se encontra como o mais poderoso de oeste de Tokarisen e, em poucos anos, será o mais cruel, forte e terrível. Não pelo fato de ser necessário mil soldados para ter uma batalha somente com Zalqui, mas pelo fato de serem o povo mais forte que já existiu neste continente.
Ametraton se cala. Sabia que Zalqui era um guerreiro excelente, mais do que o Nobre dos alruns. Todavia, mil homens não são capazes de pará-lo? Ele, após alguns minutos, resolve responder:
— Diga-me: mesmo que tenhamos um exército equivalente ao de Zalqui, como poderemos deter um mal como este?
Strolf se direciona para as gêmeas como forma de resposta.
— Está me dizendo que essas duas crianças são a chave para a nossa vitória? – indagou Ametraton, cético.
— Nenhuma vitória, tampouco o futuro é-nos garantido – respondeu Strolf. – Todavia, com Marie, o Coração-bravio, e Paula, o Lírio-da-Aurora, estaremos mais próximos de conseguirmos.
Toda atenção que estava voltada para Izabel foi direcionada para as gêmeas.
— Parece que as fábulas daquele idoso humano se difundiram pela corte – observou Ametraton. – Mas elas deixaram claro a imagem de duas soldadas de elite, e só vejo duas garotas confusas, mal sabendo o que ocorre em nosso mundo.
— Elas receberão treinamento do Nobre do Norte, rei da terra dos alruns, e estarão prontas em alguns anos.
— Então em alguns anos decidirei se ficarei do vosso lado.
Strolf sabia que não conseguiria o consentimento de Ametraton sem garantia alguma. Afinal, o imperador continuava sendo o mais mercenário de Tokarisen. Enfim, resolve aceitar a decisão do imperador sem impor um argumento contrário.
As gêmeas estavam admiradas por todo o reconhecimento que tinham em Tokarisen. Ou, ao menos, entre os anaquins.
— Queria ser conhecida assim na escola – disse Marie à irmã.
— Mas é – respondeu Paula. – Tem até um apelido.
— Qual?
— Marie, a louca.
— O seu é Paula, a esquisita
— Marie, a pé-de-rato.
— Paula, a catarrenta.
— Marie, o urubu macilento.
Enquanto as duas trocavam seus elogios fraternos, Strolf acertou o suprimento com Ametraton para a continuação da jornada. Também conseguiu um lugar para repousarem o resto da noite e partirem no outro dia, totalmente descansados.
As gêmeas se despediram tanto de Ana e Nero quanto de Arão e sua turma. Izabel ficou morando no palácio daquele dia em diante, mas visitava seus amigos do oeste sempre que possível.
Paula, Marie, Strolf, Bellolfa, Snolf, Kinorel e Tsitarel cruzam o norte do deserto em direção à montanha dos norks. A paisagem só de areia por todos os lados vai se transformando, adicionando algumas rochas e pedregulhos. Quando percebem, estavam nos arredores de uma montanha e um nork os fitava de cima duma rocha.
Era uma criatura de aspecto peculiar: uma estatura baixa, peludo, com exceção do rosto, alvo como a neve, provido de galhadas, olhos castanhos, um pequeno rubi enxertado na testa, aparência fofa e estúpida, uma personalidade aleatória e, por fim, usava um traje até a cintura, lembrando uma blusa de lã sem mangas. Um nork.
Os norks povoavam aquele ermo montanhesco. Não são um povo violento, porém costumam causar uma tremenda dor de cabeça aos viajantes que decidem cruzar a montanha sem sentido. Suas falas são demasiado grosseiras e, às vezes, desvinculadas da realidade. E aquele nork encarava o grupo de nossos aventureiros para lhes causar a primeira desventura de humor, que será sucedida de outras mais. No entanto, não nos apressemos. Vamos galgar na gradação cômica que este capítulo nos proporcionará. Começando com o nork presente.
— Com licença – disse Bellolfa –, por que nos encara desta maneira?
— Estou magoado – respondeu ele. – E, se continuar me atormentando, dou-lhe uma mordida.
Audácia é o pendão desse nork. Ameaçar morder um verg, cuja mordida é a mais temível de toda a terra de Tokarisen? Um manancial de coragem deve provê-lo. Ou talvez seja loucura ou imprudência. Mas como Bellolfa conhecera a personalidade dos norks, decidiu continuar a perguntar.
— Por que estás magoado, amigo? Fizeram-lhe algum mal?
— Não vê que sou o mal? – indagou o nork, indignado. – O que você tem de focinho, falta-te de cérebro.
Mesmo conhecendo os norks, Bellolfa não deixou de ladrar de fúria. Contudo, Strolf assumiu a conversa antes que as coisas começassem a ficar feias.
— Por obséquio, amigo – disse ele. – Conte-nos o que fizeste.
— Tolos! – exclamou o nork. – Vejo que não reconhecem a própria burrice. Mal podem discernir um a do b sem quebrarem a cabeça e me suplicam um enredo? Certo. Ei-lo: estava num jogo de apostas com o paspalho do meu primo nork. Um verdadeiro idiota. A princípio, concentrávamos em apostar apenas a comida que portávamos.
O nork fez uma pausa em sua história e ficou vagando sozinho em sua mente.
— E então? – perguntou Marie.
— Então – retomou o nork – perdemos toda a nossa comida e entramos em dívida. Tive que apostar nossas bebidas. Estava confiante.
— Ganhou?
— Perdi tudo. Assim, apostei os trajes que portávamos, mas com a certeza da vitória.
— Tenho certeza de que ganharam desta vez.
— Perdemos também. Então apostei minha casa.
— Não me diga que…
— Também perdi. Meu primo disse para me contentar pelas perdas e recomeçar nossas vidas.
— Você o ouviu?
— Não. Então decidi apostar ele.
— Apostou o próprio primo num jogo? O que aconteceu?
— Fiquei sem uma casa e sem um primo.
— Logo, é por essa razão que se considera mau?
— Como? Não diga besteiras, menina feia. Não sou mau por ter apostado minha casa e meu primo, sou porque apostei a mim mesmo e também perdi.
— Ora, certamente você não é malfeitor, mas sim um idiota.
No mesmo instante, várias pedras caem perto de Marie. No entanto, não foi um cair por cair, como se fosse uma avalanche de pedras desordenadas. Caíram uma após outra, numa harmonia perfeita. E, conforme amontoavam uma em cima da outra, formavam uma espécie de monstro de pedras. Ficou, por alguns segundos, estático, mas subitamente todo aquele amontoado de pedras bracejou num sinal de ataque. As gêmeas se assustam. Todavia, passaram pouquíssimos segundos e aquela criatura de pedras se desfez num despejo de pedras no chão.
— Há! – exclamou o nork. – Quem é o idiota agora?
— Foi uma cartada de mestre contá-los essa comovente história, primo – disse outro nork, descendo correndo pelas paredes da montanha.
Os norks são providos duma natureza estranha, caro leitor. Eles não escalam montanhas, mas andam pelas rochas, como se seus pés tivessem um imã. Eles desciam como se estivessem num morro acidentado.
— Primo? – interpelou Paula. – Não disse que tinha apostado ele?
— Foi tudo parte de meu engenhoso plano para vos assustar – replicou o nork. – Aliás, sequer tenho uma casa, tampouco dinheiro para apostas.
— Não tem uma casa? Então onde mora? E que diabos foram todas aquelas pedras sendo amontoadas e ganhando vida sob a figura duma criatura estranha?
Abruptamente, três norks descem correndo aquele rochedo.
— Quanto menor o cabelo, maior é a burrice? – indaga o primeiro nork, referindo-se à Marie, que tinha cabelo curto.
— Não, primo – replicou o segundo nork. – Deve ser que: quanto mais vermelho o cabelo, menor a inteligência.
— Pois que, primos – disse o terceiro nork –, quanto mais baixos forem, mais burros serão.
— Mas – interrompeu Paula os famosos insultos norkianos – embora sejam baixos, têm a mesma altura que eu e minha irmã.
— Então considera-se a xodó da razão? – ironizou o primeiro nork.
— A padroeira de todo o conhecimento? – continuou o segundo nork.
— A essência da verdade? – conclui o terceiro nork.
— Não – respondeu Paula –, acho que…
— Acho que está achando demais – interrompeu o segundo nork.
— Desisto – disse Paula.
— A burrice é tanta que mal pode vencer? – interpelou o terceiro nork.
— O quê? – replicou Paula. – Isto não tem sentido no que está dizendo.
— Não tem, porque é burra! – exclamou o primeiro nork.
— Exato, primo – concordou o segundo o nork.
— Evidente, primos – terminou o terceiro nork.
— Acalma-se – apaziguou Snolf. – Paula, se tentar, por mais importante que seja a causa, discutir com um nork, enlouquecerá. É da natureza deles importunar os viajantes que cruzam a montanha.
— E – disse Bellolfa – a respeito das pedras, é um tipo de magia que a montanha nos proporciona. Basta colocar as pedras uma em cima da outra para formar alguma coisa, a animação acontecerá por alguns segundos e elas se despejarão no chão.
— Vejo que sua capacidade está além de urinar nas árvores – observou o primeiro nork.
Bellolfa lhes concede um ladrado lúgubre e viril, juntamente com a contração de sua face, aquela que os cachorros comumente fazem quando estão prestes a arrancar o seu braço ou a sua perna. Os norks recuam de medo. Mas seus infortúnios não cessam.
— Somente os tolos mordem quando são insultados – gritou o primeiro nork.
— Provérbio irrefutável, primo – comentou o segundo nork.
O terceiro nork correu desesperado sem se pronunciar.
— Basta de perder tempo – disse, enfim, Strolf. – Tentem evitar debates com os norks e vamos começar a subir a montanha.
Escalar uma montanha sem os devidos equipamentos ou não ser adaptado para tal ato é demasiado perigoso. Portanto decidiram contornar a montanha para achar alguma região íngreme para subirem. Eles o fazem. Assim, bordada por um rio, encontram uma estrada que cobria todo o diâmetro da montanha. Deveria ser ali por onde os viajantes iam. Mas não era fácil. Teriam que subir, chegar num ponto de grande altitude e descer novamente. E as montanhas não costumam ter diâmetros pequenos. Provavelmente teriam de encontrar uma caverna e abrigarem-se nela pela noite. Mas chega de especulações desnecessárias e voltemos à história.
Conforme subiam, deparavam-se com diversos norks por todos os lados. Cada um mais grosseiro que o outro. Mas, apesar da audição estar maltratada, a vista era, para as gêmeas, bastante impressionante. Quando olhavam para a esquerda, abaixo, admiravam o rio. Ele tinha, por trás de sua aparência calma, um efeito bastante belo e perigoso. De tempos em tempos. Vários, um atrás do outro, gerando um efeito de sincronia, jatos de água emergiam das águas. Por diversas vezes, alcançavam até o topo da montanha. Pareciam que estavam vendo um espetáculo. Todavia a atração poderia se tornar letal quando os jatos resolviam cruzar um no outro. Com esse chicotear, a água poderia se direcionar ao grupo. Mas parecia que havia alguma espécie de guarda protegendo-os, porque isso nunca acontecia com veemência, de fato.
O tempo decorria pela estrada da quietude e da chatice. Diferente do deserto de prata, não havia nada para distrair as gêmeas. Por um lado, a gigantesca montanha que mal viam o topo, do outro, uma queda terrível, na qual, quando uma delas resolvia espiar à altura, a alma se desprendia do corpo, precipitava-se até a margem do rio, voltava diretamente na região do corpo humano onde costuma tremer de nervosismo e advertia para o consciente das garotas: melhor não olhar mais para baixo.
Quando se afadigam da caminhada, resolvem parar e descansar um pouco. Toda vez que isso se repetia, Paula e Marie ajuntavam uma certa quantidade de pedras para formarem algumas figuras e verem a interação que faziam. Paula tentou fazer um coelho, mas estava defeituoso e horrível. Quando acabara, o pobre coitado fez alguns gestos de moribundo com o pé na sepultura e caiu penhasco abaixo. Como sempre, havia norks onde quer que iam. Estes gargalhavam e zombavam.
— Seja o que foi aquela criatura – disse um nork próximo ao grupo –, deu-te graças por não durar muito.
Marie, por sua vez, após ver sua irmã sendo zombada por aquele nork, resolve construir algo fácil, um estilingue. Uma pedra em cima da outra, com uma bifurcação no topo, um elástico de pedras e uma para representar a pedra a ser lançada. Marie direciona sua engenhosa arte para o nork debochado. A animação acontece. A pedra voa bem na cabeça do nork. O mesmo, resoluto, saiu andando nas paredes da montanha, resmungando.
— Além de serem burras – disse ele –, são mal-humoradas.
O grupo subia e andava pela montanha.
Depois de um certo tempo, Paula se lembrou da conversa de Strolf e Ametraton a respeito dela e de sua irmã. Principalmente a parte que estariam prontas para guerra num certo período de tempo e sobre o Nobre dos alruns. Quem seria este e que tipo de treinamento receberiam?
— Snolf – disse ela –, quem é esse tal Nobre dos alruns?
— Antes de Zalqui aparecer – replica Snolf –, com toda a certeza, ele foi o guerreiro mais formidável de Tokarisen. O nome dele é Dio Bin Nhape Nobre, a nobre-lâmina-ardente ou, apenas, o Nobre do norte. O primeiro epíteto viera quando lutou contra Foug, a chama infernal, o mais poderoso e sujo dos dragões brancos. Ao final da batalha, embora não o tenha matado e quase ter morrido, estava com sua armadura chamuscando e sua espada queimando como uma brasa. Ela recebeu um poder desconhecido e incrível, pois quanto mais tempo Dio estiver em batalha, a espada começará a esquentar e pode não apenas cortar, mas também queimar o inimigo.
Marie teve um fulgor de inquietação e animação. Este tal Dio era simplesmente um guerreiro mais que formidável. Verdadeiramente deveria ser uma lenda.
A noite abraça nosso grupo e, com ela, um frio de congelar as veias. Por sorte, havia, a poucos passos de distância, uma caverna que os abrigaria. Eles adentram sem hesito.
O mais notório que poderia se observar era a quantidade imensa de norks no teto e nas paredes. Mas em questão da caverna, à primeira vista, parecia ser normal. No entanto, havia algo esquisito no que diz respeito ao comportamento dos norks. Como disse, estavam nas paredes e no teto, contudo, nenhum deles estava no chão. Seria algum tipo de desvario ao chão da caverna? Na verdade, não. Era algo bem mais simples e, talvez, cômico. Vejamos por nós mesmos.
O grupo avança ao coração da caverna, tentando evitar algum tipo de discussão desnecessária com algum nork rude. Snolf, com Paula e Marie em suas costas, diferente no caso da floresta-viva, andava à frente do grupo. O verg apenas deu uma pequena olhada para frente antes de adentrar na caverna, em prol de verificar se havia algum tipo de despenhadeiro que poderiam encontrar. Como verificou que não havia nenhum, seguiu olhando para cima, observando toda paisagem que a caverna lhe proporcionava. Abruptamente, sentiu, quando deu um passo à frente, que seu corpo ficou totalmente pesado. Com efeito, sua cabeça e pescoço, num átimo, foram empurradas para baixo com uma força absurda. As gêmeas, com um solavanco, foram arremessadas para frente. Então a primeira coisa que tentaram fazer foi ficar em pé, mas ficar de joelho já era um grande feito, pois pareciam que carregavam o mar inteiro nas costas.
— O que é isso? – perguntou Marie.
— Não sei – responde Paula. – Não consigo ficar de pé.
— O que foi? – inquiriu um nork. – A burrice começou a pesar em vossas vidas?
Um infame comentário para uma situação desesperadora.
Kinorel, sanado de uma coragem mais atrapalhada do possível, avança em direção às meninas para salvá-las. Inutilmente cai de joelhos como as meninas. A cena é lamentável.
Tsitarel tange sua cítara. Kinorel baixa suas orelhas pontudas.
— Idiota – traduziu Paula.
Marie, engatinhando, avançou para frente em prol de achar uma área onde seu corpo não se sentisse tão pesado. Num dado instante, quando esticou seu braço para dar o próximo passo, sentiu sua mão como se estivesse prestes a voar. Com efeito, deduziu que, a poucos centímetros, estaria num local onde não estaria mais pesada. Assim rumou sem hesito, por conseguinte, não se encontrava mais naquele estado que mal podia ficar de joelhos. Estava, porém, numa situação mais esquisita ainda.
Antes tinha dificuldade de se afastar do chão, agora, de tocá-lo, pois, erguendo-se, resolveu dar um salto. A menina simplesmente saiu flutuando, com uma certa demora para chegar ao chão novamente. O mesmo acontece com Paula e Kinorel. Depois de suarem para sair do local cujo seus pesos estavam exacerbados, começaram a dar pequenos loops no ar. Kinorel encenou que estava correndo no ar, Paula nadava e Marie dava golpes que só seriam vistos em filmes de luta. Estavam se divertindo de monte.
Porém algo inesperado acontece. Conforme iam fazendo suas diversas artes, avançavam para a frente. Num dado momento, Kinorel, que se encontrava à frente das gêmeas, para de levitar, caindo de cara no chão da caverna.
O harake tenta ficar de pé, mas escorrega. Desta vez, o chão estava completamente escorregadio, como uma pista de gelo. Paula e Marie, após verem o descuido de Kinorel, arrefecidas de ânimo e queimando em concentração, aterrissam e dão passos não muito longos, mas curtos e calculados. Marie, num dado momento, é a primeira a sentir o chão da caverna, naquela área, tornar-se escorregadia. – Deve ser parecido com andar de patins – pensou ela. Que perícia. Embora estivesse com um par de sandálias horríveis, a garota parecia uma profissional patinando no chão da caverna. Indo dum lado para o outro, às vezes efetuando alguns retornos difíceis diante duma parede e algumas manobras. Paula, diferente de sua irmã, nunca foi apegada com os patins. Portanto divagava lentamente pela área escorregadia, poupando-se de quaisquer impulsos idiotas dos quais viriam a quebrar sua cabeça. Kinorel, estirado e deslizando no chão, continuou, sem relutância, nem mesmo uma pequena vontade de levantar, a ir à mesma direção de quando caíra. Decerto, logo a parte escorregadia acabaria e outra começaria (a última, pois a parede da caverna já estava bem próxima). É o que acontece. A princípio, Kinorel pensa que o chão retornou a seu estado normal como qualquer outro, pois não aconteceu nada. No entanto, percebeu que estava afundando junto com o chão, como o centro de uma cama elástica. Com efeito, logo a sensação de afundamento fora cessada e Kinorel foi arremessado quase até o teto da caverna. Assim se foi, descendo e subindo, subindo e descendo. No teto, havia vários norks que, a cada aparição de Kinorel, entoavam um insulto.
— Cabeça vazia – disseram na primeira vez.
— Burro – disseram na segunda vez.
— A natureza chora por vossa burrice – disseram na terceira vez.
— Toca uma lira, sendo tão tonto? – disseram na quarta vez.
— Como pode ser tão burro no chão e no ar? – disseram na quinta vez.
As gêmeas, ambas amantes de cama elástica, logo chegam na área requerida e saltam para começar sua diversão. Não se preocupe, caro leitor. Pois quanto mais alto pulam, mais serão amortecidas pelo chão de forma branda. Assim a diversão estava garantida, por mais perigosa que fosse. Paula, quando chegava no ponto mais alto, fazia algumas poses de luta, ou uma atuação de teatro, ou ridículas. Marie tentava fazer giros e ficar em pé para aterrissar. Kinorel, como não falava nada, bracejava e perneava de desespero. Os harakes não logram por altura.
Mas quando se afadigaram daquela diversão, perguntaram-se: como parar?
De um lado havia uma parede, do outro, a parte escorregadia da caverna, que seria extremamente perigoso cair, pois seria uma queda fatal.
Um nork, do lado donde se encontrava a parede, posicionado numa altura bem alta, viu que as gêmeas e o desesperado harake queriam parar de pular. Então disse:
— Querem parar?
— Sim! – exclamaram as gêmeas.
— Então digam quão burras são.
— Sou tão burra – disse Marie – que quando a promoção de chocolates dizia dois por dez, levei dez chocolates no caixa para que me retornassem dois.
O nork delira na gargalhada. Após tomar fôlego, espera Paula se pronunciar. Mas ela fitou-o com uma cara aborrecida. Sempre tivera a facilidade de admitir seus medos, porém nunca insultava suas qualidades, mesmo que fosse por brincadeira. Afinal, diferente de Marie, Paula era um gênio.
— Além de ser burra – comentou o nork a despeito da careta que Paula fazia para ele –, esforça-te para ser feia?
Paula, não tendo um histórico de burrices, resolve lhe proporcionar uma resposta digna de uma pessoa inteligente.
— Desculpe – disse ela –, sou tão burra que não sei o que responder.
— Maravilhado estou por vossa confissão burra – replicou o nork.
— Por que não pensei em algo simples assim? – pensou Marie. – Confessei o que havia feito no supermercado. Eterno, como sou burra.
— Para serem menos de vós e mais como nós – disse o nork –, façam como nós. Afinal, dentro da caverna, é-lhes permitido deixarem de ser burras.
Marie não compreendeu nada, Kinorel, do mesmo modo, começou a prantear e Paula refletiu a respeito dessa resposta. “Como nós” martelava em sua mente. Tanto que começou a observar aquele nork. Seus pelos brancos, embora estivesse de ponta cabeça, não estavam direcionados para baixo. Decerto, havia um mistério detrás disso, e descobrir mistérios era a especialidade de Paula. No entanto o leitor pode certificar, se quiser, que é demasiado complicado pensar em alguma coisa quando não para de subir e descer numa altura consideravelmente grande para quebrar suas pernas. Assim, a menina resolvera fazer do método que, por vezes, chega a ser bastante eficiente em momentos desesperadores. Testar na prática. Mas testar o quê? Simples. Veja como ocorreu. Quando ela estava caindo para o próximo salto, resolveu ajeitar o corpo. Chegando no chão, afundando, dobrou os joelhos para tomar uma maior impulsão. A garota salta com a mão esticada e, com a ponta do dedo indicador, toca o teto da caverna.
Como se a gravidade tivesse esquecido de seu real propósito, a menina caiu deitada no teto da caverna. Foi um tombo em tanto. Ficou observando Marie e Kinorel, como se estivesse olhando para cima, vindo e voltando. Marie admira o feito da irmã e diz:
— Como fez isso?
— Basta tocar no teto da caverna – replicou Paula. – Kinorel, faça antes de desmaiar outra vez.
Primeiro, Marie repete o mesmo pulo da irmã, conseguindo um pulo mais alto, pois não fora a ponta do dedo que tocou o teto, mas a palma de sua mão. Kinorel, com seu jeito desastrado de ser, toca o teto com a cabeça, esquecendo de levantar uma de suas mãos.
A princípio, ficaram todos deitados olhando para baixo, com medo daquela espécie de magia cessar e caírem. Porém Marie tomou a dianteira e ficou de pé.
Estranho, nem sequer seus cabelos estavam sendo direcionados para baixo. Era como se o teto da caverna fosse o próprio chão da montanha.
Kinorel e Paula repetem o feito e ficam de pé.
— Podemos voltar à entrada da caverna agora – disse Paula.
Os dois consentem com a cabeça.
E lá foram eles atravessando todo o teto da caverna. Não demoraram muito para verem Tsitarel, Bellolfa, Snolf e Strolf abaixo deles. Mas como desceriam até ali? Será que poderiam andar na parede ao lado como foi no teto? Bem, só havia uma maneira de descobrir.
Marie, tomada de confiança, bem ao lado da parede, estica a mão e a toca. Estranho. Foi como se o mundo tivesse virado da mesma maneira que ocorrera há poucos instantes. A menina bate com o queixo no chão. Alguns norks a ultrajam.
— Os burros sempre batem com o queixo por não terem um pé firmado – disseram eles, dando a entender que a menina deveria ter tocado a parede com os pés, não com a mão.
Paula percebe o erro da irmã e toca a parede com o pé. Ora, vejam! Ficou de pé! Os tolos erram por imprudência, os gênios, a natureza dá a eles o dom de escolherem a melhor opção no momento mais crucial, e os sábios continuam a nutrir de sabedoria dos erros dos tolos.
Sem mais pormenores a serem analisados, todos descem tranquilamente a parede da caverna até onde o resto do grupo se encontrava, que assistiu todo aquele espetáculo.
— Que feito! – exclamou Snolf.
— Em verdade, tenho que enxergar a dose de graça – comentou Bellolfa.
Strolf não desaprovara toda aquela algazarra. Porém, em diversos momentos, ficou preocupado com a segurança dos três. Agora estava apenas quieto e pensativo.
Tsitarel arquejava de raiva por causa de Kinorel. Se falasse, estaria esbravejando palavras não tão solenes ao harake. Deu-lhe apenas um murro no estômago.
Entenda, depois que o vilarejo dos harakes foi tomado e Zalqui, tendo escravizado e derramado, como água, o sangue de vários deles, Kinorel era a única parcela de sua família.
Caiu-se a noite por fim.
Os raios luminosos invadiram a caverna sem hesito, iluminando-a. Porém devia ser dada a devida atenção não ao que foi alumiado pela luz, mas ao que se ouvia. Diversos murmúrios de reclamações de norks, sempre impacientes.
— É da natureza dos burros acordarem tarde! – exclamou um dos norks.
— Quando estão dormindo, não podem fazer idiotices – disse outro nork.
— Porém, dormindo, continuarão burros – observou outro nork.
— Uma vez burro, sempre burro! – julga outro nork.
— O mais irritante desses norks – disse Paula, bocejando – é ficarem repetindo essa maldita palavra: burro!
— Pelo menos são inofensivos – argumenta Marie.
— Para o corpo, mas não para a mente.
Paula não concordava completamente com Marie. A palavra burra a ofendia de maneira tremenda. Talvez por sempre ser bastante inteligente, exceto nas aulas de matemática. E a ofensa, meu caro amigo leitor, é como o veneno de uma cobra, quanto mais o deixa influir por suas veias da autoestima, logo sua mente estará corroída, e sua alma afogada no lago da tristeza.
Todavia a garota não se deixou levar, por muito tempo, pelos escárnios providos dos norks. E, rapidamente, se ajeitou com o resto do grupo para evacuarem da caverna e prosseguirem com a viagem.
O rio que se escondera entre as montanhas agora se serpenteava no meio da floresta. O grupo se achega a ele. Estranho. Quando entrava em contato com a floresta, toda a água era cristalina. Porém este não era o detalhe mais chamativo, mas todas aquelas bolhas que havia nele. Sim, bolhas. Todas elas eram formadas por uma criatura meiga e rosa: o boto cor-de-rosa. Vários e vários. Todos eles alegres, como se estivessem celebrando alguma coisa. Com efeito, a agitação deles era tamanha que a própria água precisava achar alguma maneira de festejar. Então as bolhas eram o seu festim.
Paula fica à beira do rio para ver os animais de perto. Sete cabeças rosadas logo saltam para fora da água. A menina tentou acariciar a todos eles. E quando o fazia em cada um, simplesmente voltavam para debaixo d’água e nadavam em círculos. Este era o jeito do boto cor-de-rosa sorrir. Um sorriso bem molhado e agitado.
Ficaram ali por determinado tempo e, logo em seguida, voltaram a caminhar. No entanto, não se afastaram muito do rio.
Havia bastante árvores, uma ao lado da outra, mas isso não impedia a incidência da luz solar. E que luz! Ela vinha cálida e um pouco verdejante em detrimento das folhas das árvores. Ela vinha coando-se através das folhas. Dava-lhes uma sensação de conforto sem par. Tinham um ímpeto de vontade de se deitarem naquela relva e contemplarem todo aquele lume. Parecia que até que as batidas do coração ficavam mais calmas e harmônicas quando tal luz os abraçavam.
— Que lugar bom – pensou Marie –, poderia descansar aqui pelo resto da minha vida.
Ah, mas não era tudo. Havia uma atração a mais para ser vista.
Dois pássaros, da mesma espécie, sobrevoavam o grupo. Eram semelhantes a um beija-flor. Tão gracioso! Com a cabeça azul-escuro, pescoço azul-claro, laterais verde-escuro para verde-claro, peitoril branco, bico longo e fino. Eis um colibri. Mas não eram as cores de suas penas que chamavam a atenção, mas o rastro que deixava ao voar. Era como um meteoro que, ao invés de ter uma cauda incandescente, deixava um arco-íris. Quando o colibri tinha mais um companheiro de voo, a atração ficava fantástica. Os dois subiam e desciam em espiral. De repente, uniam-se num ponto, faziam um arco, oposto um ao outro, e se encontravam embaixo, formando um coração.
— Bravo! – exclamou Paula, batendo palmas.
— Não quero mais um papagaio no Dia Das Crianças – disse Marie.
Uma pequena amostra da beleza da floresta-do-grito. Mas, afinal de contas, por que teria “grito” no nome de uma floresta tão encantadora? A resposta é muito simples: por causa de sua protetora. Uma floresta como essa, com uma paisagem exótica e animais diversos, não se isentaria de estrangeiros cobiçosos e caçadores ordinários. Portanto, Caipora, a guerreira da mata, é incumbida a abater todo aquele que ousa pisar na floresta. E o único vestígio dos infelizes invasores eram seus gritos hórridos ao se encontrarem com a índia.
A aparição de Caipora era diferente de todas as outras. Mas deixemos isso para quando, quem sabe, ela aparecer.
As meninas se divertem um pouco com os diferentes animais que, a princípio, encontram. Todavia, não se dariam ao luxo de ficarem parados esperando um ataque surpresa da Caipora. Por isso, Strolf, já denominado (sem haver qualquer cerimônia, apenas por respeito mútuo) líder de grupo, resolve interromper a diversão das pequenas.
— Vamos seguir nosso caminho – disse ele. – Sempre em linha reta. A beleza atrativa dessa floresta pode nos distrair e nos destruir. Ou, no mínimo, atrasar-nos. Vamos indo!
O sol estava brilhante e quente. O vento, no entanto, sempre estava suave, nunca abafado para transformar a garganta de nossos aventureiros num deserto, tampouco gelado. Os ventos sopravam, de tempos em tempos, algo suave e fresco, fazendo que não derramassem uma gota de suor, nem que se cansassem.
Ao longo dessa boa caminhada, saíram do seio da floresta e encontraram uma trilha. Não era uma cheia de lama, cujo único objetivo é fazer você lavar por horas seus sapatos novos, ou uma bastante empoeirada. Era uma que dava gosto de andar sobre a terra e contemplar o espaço em derredor.
Paula adorou a floresta. A simpatia natural que tinha com toda espécie de animais em Tokarisen fez com que ela não tivesse pressa de andar. De minuto em minuto havia uma distração. A garota tentou se comunicar com uma das árvores (exatamente como fizera na floresta-viva), mas estas eram normais. Então decidiu brincar com o máximo de animais que encontrasse.
O grupo tinha por costume conversar para passar o tempo. Porém estavam quietos, não por estresse ou desentendimento, mas porque a floresta trazia-lhes calma em vossas almas. E quando estamos em paz conosco, queremos aproveitar a quietude do momento. Bem, talvez a maior parte do grupo estava tranquila.
Strolf, um protetor honrado, ficara pensativo depois do incidente na floresta-viva, onde Paula e Marie quase perderam suas vidas com o ataque daquela criatura. Não tirava, agora, os seus olhos de verg delas, tampouco deixava de apurar os ouvidos. Tanto que percebeu que estavam sendo seguidos. Mas não era algo com o que deviam se preocupar.
— Apresente-se – disse ele, direcionado para um arbusto.
O grupo se apavora.
O receio não durara muito tempo quando a pequena raposa-amarela saiu do arbusto, correndo em direção a Paula. Em poucos segundos, o rosto da pequena estava encharcado de saliva.
— Vejam, um fã! – disse Marie.
— Podemos levar ele? – interpelou Paula, referindo-se à raposa-amarela.
— Certamente – redarguiu Bellolfa. – Será de aprazo ter esta criatura conosco à noite.
O que a raposa-amarela faz, o caro leitor pergunta? Quando a noite chegar, tudo lhe será devidamente esclarecido. Porém dar-te-ei uma pequena dica: as raposas-amarelas nunca sentem frio.
O animalzinho não precisava nem de coleira, porquanto onde Paula ia, a raposa-amarela a acompanhava. Paula gostava muito de brincar com seu próprio cachorro. Às vezes, quando o via deitado no quintal, parava ao lado dele e, de súbito, partia em retirada. Com efeito, ele colocava o sebo nas patas e corria atrás dela. Era como se apostassem corrida. Assim, teve a ideia de fazer o mesmo com a raposa.
A cena aconteceu de uma maneira um tanto engraçada. Paula corria de modo que seus pulmões arfavam de dor e colocava todo seu empenho. Mas a raposa, três ou quatro vezes mais rápida que a menina, simplesmente a acompanhava ao seu lado, não entendendo por que a menina corria.
Paula para.
Ela põe as mãos nos joelhos, indicando sua exaustão. A raposa-amarela, por outro lado, assentou-se à frente dela e abanou o rabo de felicidade.
— Não cansou… nem… um pouquinho? – indagou Paula, ofegante.
Paula fica na mesma posição citada há pouco para recuperar as energias. Quando ergue o corpo e olha para cima, seu coração para. Uma onça-pintada a fita numa posição de ataque. Estava trepada num tronco. Antes da menina dar um passo para trás, ela salta em sua direção. A menina só tem tempo para proteger o rosto com seus braços e espera sua morte. Porém a garota começou a ouvir duas coisas: as batidas de seu coração e as asas de um pássaro. Como não havia morrido, decerto, resolveu abrir os olhos.
A onça havia sumido. Tinha, apenas, um pássaro amarelo e preto à sua frente. Por um instante, Paula teve a certeza de que toda aquela magia e as confusões de Tokarisen a haviam deixado maluca.
— Os pintassilgos gostam de pregar peças – disse Snolf, aproximando-se juntamente com o resto do grupo. – Às vezes, quando veem algum tipo de perigo se aproximando, disfarçam-se, de modo ilusório, de predadores, protegendo os seus ninhos.
— Mas em relação a este – continuou Strolf –, parece que, assim como todos os animais daqui têm alguma relação contigo – referindo-se à Paula –, quando a viu se aproximando, pensou em ficar pendurado no galho da árvore emitindo alguns sons para lhe chamar a atenção e lhe assustar. Porém logo sentiu a simpatia natural e veio se apresentar.
O pintassilgo efetuava diversos rasantes e chilreava para chamar a atenção de Paula. Ela ficou um tanto acuada, devido à figura assustadora da onça ainda não ter desraigado de sua mente. Mas a cada chilreio amigável que a ave emitia, a garota foi cedendo. E, no final, o pintassilgo pousara em seu ombro e roçou a cabeça no pescoço dela; semelhante a um cão lambendo seu dono após ele ter chegado do trabalho.
A interação com o pintassilgo não durou muito tempo. Minutos depois estavam de volta a caminhar sobre a trilha.
Comumente, a maioria das trilhas dão acesso a algum lugar específico, ou seja, o fim do lugar que estavam para o começo de outro. Como foi na floresta-viva para o deserto de prata. No entanto, esta dava acesso para um amontoado de árvores que, um pouco mais à frente, via-se um bosque somente com capim. Era como se a trilha fosse interrompida por algum incidente, como se alguém não quisesse a presença de estranhos. Somente de animais da floresta. Uma preservação. Deveria ser obra da Caipora.
Como não tinham outra opção, caminharam em direção ao bosque verdejante.
Anoiteceu.
O grupo foi logo se instalando naquele gramado, cuja temperatura se encontrava agradável. Afinal, fez sol o dia todo. Mas, nalguma hora, ia esfriar. É o que acontece. Assim, as gêmeas já estavam se achegando a Snolf, como fizeram na floresta-viva e na montanha sem sentido. No entanto, o verg as surpreende:
— Hoje não há necessidade – disse ele.
— Como!? – exclamou Marie. – Iremos morrer de frio.
— Não exagere – replicou Snolf. – A natureza não está no inverno, como os corações dos homens. Portanto não há possibilidade de morrerem de frio. Talvez peguem um resfriado. Além disso, disse que hoje não haveria necessidade, pois teremos a companhia da raposa-amarela.
A raposa-amarela passou por entre as pernas de Marie para lhe chamar a atenção. Parou em frente a ela. Enrolou-se. De repente, seu corpo reluzia como uma brasa grande. Em seguida, estava todo em chamas. Por fim, então, tinham uma fogueira quente para esticar os pés e aquecerem-se.
Pode parecer leviano o grupo repousar no meio de um bosque aberto, iluminado pelas estrelas e uma fogueira com uma caçadora genuína como a Caipora. Mas uma coisa que o olfato dos vergs não errava era o cheiro de animais, ou seja, qualquer outro cheiro que não fosse de animais seria, evidentemente, de Caipora. E Strolf, Bellolfa e Snolf não haviam farejado nada até então.
— Caipora não está por perto – disse Strolf para as gêmeas e os harakes.
Kinorel e Tsitarel apanham seus instrumentos, esta com a cítara e esse com a lira. Tocam numa harmonia doce. Uma música que remetia o coração da floresta, o farfalhar das folhas, a queda das águas da cachoeira e a boa brisa dos bosques.
As gêmeas resolvem se sentar uma ao lado da outra e conversar um pouco.
— Acho que estão sendo as melhores férias da minha vida – comentou Marie. – Não vejo hora de conhecer os alruns e o Nobre do Norte.
— Eu não – respondeu Paula.
— E por quê?
— Seremos treinadas para uma guerra. Uma guerra. Onde vidas são perdidas e choro é derramado.
— Credo, como você é pessimista. Por acaso não estaria com medo desse idiota chamado Zalqui?
— Claro que estou. Não ouviu as coisas que falam dele? Deve ser um sujeito muito malvado.
— Mas não deixa de ser medrosa. Parece que serei a pessoa responsável por aplicar um belo de um murro na cara desse idiota.
— Gritou desesperada por aquela criatura na floresta e acha que pode dar conta dele?
— Ainda não. Porém sinto que, com o treinamento que receberemos, seremos imbatíveis.
Paula ficou receosa, pois era difícil a irmã se desempenhar com total concentração em alguma causa, por mais que amasse. – Presumo que serão rigorosas as advertências que terei de assumir num exército. Afinal, essa idiota só faz besteira – pensou ela.
O bom ambiente e a excelentíssima música entoada pelos harakes proporcionou a todo grupo que dormissem em paz. Sem terem de pensar em guerras, Zalqui e Caipora. Rapidamente cerram os olhos e caem num sono profundo, exceto Kinorel, que continuou a tocar sua Lira. Estava tão submergido em sua arte que não percebeu a aproximação de alguns pássaros negros, trepados nos galhos das árvores. Eles eram as graúnas. Em silêncio, mostram quão terríveis são. Mais precisamente, mostram quão terríveis são para Marie e Tsitarel.
Ambas começaram a suar frio e bracejar. Tsitarel, sendo muda, tinha um jeito de sofrimento ainda pior; como não emitia som não de sua boca, parecia estar sendo sufocada. Marie passou de murmúrios a gritos lúgubres. Todos eles diziam a mesma coisa: não, não, por favor, ela não. Paula é minha irmã e melhor amiga.
Pelo visto, o pesadelo consistia em alguém prestes a tirar a vida de Paula.
Paula, acordando assustada pelos gritos da irmã, juntamente com os vergs, corre em direção a Marie. Chacoalhou-a tanto que quase seus órgãos internos viraram ovos mexidos. A menina desperta ainda com o terror fixado em seus olhos. Ela agarra o braço de Paula com veemência.
— Está me machucando – disse Paula. – O que há? O que houve?
— Foi… – balbuciou Marie. – Foi… estava com… então… você…
Strolf, Bellolfa e Snolf entendem a situação rapidamente. Andam em redor da orla da floresta e uivam para os galhos das árvores. Assim assustaram as graúnas que partiram em retirada.
— Eram graúnas – anunciou Strolf, retornando. – Elas veem qualquer criatura racional e dão-lhe, por intermédio dum pesadelo, o pior medo que sentem.
A mesma cena ocorrera com Tsitarel ao ser despertada por Kinorel. Ela agarrou o harake e lhe abraçou duma forma que não soltaria tão cedo. Então só havia uma coisa a ser presumida: Marie e Tsitarel tinham o mesmo medo em comum: perderem a pessoa que mais amavam. No caso de Marie, perder Paula, e no de Tsitarel, Kinorel.
Paula ficou aturdida. Nunca viu Marie sentir medo realmente. Apenas alguns sustos aleatórios. Mas medo? Marie? Era como ver um peixe tendo aversão à água. Algo fora de sua compreensão. Ademais, logo percebeu este medo da irmã, mas se fingiu de boba, como se não tivesse entendido. Se fosse qualquer outro medo que a irmã sentisse, provavelmente caçoaria dela. Entendeu, no entanto, a importância que tinha para ela e, não querendo estragar a alegria que lhe veio, decidiu apenas perguntar se estava bem.
— Claro que estou – replicou Marie, sentindo-se péssima.
— Tem certeza? – indagou Paula. – Se calafrio tivesse um sinônimo, seria Marie.
— Tome água e coma alguma coisa – aconselhou Strolf. – Não me sinto tão cansado assim. Ficarei de vigia pelo resto da noite, caso as graúnas tentem retornar. Agora acalme-se. – Ele se direcionou para Paula. – Ficarei do lado de Marie até que consiga cerrar os olhos novamente. Tem sorte de os animais não quererem te afetar.
Amor é fogo que arde sem se ver;
é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente;
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
— Espera só um minuto – interrompeu Marie. – O quê?
Paula ficou atônita, pois a irmã estava prestando atenção.
— O que foi? – perguntou Paula.
— Como o quê? Não faz sentido nenhum!
— Tem um pesadelo e decide virar crítica. Ora! Diga-me onde não faz sentido.
— Em primeiro lugar, como alguma coisa pode ser um fogo e uma ferida ao mesmo tempo? Por acaso o Amor seria algum tipo de doido que adora ser o agente e o receptor da dor? É quase tão esquisito quanto um fósforo reclamar de calor ao ser aceso.
Na sala de aula, os alunos não costumam ter a coragem de levantar as mãos e fazer esse tipo de questão. O conteúdo lhes é concedido por explicações demasiadas técnicas e chatas. Portanto Paula não sabia muito bem como responder. Então resolveu continuar escutando:
— Aliás, que história essa de arde sem se ver e que “dói e não se sente”. Algo ardido não vemos, mas sentimos. E como saber que algo doeu sem ter sentido?
“Ora, ora. Isto não está correto.
“Só ouvi loucuras. O que tem lá a ver andar solitário entre a gente. Andar aonde? E que gente? O que isso tem em relação ao Amor?
“Ou na vida se ganha, ou se perde. Como vou ganhar e me perder? Nunca vi no futebol um time marcar gols contras para ganhar!
“Que absurdo.”
Aos poucos, Paula foi entendo a confusão de interpretação que Marie estava transmitindo.
— Acho que compreendi – disse ela. – Não é o poema que não faz sentido, mas seu jeito de interpretá-lo.
Bellolfa, cujos ouvidos estavam atentos para a conversa das gêmeas, entendeu toda a confusão de Marie. E disse:
— Se o primeiro passo for equivocado, toda a caminhada será desastrosa.
— Exatamente – concordou Paula. – Olhe, a alma do poema está na essência do Amor, no qual possui duas parcelas opostas, porém necessárias para sua composição.
— Só me deixou mais confusa – respondeu Marie.
— Irei lhe explicar verso por verso – ponderou Paula. – O primeiro fala que o Amor é fogo, ou seja, feito pra incendiar. Mas não nosso corpo de forma literal, mas nossos sentimentos. Como se todos fossem elevados ao máximo. E o arde sem se ver está dizendo que ele vem de súbito, ou seja, quando menos esperamos, somos surpreendidos pelo Amor.
“Em seguida, o mesmo acontece no segundo verso, onde diz que seria uma ferida que dói e não se sente, mas focado na forma de como somos atingidos pelo Amor. Digamos que alguma coisa causou essa tal ferida. Que tal uma flecha. Mas não uma flecha comum. Seria a flecha do relacionamento que temos com uma pessoa. E, quando somos machucados por ela, cria-se uma ferida, que se agrava com o passar do tempo. Porém tem um atributo intrínseco: não sentir dor. Logo, não está recebendo tratamento para ser curada.
“O contentamento descontente chega a ser complicado de se ser entendido por quem ainda está no cativeiro da paixão. Pois o amor é consumido por seres imperfeitos, logo está repleto de decepções. Mas nenhuma delas faz com que o Amor murche. Portanto, ainda que estejamos descontentes com algumas situações do Amor, estamos contentes por estarmos nele.
“Confesso que estou com dificuldades para compreender o quarto verso. Então pulemos ele.
“O quinto é um pouco engraçado. O não querer enxerga todos os obstáculos, as dificuldades e, até mesmo, as batalhas que enfrentamos apenas para conseguirmos amar. Porém, pela recompensa ser a mais prazerosa, desejamos o Amor com todas as nossas forças.
“Nem as mudanças, tampouco os sacrifícios são, de fato, compreendidos além da pessoa que está amando. Ela caminha por vias que diversas pessoas caminham, sofrendo e desfrutando das mesmas coisas. Porém todas elas são diferentes umas das outras. É evidente, então, o porquê de você caminhar solitário dentre tanta gente.
“Imagine um mar extenso e bonito. Ele causa um efeito bastante peculiar quando mergulhamos nele. Sendo: quanto mais fundo formos nele, mais prazer sentimos. Assim é o próximo verso, onde fala que é nunca contentar-se de contente. É verdade! Entramos num estado de felicidade quando amamos. Porém queremos mais ainda, nunca se contentando da felicidade atual.
“Por fim, mas não menos importante, é um cuidar que ganha em se perder. Veja, pessoas não amam quando estão com receio de amar. Só alcançamos o amor quando nos entregamos totalmente a ele.”
Bellolfa e Marie tiveram o mesmo pensamento quando Paula terminou de glosar uma filosofia tão refinada: o que há na cabeça dessa garota?
A menina era simplesmente genial.
— Meus olhos veem duas garotas iguais – disse Bellolfa –, mas totalmente diferentes.
— Era isso que a nossa professora de literatura, a Sra. Kelem, dizia? – indagou Marie.
— Ora bolas, claro! – exclamou Paula.
— Mas você explicando é mais legal. Não entendo nada do que a professora diz.
— É porque você não se interessa. Não adianta nada a professora ser a melhor sem você, ao menos, tentar compreender o que ela explica.
— Não consigo ficar muito tempo parada somente ouvindo ou lendo algo. Preciso ver as coisas em movimento!
— De que adianta ver o movimento das coisas sem entendê-las?
— Por que tenho que entender?
— Pra deixar de ser tonta e ficar mais inteligente.
— Por que devo deixar de ser tonta? Qual a diferença entre uma pessoa tola e uma sábia? Ambas não tiveram o mesmo início e não terão o mesmo fim? Veja, sou burra e você é inteligente, e não somos gêmeas? Pra mim, praticar esporte e ler é a mesma coisa: suprir necessidade de nosso espírito de ter que fazer alguma coisa. Não acha?
Houve uma longa pausa de silêncio. Nem Paula acreditou na profundidade de questionamento que o debate chegara. Bellolfa resolve, por fim, quebrá-lo:
— Retiro o que disse.
As duas garotas a fitaram. Paula concluiu que Bellolfa estaria dizendo que Marie era quase tão inteligente quanto ela, ou Paula quase tão burra quanto a irmã. Mas assim que abriu a boca para protestar, a verg continuou:
— Melhor tentarem dormir. Será um dia aventuroso amanhã. Aliás, Marie não está mais tremendo. Podem ficar tranquilas. As graúnas não irão retornar.
— Está bem – responderam as gêmeas em coro.
Tinham, por costume, dormirem invertidas uma à outra, sempre olhando para o pé da outra. Desta vez, no entanto, Marie fez questão de dormir encarando a irmã, que ainda estava afetada pelo pesadelo. Paula ainda estava atônita pela complexidade das perguntas da irmã. Fitaram-se até cerrarem os olhos. Estavam tão parecidas. Passaram-se alguns meses desde que atravessaram o portal no cedro. O cabelo de Paula continuava mais longo, porém Marie, além de ter o seu crescido um pouco, ele estava encaracolado como o da irmã.
Assim adormeceram.
Strolf e Snolf fizeram uma ronda nos arredores do bosque aberto, farejando cada rastro das graúnas. Mas só sentiram o cheiro da mata. Portanto concluíram que estavam, outra vez, a sós.
Grave engano.
Lá estava entre os arbustos. Com seu cabelo longo e negro, com sua pele vermelha, com sua face marcada com duas pequenas faixas mágicas em cada bochecha, nas cores azul e preto. Estava usando uma tiara de folhas com uma natureza mística. Caipora observava o grupo sem emitir qualquer som ou cheiro, como se fosse parte da floresta.
A aurora florescendo sobre a floresta-do-grito é como se fosse o primeiro dia de Tokarisen, onde o sol deu o seu primeiro brilho, intenso e luminoso. Tão forte que, assim que os raios chicotearam os olhos das meninas, elas acordam na hora.
— Apaga a luz – disse Marie, sonolenta.
— Fomos dormir muito tarde por causa dos seus pesadelos – disse Paula, irritada por não ter dormido direito. Era subtrair alguns minutos de seu sono que ficava mal-humorada.
— Mas não foi minha culpa. Foram aqueles pássaros idiotas.
— Está bem.
O ambiente não estava nada animador. As gêmeas, por terem dormido pouco, não trocavam uma palavra. Com isso, ficou um certo silêncio, pois os harakes não falavam e os vergs, com a sua natureza fidalga, achavam mais elegante ficarem quietos.
O grupo, junto com a raposa-amarela, apenas levantou-se, alongou as juntas contraídas e prosseguiu a viagem.
Desta vez, vislumbraram o recanto mais denso da floresta. Pelo menos poderiam ter alguma sombrinha para combater o sol do meio-dia quando ele chegasse, pois não havia uma nuvem no céu. Poderiam facilmente se perder ali, porque em todas as direções tinham somente árvores enormes e arbustos duvidosos. Tanto que Paula e Marie tornaram a subir nas costas de Snolf, Tsitarel nas de Bellolfa e Kinorel, pela primeira vez, nas de Strolf.
Caminharam por cerca de duas horas.
Estavam, então, caminhando por uma encosta íngreme, que dava acesso a um vale estreito. As árvores deixaram de estarem densas. O rio, que não se distanciaram tanto, desabava numa extensa e alta cachoeira. A paisagem ali era bastante suntuosa. O grupo para na beira do grande lago para abastecerem seus cantis.
Marie mergulha sua cabeça na água para despertar de vez do sono que ainda a incomodava. Paula entra com seus pés no lago, que não tinha uma fundura demasiada na beira dele. Caminhou calmamente, sentindo a água gelada acorrentando seus dedos. Havia peixes dourados nadando no rio. Isso era ótimo: tinham um almoço esperando ser apanhado.
Snolf era um grande especialista em apanhar peixes pela boca e levá-los até a costa do lago. Kinorel, Tsitarel e Bellolfa foram atrás de galhos para fazerem de espetos para grelhar os peixes. Strolf fez uma nova ronda para assegurar que Caipora não estivesse por perto. Ele a temia, mas não sentia medo dela, pois a Caipora não machucava nada que fosse ou parecesse com um animal. Então tinha um enorme receio do que ela poderia fazer com as gêmeas.
Ninguém poderia questioná-lo a respeito do cuidado que estava tendo. Estava convicto que só havia animais da floresta e peixes nos arredores e no lago. Todavia a Caipora não tinha um cheiro próprio. O cheiro da mata, das árvores, das folhas, das águas, todos eles eram seu cheiro. Assim, Strolf cometera um crime fatal deixando somente Snolf cuidando das meninas.
O verg tinha pescado uma quantidade considerável de peixes, quase chegando ao exagero. Marie tinha apenas banhado o rosto na água, porém foi encharcada pela irmã que lhe molhava sem parar. Ela não nega o confronto e parte em direção à Paula, jogando-lhe a maior quantidade de água possível (espero que o leitor já tenha se divertido da maneira que acabei de explicar, senão, por favor, experimente). Há uma parte comum em se brincar dessa maneira: limpar os olhos. A mesma cena se repetia: Marie jogava água, Paula rebatia e Marie colocava as mãos nos olhos para limpá-los e verificar se irmã estava no mesmo local. Assim se sucedeu uma vez, duas vezes, três vezes… Molhavam-se, riam-se e não se enjoavam. E o algoritmo se repetia: jogar água, receber água nos olhos, limpá-los e localizar. Porém Marie, numa certa vez, teve um incidente um tanto perturbado. Algo que foi sucedido depois de haver um vento bastante forte e barulhento.
Quando foi limpar os olhos, viu a imagem de alguém de pele vermelha emergindo das águas, mas não conseguia distinguir direito quem era, pois a irmã não parava de lhe jogar mais água no rosto. Então gritou:
— Pare! Paula, para!
Paula cessou.
— O que foi? – indagou ela. – Acertei-te com um punhado de areia do rio?
Marie esfregou as mãos no rosto e piscou energicamente. Então viu. Viu a Caipora, bem atrás da irmã, com uma lança na mão direita, aljava e um arco nas costas, preparada para empalar Paula. Mas hesitou por um longo tempo, o suficiente para Snolf atravessar o rio e tentar lhe aplicar uma mordida das mais fatais. No entanto, a índia ouvira as passadas do verg pisando sobre a água e desviou por um triz.
Snolf está quase a dois metros dela. Ele não avança mais, pois ela o ameaça perfurá-lo com sua lança estendida. Mas, para que fique bem claro, ela poderia matá-lo facilmente. Não só pela inexperiência do verg jovem, mas porque era a maior caçadora de Tokarisen.
Caipora não avançou por ainda estar aturdida pelo impacto que recebera ao sentir algo vindo de Paula. Ela que era a única atenção de seus olhos.
— Melhor concentrar-se em mim – observou Snolf.
— Caipora não machuca nenhum animal – disse a índia. – Somente os que tentam matá-la. Então se o sublime lobo tentar atacar a Caipora, ela não terá perdão.
Ouvem-se uivos se aproximando.
Strolf, com olhos em fogo de fúria, com seus pelos cinzentos eriçados e rosnando, no cimo da encosta íngreme, desce como um raio e salta no lago. Ele se aproxima do alvoroço. A Caipora não mexe um dedo, continuando com a expressão imponente e indiferente.
— Afaste-se de nós, protetora da mata – proclamou Strolf.
A Caipora fita-o com um olhar severo. Strolf fica atônito por um momento. Mas depois se recompõe e repete o que disse. A índia parecia que estava prestes a atacar, porém não o fez. Sentiu algum perigo se aproximando.
— Caipora não está num lugar ideal para pelejar – disse a guerreira. – Ela partirá em demandada, mas Caipora voltará para perecer cabelo curto e entender cabelo longo – finalizou ela, referindo-se às gêmeas.
A tiara da Caipora começa a fulgentar intensamente e apaga.
A cena a seguir aconteceu num abrir e fechar de olhos. Exatamente quando a tiara da índia parou de brilhar, Bellolfa vinha lentamente por detrás da Caipora. Ela deu um grande salto e iria acertá-la em cheio, porém uma mula sem cabeça (que no lugar da cabeça havia uma chama que não se apagava) interceptou o ataque da verg no ar. Ouve-se um baque e um splash. Bellolfa boia desnorteada sobre a água.
Caipora monta na mula sem cabeça, sai rapidamente da água e se dirige para a mata espessa. Com isso, vinha novamente o vento de quando apareceu para as gêmeas. Caipora sumiu.
— Bellolfa! – esbravejou Strolf.
As gêmeas já estavam ajudando a verg, tentando levantá-la, mas ela era muito pesada para elas. Porém conseguiram erguer sua cabeça para que a verg não se afogasse.
Strolf mergulha na água, nadando para que ficasse embaixo de Bellolfa. Ele a ergue no seu dorso de lobo e caminha para fora do lago.
Após uns dez minutos, Kinorel e Tsitarel, junto com a raposa-amarela que os acompanhava, chegam na beira do riacho. Pelas suas expressões, eles requeriam uma explicação do que ocorrera. Paula o faz detalhadamente. Não omitiu sequer um til do relato.
Tsitarel, depois de ter terminado de ouvir, se direciona para Bellolfa e a examina de perto. Pela primeira vez, ela tira seu capuz e o cachecol e arregaça as mangas de seus libre. Lembremos que Kinorel tem um grande cabelo com um aspecto de juba, como um leão. Em nosso mundo, o comum é que o leão tenha uma juba, e a leoa não. Fazendo-se uma comparação breve, o certo deveria ser que Tsitarel não tivesse um fio de cabelo na cabeça. E é exatamente o que vemos, uma cabeça sem aquela grande cabeleira de um harake macho, porém com pelos rasos.
Depois de uma breve examinada, ela faz um sinal para Kinorel. Ele pega sua lira e tange. Paula, por fim, anuncia:
— Está bem. Apenas desacordada.
Os corações de todos voltaram a bater tranquilos. A angústia de Strolf e Snolf cessou.
Strolf, sem perder tempo, fala a respeito da nova situação:
— Iríamos, depois de nos alimentar, descansar e prosseguir viagem – ele fixa o olhar onde a Caipora escapou –, mas não podemos nos dar ao luxo de ficarmos aqui. E, o pior de tudo, Bellolfa está desacordada.
“Pelo que sei, as gêmeas são sua prioridade. Marie, mais precisamente. Paula, por seu dom natural que tem com os animais, fremiu o espírito da Caipora. Presumo, então – Strolf se direciona para Paula –, que ela não fará mal algum a você.
“Por sorte, a floresta se estende mais para o leste, e estamos indo para o norte. Se continuarmos o nosso caminho, estaremos na Planície Vazia (local que antecede a cidade dos alruns) por volta do amanhecer de amanhã.
“Porém é indiscutível que iremos entrar em combate contra a espada da mata. Teremos de enfrentá-la. Kinorel, verifique a alforje que Tsitarel retirou de Bellolfa. Veja se há algo afiado.”
Kinorel obedece maquinalmente. Havia um algo enrolado de pano branco. Ele abre como fosse um pergaminho, mas no lugar de segredos antigos escritos, havia três adagas bem afiadas reluzindo.
— Ótimo! – retomou Strolf. – Marie, Kinorel e Tsitarel, cada um apanhe uma. Snolf, terá de carregar Bellolfa. As gêmeas, desta vez, virão comigo. Tentem todos descansarem, pois não dormiremos e não pararemos até o dia de amanhã. Estarei de vigia.
Que tal se pulássemos para a parte onde o grupo se demandou para o seio da floresta visando chegar ao Vale do Vazio ao amanhecer? Acho isso uma excelente ideia.
As patas de Snolf estavam implorando por misericórdia, pois o pobre coitado do verg carregava Bellolfa em suas costas. Havia algo que o fazia esquecer a dor que sentia: a relação que tinha com Bellolfa. Ela era para ele como uma mãe. Diga-me se haveria algum filho nesse mundo que deixaria sua mãe para trás ou hesitaria em ajudá-la. Esse, com toda a certeza, não seria Snolf.
Os vergs não poderiam correr, porquanto os harakes, Kinorel e Tsitarel, estavam a pé. Kinorel se localizava atrás, na retaguarda do grupo, e Tsitarel à frente. Strolf, carregando as gêmeas, vinha logo atrás de Tsitarel. O verg branco vinha atrás dele.
A tática desenhada era bastante simples: um cuidaria da retaguarda, o outro da vanguarda e os vergs dos flancos. O objetivo não era cravar uma batalha com Caipora, mas saber sua localização. Se, por acaso, a vissem, os vergs deixaram seus passageiros no chão e iriam, talvez com um harake, enfrentar a guerreira.
Se o Sr. Leitor percebeu a falha do plano, já deve se encontrar numa agonia tremenda. Todos os lados estavam sendo monitorados, menos em cima.
A mata estava quieta. Ouvia-se apenas os pássaros gorjeando. O olfato dos vergs não tinha efeito nenhum, tampouco os ouvidos, pois como Caipora harmoniza com a natureza, não puderam perceber a movimentação rápida e silenciosa dela nos galhos das árvores bem acima deles. Em seus ombros até sua cintura, uma cobra a enrolava, mas não a apertava.
Caipora se adianta algumas árvores à frente e cede um pouco do corpo, de modo espiral, da cobra, prevendo o ponto no qual o grupo passaria. Quando estão bem abaixo dela, assim como nos filmes de caubói, Caipora enlaça as gêmeas. Foi um movimento muito mecânico, parecia que a cobra havia se transformado numa corda.
De súbito, as gêmeas sentem seus corpos sendo apertados e levantados para as copas das árvores. Caipora joga as duas, ainda enroladas pela cobra, em suas costas e salta, de galho em galho, para longe do resto do grupo. Strolf, sendo o mais veloz dentre eles, anuncia:
— Vou atrás dela. Snolf, tente, em seu ritmo, acompanhar-me.
— Certo – replicou Snolf.
Strolf pôs o sebo nas patas e partiu em perseguição.
Marie, ainda com a adaga empunhada, como naquela vez na floresta-viva, tem os seus sentidos aguçados em situação de perigo. Ela maneja sua adaga para dar um jeito de tentar cortar a cobra. Mas sem sucesso. Estava numa posição bastante desconfortável. Lembremos que quando Paula e Marie estavam montadas nas costas de Strolf, esta se encontrava atrás da irmã. Portanto, quando foram enlaçadas por Caipora, continuaram na mesma posição, ou seja, Marie tinha a irmã grudada em sua frente. Então não poderia aplicar um golpe eficaz. Teria de usar uma das mãos. Enfim, teria que passar a adaga para Paula.
— Paula – sussurrou Marie no ouvido da irmã –, irei lhe passar a adaga. Use as duas mãos para desferir um golpe na pele da cobra.
Paula acena positivamente com a cabeça.
— Mas – continuou ela – espere quando ela for aterrissar no galho.
Marie precisa entregar a adaga nas mãos da irmã, porque Paula já se encontrava com as mãos juntas. Que trabalho árduo. A cobra não poderia apertá-las, pois as sufocaria. No entanto, quando sentia relutância vinda de Marie, fazia algumas contrações. A menina não desiste. Consegue entregar a adaga nas mãos de Paula sem machucá-la ou cortá-la.
Paula espera um momento antes da Caipora aterrissar no próximo galho e punge a lâmina na pele da cobra. Ela se debate e solta as meninas. Caipora sente um solavanco e acaba caindo para frente, não conseguindo se agarrar num tronco. Puff. Bem no chão.
Paula e Marie, por sorte, conseguem ficar firmes num galho e bradam pela ajuda de Strolf. O verg se aproxima rapidamente e diz:
— Rápido! Desçam da árvore.
Marie, um prodígio esportivo, desce rapidamente. Não se engane, ela não sabia descer ou subir em árvores, porém o medo e as condições da árvore a fizeram descer rapidamente. Se fosse numa situação fora de perigo, talvez travasse lá em cima. Mas Paula desce bem devagar, divagando em alguns galhos, não sabendo bem qual seria o próximo passo. A índia, como um macaco, sobe outra vez na árvore e tenta alcançar a menina.
Paula fez algo que, se não fosse a última sala das armadilhas, não teria conseguido. Pula. Cairia bem em cima de Strolf, mas Caipora foi mais veloz, agarrando o braço da menina e levando-a outra vez para longe. Desta vez, como tinha somente uma vítima, conseguiu ter mais agilidade, escapando do faro de Strolf.
— Ela está levando a minha irmã embora – esbravejou Marie. – Por que está parado?
— Posso não sentir a Caipora, mas farejo Paula – replicou Strolf. – Também sei que ela não fará mal algum à sua irmã. Se fosse você, teria sido diferente.
— Perecer cabelo longo e entender cabelo curto – lembrou Marie.
— Aliás, se eu tentasse lutar contra aquela guerreira sozinho, teria morrido – concluiu Strolf.
— É por isso que atacaremos em grupo – disse Bellolfa se aproximando dos dois e bem acordada.
— Bellolfa! – exclamou Strolf de felicidade. – Como está se sentindo?
— Minha cabeça dói um pouco. Teria descansado mais um pouco, mas assim que despertei Snolf me relatou a situação. Não poderia ficar parada com as gêmeas em perigo.
— Tampouco eu – anunciou Snolf, que tinha forças para carregar Kinorel e Tsitarel.
— Perdoe-me, verg mancebo. Saí em disparada e deixei que carregasse, sozinho, os harakes.
— Guardai vossas desculpas. Temos que salvar o nosso lírio.
— Como nós faremos isso? – inquiriu Marie.
— Não existe nós – replicou Bellolfa.
— Como?! – revoltou-se Marie.
— Exato – concordou Strolf. – Nossa função é proteger vocês, não vos impô-las ao perigo. A floresta, em verdade, é encantadora e complacente. – Ele se direciona para os três: Marie, Kinorel e Tsitarel. – Somente Caipora poderia vos proporcionar algum tipo de ameaça. Ficarão pelas redondezas enquanto Bellolfa, Snolf e eu salvaremos Paula.
— Nem pensar! – bramou Marie. – Ela é minha irmã, é meu dever salvá-la.
Strolf a fitou com um olhar severo e silencioso. Ele caminha para perto da menina. E diz:
— Não duvido de quem possa ser um dia, nem de quem és agora. No entanto, sua bravura não pode lhe conceder experiência de batalha. Precisa de treino antes de pensar em entrar num combate. Ademais, estamos falando de uma peleja que se efetuará de forma coletiva. Qualquer erro individual de um integrante, pereceremos. Por mais que uma corrente seja formada por elos resistentes e preciosos, se um for escória, toda corrente perderá seu valor e função, pois se quebrará.
— Coração-bravio – disse Snolf –, se tiver a certeza de que agirá como nós, acompanhando-nos como verg, calar-me-ei, pedirei que suba em minhas costas e iremos atrás de seu sangue.
Como é difícil admitir que não se pode fazer algo. Marie sentia um espírito de cavaleiro dentro de sua alma, incendiando-a. Mas, naquele momento, via-se a imagem do que ainda era: uma garota de treze anos, que mal havia segurado uma espada.
Lágrimas de desespero caem de seus olhos.
Marie encara sem medo algum o grande lobo cinzento. E adverte:
— Traga-me minha irmã de volta.
Não precisavam mais de nenhuma motivação.
Strolf, Bellolfa e Snolf partem em perseguição à Caipora.
Para que os leitores não fiquem amuados ou agastados por não haver uma explicação sobre a origem da guerreira das matas, a Caipora, irei vos dar, brevemente, uma. Ei-la: devido ao enorme número de criaturas agrestes e más, e diversos povos existentes que veem a floresta como apenas um meio de adquirir recursos triviais, a floresta-do-grito necessitava de uma proteção. Eis que, após mil anos de paz, numa dada era em Tokarisen, a dinastia de Bethïl, o Grande, com seu apogeu sendo orquestrado por Tethïl, o Justo, e sua queda por Marthïle, a Insensata, a floresta fora escolhida como a terra que floresceria a Canalva, mas isso não aconteceu. À medida que a muda da árvore lendária, a cane, desenvolvia-se, abriu-se uma fenda na terra, engolindo não somente a muda, mas uma cobra, um búfalo e uma puma. A planta e os animais fundiram-se em uma semente vermelha. Dela veio a crescer uma outra espécie de árvore sem folhas e galhos, sob a forma de um berço. Nele se ouvia o choro meigo de um bebê de pele avermelhada, com uma tiara de folhas na cabeça.
A tiara de Caipora não era apenas um objeto místico, porém, também, um meio de contato entre ela e a floresta. Com ela, a índia pode se comunicar com os animais, com as plantas, com os insetos, pedir auxílio, ser a própria floresta sobre dois pés.
Como acabamos de falar dela, vejamos o que a Caipora estaria fazendo com Paula.
As duas sobem, com Paula sendo carregada à força por Caipora, uma colina acentuada. Atravessam vaus a saltos. E descem uma serra a toda velocidade. A índia parecia deslizar sobre todo e qualquer plagas que passavam. Não havia dificuldade alguma para ela.
Chegaram num bosque orlado por morangueiros. Caipora coloca Paula no chão e vai colher alguns morangos para si. Enquanto caminhava, deu um grito não muito energético, um aviso:
— Cabelos do outono, não fuja. Senão a Caipora irá atrás de você.
A índia foi saborear alguns morangos.
Paula não deu uma resposta para o aviso da guerreira-da-mata, pois estava aterrada de receio. Estava, no entanto, confusa consigo mesma. Strolf não avançara para lutar contra Caipora, devido ao medo. Mas Paula não sentia medo dela. Estava dividida por um afeto estranho e raivoso. Este veio por ter sido atacada e sequestrada por Caipora. Todavia, é claro, não entendia o afeto que tinha por ela.
De pensativa foi para resoluta. Tinha que fazer algo. Estava com a adaga em mãos. Teve, então, um impulso de Marie. Ela foi até o morangueiro no qual Caipora estava se saboreando com um enorme morango bem vermelho. A presença da menina era bastante indiferente para a índia. Sem pensar, Paula tenta enterrar a adaga na ilharga de Caipora. Ela desvia como se fosse uma cobra, mexendo somente o quadril. Não obstante, enquanto desviava, agarrou o pulso da menina, fazendo com que ela investisse numa rama do morangueiro e a cortasse. Ela ficou com a rama cheia de morangos e soltou Paula, caindo na relva fofa.
Paula foi para trás de Caipora, com o espírito assustado pra ficar ao lado da índia. Antes de pensar em qualquer coisa, a índia diz:
— Caipora não quer machucar cabelo do outono. – Ela sequer olha para trás. – Contudo garota está chateando Caipora.
Paula, apesar de ter as costas de Caipora vulneráveis para ela, sentiu seu corpo inteiro tremer na presença selvagem daquela guerreira. Por fim, simplesmente solta a adaga no chão e vai buscar um morango para comer.
Depois de um certo tempo de silêncio, Paula resolve perguntar algo para a índia:
— O que pretende fazer comigo?
O leitor já viu o olhar de uma leoa do meio dos arbustos? Era exatamente com esse olhar que Caipora fitou os olhos de Paula.
— Caipora ainda não sabe – replicou a Caipora. – Caipora quer tentar descobrir o porquê. Enquanto não descobre, cabelos do outono fica com ela.
Paula refletiu um pouco sobre a alcunha que recebera de Caipora. Ela a chamava assim por causa da coloração que as folhas das árvores ficam no outono.
Paula percebeu, também, que a Caipora, toda vez que arrancava um morango, acariciava uma folha. Tinha uma paixão descomunal pela natureza.
— A senhora gosta das plantas? – interpelou Paula, inocentemente.
— Caipora é a protetora da floresta – respondeu a Caipora. – As árvores são suas mães, e os animais seus irmãos. Tudo aquilo que não faz parte da família de Caipora, ela caça.
— Então se não me caçou, sou sua família?
Paula não tinha malícia alguma na pergunta. Não estava bolando nenhum tipo de plano para enganar a Caipora.
— Caipora ainda não sabe – respondeu a Caipora.
— Talvez a gente…
A mão de Caipora cerra a boca de Paula. Ela ouvira alguma coisa. De súbito, a índia começa a andar de costas, indo em direção a uma faia. Estava atenta para onde o barulho veio. Sua tiara começa fulgentar. Com uma mão aperta o braço de Paula e, com a outra, o tronco da árvore. Algo extraordinário acontece. Há uma contração de madeira na região em que a Caipora impôs sua mão. Como se a árvore estivesse concedendo parte de si, em forma de cabo, para a índia. Assim a Caipora puxa uma lança da árvore.
Houve ruídos sucessivos pela direita e pela esquerda. Caipora desvencilha-se de Paula e se prepara para o ataque. Nada escapava dos ouvidos da guerreira. Mas o inédito aconteceu. Bellolfa sai do meio da mata e parte para dar uma bela mordida. Caipora se vira para ela. Como se esse movimento fosse esperado, Strolf aparece do lado desprovido de atenção. Estava cercada, sem poder empalar os dois ao mesmo tempo, esperando pela esquiva. Quando, entretanto, os vergs estavam a poucos metros, Caipora percebeu que um chegaria primeiro que o outro, mas não teria tempo de dar um ataque. Contudo teria chance de dar contra-ataque em Strolf.
Ela desvia sem problemas de Bellolfa. Ela tinha a destreza de uma cobra. No entanto, teve de efetuar uma evasiva complicada para se safar das garras do lobo cinzento, caindo com uma mão e um joelho no chão. E essa foi a brecha. A índia não percebeu que Snolf vinha atrás de Strolf, pois corriam em sincronia. Ela só teve tempo de jogar o corpo para o lado, mas suas costas não escaparam das garras de Snolf. O golpe não foi fatal para derrubá-la, contudo seu corpo estava molhado de sangue.
— Renda-se, força da natureza – anunciou Strolf. – Viemos buscar a garota e sair da floresta. Não há motivos para preludiar um confronto.
Caipora nada responde. Senta-se na relva e coloca a mão no ombro esquerdo, onde a ferida fora aberta. Ela também abaixa, insinuando que tinha se rendido, todavia, num movimento imperceptível, com a outra mão, ela mexe no seu cinto, ornado de penas, do qual, dum saquinho preso a ele, retira uma semente. Com ela, planta rapidamente na terra.
Sua tiara fulgentou.
Uma corcova começa a se formar bem debaixo da índia. Um focinho redondo, corpo peludo e, em sua boca, dois chifres aparecem. Enfim, da terra surge um javali gigante, no qual Caipora rapidamente montou.
Uma observação bastante importante a se declarar: quanto mais a Caipora utiliza a tiara mágica, mais fica exausta. Dito isso, continuemos com o combate.
A índia direciona o javali para perto da faia. Ela repete a mesma coisa que fizera para ter a lança, porém, desta vez, tira um arco sem a corda. Na mesma árvore, havia teias de aranha bem espessas. Ainda com a tiara brilhando, caipora toca uma ponta do arco de madeira. De uma ponta a outra, surge a corda feita de teia de aranha, porém encantada, firme e resistente.
E, em seu último uso da tiara, ela retira flechas do lenho da árvore. Estava, por fim, pronta para o confronto (sem dispor da ajuda da mula sem cabeça, cuja história não redigirei neste livro).
Paula não havia mexido um músculo. Sendo assim, ficou ao lado da árvore na qual Caipora tirou todas as suas armas. Caipora solta uns grunhidos, parecia língua de javali. E era. O javali achega-se próximo da menina e morde o colarinho de sua camisa. A índia se levanta, gira para que ficasse cuidando da retaguarda e arma seu arco e flecha na direção dos vergs.
Evidente que a Caipora não atiraria para matar, mas nada a impedia de atirar para neutralizar. Ela não hesita nisso. A índia mira em Snolf e atira. Ele esquiva com eficácia. O tiro foi na direção de sua pata esquerda. Se a acertasse, no mínimo, não conseguiria mais correr.
— Tenha cuidado! – advertiu Bellolfa. – Se um de nós formos atingidos, só diminuiria as chances de resgatarmos o nosso lírio.
Caipora ouve aquela alcunha, a qual foi dirigida para Paula. Ela solta um grunhido. O javali para e, novamente, gira, ficando de frente para os vergs. Caipora se achega, sem desgrudar os olhos dos vergs, junto à Paula. E diz:
— Caipora quer saber do porquê te chamarem pela formosa flor branca.
— Não… sei… – gaguejou a menina. Não sentia medo de Caipora, mas de batalhas. – Mas… eles falam que serei, juntamente com minha irmã, uma guerreira que parará um mal.
— Caipora quer saber quem, ou o que, é este espírito maligno.
— O nome dele é Zalqui. Ele conquista povos e queima suas cidades. O objetivo dele também não sei ao certo, mas envolve destruir tudo aquilo que por gerações fora construído, aldeias, costumes e faunas.
— Faunas!? Caipora amaldiçoa este desfortuno! Caipora também não gosta de todos aqueles que fazem mal para a floresta.
— Então por que nos ataca?
— Porque os sobre dois pés, tirando os companheiros dos ramos, todos vêm destruir e matar amigos de Caipora.
— Não somos como eles. Amamos os animais. Eu amo os animais.
Caipora resolve encarar por alguns segundos o rosto inocente de Paula. As faixas em seu rosto brilham. Por um momento, pensou em desistir. Veio, no entanto, a memória de todos seus colegas, os animais, que morreram por povos diversos que passaram pela floresta.
Outra vez solta um grunhido. O javali dá meia-volta e parte em disparada. Caipora volta à sua posição, guardando a retaguarda. Os vergs se dispersam, mas ainda continuam perseguindo a índia.
Caipora conhecia a floresta como a palma da mão. Ela fez com que o javali fosse até um lago, com bastante rochas escorregadias e dois troncos de árvores flutuando com musgos em sua periferia. Havia também diversas vitórias-régias, nas quais o javali foi saltando de uma a uma até parar numa que ficava quase no meio do lago. Por fim, alguns sapos bem pequenos e azuis descansam sobre as vitórias-régias. Eram bem bonitos. Bonitos e traiçoeiros. Qualquer pessoa que tocasse em sua pele venenosa, seu corpo entrava num estado de paralisia. Terrível! Imagine estar acordado sem poder mover um músculo. Na pior das situações, alguém poderia tocá-lo, cair no lago e se afogar.
Por esta razão Caipora se dirigiu para este lago. Ela pega uma de suas flechas e desliza sua ponta no corpo do sapo. De agora em diante, qualquer tiro de raspão ganharia o combate.
Porém era de se impressionar que Caipora conseguisse atirar bem com o ombro ferido. Sentia fortes dores ao se agachar, passar a flecha e efetuar um bom tiro.
Ela ouve ruído de patas esmagando folhas à direita.
Sem perder tempo, ela vira e atira naquela direção.
Nada.
Os vergs aproveitam a oportunidade para investir contra ela. Os três saem em disparada para agarrá-la. Não tem escolha. Terá de abandonar seu amigo javali, apeando-se dele. Contudo tenta pegar a menina e levá-la consigo, porém Strolf, enfurecido, fora mais rápido. Ele deu uma bela mordida na mandíbula do javali, que, no mesmo instante, soltou a garota. Ela cai na água. Paula nada até a beira do lago, na qual tinha um filhote duma onça-pintada bebendo a água do lago.
O javali enlouquece e tenta efetuar uma cabeçada em Strolf. Ele desvia e ladra. Era um sinal para Bellolfa e Snolf pegarem Paula e correrem. Porém Caipora entende. A índia desliza outra flecha no sapo azul e mira o ponto futuro que Bellolfa estaria. Ela faz, todavia, um esforço para esticar a corda do arco, fazendo seu ombro doer, soltando e disparando a flecha em direção à pequena onça.
Paula, sem pensar duas vezes, tirando uma coragem que não sabia de onde viera, pula para salvar a pequena onça. Ela consegue. Mas a flecha finca na sua perna esquerda.
Snolf, vendo que a amiga foi atingida, corre em direção à Caipora. Ela não teve tempo para se proteger. Só conseguiu se defender com o arco da mordida do verg enfurecido.
Quando Paula sentiu, por breves segundos, a dor da flecha, logo o veneno começou a fazer efeito. Não sentia mais a onça nas suas mãos. Não conseguia mais mexer os braços e as pernas. Nem sequer mexer a boca. Conseguia apenas revirar os olhos de desespero.
Caipora viu como Paula havia se lançado para salvar seu amigo da selva. Percebeu, então, que estava enganada sobre todos serem maus para com a floresta. Arrependendo-se, solta outro grunhido para o javali, que recua ao ouvi-la. Ela fita os olhos de Snolf e diz:
— Perdoe Caipora. Ela quer ajudar os cabelos outono.
Snolf não queria ouvir. Principalmente agora que Caipora estava ferida e desarmada, pois quando o verg mordeu o arco, a linha mágica estourou. Ele se prepara para atacá-la outra vez, porém Strolf não o deixa.
— Ela pode ajudar – disse ele. – Caipora não carrega a malícia dos homens. E mesmo que tentasse alguma coisa, não estaria em condições para o fazer.
Snolf obedece com desgosto.
Caipora caminha, esforçando-se para pular as vitórias-régias, para onde Paula estava deitada. Ela coloca a mão em seu cinto com penas, pegando alguns rolos de folhas enroladas. A índia as desenrola. Sobre a folha tinha um âmago de plantas que foram esmagadas e grudadas ali. Com a força que lhe restou, ela puxa a flecha cravada na perna de Paula e a enrola com uma das folhas que tirou do cinto.
— O sangramento da menina foi cessado – disse Caipora. – Mas menina não pode sofrer dano algum, senão voltará a sangrar.
— Deixe-me pôr uma das dessas folhas em suas costas, guerreira das matas – disse Strolf.
— Caipora agradece – replicou Caipora. – Pegue a que possui plantas roxas.
Strolf pega a folha pela ponta e a deita nas costas de Caipora.
— A garota terá de ver o segundo sol para voltar a se mexer – continuou a Caipora. – Até lá o ferimento terá fechado, mas terá de cuidar da ferida. Ela não tem o corpo de Caipora.
— Obrigado – agradeceu Strolf. O verg se vira para Snolf e Bellolfa. E diz: – Só mais um pouco. Prevejo que agora em diante não teremos de nos preocupar. Vamos pegar Paula e nos direcionar para onde Marie e os harakes estão. De lá, podemos chegar até a terra do Vazio ao anoitecer.
— Não façam isso – adverte e se levanta a Caipora. – Amigos do Lírio não podem ir para o Vazio.
— Por quê? – indagou Bellolfa.
— Caipora mostrará para o lobo cinzento de duas caudas – disse ela para Strolf.
— Levem Paula para o resto do grupo – disse Strolf. – Vou ver o que a índia irá me mostrar. Vão com cuidado para que a ferida de Paula não seja afetada.
Antes que Caipora montasse em Strolf, ela coloca Paula, com cuidado, nas costas de Snolf.
Com isso, Bellolfa e Snolf partiram, sem pressa, para o encontro dos harakes e Marie, enquanto a Caipora levava Strolf para algum lugar. Ela mostra a direção para Strolf.
— Basta lobo seguir em frente – disse ela. – Passará por um bosque de laranjeiras e subirá uma serra.
Dito isso, ela se deita no dorso de Strolf, segurando a folha que fora deitada em suas costas. Estava esgotada.
O verg faz todo o percurso que a índia lhe explicara. Chegando na crista, viu ao longe uma desesperança. Pôde ver o Vale do Vazio. Porém não estava vazio. Um bando, centenas, milhares e milhares daquelas criaturas da floresta-viva (a que atacara o grupo) estavam bramando.
— Não! – exclamou Strolf, desesperado. – Como iremos chegar até os alruns?
— A rosa-da-primavera – respondeu a Caipora.
— A rainha das flores?
— Sim. Suas flores alcançam até os céus. Caipora carrega a certeza que ela pode ajudar.
— Como chegarei até ela?
— Na direção que o sol descansa.
— Teremos que voltar até o pé da montanha, contorná-la e chegaremos até a praia.
— Lá não é mais território de Caipora. Vive um povo de temor ao mar.
— Poderei pedir mais informações para este povo.
Assim Strolf e Caipora retornam para onde o resto do grupo os aguardava. Descansam o resto do dia e dormem durante a noite.
Caipora conduz nossos aventureiros até o limite da floresta. De lá, despede-se deles.
Eles passam por um extenso bosque, descem uma serra e chegam à tal vila dos habitantes da praia.
A vista da enseada era magnífica. A areia estava numa brancura impecável. As casas dos aldeões eram quase todas feitas de palha e madeira das palmeiras. A água do mar não era cristalina, mas azul. Parecia até corante. De qualquer maneira, a primeira vontade que nos dá ao visitarmos um lugar desses é passar o protetor solar e pular na água. Só poderia, contudo, passar o protetor, pois nadar ou entrar no mar era estritamente proibido.
A razão para uma lei tão absurda como esta seria pela criatura que vive naquele mar. Os dragões brancos. Centenas vivem naquela região do mar. E qualquer um que ousar navegar em sua região terá todo o seu povo abatido. O líder deles, Foug, fora quem instituiu essa lei. Porém, como uma boa lei, existe sua clausura. No inverno, todos os dragões do oceano saem das águas para voarem e buscarem batalhas ou causarem confusões. Nesta estação é o momento que há uma maior quantidade de peixes. Foug permitiu que os aldeões pudessem pescar nesta época do ano.
Por fim, uma curiosidade. A cor azul do mar também tem a ver com o fato deles viverem na água. No verão, suas escamas ficam com a coloração azul.
Agora veremos como Strolf se entendeu com o chefe do povo da praia.
— Enviaremos uma mensagem a Hanidi – disse o chefe.
— Estou demasiado agradecido – respondeu Strolf.
Prenderam uma mensagem na perna de um pombo, que sumiu no horizonte da praia. Ele voltou uma hora depois com uma violeta no lugar onde deveria ser a mensagem.
— Pelo visto – observou o chefe – ela aceitou.
De fato, poucos minutos depois, viram três grandes violetas repousarem sobre a areia. E quando falo grandes, eram realmente grandes. Suas pétalas roxas-claras eram maiores que os vergs.
— Não precisam temer – disse o chefe. – Basta subirem nas violetas que elas lhes levarão para a Ilha das Flores.
— Nós realmente ficamos muito agradecidos por sua ajuda – disse Bellolfa.
— Sempre prestaremos ajuda para quem precisa! Exceto aqueles que tentarem mergulhar no mar.
— Até breve – despediram-se todos do grupo.
Marie e Paula tiveram sua própria violeta. Paula não conseguia se mover muito. Então colocaram-na deitada na grande flor. Estavam voando em direção a um lugar que pelo nome parecia ser bonito: Ilha das flores. Assim que se aconchegaram sobre a flor, ela começou a se revirar e a sair do chão. Estavam sentindo o cheiro do mar abaixo delas. Um vento refrescante amenizava o calor do sol. A aldeia da enseada foi desaparecendo aos poucos. Marie resolve parar de olhar para baixo e se deita junto à irmã.
— Logo chegaremos na cidade dos alruns – comentou Marie.
— Aconteceu tanta coisa – disse Paula, com um pouco de dificuldade.
— Verdade. Você até perdeu o medo de altura. E ficou mais corajosa.
— E você só meteu a gente em confusão.
— Não me critique.
— Pelo menos, começou a pensar um pouco antes de fazer besteira.
— Não é estranho?
— O quê?
— Até o Natal a gente…
Marie interrompe o que dizia, pois uma pétala de rosa passou voando entre as duas. Ela se levanta para ver o que é. A menina deslumbra a vista mais bonita de toda a sua vida. Uma ilha flutuava acima do oceano. Não se podia enxergar a parte inferior da ilha, porquanto, como uma cúpula, estava escondida por uma vastidão de pétalas de rosas. Magnífico! Quando cada violeta pousou na ilha, adiante estava uma estrada ladeada por postes feitos por cássias. Tulipas bem grandes estavam fechadas, perto dos postes. Havia bancos de praças feitos de girassóis. E árvores de dálias preenchiam bem o terraço do castelo. Que castelo! Colorido e perfumado. Tudo nele era feito de rosas. As torres eram rosas brancas fechadas, o resto dele, de azuis, as muralhas, de espinhos.
Iam caminhando para a entrada do castelo. Marie, porém, resolve sentar-se num dos bancos feitos de girassóis. Do seu lado esquerdo estava o poste de cássia, e no direito uma enorme tulipa fechada. Uma das pétalas da tulipa desce abruptamente e uma criatura, graciosamente, sai dela. Parecia ser uma criança. Seus olhos eram negros como a noite. No lugar de cabelo, havia um emaranhado de flores de cerejeira. Sua roupa eram enormes pétalas de margarida, formando um traje a rigor com uma capa de luxo. Seu corpo inteiro era frondoso. Um ser bastante bonitinho: um gardentur.
O gardentur faz uma saudação solene.
— Prazer em vos conhecer – disse ele. – Meu nome é Fur. Como posso lhe conceder beleza?
Marie desce-lhe o braço.
— Abusado! – exclamou ela. – Nunca me viu e lhe provém me chamar de feia. Ora essa!
— Madame – retornou Fur, um pouco encabulado por ter recebido um murro –, quis dizer que como poderia ajudá-la.
— Viemos conversar com sua rainha – disse Strolf. – Traga-nos um pajem.
— Todos somos pajens aqui.
Nesse ínterim, todas as tulipas se abriram e os gardentur se apresentaram.
— Como podemos lhes mostrar a beleza?
— Vou pra cima de todo mundo – bradou Marie.
— Levem-nos à rosa-da-primavera – ordenou Bellolfa.
— Venham – replicou eles.
Strolf, Bellolfa, Snolf, Kinorel, que carregava Paula, Tsitarel e a emburrada da Marie são todos conduzidos para o grande castelo.
Passaram por um arco cheio flores silvestres e chegaram ao pátio do castelo. Havia um chafariz feito de três grandes flores: laburnos, cravinas e lírios. Todos tinham um buraco, no qual deveria sair a tradicional água. No entanto, jorravam as respectivas espécies de flores, deixando a bacia bem colorida.
Por acaso o querido leitor já vira um amor-perfeito? Existem diversas histórias a seu respeito. Todavia, em Tokarisen, tinham uma função um tanto inovadora. Podia-se vê-los em qualquer região alta, no topo do chafariz, nas árvores-flores, nos pináculos do castelo, etc. Tudo que havia movimentação, eles estavam direcionados. Eram como câmeras de segurança. Sua aparência, decerto, lembra um rosto. Estes eram os vigias do castelo.
Não podem ousar em pisar em flores. Então tudo o que era para se pisar era terra ou o caule das plantas. Iremos entender este ponto daqui a pouco.
À esquerda e à direita, havia uma espécie de pomar. Mas não havia sinal de qualquer tipo de macieira. Havia árvores, em verdade, mas sem fruta alguma. No lugar delas, tinha, como já esperado, flores. Porém, principalmente sob a luz do sol, tinha uma aparência diferente. Pareciam cristais reluzindo. Um gardentur apanhou uma dessas flores para Marie. – Não é uma flor – pensou Marie –, está pesada demais para ser uma. – Marie deu uma mordida sutil numa pétala. Parecia uma bala bem doce.
— Quero um pedaço – disse Paula, vendo a irmã devorando toda a fruta cristalina.
Marie levou a fruta, ou o que restara dela, até a boca de Paula. Deu algumas mordidas com dificuldade, por causa do veneno do sapo. Mas conseguiu engolir.
— É bom – declarou ela.
O grupo continuou aquilo que seria uma visita, mas que agora passou a ser uma expedição. Chegaram, enfim, ao portão do castelo. A porta era feita de duas grandes pétalas azuis que não abriam de forma tradicional. Elas se abriam de baixo para cima, deslocando um pouco para diagonal de cada uma, como se fosse uma rosa se abrindo.
Morena! Doce em ternura!
Um coração de ventura.
De fato, o bosque te encanta,
Onde as palmeiras dançam,
As folhas se enlaçam
Busca via de paixões,
Sem tropeços das ilusões.
Pula os outeiros tão incertos,
Pois queres paixão de fogo
Sem início de prólogo;
Morena! Doce em ternura!
Um coração de ventura.
És rosa da primavera,
O perfume da tulipa,
Margarida que dissipa
Fazem uma pausa. Um gardentur dá um passo adiante, fazendo uma reverência profunda. E glosa:
— Salve a Rosa-da-primavera! O deleite-de-nosso-caule! Venho anunciar a chegada de nossos amigos viajantes que querem lhe ter uma audiência.
Hanidi trajava um vestido branco e uma grinalda de flores de cerejeira. Não precisava de muito adorno, pois sua beleza já era tamanha. Olhos joviais e na cor castanho-escuro, um grande cabelo longo e lábios delicados e uma pele morena e tenra.
— Então – tomou Hanidi a palavra – são estes os viajantes dos quais o chefe dos aldeões falou?
— Sim, Vossa Majestade – replicou o gardentur.
— Rainha – disse Strolf, apresentando-se –, é um grande prazer. Desculpai-me pelos maus modos, mas deixei claro ao chefe da aldeia que pedisse um meio de irmos até a cidade dos alruns. Não mencionei que a visitássemos.
— E está certo disso – respondeu Hanidi. Ela se levanta de seu trono e começa a descer as escadas, chegando perto do grupo. Os gardentur ajoelham-se diante dela. Ela retoma: – Queria vos dar uma palavrinha antes que fossem.
— Estamos ouvindo – disse Bellolfa.
— Essa mulher é uma exibida – pensou Marie, invejando a beleza de Hanidi até mesmo na oratória.
— É mais um aviso. – Ela olha para Paula e depois para Marie. – Recebo diversas cartas dos alruns, pois o inimigo de Dio vive sob a ilha, Foug. Os dragões brancos sempre gostaram do cheiro de minhas flores. Portanto nunca quiseram destruir meu lar e passaram a protegê-lo.
“Mas antes que os dragões brancos se alojassem nessas águas, sou aliada dos alruns. Não por uma razão bélica, mas medicinal. Eles usam minhas rosas negras, que só florescem aqui, para a preparação de antídotos contra veneno mágico de criaturas que, por eras, os assolam.
“Enfim, jurei lealdade a eles. E, no momento, não estão conseguindo enviar mensageiros e nem os receber, por causa do enxame do Vale do Vazio. Assim sendo, preciso que vocês sejam meus embaixadores.”
— O que seria essa mensagem? – indagou Strolf.
— É breve e simples – respondeu Hanidi. – Foug quer vingança. Pretende voar, não sei em qual inverno, para a cidade e incendiá-la. Não voará em grupo, pois seu orgulho é mais altivo do que uma torre.
— Mas os alruns têm Dio como líder – atalhou Strolf –, um guerreiro que dividiria até as migalhas de seu pão.
— Dio com certeza não deixaria seu ego inflar – observou Bellolfa. – Sabe que a proteção de seu povo é mais importante que suas intrigas pessoais com um dragão.
— O rei e bauče dos alruns é a melhor escolha para combater essa serpe – finalizou Snolf.
— Um bauče? – indagou Marie.
— É a patente máxima do exército alruniano – explicou Hanidi.
— Ele deve ser tipo um marechal – pensou Marie.
— Vou escrever uma carta para que vocês a levem para Dio – disse Hanidi. – Explicarei toda a situação. Também não me atreveria a perguntar se querem passar a noite em minha ilha.
— Irá nos preparar uma de suas flores para voarmos? – indagou Bellolfa.
— Sim – respondeu Hanidi. Ela chama um de seus gardentur. E diz: – Prepare as três violetas mais confortáveis que tivermos.
— Ouvir é obedecer – respondeu o gardentur. – Venham – disse ele ao grupo.
— Irei acompanhá-los até a violeta – disse Hanidi.
Mais uma vez a cena se repetia, subiram em enormes violetas. Kinorel coloca Paula, que estava conseguindo mexer um pouco os braços, na flor. A violeta alça voo e parte para a terra dos alruns.
— Voltem para sentir a beleza das flores – gritou a rainha Hanidi.
O grupo viajou pelo mar de dragões, viram o vilarejo na praia, passaram pelo Vale do Vazio, por colinas, alguns remanescentes de florestas, algumas faunas. Por fim, estavam sobrevoando a cidade dos alruns.
A violeta começa a descer devagar. Pousa exatamente ao lado duma loja onde se vendia bebidas. No balcão, um garoto alruniano conversa com seu tio.
— Minha nossa! – exclamou o garoto. – Tio, veja! Olha a cor do cabelo delas!
A cidade era pavimentada. Havia postes com lampiões para iluminá-la à noite. As casas não possuíam mais de dois andares. Tinha torres bem altas, nas quais eram preenchidas por uma espécie de vigia que observava se havia qualquer desordem em seu perímetro. Uma urbe encantadora, movimentada e cheia de vida. O dia estava bem fresco, nem muito frio ou quente, quando a cidade foi perfumada pela fragrância da violeta que pousara às quatro da tarde. Logo, toda atenção que todo alrum, momentos antes, estava direcionando a seus afazeres diários, foi projetada para os nossos aventureiros.
— Vejam, não é que os cabelos dessas meninas são ruivos! – observou o dono da loja de bebidas.
— Uma delas não está conseguindo se mexer direito – disse uma moça alruniana com uma criança no colo.
— Estes aí não seriam vergs? – indagou um alruniano que desceu de um lampião no qual estava consertando.
— Mamãe, esses seriam criaturas mágicas? – inquiriu uma menina alruniana.
— Alto! – bradou o terceiro telkim (equivalente a um terceiro sargento) com sua tropa. Ele usava um manto cinza-verde, que escondia sua cota de malha, e também um elmo. – Por favor, estrangeiros, identifiquem-se.
Strolf, já declarado líder absoluto, toma a frente e a palavra:
— Meu nome é Strolf. Viemos nos encontrar com Dio.
O terceiro telkim dá uma pequena risada desdenhosa.
— Ora, conversar com o grande Dio – que seu reino seja sempiterno – chegando numa maneira tão extravagante e sem aviso prévio? Isto me cheira algo meio suspeito.
O terceiro telkim faz um sinal para sua tropa. Numa manobra genial e uma harmonia impecável, todos tiram suas espadas de seus cintos e cercam os estrangeiros. Agora esperam o próximo sinal do superior: o de ataque.
— E como posso garantir que não fizeram mal algum a Hanidi? – continuou o terceiro telkim.
— Senhor – prosseguiu Strolf, com toda a calma –, vos trago uma carta diretamente dela. Não obstante, também venho-lhe pedir que levem a nossa companheira ao departamento médico.
Tsitarel foi a responsável por guardar a carta. Ela a entrega nas mãos de um cavalheiro. Enquanto ele a abria, o terceiro telkim não gostou nada da petição de Strolf. E diz:
— Por que ousaria me pedir auxílio por uma menina que nem ganhou nossa confiança?
— Porque ela é Paula, o Lírio-da-aurora – respondeu Strolf, secamente.
Vários murmúrios foram ecoados por todos os habitantes.
— E esta é Marie, o Coração-bravio – disse Bellolfa, achegando-se a Marie.
O terceiro telkim ficou mais branco do que já era. Pareceu ter virado um palmito. Perdeu toda a postura de um militar e começou a suar frio. Se, por acaso, aquelas meninas fossem quem disseram, estaria em apuros por tratá-los daquela maneira.
— Não pode ser! – balbuciou ele. – Se estiver mentindo…
— Garanto-lhe que não estou – replicou Strolf.
O terceiro telkim chama outro cavalheiro e glosa as seguintes ordens:
— Vá rapidamente ao quartel e leve a carta contigo. Entregue-a para a primeira telkim. Avise que estaremos levando os estrangeiros como prisioneiros.
O cavalheiro bate com o punho no peito e grita.
— Sim, terceiro telkim!
Toda torre de vigia tem um cavalo selado (como os do deserto e no resto de Tokarisen). O soldado pede ao vigia da torre a montaria. Ele concede. Ele parte em disparada para o quartel.
— Então – retornou o terceiro telkim –, está muito calor para ficarmos parados aqui. Senhores, acompanhem-me sem fazer a menor das gracinhas. Meus homens não costumam perdoar.
A multidão é dispersada aos poucos. Quando o caminho estava totalmente livre, começaram a dirigir para o quartel, que ficava cerca de uns trinta minutos dali.
O terceiro telkim dissera que estava muito calor, porém se tratava de um exagero. O grupo havia viajado do castelo florido de Hanidi umas duas da tarde e chegado à cidade umas quatro. O tempo estava refrescante.
Paula conseguia mexer o corpo todo, mas era devagar. Era melhor que fosse carregada por Kinorel.
Marie ficou observando toda a cidade. O povo era sério e, ao mesmo tempo, feliz. Todos focados em desempenhar o seu melhor no trabalho para com o próximo. Os cavaleiros eram gentis e rígidos. Não toleravam desordem, mas sempre cumprimentavam com um grande sorriso e perguntavam se estava tudo bem. Dio devia ser um grande governante. Não havia vestígios de moradores de rua, tampouco sinais de pobreza.
— Estou ansiosa para conhecer esse Dio – pensou ela. – Deve ser um grande cavaleiro.
Enquanto a tropa levava nosso grupo para o quartel, vou lhe contar o motivo pelo qual os alruns estranharam os cabelos de Paula e Marie. Ei-los: os alruns nunca viram um cabelo daquela cor. Em verdade, nunca viram uma cor que não fosse preto. Nem na velhice havia cabelos brancos. Tinham um pouco de sardas na cara. A gentileza morava em seus olhos. Já foram, eras atrás, macilentos como a neve, mas os castigou bastante através das gerações. Nariz um pouco pontudo e pequeno. Lábios sempre rosados. Ah, já ia me esquecendo! Uma peculiaridade morava em seus olhos castanho-escuros: nunca precisavam usar óculos. Tinham uma visão incrível, tanto que nenhum ficara cego naturalmente. Estas são algumas diferenças entre os alruns e os homens.
Dito isso, podemos prosseguir.
Caminharam cerca de meia hora, quando, finalmente, chegaram ao tal quartel. Na realidade, tratava-se de uma corte de cavaleiros. Alguns praticavam o manejo da espada, outros do escudo, outros recebiam ordens, outros treinavam seus corpos fazendo diversos tipos de exercícios físicos, etc.
Marie olhou tudo aquilo com bastante animação. Paula, mesmo em seu estado, não conseguia esconder o desânimo.
Os cavaleiros fazem uma saudação para o terceiro telkim quando ele se aproxima com sua tropa e os seus prisioneiros. A primeira telkim vem pessoalmente ao encontro dele. Ele a saúda socando o peito como fizera seu cavaleiro mais cedo e os de agora. Respeitavam a hierarquia.
— Terceiro telkim – disse a primeira telkim –, recebi vossa mensagem. Decide, então, vir pessoalmente. Se essas garotas forem que dizem ser, devemos dá-las o devido cuidado e atenção.
— Primeira telkim – replicou o terceiro telkim –, peço que considere o que digo. Como poderemos ter a certeza de que elas realmente são quem dizem ser?
— Só uma maneira de descobrir. Levá-las para Dio. Ele é o único que pode dar certeza disso.
Marie, não importava a situação, gostava sempre de participar das discussões. Principalmente nas quais não era chamada e as que não deveria entrar. E nessa não foi diferente.
— Com licença – interrompeu ela.
— Pois não, menina – respondeu a primeira telkim, nervosa. Não gostava que falassem nas maneiras normais e no devido respeito de um cavaleiro.
— Como o Dio vai saber a resposta, sendo que ele nunca viu a gente? – indagou Marie.
— Só Dio tem essa resposta – disse o falk (equivalente a um coronel), juntamente com o balvar-de-divisão (equivalente a um general de divisão), aproximando-se da conversa.
A primeira e o terceiro telkim batem continência como alruns.
Falk tinha uma expressão bastante séria e cheia de respeito. Diversas cicatrizes espalhadas preenchiam sua pele. Ele fitava Marie como se estivesse prestes a arremessá-la de um despenhadeiro. Assim que a viu, percebeu sua falta de atenção. E ele detestava isso. Mas estava se segurando.
— Enviamos umas de nossas aves mensageiras para a central dos cavaleiros – disse o balvar. Este era mais velho e paciente. Ao contrário do falk, não tinha nenhuma cicatriz no corpo. – Portanto, receberemos uma mensagem do que iremos fazer com estas meninas. Por hora, vamos atendê-las como nossas hóspedes de honra. Primeira telkim!
— Sim, balvar! – respondeu prontamente a primeira telkim.
— Leve a menina debilitada para o departamento médico e só faça ela sair de lá quando estiver com mais saúde que um recém-nascido.
— Sim, Senhor! Você – disse ela para Kinorel –, venha comigo.
Kinorel, carregando Paula, obedece sem resistência. Tsitarel vai atrás. Strolf, Bellolfa e Snolf conversam um pouco sobre todo o percurso que tiveram de enfrentar para chegarem ali. Marie, já sabendo como desenrolaria toda a história, resolve ir atrás da irmã. O falk, no entanto, cruza o seu caminho.
— Um momento – disse ele.
— O que foi? – indagou Marie.
— Siga-me.
Marie ia contestar, mas o olhar tempestuoso do falk a amedrontara. Portanto resolveu segui-lo sem reclamar ou perguntar o porquê.
Entraram no corte dos cavaleiros, porém tomando um rumo diferente do qual Paula e o resto do grupo tomou. Foi um corredor extenso, que tinha acesso a diversas espécies de salas de aula. Algumas ao ar livre, e outras não. Podiam-se ver diversos tipos de treinamentos sendo executados: combate corpo a corpo, esgrima, manejo com escudo, lutas com uma espécie de boneco, etc. Enquanto tantos treinamentos apareciam, o falk resolvera desembuchar seu descontentamento.
— Veja todos esses jovens, essas crianças e esses adultos – disse ele, encerrando o mistério. – Todos extremamente focados e quietos.
— Certo, mas… – ia contestando Marie.
— O que isso tem a ver com você? Simples. Se será introduzida em nosso exército, precisa ter o mesmo foco que o deles.
— Mas por que temos que…
— Insensata! Não entende? Somos mais do que uma simples tropa, ou um arraial, ou uma hoste. Somos um só corpo. Se os pés estiverem conduzindo para um mau caminho, logo os braços terão de enfrentar feras, levando, talvez, todo resto à morte.
— Entendo. Mas ainda nem entrei no corpo de exército.
— Ninguém faz parte de um corpo que não lhe pertença. Antes mesmo de fazer parte de nós, tem que ser como nós.
Marie ficou um pouco pensativa com tudo aquilo. Era, no fundo de sua alma, diferente da sua irmã, pois este era o lugar que mais queria conhecer e fazer parte. No entanto estava totalmente perdida. Ninguém lhe expulsou ou lhe dirigiu comentários malvados. Apenas não se sentia parte dali. Sentia que estava errada, mas não sabia muito bem. Só iria entender quando fosse membro do corpo.
— Desculpe – disse ela ao falk.
— Está começando a aprender. Veja, uma das regras essenciais que pregamos aqui é: se você não entende e mesmo assim contesta, pois não quer admitir a ignorância, já está errada.
Marie se recorda de todas as vezes que protestou com os professores ou com os próprios pais, porque seu ego não lhe deixava enxergar a verdade.
O falk para e fita Marie com um olhar de irmão mais velho que fora severo demais na advertência.
— Perdão – disse ele. – Não sei se algum dia nos veremos novamente, mas precisava tirar aquilo do seu rosto.
— Tirar o quê?
— O olhar de quem viveu a vida toda despreocupada com as consequências. A partir do momento que decidir virar uma cavaleira, sempre tenha em mente que pessoas confiaram suas vidas em você.
O rosto de Paula veio à mente de Marie.
— Sua irmã, apesar de que estivesse em más condições, parecia ser uma pessoa bastante responsável, apenas vendo pelo olhar. Chutaria que ela fosse a mais velha.
— Acertou no responsável. Contudo sou a mais velha.
— Ela é boa em brigas?
— Não. Sempre perde pra mim. Por quê?
— Nada. – Ele olha para um grupo de garotos executando a melhor investida num boneco. – Sabe como funciona para ganhar títulos aqui?
— Não. Como?
— Simples. Faça grandes feitos. Quanto mais missões e feitos inéditos fizer, mais cargos alcançará.
— Legal!
— Quase isso.
— Ora essa, ora essa! O que foi agora?
— Lembra do balvar-de-divisão?
— Sim. O velhinho, né?
— Este mesmo. Existe mais oito da mesma patente dele nas outras cortes.
— E?
— E mais de centenas morreram, somente neste ano, para ocupar as outras quatro cadeiras restantes.
— Quer dizer que…
— Quer dizer que um alrum pode alcançar a patente de balvar-de-exército, a mais alta, mesmo sendo jovem, mas a chance de chegar lá vivo é ínfima. Só pode haver doze balvares-de-exército. Há dez. Por isso que há tantos oficiais com cargos baixos, porém velhos.
— Um falk seria o quê?
— Só estou abaixo do balvar-de-divisão e do de exército. Claro, nessas patentes, a de Dio não é citada.
— Já o conheceu?
— Troquei breves palavras com ele. Dio não é um alrum que goste muito de conversar.
— Compreendo.
— Por falar em conversa, cessemos por hora a nossa. Mostrei-lhe o que queria. Agora será tudo por sua conta.
Marie bate o punho no peito. Saiu um pouco desajeitado e engraçado, mas foi cheio de honra e bravura. O falk repete o mesmo gesto.
— Posso ver minha irmã? – indaga Marie. – Quero dizer… senhor.
— Conduzir-lhe-ei até lá – replicou o falk. – Aliás, sempre grite com toda a confiança quando disser senhor ou senhora. Transmita sua bravura a seu superior e ele irá repassá-la para outro cavaleiro. Assim todo exército ganha força somente usando as palavras.
— Sim, senhor! – bradou Marie. Saiu um pouco rouco, mas fora feroz.
— Muito melhor!
Ele estende a mão para Marie e diz:
— Meu nome é Arbonis.
Ela aperta a mão do oficial e responde:
— O meu é Marie. Finalmente, é um prazer.
— O prazer é todo meu. Agora vamos.
Arbonis conduz Marie para a enfermaria.
Os enfermeiros, que mais seriam conhecedores de criaturas mágicas, disseram que Paula foi medicada com algumas bebidas feitas com certas plantas espremidas. Um gosto horrível. Mas isto vitalizava outra vez a pessoa que entrara em contato com venenos paralisadores.
— Ela está ótima – disse o médico, na soleira da porta. – Querem vê-la?
Marie entrou sem pedir licença. O quarto tinha cama para dois pacientes. Porém havia somente Paula como paciente e os harakes como suas companhias. Nem podia chamá-la mais de paciente. Estava recuperada. Quando viu Marie entrando no aposento, correu para abraçá-la.
— Você só me dá trabalho, mocinha – disse Marie, rindo.
— Temos que revezar uma hora – respondeu Paula.
— Claro que não. Ser quem se preocupa não tem a menor graça.
— Finalmente entendeu.
Passou-se cerca de uma semana. As irmãs e os harakes ficaram quase o tempo todo no quarto do hospital. Arbonis estava sentado sobre um banquinho no corredor. O falk se encarregou de ser o vigia dos recém-chegados. Ele vê o balvar-de-divisão se aproximando e não tarda em saudá-lo batendo continência à la alruniana.
— Senhor? – indagou o falk.
— Prepare um coche – ordenou o balvar-de-divisão. – Delego a você a tarefa de levar Paula e Marie para a central dos cavaleiros. São ordens do próprio Dio. Lá, ele virá ao seu encontro.
— É com todo o prazer de minha alma que efetuarei esta missão.
— Ótimo. Elas e seu grupo não são considerados como inimigos. Os harakes terão a nossa hospitalidade. Os vergs precisam se despedir delas.
— Despedir, senhor? – disse uma voz chateada, saindo da porta. Era Paula.
— Sim – respondeu o balvar-de-divisão. – Creio que saiba qual a missão principal deles: trazê-las até aqui. Eles tiveram sucesso. Porém serão mais úteis se forem até o resto dos outros vergs e reuni-los para a grande guerra.
— Estranho.
— Por que acharia estranho?
— Sei que Marie e eu faremos parte da peleja. Mas isso não seria daqui a alguns anos? Então por que se apressam em mandá-los agora? Seria devido à distância?
— Vejo que a mocinha é bastante inteligente. Sim, a distância. A alcateia dos vergs fica localizada nos extremos do oeste de Tokarisen. Dalém da vila dos harakes e do império. Por isso, para chegar lá, terá de contornar pelo norte. Levará mais de ano.
— Sim. Mas não é tudo.
O semblante do balvar-de-divisão ficou sério. Costuma ter uma aparência amigável.
— Minha irmã me contou que para subir de cargo é necessário grandes feitos como cavaleiros. Eles devem se expor a um perigo e vencê-lo por mérito próprio. Como nós poderíamos ter algum lisonjeio quando temos vergs que certamente viriam nos ajudar? Ainda mais eu que tenho uma interação, a qual já devem estar a par, com os animais deste mundo.
Arbonis ficou atônito. O balvar soltou uma bela risada de orgulho.
— Ora, ora, ora! – disse ele, ainda rindo. – Desconfiei que você tinha um olhar mais sério que sua irmã. Imaginei que fosse mais inteligente. Agora está tudo provado. Pensou nisso enquanto estava conversando com sua irmã a respeito dos cargos do exército?
— Sim, senhor.
— Uma previsão e um cálculo impressionante. Talvez minha neta adorasse jogar uma boa partida de xadrez com você.
— Quem?
— Ardilis, a balvar-de-divisão do quartel do noroeste. Tentei ensiná-la a arte do manejo da espada, mas ela sempre preferiu o arco e flecha e táticas de batalha. Há um tempo que não a vejo. Como será que anda aquela bagunceira?
Arbonis tossiu para chamar atenção do balvar.
— Ah, sim, claro – retomou ele. – Paula, chame sua irmã para se despedir. Sejam breves, pois o nosso coche nos espera. Iremos para a central. Vocês se encontrarão com Dio esta tarde.
Paula assente com a cabeça e entra no quarto para buscar a irmã. Ela retorna junto com a irmã e os harakes, pois estes também queriam se despedir dos vergs.
— Ora bolas! – exclamou o balvar. – Ainda bem, pois Dio necessita ver vocês também – disse para os harakes.
Todos se dirigem para a porta do quartel. Strolf, Snolf e Bellolfa estão sentados esperando. Paula, em lágrimas, para abraçar Strolf no dorso. Tsitarel vai ao encontro de sua amiga Bellolfa. Ela dá um abraço bem apertado na grande cabeça da verg. Kinorel, com seu jeito brincalhão, abraça todos os vergs. Marie tentava ao máximo segurar seus sentimentos. Não gostava de despedidas. Mas não adiantou, só de olhar para Strolf começou a chorar. O mais difícil foi se despedir de Snolf. As duas foram ao mesmo tempo.
— Esses últimos meses foram os melhores da minha vida – disse Snolf para as gêmeas.
As duas subiram nas costas de Snolf e ambas revezaram para mexer nas suas orelhas, como Paula fazia no caminho. Abraçaram-no e deram um beijo no seu focinho. Ele as lambeu como um grande cachorro.
— Até logo, Coração-bravio e Lírio-da-aurora – disse Strolf. – O futuro nos concederá um reencontro. Até lá, cuidem-se.
— Até logo – bradaram as duas, vendo os lobos correrem e uivarem para as ruas da cidade, indo em direção ao portal principal.
— Vamos indo – disse o balvar-de-divisão, apontando para o coche que aguardava as gêmeas e os harakes.
Eles entram em um, o balvar, o falk e mais dois cavaleiros em outro. O cocheiro de ambos larga partida. Agora estavam, enfim, indo se encontrar com o grande Dio.
O céu estava cinzento para escuro. A chuva se aproximava.
Dentro do coche, Paula resolveu cerrar as cortinas. Então não viram o percurso que tomaram. Ouvia-se os trotes dos cavalos que conduziam a carruagem. As gêmeas não estavam nem nervosas, tampouco felizes por estarem a alguns metros de conhecerem aquele lhes solicitou ajuda.
O coche para.
Quem abre a porta é Arbonis.
— Venham e comportem-se aqui – ordenou ele.
Diversos cavaleiros andavam e rodavam a central. Era uma espécie de base militar com uma mistura de palacete. Era elegante e ordenado, bonito e sério.
Adentraram e subiram um lance de escadas. Viraram à direita e seguiram por um corredor largo. Ao final dele, pararam numa porta que dava acesso a uma recâmara. Tinham dois grandes cavaleiros protegendo-a. Um deles dá um passo à frente.
— Alto! – disse ele. Falk e o balvar-de-divisão batem continência. – Permissão de entrada, senhores.
— Aqui está ela – respondeu Arbonis lhe estendendo um pergaminho selado.
O cavaleiro tira o selo e abre. Lendo-o, fica convencido de que eles vieram por comando de Dio. O cavaleiro bate continência e abre a porta para eles. O grupo entra.
Uma grande mesa retangular estava no meio daquele saguão. Ao fundo, uma enorme janela que preenchia toda a parede. Só havia uma pessoa olhando por ela. Dio se vira e diz:
— O dia não está lá muito bonito. Perdoe-me por não vos proporcionar um mais agradável, mas meu pior defeito é não gostar de esperar. Principalmente quando se trata da segurança de meu povo.
Ele se vira pra analisar as duas crianças. O célebre cavaleiro vestia-se com uma armadura negra. Com o elmo em mãos, ele o coloca sobre a mesa. Seu cabelo era curto e levemente grisalho. Em sua juventude, teria duas grandes maçãs rosadas em suas bochechas, mas lutar em dias ardentes debaixo do sol fez com que desaparecessem. Tinha um nariz um pouco comprido, nada exagerado, e fino. Tirando suas luvas, percebe-se que existe uma mancha de queimadura no seu braço esquerdo que provavelmente se estendia até seu peitoril. Devia ter sido feito quando lutou contra Foug. Chutaria que tinha por volta dos trinta e um até trinta e três anos. Estava no seu auge de forma física e mental. Era jovem para ser rei, mas as experiências lhe faziam um verdadeiro ancião. Seus olhos cintilavam fúria, bravura, benevolência, bondade, coragem e respeito. Este era Dio, o rei dos alruns.
— Grande deleite tenho em vos conhecer, netas de seu avô – retomou ele.
— O prazer é nosso – disse as duas em uníssono.
— Podem se sentar.
As gêmeas, os harakes, o falk e o balvar-de-divisão sentaram-se um ao lado do outro. Dio ficou em pé, do outro lado da mesa.
— Antes de tudo, queria que me contassem sua trajetória até aqui – retomou Dio.
Ele ouviu atentamente as duas contarem a história, até os gestos que faziam enquanto contavam. Marie se atrapalhava por inteira em algumas partes e Paula tinha que consertar. Quando acabaram, ficaram olhando para Dio.
— Veem essas cadeiras que estão se sentando? – quebrou, finalmente, Dio, o silêncio. – Dez delas são bem especiais: são para os balvares-de-exército. É a patente mais alta, somente abaixo da minha. Só iremos pelejar contra Zalqui quando alcançarem-na. E terão de cumprir isto no tempo mais curto possível.
O balvar-de-divisão fica atônito.
— Senhor – disse ele –, permissão para falar?
— Permissão concedida – respondeu Dio.
— Acha que estas duas pequenas mocinhas podem alcançar tal cargo em tão pouco tempo? Nenhuma delas sequer tiveram contato com cavaleiros antes. Teriam que ser semelhantes ao senhor.
— É verdade que alcancei este cargo quando tinha dezenove anos, sendo o primeiro alrum com menos de trinta anos a conseguir. Mas tenho três motivos para acreditar que conseguirão. Bem, está mais para motivações.
— Quais seriam, senhor? – indagou Paula, timidamente.
— A primeira é saber que quanto mais demoram, mais Zalqui domina, destrói e se fortalece. A segunda é um prêmio de honra que está localizado bem ali.
Todos olham para as duas armaduras de um metal mágico que lembrava bronze. Eram magníficas.
— Estas são armaduras que receberão por alcançarem tal patente – dizia Dio, com bastante orgulho. – Chegam a ser melhores do que a minha.
— Incrível! – exclamou Marie.
— Por último, é o apelo emocional. Deem um longo abraço uma na outra, pois só se verão outra vez quando forem balvares-de-exército.
As meninas ficaram lívidas como flocos de neve. Paula entra em desespero e milhares de pensamentos invadem sua mente. Marie questiona:
— Quê!? Por quê? Não podem nos separar.
Marie encara Dio com muita raiva. Fita bem no fundo dos olhos dele.
— Sabe – replicou Dio –, se fossem parte de meu povo, considerando que saberiam quem eu sou, e também que não fossem netas de meu bom amigo e não precisássemos de vocês, com certeza não teria oportunidade de levantar a voz pra mim. – De seu boldrié, ele tira sua espada. O ar começou a ficar quente: – Olhem para ela. Um corte e diriam adeus para um de seus membros. Não somente isso, quando minha lâmina corta, o sangue estanca devido ao calor. Porém seu sangue começaria a ferver por dentro. Melhor nem saberem o que iria acontecer a partir de então.
— Desculpe – balbuciou Paula.
— Para você – rebateu Dio – estão aceitas suas desculpas. Por outro lado – ele torna para Marie –, lhe castigarei futuramente. Por três anos, treinará numa base de divisão. Os outros restantes serão comigo. Entendeu?
— Sim, senhor – respondeu Marie, com raiva.
Dio percebeu a raiva de Marie, mas fingiu que não percebeu.
— Marie voltará para a divisão que estava. É especialista em combate de espadas e seu manejo. Voltará com os senhores – disse Dio para o falk e o balvar-de-divisão.
— Sim, senhor! – responderam os dois.
— Paula irá para a divisão noroeste. São os melhores no arco e flecha.
Dio chama um dos guardas. Ele ordena uma carruagem para levar Paula até a divisão noroeste, pois a de Marie já estava pronta, porque é a mesma com que viera. Ele coloca seu elmo negro e vai se retirando da sala. Mas antes anuncia:
— Vocês têm dez minutos para se despedirem. Os harakes, venham comigo, por obséquio.
As duas ficaram quase cinco minutos se abraçando e se olhando. Marie dizia para a irmã não ter medo e que ficasse forte. Paula tenta aceitar, mas cai em prantos. Marie também não aguenta e começa a chorar. Marie segura a irmã com força nos braços e pede que ela olhe em seus olhos para lhe anunciar um juramento.
— Nós nos veremos outra vez. Juro-lhe. Seja forte, idiota. Precisa ser.
— Eu vou – prometeu Paula.
As duas trocaram mais algumas palavras em meio a tantos choros. Dois soldados vêm levá-las para o coche devido. As irmãs vão unidas até o portão principal do palacete. Mas se separam. Marie entra no coche com o falk e o balvar-de-divisão. Paula entra sozinha em outro. Ali, os dois coches tomam seu rumo e as gêmeas, pela primeira vez em suas vidas, separam-se.
Existem três tipos de choro entre os homens: o de alegria, após um longo ciclo de dores, é alcançado quando chegamos ao tão desejado destino que tanto almejamos. O de peleja, no qual encontramos os mais diversos tipos de decepções que nos esperam na caminhada que é a vida. Por último, o mais temível de todos (por diversas vezes, imperceptível), o que desatina pela ferida da solidão, o de angústia. As pessoas a serem afetadas por este mal têm, às vezes, alguém para lhes enxugar as lágrimas. Elas, quase sempre, costumam ser o tesouro mais valioso para os maculados desse tipo de choro, mais do que qualquer riqueza, ou prazer, ou conquista. Para Paula, Marie era esse tipo de pessoa, sendo, além de irmã, sua melhor amiga. Ou, para ser mais exato, era sua única companhia.
Dito isso, começarei este capítulo do choro desesperador de Paula por ter de se separar de Marie, cujos acontecimentos que lhe precederam narrarei mais tarde.
Paula havia entrado num coche com dois cavaleiros dentro dele, um defronte ao outro. Ambos estavam com seus arcos recostados entre suas pernas e com suas aljavas jazidas no forro do assento. Um tinha uma postura invejável e um olhar frio e indiferente. Este vestia um elmo ornado com folhas de bronze – um símbolo de honra para os arqueiros. E a outra, cujo elmo, que se diferenciava com uma inscrição, estava postado ao lado de sua aljava, estava debruçada no vidro da janela do coche quando Paula adentrou. Passou, então, a encarar a menina, mas não para intimidar. Pelo contrário, atirava-lhe alguns sorrisos amigáveis.
A pequena ficou um bom tempo chorando de cabeça baixa. O choro se desvanecera e deu lugar aos soluços. Depois de alguns minutos, Paula, enfim, tinha se acalmado e, resoluta, deu uma olhadela bem discreta para aquela mulher. Ela encontrava-se na mesma posição de antes e com aquele sorriso dengo pintado em seu rosto. Vendo como Paula parecia um coelho assustado, tenta puxar um pouco de conversa:
— Sente-se melhor?
Paula balança negativamente a cabeça.
— Mas o que há, afinal? – tornou a mulher, perdendo, aos poucos, a paciência. – Seria este palerma, o falk, Laurivil? Quer que dê um jeito neste mal-educado?
Ainda mostrando indiferença, Laurivil resolveu romper o seu silêncio consternado e responder às ameaças lhe foram dirigidas:
— Senhora balvar – ele limpa a garganta umas duas vezes –, tenho certeza de que toda a fonte de tristeza que emana da menina seja devido à separação com sua irmã, há minutos.
Laurivil, assim que terminara sua explicação solene, percebeu que a balvar-de-divisão fazia caretas e o imitava jocosamente. Era sua superior, mas mais parecia uma criança. Então, acostumado a esse tipo de situação, o falk deu de ombros.
— Meu nome é Paula – disse timidamente a menina.
— E o meu é Ardilis, minha jovem pupila – respondeu a balvar-de-divisão.
Paula estranhou. Ardilis, que não tinha por hábito esconder o que pensa, questionou-a sobre sua estranheza. Paula tinha duas perguntas a lhe fazer:
— Se não estou enganada, seria neta do balvar-da-divisão sudeste?
— Conheceu meu velho tagarela? – indagou Ardilis. – Faz um certo tempo que não o vejo. Que saudade! Ele sempre diz que tenho um parafuso a menos. Certo que fiz algumas traquinagens de… digamos… bom deixa pra lá. Enfim, como se conheceram?
— Assim que pousamos, um terceiro telkim nos levou à divisão sudeste, onde conhecemos ele. Puxa vida! – Paula estava admirada que a balvar tinha por volta dos 28 ou 29 anos. E disse: – Deve ter feitos surpreendentes para estar na mesma patente que seu avô.
Ardilis riu tanto que colocou as mãos sobre a barriga.
— Permita-me que lhe explique – interrompeu Laurivil. – Há dois tipos de patente: a exercida e a equivalente. A exercida já te é conhecida. Tomando exemplo da senhora balvar presente, ela exerce a patente de balvar-de-divisão. Todavia ainda temos a equivalente. Esta nos mostra qual é o verdadeiro nível de cavaleiro do alrum. Ainda com Ardilis, embora exerça a função de balvar-de-divisão, ela se ombreia com os balvares-de-exército.
— Eu!? – debochou Ardilis. – No mesmo nível daquele velho bobão? Ora essa! Muito boa, muito boa.
Paula ficou aturdida.
— E por que não exerce a patente de balvar-de-exército?
Assim que dirigiu essa pergunta a Ardilis, o coche parou.
Os dois cavaleiros puseram suas aljavas às costas e o elmo à cabeça. Ardilis laça o arco na mão direita, e Laurivil na esquerda. Este abre a porta para sua superior. A luz invade o interior do coche e cega os olhos de Paula. Ardilis sai, em seguida, Laurivil, e por último, ajudada educadamente pelo falk, Paula.
Ela sente, ainda um pouco molhada devido ao orvalho da noite, a relva tenra. Atrás dela, estacionado estava o coche sobre a estrada pavimentada. Em uma banda, havia fábricas para arcos, uma com especialidade com cordas, e a outra com a madeira. Porém, defronte do coche aberto, onde acaba a estrada da cidade, estendia-se um campo aberto. Nele havia vários e montes de arqueiros, cujo treinamento hei de apresentá-lo mais tarde. E, mais adiante do bosque, uma floresta repleta de abetos, de faias, de lariços e de pinheiros.
— É por isso que não desejei ser balvar-de-exército – disse Ardilis, afinal. – Gosto mais daqui do que de uma sala fechada, sem sentir o ar fresco.
Paula viu aquela vastidão que lhe esperava, um treinamento de cavaleiro-arqueiro que enfrentará sem a sua irmã. Ardilis continua a falar:
— Temos que providenciar um arco para você, minha aprendiz.
Ela agarrou o braço da menina com bastante empolgação e a levou até a fábrica de madeiras para arcos. Chegando lá, um senhor barrigudo, com um bigode espesso, careca e com semblante sério, aguardava-as. Ele bate a continência-alruniana. E diz:
— Senhora.
— Tautar – respondeu Ardilis –, esta é Paula, minha nova aprendiz. Faça-me um arco para ela até o final da tarde de hoje. Aliás, senhora é a velha da sua vó. Chame-me, a partir de hoje, de… hum… claro, de milady.
Tautar se desfaz da seriedade esmaltada em seu rosto e dá um sutil risada.
— Sim, milady – replicou ele. – A mocinha quer algum capricho no arco?
— Capricho? – indagou Paula.
— Veja as pontas do meu arco, garota – observou Ardilis.
Em cada uma das pontas havia um A inscrito, reluzente como latão.
Nesse ínterim, a única coisa que martelava a mente de Paula era a imagem da irmã. Então disse sem pesar:
— Um M.
— Pra já, senhorita – obedeceu Tautar. – Ficará pronto antes que o sol adormeça e a lua desperte.
— Excelente! – exclamou Ardilis. – Agora, Paula, as outras fábricas.
A balvar levou Paula para conhecer um lugar no qual abasteceria sua futura aljava de setas. Em seguida, conheceu e gravou a despesa de cordas, caso a de seu arco estourasse. Por fim, direcionaram-se para o centro de treino dos cavaleiros-arqueiros, no bosque dito anteriormente.
Na divisão dos arqueiros havia somente dois tipos de treinamento no campo aberto: combate físico e, claro, tiro ao alvo. Quando todos estavam apurando suas habilidades, viram a aproximação de Ardilis, acompanhada por Paula, pararam o que estavam fazendo e bateram continência-alruniana. Depois, ecoou-se os comentários do tipo: “quem é essa garota?”, ou “por que o cabelo dela é vermelho-alaranjado?”, ou ainda “por que a balvar a acompanha com tamanho respeito?”.
Ardilis, vendo a balbúrdia dos falastrões, inspirou fundo, sinal de que queria de volta a posse da palavra e que exigia silêncio.
— Peço-vos, arqueiros – clamou ela –, que tratem esta garota com uma de nós, mesmo sem ser alruniana.
Ardilis arqueia para segredar algo no ouvido de Paula.
— Em nosso país, conquanto seja habitado por outros tipos de criaturas, o exército é preenchido só com alruns. É a primeira vez que eles veem um não-alrum se juntar ao corpo de hoste.
Um mancebo se apresenta perante Ardilis, tomando a frente do grupo. Seu nome era Elo-Amín, mestre na caça de seu tempo. Este é um dos melhores arqueiros em atrair inimigos num lugar e abatê-los. Ademais, era encarregado de cuidar dos arqueiros juvenis.
— Senhora! – disse ele, batendo continência-alruniana.
— Vou atirar na garganta desse iníquo – murmurou Ardilis ao ouvir a palavra senhora.
— Ficarei encarregado de assegurar que todos olhem para Paula como mais uma do corpo bélico. Se quiser, posso apresentar a divisão a ela. A garota começará junto com Halbar.
O pequeno Halbar, quase da mesma idade de Paula, um pouco mais novo, é posto ao lado de Ardilis.
— Não será necessário, Elo-Amin – respondeu Ardilis. – Farei isso por conta própria. Halbar nos acompanhará, poupando-lhe do serviço. – Ardilis faz uma pequena pausa para verificar se esqueceu de alguma coisa. Nada, aparentemente. Então, torna: – Por hora, isso é tudo. Voltem ao treinamento.
O rebento da recepção de Paula voltou às suas atividades. Nenhum deles foi devorado por algum pensamento perverso, contrário ao do comando imposto pela sua balvar-de-divisão. Receberam-no como uma máxima. Iriam fazê-la se sentir exatamente como cavaleira-alruniana, camaradar como uma grande amiga e companheira, elogiar quando acertasse e repreender quando errasse.
Feito isso, Ardilis volta, agora com a companhia de Halbar, a apresentar a divisão dos arqueiros. Primeiro, conduz-os às lutas, perto donde estavam, dum treinamento corporal.
— Nós – disse ela, parando bem ao lado de uma das lutas – somos incumbidos, numa guerra, de abater a maior quantidade de inimigos antes que eles cheguem na nossa frente de batalha. Quando o conflito vira espada com espada, fica dificílimo a nossa cooperação, pois o perigo de acertar um aliado é grande. Ficamos situados em lugares elevados e afastados da batalha. Raras são as situações que usamos nossos punhos. Contudo não é impossível. Portanto devemos estar preparados.
Paula vê a luta de dois alruns de perto e se sente desconfortável. Para ela, não havia sentido nas brigas e lutas, algo primitivo, bruto e sem valor. Mas, não havendo vias de esquivanças e fugas, enche seu coração e seu punho com afoito.
Seguindo mais adiante, fazendo parte da floresta, do campo relvado e de uma encosta escorregadia, cheia de seixos, que levava a um riacho que tinha mais rochas com limo do que água, estava o treinamento de tiro ao alvo.
Se, por acaso, o leitor desconfiou se esses tais alvos eram um tanto diferentes, está absolutamente certo. E ponha diferente nisso! Ou melhor, mágico! Eram como rubis brancos. Havia dois tipos destes. Citarei, em primeiro lugar, o que Paula acabou de conhecer: o sem-bruma-corporal. Estes servem de aprendizado para os iniciantes e para a prática de acertar alvos em lugares difíceis e nocivos, como num matagal fechado e denso, copas de árvores bem frondosas, sítios altos e longínquos etc. Para que sejam acionados, no sentido de saberem que serão alvejados em um tiro, basta serem mirados, mudando para a cor laranja. Se o rubi for acertado, brilhará em verde. Se não, em vermelho.
— Esses alvos – explicou Ardilis – foram feitos pelos unor da ordem verde. Só funcionam dentro desta divisão. Podem achá-los em qualquer lugar. Durante a noite, eles mudam sua localização para que, no dia seguinte, o treinamento não seja igual.
Halbar, vendo-se agora na companhia de uma nova amiga, busca insaciavelmente um tiro formidável. Ele encontra Faurer, cuja seta apontava para um alvo-rubi posicionado atrás de uma rocha. Estava com mais da metade encoberta, bastante difícil de ser acertado. Halbar cutuca o ombro de Paula. E diz:
— Veja que tiro extraordinário está por vir.
Paula se vira na direção que Faurer mirava. Ela demorou um pouco para achar o alvo-rubi flutuando atrás da rocha. Ele já estava laranja. Faurer mantém seus olhos fixos nele. Sente, por um tempo, a constância do vento que silvava. Calculado tudo, atirou. Claque! Se a seta fosse um pouco mais abaixo, cravaria na rocha. Se voasse um tanto a mais à esquerda, ou à direita, ou acima, deslizaria. No entanto, ela fincou bem na região que estava à mostra. E o alvo-rubi fulgentou verde.
— Inacreditável! – exclamou Paula. – Eterno, poderei acertar um tiro tão esplêndido quanto esse? – Ela, nesse instante, mergulhou num mar de angústia ao ver o tipo de pressão que será exposta.
Halbar, percebendo pela reação desanimadora da garota que sua tentativa de se amigar havia falhado, ficou um tanto confuso e aturdido. E perguntou:
— O que foi? Não achou impressionante?
— Achei – replicou Paula. – Mas… é que…
Halbar não tinha jeito para falar com a pequena. Apressado, pressionador e impaciente, tudo isso só fazia Paula aumentar o nervosismo.
— Nada, nada. Esqueça. Está tudo bem. Foi um lindo tiro – mentiu ela, afinal.
O garoto ficou a vagar na inconstância de Paula, sem compreendê-la. No fim, tirou para si conclusões fora da realidade. Ardilis, que estava ao lado da conversa, lamentava a estupidez de Halbar. Ele extenuou todo o vestígio de confiança da menina no pior momento possível, pois estava para anunciar algo que provocaria alarde na alma da pequena.
— Paula – disse ela –, explicaram-lhe o funcionamento no que cerne a respeito das patentes nesta divisão?
Paula balança negativamente a cabeça. Um terrível augúrio infla a mente da menina. Ardilis, com aperto na garganta, tornou a dizer:
— Todos os recém-chegados começam, claro, na patente mais básica, filiath. E, diferente das outras divisões, exceto a de estratégia e produção bélica, é necessário que o filiath faça um teste para que tenha a permissão de subir de patente. Ele consiste que o arqueiro acerte trinta alvos destes que vê, sem errar um sequer. Caso falhe, terá de esperar o próximo dia para refazer o procedimento.
Como se uma torrente de temores tivesse inundado sua mente, Paula começa a suar frio. Ela viu que era preciso atirar com magnificência. Caso contrário, tardaria a se reencontrar com sua irmã.
Ainda ficaram algumas horas apreciando os tiros que iam e vinham por todos os lados. Quando o anoitecer se aproximava e o sol abraçava o poente, Tautar veio, enfim, trazer o arco de Paula.
— Aqui está seu arco, mocinha – disse ele, entregando a arma na mão de Paula. – Como prometido, antes que o sol adormecesse.
Paula segura seu novo arco e sente seu peso. Era um tanto pesado, mas nada que a impedisse de carregá-lo e manejá-lo. Este era feito de uma madeira escura, com duas letras M em alto relevo nas pontas, polidas e claras. E Tautar também lhe trouxe uma aljava cheia de setas.
— Bem, agora, por fim, só falta lhe mostrar o local no qual repousará durante as noites vindouras – anunciou Ardilis. – Basta me seguir. Você também, Halbar.
Ardilis os levou para o seio daquela floresta do lado do bosque. Abrupto, com estranheza, começaram a ver tendas. Estranho, pois não estavam armadas em uma clareira ou sob a sombras das árvores, mas nos galhos, com cordas amarradas nos troncos que conectavam umas nas outras, esticando-as. Uma espécie de tábua era colocada no fundo delas, por dentro, para planificá-la.
— Aqui está a sua, Paula – disse a balvar-de-divisão, parando bem embaixo de uma das tendas. – Halbar, a sua é aquela ali.
— Com licença – interrompeu Paula, de modo engasgado –, não sei subir em árvores.
— Então – replicou Ardilis –, para o seu azar, seu treinamento não começará amanhã, mas hoje. Porquanto, além de ser trivial que um arqueiro saiba trepar em árvores, para fins de ataque e fuga de um animal selvagem, não dormirá em algo confortável se não souber chegar até lá em cima.
Paula, por um momento, pretendeu choramingar, mas além de não ter por costume contrariar adultos, sentiu-se intimidada devido ao semblante que Ardilis esboçava, cenho franzido e olhos sérios. Em geral, ela era uma alrum simpática e alegre, mas nas questões militares era rígida e sem aberturas para exceções. Sendo assim, ao invés de Paula protestar a injustiça do pronunciamento, apenas consentiu.
— Ótimo, ótimo – prosseguiu Ardilis. – Amanhã cedo estarei aqui para começarmos. O jantar é coletivo. Naquele mesmo bosque que estávamos agora há pouco. Basta chegar, pegar uma das tigelas que estarão sobre a mesa perto do fogo da grande fogueira e comer à vontade. Isso é tudo.
Ardilis mal se despediu e retornou para dizer algo a Halbar.
— Dê uma breve demonstração dos alvos com-bruma-corporal a ela – dizendo isso, finalmente partiu.
Halbar, com sua agilidade, subiu até a sua tenda e desceu novamente trazendo consigo um rubi branco com as iniciais de seu nome, H. F.
— Cada um de nós recebemos este alvo – explicou ele. – O seu deve estar na sua tenda. A princípio, pelo fato de sermos iniciantes e este ser um nível avançado para praticar, logo não devemos utilizá-lo por hora. Mas a senho… quer dizer, a milady balvar pediu-me para lhe explicar, no mínimo, como funcionam. Empreste-me seu arco, por favor. Vou lhe mostrar como dar vida a eles.
Paula tira o arco do tiracolo e o entrega na mão de Halbar. Ele o mostra para o alvo-rubi-de-bruma por alguns segundos. Este, então, começa a se agitar com frêmito. Gradativamente, pôde-se ver uma bruma envolvendo o rubi. De começo, era sem forma, porém, foi-se vendo a silhueta de um homem aparecendo. Por fim, formou-se uma bruma humana bem densa, com seu núcleo no rubi.
— Agora – continuou Halbar – precisamos escolher entre um salteador ou um soldado. Há alguma preferência para ti?
— Hum – pensou Paula –, pode… pode ser o soldado.
— Belíssima escolha! Preciso de uma flecha.
Paula retira de sua aljava uma de suas setas e a entrega a Halbar. Ele a estende para o alvo-rubi-de-bruma na posição vertical. A bruma, de súbito, começa a ganhar uma malha, elmo e todas as peças formam uma típica armadura. Por último, algumas regiões da bruma bruxuleiam em laranja. Diferente da armadura dos alruns, essa não deixava expostos os braços e as pernas em prol de uma maior mobilidade.
— As partes laranjas são as quais você deve acertar – explicou Halbar. – Se acertar, assim como os outros alvos-rubis sem bruma, fulgentarão em verde. Se não, em vermelho.
Ele estende novamente o arco. A bruma se desfaz e o rubi cai na relva tenra. Halbar se dirige aonde o objeto caiu, mas não cessa a explicação.
— Depois de ter escolhido – concluiu ele –, basta ajeitar a seta no arco que o alvo-rubi-de-bruma fará alguma ação. Se fosse o salteador, fugiria. Se fosse como o de há poucos segundos, um soldado, nos atacaria. Mas fique tranquila, eles não machucam.
Paula vê-se sob dificuldades a serem confrontadas. Assim resolveu se submergir num silêncio e em seus pensamentos. Halbar percebeu todo o pavor e constrangimento da garota. Então tomou a sua pior ideia do dia, deixá-la sozinha.
— Bem, acho que vou me retirar para jantar com os outros arqueiros – disse ele. Mas, enquanto se afastava, tomou partido da idiotice que estava fazendo e tornou: – Deve estar com fome também. Quer vir?
— Talvez mais tarde – replicou Paula, ríspida.
Halbar, então, despediu-se.
Assim que Paula observou que estava a sós, tentou desesperadamente subir na árvore na qual estava sua tenda. Subia e caía. Repetiu isso por incansáveis vezes e horas. No fim, sem sucesso. Então as comportas da raiva foram abertas. Ficou tão vermelha que não podia diferenciar a cor de sua pele com o sangue que corria dentro dela. Ela eleva as mãos trêmulas ao rosto. Chorou. Soluçou. Gritou. O desespero a dominou por completo. Um complexo de sentimentos anuviou suas lembranças e a sua perspectiva de acontecimentos vindouros. Logo, uma tempestade a desolou de vez, pensamentos ruins a empunharam. Entenda, Paula foi sujeitada a estar numa situação que não queria, a lutar uma luta que não era dela, sacrificando o que não estava disposta, a trilhar um caminho que não escolheu. E o pior disso tudo, estava sepultada na solidão. Seus olhos ardiam devido a longas sessões de choro que paravam e retornavam de abrupto. Encontrava-se, de quando em quando, no caos e na calmaria.
De súbito, ouviu-se passos por todos os lados. Era a hora de dormir, decerto. Rapidamente, Paula encostou as costas na árvore mais próxima e disfarçou em expressão pensativa. A princípio, alguns dos alruns mais jovens paravam para vê-la, contudo, não notavam sua tristeza. Eles queriam ver de perto a única pupila que Ardilis teve e seu cabelo ruivo. No entanto, lembravam da ordem da balvar de tratá-la como igual e foram cada um para a sua tenda. Halbar retornou. Ele viu que Paula estava com alguns machucados e deduziu que ela tentou chegar ao seu conforto noturno, entretanto, falhou. Ele tentou, assim, fazer com que a noite dela fosse um pouco melhor, trazendo de sua tenda uma lamparina acesa.
— Tome – disse ele, entregando a lamparina para Paula. – Infelizmente, não é permitido passar a noite com arqueiros que não sabem ainda subir em árvores. – E, claro, ele tira de sua veste algo enrolado num pano com um cheiro delicioso – É de carne e…
Antes que ele terminasse de dizer do que era feito aquilo, Paula tomou das mãos dele e devorou como uma fera faminta. E ela fica um pouco mais contente.
— Obrigada – agradeceu Paula.
— Era só oferecer comida que ganhava a amizade dela? – pensou Halbar. No fim, ele se retira e deseja um boa noite a Paula.
Sozinha, ela ficou admirando o fogo da lamparina. O céu estava repleto de estrelas roxas e a lua alumiava a floresta. Não havia, dessa maneira, a necessidade da lamparina. Porém o calor que ela aquecia as mãos de Paula era de valer a pena. A garota fazia movimentos como um oleiro dando forma a um vaso, mas prudentemente, sem tocar no recipiente que guardava a chama. De repente, depois de leves cócegas, Paula percebeu uma cabecinha luminosa subindo detrás da mão direita. Ela deu um pequeno grito de surpresa, mas o abafou rapidamente com a outra mão. Não ousou tocar naquela criatura que, agora, não era somente uma, mas várias. Não tinham cabelo, nem nariz, e tampouco uma boca, e seus olhos eram totalmente laranjas e bastante grandes e redondos. Também emitiam um som esquisito, que lembrava magia sendo executada. Umas iam até lamparina e a abraçavam com ternura, e as outras deitavam no cabelo de Paula e se penduravam nos braços da garota (apesar de saberem voar sem terem asas). Quando a menina havia percebido, as suas unhas e o seu cabelo bruxuleavam como uma lanterna.
— Chamam-se luminares – disse uma voz ao lado de Paula.
— Balvar Ardilis! – assustou-se Paula. – Há quanto tempo está aqui?
— Estou te observando desde que começou a cair dos galhos da árvore.
A garota ruborizou de vergonha e voltou sua atenção para as tais luminares.
— Elas – tornou Ardilis – são seres peregrinos. Aparecem em nosso país em períodos indeterminados. Escondem-se durante a luz do dia e, à noite, procuram alguma coisa que haja luminosidade, como essa lamparina que segura. – A balvar se senta ao lado de Paula para que a conversa fique mais amigável. E prossegue: – Por fim, não há muitas explicações apuradas a respeito de suas unhas e de seu cabelo brilhar quando uma delas te toca, ou de sua origem. O único registro que temos delas está no canto II de Beofúr.
— O que é o Beofúr? – indagou Paula.
— Um canto poético de nosso primeiro líder, cujo nome é o próprio título.
— E o que diz sobre as luminares?
— Bem… se não me engano… ele diz que foi um pedido feito por um dos filhos de Teor-Dim ao lendário unor da ordem vermelha, Bendivor. Ele queria que mago criasse seres que fizessem seu corpo fulgentar como o de seu Pai. Então Bendivor criou as luminares. Todavia, como vê, elas só conseguiram que suas unhas e seu cabelo brilhassem. Dizem que foi o próprio Teor-Dim que fez essa modificação, com o propósito de humilhá-lo. No fim disso, o filho ultrajado as despachou para Tokarisen.
— Quem é esse Teor-Dim?
— Voltemos a falar sobre você falhar em subir até a sua tenda.
— Como quiser – concordou Paula, desviando o olhar de vergonha.
— Não a culpo por falhar. Quase todos aqui já vieram treinados a treparem nos galhos das árvores, diferente de você que nunca havia tentado, até hoje, se aventurar em subir uma.
— Não se trata apenas de subir em árvores.
— É sobre sua irmã e o fato de estar num lugar com um propósito que não condiz com a sua vontade?
Paula fica atordoada com a dedução certeira da balvar.
— Criança, é contra minha vontade que qualquer alrum faça parte do exército involuntariamente. No entanto nosso povo e todo o país depende de você e de Marie, por mais absurdo que pareça. Há excelentes cavaleiros aqui, mesmo assim, Dio depositou toda a sua confiança em duas crianças. Ele nunca falhou, entretanto, em proteger nossa terra. Portanto irei treiná-la. Farei de você a melhor arqueira que já vi.
Paula fitou as orbes negras da balvar, as janelas para a alma. Estes olhos não mentiam. Encontrou, assim, a confiança que precisava. E, pela primeira vez, deixando a lamparina na relva e ficando sobre os pés, bateu a continência-alruniana. Ardilis também o faz e diz:
— Amanhã começará sua batalha de formação. Agora, em verdade, despeço-me. Que Teor te proteja e te dê forças – disse ela, enfim.
— Até amanhã, senho… milady – respondeu Paula.
Passaram-se dois anos e a menina crescia e se fortalecia. Seu rosto de garota tímida e medrosa desvaneceu. Sua pele recebeu bastante as carícias do sol. Fez diversos serviços para ganhar respeito e manter a ordem na cidade. Ganhou uma torre de vigia na região noroeste. Pouco a pouco, floresciam seus feitos incríveis. Certa vez, do alto de uma das torres de vigia que já mencionei, ela contemplava a urbe trabalhando. Crianças corriam, idosos conversavam sobre tempos e eras passadas e comerciantes convidando e agradecendo seus clientes, exceto o brado que ecoava por toda a alameda: – Ladrão!
Os vigias das torres, à luz do dia, são instruídos, sendo eles arqueiros, a não atirarem, mas a tocarem suas trompas para que uma tropa próxima cuide do bandido. Paula, todavia, era de maior reconhecimento. Ela, então, observou o padrão de movimentos que o fora da lei executava e traçou um plano audacioso. Percebeu que, de tempo em tempo, o ladrão colocava a mão esquerda na parede, principalmente depois de desviar de um civil. Ele fazia isso para manter o equilíbrio e continuar a fuga. Paula calculou a próxima esquiva e mirou num ponto na estaca de madeira de uma lojinha. O fugitivo faz exatamente o que Paula previu e quando sua mão volveu à sustentação, uma seta a cravou no madeiro. O bandido brada de dor.
Os que estavam em derredor ficaram estupefatos. Fitavam donde a seta tinha sido atirada e viram a jovem de cabelo ruivo e esvoaçante no alto da torre.
— Fantástico – gritou um comerciante.
Com o passar do tempo, o número de bandidos diminuiu bastante naquela região. Ninguém ousava desafiar o Lírio-Escarlate, nome dado, inicialmente, entre os criminosos e popularizado pelos civis nos termos do país.
Paula, com sua habilidade e reconhecimento, teve que ser transferida para outro local do país, no qual se desenvolveu mais ainda. Ficou destinada aos proscritos, e aos insurgentes, e aos sujeitos de má-fé e de pouca índole. E havia algumas criaturas perigosas que resolveram adentrar nas fronteiras e causar um verdadeiro estardalhaço.
A tropa da qual Paula, já exercendo a patente segunda telkim, fazia parte, tinha a missão de prender os infames e liquidar os perigos. Não se podia andar sozinho de modo algum. Não havia iluminação alguma, pois ainda era uma plaga cheia de árvores frondosas e matagais espessos. De quando em quando encontravam uma lamparina nalgum galho, mas raro. As casas, cuja proteção estava designada nas mãos dessas rondas, eram demasiado distantes umas das outras. Certa noite, Paula e os cinco cavaleiros caminhavam, sempre atentos, por uma trilha que dava acesso a todas as moradias. O silêncio reinava no ar. A noite era cinzenta com listras negras. A lua se escondia, dardejando, assim, pouca luz prateada. A quietude era plena até que se ouviu um brado agonizante de um garoto em apuros: – Socorro!
— Rápido! – mandou Paula. – Algum patife capturou uma criança indefesa. Pelo som, está se dirigindo para o Grande Carvalho. Façamos um cerco ali.
Os cavaleiros, reconhecendo os famosos feitos de Paula na cidade, obedecem sem pestanejar, apesar de serem mais velhos. Infelizmente, os criminosos daquela área tinham por costume sequestrar crianças, encher suas mentes de preceitos tortuosos e as convencer a aumentarem seus comboios. O que havia raptado um garoto praguejava a despeito do pai dele:
— Maldito! – disse ele do pai do menino. – Acertou-me nos ombros com aquele bordão. E esta criança faz muito escândalo. Vão saber minha localização se continuar desse jeito. Vou ter de amordaçá-la naquele carvalho enorme.
O desdito colocou o garoto na grama, puxou um pano de sua algibeira e o amordaçou, decerto. Quando voltou a carregá-lo, foi surpreendido.
— Alto! – anunciou um dos cavaleiros da companhia de Paula (que se escondia a uma certa distância). – Deixe essa criança e se renda. Não há para onde fugir.
— Nunca! – exclamou o sequestrador, sacando uma faca de seu cinto e a pondo na garganta do garoto.
— Covarde! – esbravejou o cavaleiro que havia exigido rendição.
O fora da lei desatou uma gargalhada horrenda e perversa. De súbito, ele tira a faca da garganta do menino e a brandiu, como sinal de zombaria. Mas o arrependimento veio com usura. Assim que parou de balançar a lâmina e a apontou para os cavaleiros, em prol de afrontá-los. Então, como uma punição imediata, uma seta, vinda de sua esquerda, acertou a sua faca, que voou longe no negrume. Ele se desvencilhou do garoto e partiu em retirada, mas outra flecha o atingiu na coxa direita, fazendo-o claudicar. Sem perder tempo, dois cavaleiros, enfim, imobilizaram-no. Enquanto o prendiam, e tratavam seus ferimentos, e lhe inquiriam a respeito de outros criminosos de seu maligno bando, Paula se apresenta com mui préstimo e estima dentre os matagais. Ela estava enxovalhada de lama.
— Dias de chuva são uma benção para os que sobrevivem da safra, mas um horror para os mateiros – reclamou ela. – Aquelas irritantes goteiras que precipitavam das folhas das árvores tiravam a minha concentração.
— Segunda telkim – disse um cavaleiro, batendo a continência-alruniana a Paula –, disparou de tão longe? Pois demorou um pouco para chegar até aqui.
— Não – negou Paula. – Acabei assustando um pássaro com meu disparo. Seu ninho caiu. Então, pela culpa e compaixão que senti, recoloquei-o de volta no lugar. Ainda bem que não tinha ovos. Seria um verdadeiro desastre. E como está o garoto?
— Está bem ali. Veja por si mesma.
Paula andou até o pobre rapaz que não parava de soluçar e tremer como vara verde.
— Acalme-se – disse ela à criança. – O pior já passou. Não há mais o que temer. Qual o seu nome?
Ele, ainda um pouco acanhado e assustado, responde:
— Turilim. Você é a tão conhecida Paula, o Lírio-Escarlate?
— Eu mesma. Mas só Paula, por favor. Amigos não se tratam com títulos ou mesuras. E ai de ti se me chamar de senhora.
— Então é quem os ladrões tanto temem. Incrível! Ouço muitas histórias a seu respeito, senho… Paula. E já somos amigos?
— Claro, sem dúvida somos! Como prova disso, irei lhe contar algumas histórias secretas sobre mim. Mas não conte a ninguém.
— Pode contar comigo. Passarei a me chamar de Turilim, o Guardião-Inexpugnável. Se algum alrum tentar arrancar suas histórias de mim, desço-lhe o braço.
— Não exagere. Baurim e Bilim – ela chama dois dos cavaleiros presentes –, acompanhem-me para que levemos este menino de volta para o seu devido lar. Os outros conduzam esse criminoso à masmorra e deem um relatório completo de nossa bem-sucedida missão ao primeiro telkim.
— Sim, segunda telkim – replicaram os cavaleiros.
Graças a Paula, a criminalidade despencou naquele ano e a cidade pôde se desenvolver melhor naquela região turbulenta que fora enviada. Seus feitos eram aterrorizantes e inacreditáveis. Portanto não demorou muito para que fizesse parte da batalha contra os nérilins, em Nincá. Este povo era dividido em diversas tribos que proviam alianças para se fortalecerem. Tinham uma arma bastante distinta: uma mistura de lança e foice, que podem, claro, perfurar ou dilacerar. A chamavam de Habid, a lança da meia-lua. Tinham uma aparência pomposa e rude, barba até o peito, argolas nas orelhas, nariz arredondado, usavam armaduras laranja-douradas.
Paula foi enviada a Nincá para fortalecer o arraial dos arqueiros. De fato, houve uma melhora no número de abates depois que ela floresceu na peleja. No entanto uma seta fez Paula arraigar o pendão da vitória.
A maior força e fraqueza no exército dos Nérilins era quem chefiava as tropas, Naft. Se ele fosse abatido, todo resto ficaria perdido. Então Paula foi informada que os nérilins desciam pela orla de um outeiro quando eram providos de uma nova tática, ou seja, Naft devia estar na crista do monte. Assim sendo, Paula foi disfarçada com folhagens e teve que ir rastejando até o campo inimigo por longo seis dias, quase sendo pisoteada pelas tropas que passavam por ela. Mas achou um lugar adequado para ver o cume entre alguns arbustos que, mais à frente, havia um vale não tão extenso, salpicado por tendas, estandartes e muitos nérilins. Mais dois dias se passaram. Ainda sem perder o foco, viu descer pela orla do morro um novo batalhão de nérilins e uma figura, que batia com a descrição de Naft, apareceu no lá no alto. Paula não hesitou. Depois de dias sem sentir as próprias pernas, ficou de joelhos e armou seu arco. Quando Naft resolveu dar uma olhadela para o céu, a seta de Paula crava o seu pescoço. Ele cai morto na hora.
A partir disso, o exército dos nérilins perdeu muita força, e os alruns puderam tomar uma parte de sua terra em Nincá.
Em três anos transcorridos, com 16 anos, Paula já era quase tão boa quanto Ardilis, que era a melhor. Conheceu, todavia, alguns problemas no que diz respeito às táticas de guerra dos alruns, a fragilidade nos combates navais e uma praga mágica que assolava as colheitas de trigo. Assim o Lírio-Escarlate, após atar um laço mais precioso que o ouro com a divisão noroeste, mudou-se para a norte: a divisão de inteligência.
Ela estudou a fundo a língua dos unor-marrons, conseguindo acesso a alguns fragmentos da obra de Lathil, a Gentil, e o significado de alguns vocábulos dos unor-negros. Por fim, desvendou o tortuoso enigma para acabar com a praga. Ela entregou a solução para os unor-verdes, pois, por via de regra, somente os unor podem manipular magia, cada qual com sua maneira diferente: os marrons com a escrita de feitiços, os verdes com a criação de objetos mágicos e os vermelhos com conjuração de bruxaria. Porém, no que diz respeito às maldições e feitiços, todos podiam desfazê-los sem nenhum percalço. Assim desfizeram a praga e o povo se fartou com mais trigo.
Ao final do sexto ano, desde que entrara na divisão dos arqueiros, Paula se tornou uma excelente arqueira, peça fundamental em batalhas (duas, sem saber, em companhia de Marie), melhorou a administração e a segurança do país e construiu uma nova navegação bélica. Seus atos de liderança a fizeram chegar rapidamente na patente tão desejada: balvar-de-exército. Porém apenas conseguiu se encontrar com sua irmã no oitavo ano. Enquanto isso, teve tempo de adquirir outra façanha, mas revelarei no curso da grande Guerra contra Zalqui.
Não poderia escrever detalhadamente os seis anos de treinamento e os atos de Paula, assim como não farei com Marie. Isto me exigiria outro livro. Por hora, concedi-lhe breves passagens, como farei a seguir com Marie.
É-me incumbido o dever de voltar à narrativa após o momento em que as protagonistas foram cruelmente separadas. Marie, no coche, acompanhada por Arbonis e o balvar-de-divisão, ria ou chorava de raiva. Às vezes, fitava alguma coisa para despejar sua amargura, mas só via dois cavaleiros que possuíam duas espadas afiadíssimas. Então desistiu e se afundou em preocupação, pensando: – Será que Paula ficará bem? Somente tu sabes disso, leitor.
O caminho de volta à divisão sudeste, ou da espada, foi silencioso e demorado. Chegando lá, Arbonis ordenou a Marie que fosse descansar o resto do dia, pois, no dia seguinte, iriam começar seu rígido treinamento. A garota, no entanto, impaciente como era, protestou que começasse imediatamente.
— Tem certeza de que rejeitará o descanso do corpo e da mente? – indagou Arbonis.
— Toda – respondeu Marie, com ímpeto. – Não tenho que ser forte e conquistar grandes feitos para rever a minha irmã? Pois bem! Não é possível conseguir algo dormindo.
Arbonis entende a impaciência de Marie, mas a desaprova. Ademais, ele geralmente tem uma predileção por repreender ensinando, e ensinar para ele é agir. O falk traz à Marie uma espada de madeira, um broquel e uma vestimenta mais adequada. A princípio, pede a Marie que imitasse seus movimentos com cautela, devagar, se necessário. Porém a pequena era muito cabeça dura e impaciente. Arbonis, com a bonança do mar, ordena que prestasse atenção em sua explicação.
— Evite meu escudo e não perca a atenção de ambos de nossos pés.
Mas Marie não deu ouvidos e respondeu:
— Já sei, já sei.
— Se sabe, então fique em guarda. Lutará.
Nesse ínterim, Marie sentiu um calafrio percorrer sua espinha dorsal e, de repente, sua testa estava encharcada de suor frio. Mas sua raiva e orgulho reinava sobre ela, e não se desculpou. Seu primeiro embate estava prestes a começar.
Marie e Arbonis ficaram frente a frente. Com o sinal do falk, que indicava o início do duelo, a garota tentou aplicar um golpe displicente no lado que ele segurava seu escudo. O cavaleiro, sem esforço algum, retribui-lhe um contragolpe, levantando o braço de Marie e a derrubando, chutando o pé de apoio. Assim, o falk, num átimo, deitou sua lâmina na garganta de sua aprendiz negligente e inquiriu:
— Já sabe?
Marie, arrependida, replica:
— Não.
— Então comecemos amanhã de manhã bem cedinho.
Durante esse combate, havia alguns cavaleiros que assistiam pasmados. Eles ficaram sérios e envergonhados devido ao comportamento de Marie, e lamentaram pelo fato de Arbonis ser o seu instrutor. Talvez chorarão por ela quando souberem que Dio irá treiná-la em alguns anos.
Passaram-se duas semanas com Marie mergulhando no desastre. No que dizia respeito à aprendizagem, era notável a diferença entre ela e Paula, que analisava com cuidado o que fosse explicado e, em alguns momentos, anotava para mais tarde. Aliás, ela cotejava os resultados que tinha de uma semana para a outra, para ver o quanto evoluiu. Porém, como já conhecemos, Marie não tinha essa louvável paciência para elaborar um planejamento. Não conseguia aprender uma série de movimentos de uma vez, mas apenas um. Ela o treinava e o apurava até seus ossos fadigarem. No entanto, toda vez que duelava com algum alrum, perdia, pois não tinha muitas cartas na manga.
Não atiremos, todavia, somente pedras em nossa cavaleira, porquanto enquanto treinava um movimento específico, ela o deixava de jeito natural e único, que, após uns poucos meses, quando teve um número considerável de investidas e defesas, pôde vencer seus primeiros duelos. Recebeu, contudo, um balde de água fria quando começou a enfrentar oponentes com uma estatura mais forte e robusta, pois ela era leve como uma pena. A pobre coitada podia ouvir as juntas dos braços rangendo quando as espadas retiniam. E também era muito doloroso quando o adversário a empurrava com escudo.
Ela começou, então, diversos treinamentos físicos, que iam além de fazer flexões, longas corridas com pesos nas pernas, saltos, entre outros. Mas, às vezes, quando queria exceder o próprio limite, exagerava demasiado. Por exemplo: se obrigava a ficar pendurada numa barra que ia de um monte até o outro com uma queda fatal abaixo de si. Quando não estava tão cansada, fazia algumas barras em cada braço. Contudo, essas loucuras, claro, não conseguia fazer quando ainda tinha treze anos. Demorou três anos para regozijar de um porte físico adequado.
Na questão do uso do escudo, ela realmente não tinha jeito para usá-lo. Então Marie o abandonou e deu lugar a outra espada. Com efeito, perdeu bastante capacidade defensiva, mas ganhou uma verdadeira força no ataque.
Pediu, enfim, a revanche daquele que a havia vencido anos atrás. Semit, o Escudo-de-Aço. Este era um mestre na defensiva, pois desarmava facilmente seu inimigo com o seu poderoso escudo. Um combate que gerou um estardalhaço, pois queriam que a jovem promissora vencesse aquele cuja alcunha se espalhava como implacável. Os dois cavaleiros ficam frente a frente e estendem suas espadas. O duelo começa. Marie se precipita em Semit e o pressiona, mas ele não cede um momento sequer. Ele tentava contra-atacar com seu poderoso escudo pra tentar derrubá-la, mas ela esquiva com agilidade. A garota desfere golpes surpreendentes que o fazem recuar. Por um momento, com seus braços doendo de tanto acertar aquele maldito escudo, ela toma alguns passos para trás para recobrar o fôlego. “É inútil atacar desse jeito”, pensou ela. “Mas acho que posso confundi-lo com isto”. Marie, então, avança novamente em direção a Semit. Num dado instante, já perto de seu adversário, Marie agacha o corpo e a espada da sua mão esquerda e intenciona atacar os pés dele. Semit a acompanha, curvando-se, protegendo suas pernas com o seu escudo. Todavia isso lhe causou sua derrota, pois Marie fez um giro veloz e, com a outra espada, arrancou o elmo de Semit, lançando-o longe e deixando um corte em sua testa. Vitória de Marie.
Outro bravíssimo oponente foi o sobrinho do balvar-de-divisão (e seu cavaleiro favorito), Póriu. O garoto tinha uma agilidade e destreza invejáveis. Conseguiu impor dois cortes em Marie, um no braço direito e o outro no seu ombro. A garota chegou a ter toda a sua energia extenuada. Sua boca escorria uma torrente de sangue devido as pancadas que recebia do escudo de Póriu. Mas nunca pensou em desistir. Ela até mesmo chegou a ficar sobre um de seus joelhos enquanto Póriu a pressionava com sua espada. Assim Marie esperou uma abertura para que ganhasse um alento de força. E ela veio. Póriu achou que poderia erguer mais alto o braço para que seus ataques descessem com maior ímpeto, já que Marie parecia estar à mercê de uma desistência, contudo ela agarra seu punho, levanta-se, abre a guarda de Póriu com outro braço e, por fim, com um movimento preciso, retorna cortando o que prendia o escudo ao braço do cavaleiro, acabando com toda a defesa que tinha. Mal se ouviu o ruído do aço do escudo caindo no chão e Marie voltou a atacar Póriu, antes mesmo dele entender o que havia acontecido. Assim que ele se defende de uma das espadas de Marie usando a própria, a outra teve a lâmina jazida em seu pescoço. Outra vitória de Marie.
Póriu ficou, conquanto emburrado pela derrota, satisfeito pelo duelo. Não só congratulou Marie com palavras lisonjas, mas a presenteou com um de seus cavalos, Bela. Era bastante forte e na cor cinza-claro e, claro, com os olhos estrelados. O próprio nome da égua expõe como os alruns são apegados a estes animais.
— É belíssima, Póriu – disse Marie, recebendo as régias. – Realmente irá me dá-la?
— Confesso o meu afeto por ela – replicou Póriu. – Mas nunca a levo para as minhas expedições e batalhas. Deve estar entristecida por não estar trotando por bosques a fora. Pode ficar com ela. Sabe montar?
— Não.
Póriu a auxiliou a como cavalgar. Preciso nem mencionar quantas vezes Marie caiu do cavalo. Umas Póriu se assustou, outras gargalhou. Mas logo, em dias, Marie pegou o jeito. Começou, como esperado, a querer se aventurar em lugares um pouco afastados da cidade. Ela ouviu dizer que havia uma floresta nos arredores da região sudeste. Mas, para que saísse, era necessária a permissão de uma superior.
— Tenha cuidado – avisou Arbonis –, pois há um guardião nessa floresta. Ele não é nosso inimigo, mas não ouse perturbá-lo, nem tampouco irritá-lo.
— Certo – respondeu Marie.
Ela sai da antecâmara do falk a toda pressa. Marie selou a sua égua no estábulo dos cavaleiros espadachins e embainhou sua espada (só levando uma, porquanto a outra deveria ser amolada). Ela sobe em Bela e trota até uma das saídas que dá acesso ao ermo verdejante que queria explorar. Marie mostra sua permissão escrita ao que guardava o portão. Ele reconhece a inscrição de Arbonis e concede a passagem, abrindo o portão. Uma trilha íngreme se estendia a sua frente, ladeada por cedros e arbustos com flores brancas. Ela esporou a égua e desceu o declive a toda velocidade. A jovem pôde sentir o frescor da tarde e o cheiro da relva reinando sobre a floresta. A forte lufada de vento erguia seus cabelos ruivos para trás e para cima. Parecia que Marie e Bela estavam em sincronia. Algumas folhas se laçavam em seu cabelo longo (já bem grande e encaracolado, como o de Paula. Afinal, não o tratava desde que caíra do céu em Tokarisen). Ela adorou aquela sensação. Ria, e ria, e ria.
Em seguida, parou na borda de um rio de água límpida para que Bela pudesse matar a sede. Enquanto ela renovava seus rins, Marie viu, acima das copas das árvores, um fumo cinzento. Ela amarrou Bela num tronco, vadeou o rio e subiu pela encosta só para satisfazer sua curiosidade. Parecia ser um chalé antigo, mas não abandonado de todo. Ela se esgueirou um pouco dos arbustos para ver melhor. Ainda bem que seus reflexos estavam em dia, senão teria sido acertada pelo cabo da lança que passou bem perto da sua cabeça. Ela, cheia de coragem, mesmo tendo a chance, não partiu em disparada, levantou-se, limpou-se e encarou seu oponente.
O personagem em questão não vestia uma cota de malha ou um elmo pomposo, porém seu aspecto era demasiado intimidador. Alguns fios brancos já estavam sendo semeados. Uma barba muito emaranhada preenchia seu queixo quadrado. Alto, taciturno, empunhando uma lança para caçar ursos e cego do olho esquerdo. Supostamente, um flagelo causado por uma espada, pois a cicatriz a denunciava.
— Vá embora – ordenou o sujeito.
— Onde estão os bons modos? – indagou Marie, desembainhando sua espada. – Espionava-te com toda cautela e solenidade. No mínimo, esperava que me convidasse à mesa para tomarmos uma boa xícara de chá.
O grandalhão tenta empalar Marie, raivoso, mas ela dá um salto para se distanciar. Tenho a impressão de que a jovem queria confrontá-lo antes mesmo de sair da cidade.
— Não me parece ser uma ladra – observou o homem –, nem querer causar dano à minha floresta. Sendo assim, é uma idiota tentando arranjar briga comigo.
— Tem um bordão em rije, e eu uma espada – disse Marie. – Não me parece muito justo.
— A infame invade minha terra e é quem deseja equidade no combate? Essa é boa! Grave bem esse nome: Luck. É quem irá te ensinar boas maneiras e a ter juízo.
Uma, duas, três. Luck tenta várias investidas pra cima de Marie. Quase que a cavaleira fura a orelha. Era muito difícil dar um contragolpe, pois alguém que porta uma lança tem uma certa vantagem contra o que usa uma espada. Nunca dava uma abertura franca para Marie. Ela tenta calcular a próxima empalada, passar sob o cabo e ferir o pé de Luck, mas não foi possível. Ou melhor, foi quase uma tragédia. No momento em que Marie tenta perfurar um de seus dedos, ele, apesar da idade, demonstra uma habilidade gloriosa e louvável, retirando o pé e, com a extremidade oposta do cabo, derrubando nossa cavaleira. Por fim, tentou finalizá-la com a ponta de aço afiadíssima de sua arma, mas Marie desvia rapidamente.
— Antecipou bem – congratulou Luck.
— Ainda não viu nada, Ó Grande Velhinho dos Chiliques – rebateu Marie.
Marie começou a se movimentar para o lado direito, onde Luck não enxergava.
— Como é baixa! – bradou o guarda florestal. – Indo na escuridão de minha visão.
Porém ela não imaginava quão incontáveis foram os apertos de Luck. Diversos inimigos usaram este réprobo estratagema. Quando Marie, que se aproximava aos poucos, pensou que fugiu do âmbito de visão de Luck, partiu sem pensar, saltou e sentiu o cabo da lança batendo na sua ilharga esquerda. Voou como uma bola de tênis. Seu ganido foi um “ai” doloroso e estridente.
— Levante-se – ordenou Luck, impaciente. – Quero lhe mostrar o que acontece quando meu oponente caminha por vias de desigualdade.
Marie acorda provavelmente na casa de Luck. Estava bem escuro, ela se deitava sobre uma cama de urzes improvisada, mas não amarrada. Havia um pano com gelo em sua cabeça e um curativo com ervas medicinais em sua barriga. Ela tentou se levantar, contudo a dor era imensurável.
— Permaneça deitada – ordenou Luck, vindo claudicando. Ele trazia um jarro com suco de laranja e uma tigela com um delicioso ensopado. – Já faz um tempo que alguém conseguiu me ferir.
— Como me acertou naquela hora? – inquiriu Marie. – E por que está me ajudando?
— Começarei pela última. É bem simples: sei que é Marie, o Coração-bravio. Fui informado há dois anos sobre ti e seu alarmante fado. Matar a salvadora dos alruns? E quem me salvaria? Luta bem, e não de modo desigual, como havia mencionado. Saber a fraqueza do inimigo e explorá-la é básico num combate.
— Mesmo sabendo, parecia que realmente estava nervoso.
— E estava.
— Melhor não o confrontar sobre seu humor esquisito.
— E a respeito de como te acertei… Bem, só não estava a fim de receber o mesmo golpe que me cegou.
Ainda ficaram a conversar por algumas horas. Mas o silêncio de um dia cansativo veio abraçar o chalé. Luck disse que enviou uma águia-mensageira aos alruns, informando sua situação e que amanhã, talvez, viessem buscá-la. Após ter recebido o aviso, ficou sozinha a admirar o crepitar do fogo da chaminé. Ficou pensando em Paula. – Será que ela está bem? – pensou ela, mal sabendo que sua irmã dormia num arbusto para que, no dia seguinte, ganhasse uma guerra. Enfim, caiu no sono.
Marie sentia, no dia seguinte, o sol cálido em seu rosto e uma cutuca maldosa, onde havia recebido a pancada de Luck, bem na ilharga. Ela acordou praguejando, porém, ao ver o sombrio semblante de Dio, calou-se.
— Parece um pouco amargurada e iracunda por me ver – disse ele. – Mas também não está surpresa. Ótimo! Presumo que resolveu se aquecer com o velho Luck antes de começar a treinar comigo.
A imagem da separação cruel de sua irmã atravessou a mente de Marie e atingiu seu ódio. De súbito, sem nem pensar onde estaria sua espada, levantou-se para afrontá-lo, mas a dor em sua ilharga a fez encurvar e a se sentar no chão.
— Guarde essa raiva para mais tarde – advertiu Dio. – Os cavaleiros-médicos disseram que não quebrou nada. No entanto o repouso será necessário. Sendo assim, podemos nos acalmar e apreciar a comida do bom Luck. Certo, meu amigo?
— Com toda a certeza, Dio – respondeu Luck.
Marie estranhou toda aquela simpatia entre os dois e, principalmente, a alegria de Dio. Da última vez que o viu, estava envolvido num manto de aspereza e sem clemência. Teria enlouquecido?
— O quanto progrediu nesses três anos? – indagou ele, voltando-se para Marie. – Em que patente se encontra?
— Laiber – replicou Marie. Esta patente se equivale a cabo.
— Parece que está bem atrasada se compará-la a sua irmã.
— Como assim? Qual patente Paula executa?
— A de falk, claro. Enquanto você brinca com espadas, o Lírio-escarlate derruba batalhões inimigos.
— Paula!? Falk!? Em guerra!? Como é possível!?
— Ora, pergunte a ela quando se tornar balvar-de-exército.
Nesse ínterim, Marie soca chão para não acertar a cara de Dio.
— Quantos feitos pôde fazer em tão pouco tempo? – disse consigo mesma. – Passei muito tempo duelando. Preciso sair em missões o quanto antes.
— Portanto – concluiu Dio – começaremos seu treino em breve.
— O que um mais um treino irá me ajudar agora? – vociferou Marie. – Preciso de feitos.
— E no que acha que será baseado o seu treino? Dentro de três semanas irá reconquistar uma ilha comigo.
— Que ilha?
— Aqui está o veado assado e o vinho que Dio tanto aprecia – interrompeu Luck, trazendo a comida.
— Tomar vinho e cear no café da manhã? – perguntou Marie.
— Quantas perguntas! – exclamou Dio. – Acalme-se e desatine o belo banquete. Sobre nossa aventura vindoura, em breve tudo será esclarecido.
— Está bem. Mas não bebo.
— Trago-lhe um suco de frutas espremidas – disse Luck.
— Obrigada, Sr. Gentileza – murmurou Marie, com desdém. – Na frente do todo-poderoso, vira uma ovelha dócil.
A tal ilha que Dio citara semanas atrás tinha, além de uma localização estratégica, um solo fértil e minas ricas de joias e pedras preciosas. Por causa de uma negligência do bauče de outrora. Ele a deixou ser invadida pelos nérilins (os mesmos que Paula havia golpeado um de seus líderes). A missão de Marie era de todo simples em compreensão, mas de difícil execução.
Como disse, após algumas semanas (mais do que o planejado) da recuperação de Marie, Dio convocou uma tropa de dez mil cavaleiros para esta batalha árdua e perigosa. Eles embarcaram, com seus estandartes em mãos, em vinte nerks (navios com capacidade de até 600 pessoas). O país de Dio não era costeiro. Contudo havia longas estradas pavimentadas de blocos que levavam até o porto.
Voltando ao nerk, este era um navio suntuoso: mastros com um número relevante de velas enormes e triangulares, com o brasão do império estampado, um elmo com três tipos de plantas enlaçadas nele, simbolizando os principais fundamentos dos alruns: a lealdade, a justiça e a força.
Inspirai-nos, Tinél.
Não com palavras de fel,
Nem com artes de folguedo,
Nem tampouco o biltre medo.
Ante o imigo, a espada brame
E a vitória proclame.
Assim, a plaga perdida
Marie, além de enjoada, sente-se um pouco mais corajosa ao ouvir tal canção. Ela encosta na amurada para ver desvanecer, aos poucos, o porto, até que todo horizonte fosse composto por águas.
Nos dois primeiros dias, a corrente era quem conduzia o nerk. Sendo assim, não precisavam, por hora, torcer pelo advento do vento. A respeito do mantimento, só precisavam se preocupar com a comida, afinal, como o leitor deve se lembrar, a água do mar era de todo potável. Portanto a viagem decorria sem qualquer empecilho. Porém, logo a corrente que os favorecia começou a afastá-los de sua rota. Tiveram, então, que ancorar e esperar uma rajada de vento.
Foi-se um dia no puro tédio. Quando os ventos despertaram e inflaram as velas, houve um ânimo, a princípio. No entanto, no dia seguinte, novamente viam-se sem vento para singrar. De repente, Marie resolve pular do navio e nadar. A reação do convés foi incredulidade, mas resolveram tirar suas armaduras e imitar a jovem. Se houve ou não alguma intenção, Marie acabou despertando uma aluvião de urras e uma grande festa no mar. Os cavaleiros, decerto, estavam morrendo de calor. Parecia que estavam apreciando a coroação do mais cruel dos estios.
Passaram alguns minutos n’água e retornaram aos nerk. A partir de então, a jornada foi repleta de gáudio, até que o cavaleiro no mastro principal brada:
— Terra à vista.
Para se desfazer de uma futura estranheza, é necessário a explicação da área da ilha. Era nem tão grande, nem tão pequena. Pode ser um detalhe jocoso e insuficiente, mas provarei que não é. Não era tão grande para se considerar um país de uma população pouco volumosa, contudo, ao mesmo tempo, não era tão pequena para os nérilins a ocuparem em todos os seus termos. Por isso, quando ancoraram, não encontraram nenhum inimigo na costa. Assim, os alruns puderam desembarcar seus mantimentos e equipamentos sem quaisquer problemas.
Dio manda nove batedores para a floresta à frente deles. Não havia gigantescas montanhas na ilha, mas morros escarpados. Dizem que é devido a tantas escavações que houve ali. Havia seres muito especiais na ilha: os boilis. São excelentes forjadores. Possuem o tamanho de uma criança, olhos cor-de-rosa, focinho longo e cônico e orelhas grandes. Eles vestiam roupas de ferreiro e viviam numa mina no centro da ilha. Quem os vê diz que parecem um grande camundongo. Por fim, possuíam um mestre nobre, um unor-verde, Lambu, o Paciente.
— Nossa prioridade é encontrar os boilis e Lambu e assegurar-lhes nossa proteção, como as asas de um pássaro que encobre seus filhotes no ninho – anunciou Dio.
Tendo em mente a chegada das embarcações dos alruns às dez da manhã, o retorno dos batedores foi bem rápido, ao meio-dia. – Lambu foi levado cativo pelos nérilins – disse o batedor-mor.
— E os boilis? – interpelou Dio.
— Estão ali.
Dio não percebeu que o último dos batedores conduzia um grupo de boilis. Pareciam crianças numa excursão escolar, perdidos. Dio tenta se comunicar com eles, solenemente:
— Não se preocupeis. Logo iremos salvar Lambu e vos devolver a terra que foi feita de espólio.
Houve um empurra-empurra danado por parte dos boilis. Um deles foi simplesmente arrojado até o bauče. Ele ajeita sua calça e diz:
— Qui se lasque o véio! Cê vai arranjá uma chepa quentinha pra nois, o peitinho de pombo? Nois tamo morrendo de fome.
Os cavaleiros, com exceção de Marie, suaram frio para conter o riso. A garota, porém, caiu na gargalhada.
— Iremos fazer uma bela refeição antes de partirmos para a peleja – replicou Dio. – Podem comer conosco.
— E que cê fique longe – disse o boili. – Só consigu comê im paz quando num tem gente feia do meu lado. Meu Deus! Cê parece um urubu judiado.
Marie não se controla e torna a rir. Dio, indiferente e calmo, apenas levou os boilis ao local que iriam comer. Após a refeição, os cavaleiros ficam em sua formação, cem a menos, pois era necessário vigiar os boilis. Marie estava na vanguarda com Dio.
— Vi – disse ele a Marie –, há minutos, como estava despreocupada. Sendo assim, posso lhe ensinar um exemplo de líder, ser o primeiro a chegar e o último a bater em retirada.
A face risonha de Marie, de súbito, mudou para pavor. À medida que caminhavam para os recantos da floresta, a garota segurava com muita força a bainha da espada com a mão direita. O ambiente não ajudava a se sentir mais tranquila. Não havia um passo sem afundar na lama ou no lodo. A mata era espessa, ruidosa e com um cheiro desagradável. Ademais, ainda havia um agravante: não podia tirar o elmo ou a cota de malha pra refrescar do calor. Por um momento ela achou que sua pele derreteria.
Após algumas horas caminhando, subindo e descendo naquela tortura de lugar, Marie resolve papear com Dio, a fim de se distrair um pouco. Não tinha, de fato, amizade, nem sequer simpatia entre os dois. Porém, sabendo ela que estaria atada ao desgosto da companhia até que se tornasse balvar-de-exército, Dio apagou, por breves minutos, a tocha de seu orgulho.
— Posso lhe perguntar uma coisa? – inquiriu ela.
— Questione sem escrúpulos – respondeu Dio. – E também quero lhe perguntar algo que me faz ter o sangue a fervilhar. Contudo, você primeiro.
— Por que estamos contornando a mina dos boilis? Não há inimigos por lá? Podemos, facilmente, encurralá-los.
— Seu pensamento está sendo muito impulsivo. Claro, venceríamos, além de não haver tantos homens armados na mina, estariam em número reduzido. Há, entretanto, regras de vantagem que devem ser observadas à risca.
“A primeira está do nosso lado: o ataque surpresa. Se atacássemos a mina, alguns deles fugiriam e avisariam o resto que está no acampamento. Por conseguinte, travaríamos uma batalha mais sangrenta.
“E a segunda está relacionada à vantagem territorial do nosso adversário. Um exemplo: reconheço a fraqueza marítima dos alruns, isto é, sendo franco, nossa iminente derrota sobre as águas. Em suma, devemos abrigá-los em terra para combatê-los. Com os nérilins é o mesmo conceito. Conhecem a mina dos boilis mais do que nós. Enfim, não seria complicado de armar uma armadilha lá dentro.”
Aterrada pela resposta detalhada de Dio, um ferrolho de soturnez tranca sua boca. De fato, ela se tornou um espadachim de mui respeito, mas ainda era displicente com suas decisões.
— Entendi – respondeu Marie, baixinho. – E o que queria me perguntar?
— Por que não bate continência pra mim e não me chama de bauče?
Certamente, Marie pensou em uma resposta rude e ríspida, mas se deteve. O real motivo de não o saudar militarmente dançava em seu olhar: detestava-o.
— Já posso imaginar qual seja o real motivo – disse Dio, após não receber uma resposta, mas uma careta. – Mas não há de se preocupar, pois quando receber a veia que se conecta ao coração do exército, baterá continência para mim.
— Então diz que não sou uma cavaleira? – indagou Marie.
— O maior que não possui o sangue de cavaleiro é menor do que o pequeno que o tem? Não é pela linhagem familiar que nos tornamos parentes, mas pelos nossos pensamentos, crenças, choros, batalhas e arrependimentos.
Os alruns caminhavam vagarosamente pela tarde. A informação que obtiveram dos batedores era que em um vale, quase no coração da ilha, estava localizado o acampamento dos nérilins. O plano de Dio era audacioso e simples: descer a toda velocidade morro abaixo e atacá-los ao amanhecer. Teriam uma vantagem enorme se tivessem arqueiros. Entretanto, como o leitor deve imaginar o porquê, Dio não quis levá-los.
Sob a noite branda, a qual antecede o amanhecer sangrento, Marie pôde descansar. Ela estava ansiosa e nervosa demais para isso. Se esquadrinhássemos o átrio de seus sentimentos, encontraríamos altares dedicados ao medo. Todavia a garota tenta descansar ao redor daqueles cavaleiros, cuja aparência era lúgubre dos mais novos e alarmante dos veteranos.
Marie desperta, ainda escuro, porém com os laivos do amanhecer, com os ruídos dos cavaleiros se aprontando para a luta. Dio fez com que suas tropas se dividissem em mil alruns cada para descerem a encosta íngreme sem estardalhaço. Ele obriga Marie a levar consigo uma trompa até a beira da encosta. Ao chegarem lá, vendo o acampamento do nérilins acolá embaixo, Dio ordena a garota:
— Toque-a. É a primeira guerra que anunciará.
Marie não teve coragem, a princípio, de tocar a trompa. Virou-se esperando ver os semblantes raivosos e sem esperança dos cavaleiros, mas não é o que vê. Do contrário, eles emanavam bravura e coragem que nunca tinha visto outrora. Logo, isto invadiu seus pulmões e ela tocou a trompa.
Vários nérilins acordam pasmados pelo barulho dos alruns descendo a encosta a toda velocidade. Dio e Marie correm à frente. Alguns nérilins, sem perder tempo, buscam suas lanças-foices, mas são mortos e suas tendas derrubadas. Em questão de minutos, os alruns vinham de mil a mil, como uma vaga furiosa. Milhares de nérilins são liquidados pelo ataque surpresa. Todavia os seis mil restantes (pois eram oito mil) estavam equipados e prontos para se defenderem. O avanço sem parar foi parado. Marie e Dio deparam com dois fortes. Essa estava sendo pressionada. Por mais que houvesse lutado com Luck, ainda não aprendera a duelar com alguém que portava lança. Com o guarda florestal, conseguiu acertá-lo na coxa, mas foi nocauteada em seguida. Se isso se repetisse ali, morreria de certo.
— Veja-me – disse Dio.
Dio parecia estar esperando que seu inimigo o empalasse com sua lança. Ele o faz. Logo Marie havia percebido o estratagema que eu diria ser um tanto perigoso. Dio, além de fazer sua espada retinir na lança-foice, a empurra, com a própria lâmina, do lado oposto que estava a foice, para longe, criando a brecha para atacar o nérilim. Este não resiste ao golpe fatal do bauče e perece. A cada corte que Dio deferia, aquecia-se gradualmente sua espada, devido ao contato misterioso que tivera com Foug. Infelizmente, não explicarei como funciona o fogo dos dragões nesta história.
Marie recua ao ver de relance a manobra complicadíssima de Dio. Então ela tomou todo alento de coragem que lhe restara e avançou para cima do inimigo. O crápula não teve chance alguma quando Marie empurrou, com a espada da mão direita, sua lança-foice e, com a da esquerda, empalou-o na barriga.
A partir disso, as hostes dos nérilins sucumbiam ao se encontrarem com o Coração-bravio. Eles foram totalmente fulminados pelos alruns. Quando sobrou duzentos deles, houve redenção. Vitória dos alruns.
Encontrar Lambu não foi muito difícil. Era o único velhinho amarrado na tenda principal, cheia de pompa.
— Salve, nobre Dio! – exclamou Lambu. – Minha vida lhe pertence por me salvar das mãos daqueles devassos.
— Não há do que agradecer – replicou o bauče. – Peço desculpas pela enorme demora. Poderíamos ter navegado algumas semanas atrás, mas tivemos um contratempo inesperado.
Marie compreendeu que o tal contratempo se referia a ela. Ela estava, entretanto, pasmada demais com o próprio Dio. Foi durante a batalha que a garota pôde, enfim, desvendar o enigma por trás do epíteto Nobre, pois ele luta como um verdadeiro fidalgo. Além disso, não importa quem fosse, quando via um aliado em situação perniciosa, não hesitava em ir ajudá-lo. Foi então que Marie enxergou a benevolência do bauče, e assim semeou algo que ela achava ser impossível, respeito por Dio.
— E aqueles idiotas dos boilis? – indagou Lambu.
— Estão todos a salvo – respondeu Dio. – Estavam escondidos esse tempo todo.
— Para isso ficam mais inteligentes.
Lambu era um unor da ordem verde bem tradicional: resmungão, apreciador de armas preenchidas com os segredos da magia e amante de joias raras. Ele já estava bastante velho, com a barba chegando até o joelho. Tinhas bochechas encovadas, nariz pontudo e um olhar ríspido. Mas, desde que não falasse quaisquer asneiras, era um sujeito simpático.
— Quem é essa? – indagou Lambu, fitando Marie.
— Minha aprendiz – disse Dio, sarcástico.
— Você? Com alunos? Que interessante! E ela não usa um escudo, mas duas espadas. Nunca havia visto isto antes.
— Pelo que fui informado, ela não sabia usar um escudo. Assim, preferiu trocá-lo por outra espada.
— É preciso um coração bravio para se isentar de qualquer defesa.
— Obrigado, senhor – agradeceu, Marie, a Lambu.
— Não me agradeça ainda. Dio, leve-me para aqueles sem miolos dos boilis.
— Claro. Soldados, vamos voltar para festejar nossa vitória – gritou Dio.
Ao retornarem para a baía (fazendo uma parada na mina dos boilis, na qual os nérilins se renderam rapidamente), encontraram os boilis cochilando ainda à luz do dia.
— Seus preguiçosos! – berrou Lamdu. – Vossa terra entra em estado guerra e vocês dormem?
— Ora, o véio só sabe lascar nosso sono – respondeu um dos boilis.
— Ripdiq – esse era o nome do boili –, seu falastrão! Tenho uma tarefa para o senhor.
— Mas mal vorto e qué dá ordem ni mim. Vou arruma um servicinho pro sinhor também.
— O que disse, insolente?
— Que tenho que fazer?
— Faça-me duas espadas extremamente iguais, gêmeas, e não se detenha em gastar recursos.
— Pra já, Vossa Alteza.
— Esse Ripdiq está ficando cada vez mais abusado.
Ripdiq reuniu-se com outros quatro boilis, que resmungaram até o final daquela tarde por causa disso. Antes de irem para as minas – lugar onde fabricavam as armas –, foram interpelar Marie a respeito de um capricho.
— O muié da selva – disse Ripdiq, pois Marie, após a batalha, estava em um estado hórrido e cheirando mal –, cê vai quere que nóis dê um talento? É puro refino!
— O quê? – interpelou Marie.
— Ripdiq lhe questiona – explicou Lamdu – se deseja algum tipo de inscrição nas espadas. Por exemplo, desenhos ou letras.
— Entendi. Vou querer uma com a letra M e a outra com a P, por obséquio.
— Só isso!? – exclamou Ripdiq. – Que sem classe!
— Impertinente! Crápula! Cão prolixo! – xingou Lamdu. – Edificaste ingratidão na salvação?
Enquanto Lamdu, enraivecido, apregoa diversos insultos ao insolente Ripdiq, este, extirpado de atenção, sumiu-se entre a moita espessa e as árvores, em direção à mina dos boilis. Cerca três horas depois (bem rápido), Ripdiq volta com as espadas-gêmeas. As lâminas eram de dois gumes. Elas eram tão afiadas que podiam cortar a alma do corpo, intelecto da razão, a noite das estrelas. Ainda sobre elas, labaredas em baixo relevo foram desenhadas. No cabo de cada uma havia joias de ouro incrustadas. Também havia um M em uma espada, e um P na outra. Ripdiq as entrega para Marie.
— Melhor tu não quebra, em – disse ele.
— Não irei – replicou Marie. – Sou cuidadosa.
Dio retumbou uma desbravadora risada.
— Pode se parecer com sua irmã na aparência – disse ele –, mas não no cuidado.
— Bom bauče – retrucou Marie, numa voz plácida –, acho que sou realmente descuidada no agir e no pensar. – Sendo assim, poderia me dar a lição devida num duelo.
— Essa doçura nas suas palavras me lembra o veneno de uma serpente.
Marie, sem aviso, precipita-se contra o líder dos alruns. O que ocorreu, porém, foi uma verdadeira aula do grande rei. Mesmo sem seu escudo, ele agarra o braço direito de Marie com o seu esquerdo, imobilizando-o. Em seguida, enterrou a outra espada de Marie na areia com a sua própria. Por fim, talhou a têmpora da garota, o suficiente para deixá-la perpetuamente com uma crível cicatriz.
— Esta imprudência conduziu-me a uma grande ideia – disse ele enquanto os médicos alrunianos cuidavam da ferida de Marie. – Esse será o seu teste final, ou seja, para se tornar uma balvar-de-exército, terá de me derrotar num duelo. Claro, deve ser uma balvar-de-divisão antes de tudo.
Todos os cavaleiros dirigem à Marie olhares aturdidos e de pena. Vencer o grande Nobre? Impossível! Marie engoliu com amargura a péssima nova.
Os meses seguintes foram de batalhas e obsessão para Marie. Batalhas tais que quando repousava de uma, já partia para outra, todas contra os nérilins. Se Paula passou a ser o temor dos ladrões, Marie foi o dos nérilins. Não importava se estava em desvantagem, lutava até o derradeiro cair e nunca fraquejava. Mas uma cobiça tinha em mente, Dio. Entretanto não importava o quanto melhorasse e quão habilidosa se tornava, somente perdia. Nos primeiros anos, isso não a chateava. Porém, à medida que se passava o tempo, começou a virar um tormento para ela. Foram-se sete anos desde a última vez que vira Paula. Sua patente equivalente era de balvar-de-divisão. Além de Bela, ela conheceu Chilalel, um harake refugiado. Este tocava uma flauta. Mas, como sabemos, Marie não era capaz de compreendê-lo. Todavia, sua companhia, em um bosque que usufruía para treinar, era de toda bem-vinda.
Marie:
Chilalel:
Marie:
Chilalel:
Marie:
Chilalel:
Marie:
Chilalel:
Marie:
Chilalel:
Marie joga uma das espadas no chão para segurar o papel com a explicação de Chilalel e tenta decifrar o que o harake lhe escrevera enquanto anda perto dele.
— A melodia é o conjunto de sons dispostos em ordem sucessiva – dizia ela, consigo. – Bem, se não me engano, as notas musicais são Dó, Ré, Mi… Fé, Lua, Tic… não, não era assim. Talvez seja… melhor, vou usar três golpes de espada no lugar das notas. Serão: empalar, corte diagonal, do ombro direito para cintura, e corte vertical, da cabeça para a cintura.
“A primeira, melodia. Seria a ordem que efetua golpes. Por exemplo: empalar, empalar, corte vertical e corte diagonal – enquanto ela dizia os golpes, simulava-os.
“A segunda, harmonia. Se resume a dar dois golpes ao mesmo tempo, já que possuo somente duas espadas. Imaginando a outra espada em minha mão, fica: empalar e empalar.
“Estou começando a entender.
“O terceiro, contraponto. Se resume ao conjunto de melodias dispostas em ordem simultânea. Portanto golpes com melodia e harmonia. Empalar, empalar, corte vertical e corte vertical e corte diagonal.
“Por último, ritmo. As notas, neste caso, os golpes, discorrendo com período e momento. Não aplicar uma empalada sem antes um corte diagonal com ímpeto e velocidade. Então, corte diagonal, corte vertical e corte vertical, corte vertical (mão direita) e empalada (mão esquerda).”
Naquele momento em diante, Marie desferiu cortes tão sincronizados quanto uma dança. Ela também teve sua mente para outra coisa.
— Em cada duelo – disse ela –, cada espadachim tem a sua própria música, com seu próprio ritmo. Um pianista pode levar seu público às lágrimas na primeira vez, mas não nas seguintes. Se um duelista entende o ritmo do outro, adequando-se a ele, certamente terá uma grande vantagem.
— Excelente dedução, apesar da pesquisa agreste – disse uma voz com o som da flauta. Era Chilalel. Marie, agora, podia compreendê-lo.
Depois daquela conversa que Marie tivera com Chilalel, ela passou a esquadrinhar com afinco os duelos de Dio e os confrontos que tratava nas batalhas. De fato, o bauče tinha movimentos e ritmos notáveis. Contudo, o que realmente se destacava era a forma como ele analisava os ataques do adversário: fitando os olhos. É comum olharmos para os pés e braços quando duelamos, veja uma luta esgrima quando tiver a oportunidade. – Antecipa minhas investidas porque olho aonde vou atacar – pensou Marie. – Portanto minhas investidas ficam previsíveis, e ele pode facilmente se adequar a elas.
— A ignorância fazia minha senda parecer mais fácil – continuou Marie, consigo. – Meus olhos não haviam sido abertos para tal verdade, que ele está realmente acima de qualquer outro cavaleiro. Mas não posso, e nem pretendo, recuar agora. Serei imbuída pela força que arvorejou na promessa que fiz a minha irmã.
Marie treinou impetuosamente por meses, confrontando todos os que via pela frente, até mesmo os que já vencera, tudo para ganhar a mesma habilidade que Dio possuía.
Enfim, o tão aguardado dia chegou, afinal. Era o comecinho de uma tarde ensolarada e branda. Os cavaleiros estavam dispostos no pátio da corte, onde, por vezes, designavam-se os duelos de maior magnificência. No entanto, em todas as ocasiões que Dio enfrentava Marie, ninguém queria conversar ou praticar. O lugar virava uma arena, mas sem alarido. Não se ouvia nenhum respirar, e sim o retinir das espadas. Não havia árvores para sombrear o espetáculo. A relva (pois se trava de uma parte específica do pátio, onde não era pavimentado) já estava seca do orvalho. Dio e Marie se apresentam. O bauče bate continência e, pela primeira vez, ela também o faz.
O duelo começa.
Marie fita, sem pestanejar, os olhos do bauče. De súbito, corre em direção a Dio. Os basbaques dos espectadores ficaram aturdidos com tamanha leviandade. A garota se aproxima. Dio, pela primeira vez, encontra-se confuso. – Entenderia se fosse sete anos atrás – pensou ele –, mas depois de tantas experiências, ainda banaliza a espada que empunha? – O inédito floresceu naquele pátio. Dio recua com um talho no rosto, na bochecha.
— Queria a vergonha na têmpora – disse Marie, decepcionada.
Dio não era um tolo. Ele, num átimo, entendeu que a garota descobrira como duelava. Então, com uma ordem carregada de um espírito indomável de ira, pois seu amor-próprio tinha um corte junto a sua bochecha, Dio diz ao seu escudeiro:
— Trazei-me o meu escudo.
O escudeiro, trépido como vara verde, trouxe seu escudo em segundos, aos tropicões.
— Parece que entendeu o meu ritmo de luta – disse Dio, volvendo seu braço no escudo. – Belíssimo feito! Porém, decerto, hás de defender agora.
Como um terrível leão, Dio se precipita em cima de sua presa.
Em cima, embaixo, pés para frente, pés para trás, retinir de espadas e escudo. Um duelo de perder o fôlego da alma. Havia equidade entre o desafiado e a desafiadora. Porém a vantagem começou a pesar para o lado de Dio, pois sua lâmina inflamava-se e ardia como uma brasa de fogo. Ela não poderia nem se esquivar por um triz, pois o calor que a espada emanava era demasiado forte. O coração dela estava descompassado. Não teve tempo para pensar, pois o bauče a pressionava. Então Marie teve de tomar distância. Em resposta, Dio corre em volta de Marie, arrastando a ponta de sua lâmina na relva. Quando ela percebeu o estratagema de Dio, estava no meio do círculo de fogo. O escudo negro do bauče fulgentou graças às chamas.
— Parece o nascimento de uma estrela que antes fazia parte do corpo escuro do céu – disse ele, referindo-se ao escudo. – Mas não foi meu escudo que toldou sua coragem. Desdito seja o que recua num prélio. Se a vanguarda fugir, as hostes também se amedrontam.
Não havia espaço para apupos ou gritos de apoio, pois a multidão que assistia ao épico espetáculo teve entusiasmo esfriado, porquanto o fogo subira demais, impossibilitando-os de verem alguma coisa.
Retornam à luta.
Dio volta a pressionar Marie. Ela desvia o mais longe possível dos cortes, e os que não podia, interceptava-os com as próprias espadas. A densa fumaça que se formara sufocava a garota. Por mais surpreendente que pareça, o bauče estava apenas empolgado, mas não lutava a sério. E Marie sabia disso. Talvez render-se-ia se não estivesse determinada e tão sedenta por vitória.
Encurralada, Marie se desvencilha de Dio e finge outra fuga, porém, quando o bauče baixou o escudo e a espada flamejante para correr atrás dela, esta fez um giro rápido, soltando a espada da mão esquerda para agarrar o cabo da de Dio, queimando-se. Bastava deitar a ponta da outra espada na garganta dele que venceria. Todavia, ele, antes da lâmina de Marie começar a subir, deslocou seu corpo para a direita, chutou o pé de apoio de Marie, fazendo com que ela perdesse a força onde se prendia a Dio, recuperou toda a posse de sua espada e a apontou para Marie. Fim do duelo.
— Parabenizo-o, Coração-bravio – disse Dio. – Queimou a própria mão para tentar me liquidar.
Marie ergue-se, brava e desapontada consigo mesma, em lágrimas, e saúda o seu líder, mas sem desdém como fazia, com respeito.
Ouviu-se os cavaleiros jogando água para abaixar o fogo. Quando o fizeram, os médicos vieram enfaixar a mão de Marie, cuja queimadura fora de primeiro grau. Então Dio brada:
— Comemoraremos, queridos amigos, a minha vitória e… – Ele faz uma pequena pausa – e a ela – apontou para Marie –, sua nova balvar-de-exército.
Marie, estupefata, fitou Dio, sem entender. Este retribuiu-lhe um sorriso amigável. Ela baixa a cabeça e, finalmente, depois de sete anos, chorou de alegria.
A tarde e a noite foram sem par. Ali, onde ocorreu a duelo, os cavaleiros discutiam e relembravam como tudo acontecera enquanto comiam e bebiam. Marie ficou o tempo todo quieta e pensativa. Ela estava triste por ter perdido, mas animada para rever sua irmã.
Ao final do oitavo ano da separação abrupta, Marie se prepara para se reencontrar com Paula. Dio, que, por sinal, estava contentíssimo de passar alguns anos com seus velhos companheiros de divisão, dissera para que o encontrasse no estábulo. Como o bauče não levaria um cortejo, mas somente Marie, selou Bela e seu fiel cavalo, Lamas. Assim que ela chegou esbaforida, saíram trotando a caminho do palácio na central. Cavalgaram cerca de duas horas. Marie, apeando-se de Bela, vê defronte o último lugar que viu sua irmã. Os prantos ensurdecedores tamborilavam em sua mente. Sua mão estava tiritando de ansiedade. Ela se direciona à porta principal do suntuoso edifício. Quando esta sobe a escadaria que dava acesso ao portal, sentiu, vindo do lado esquerdo, algo zunindo perto do seu pescoço. Então ela começa a sentir uma lufada de vento fresco nessa região do corpo, o que era, de fato, estranho. Nesses oito anos, Marie não cortou seu cabelo. Estava, agora, longo e levemente encaracolado, idêntico ao de Paula. Ou melhor, estaria, se uma boa parte dele não estivesse no chão. Ela olha para a direita e vê, cravada na parede, uma flecha. Quando se vira para o outro lado, saindo de uma penumbra produzida por um toldo, Paula brada:
— Se tivesse visto essa cicatriz, não teria atirado. A gente estava muito parecida. Desculpa. – E era verdade. Se Marie ainda estivesse com o cabelo longo e sem a cicatriz, e Paula ainda fosse uma garota tímida, ninguém saberia quem era quem. E algo a ser admirado é o reconhecimento da cicatriz naquela distância. Era claro o quanto sua visão havia se apurado por ter recebido o treinamento dos arqueiros.
O estampido de alegria provida de Marie foi tamanho que, mesmo em segundos, os alruns já recebiam a notícia do reencontro.
— Paula! – bradou ela.
Sem pensarem duas vezes, correram para se abraçar com efusão fraternal. Paula tentava recompor a irmã, porém esta soluçava tanto que mal conseguia falar alguma coisa. Marie via pasmada a mulher que Paula havia se tornado. Mas não em detalhes insignificantes, como altura ou peso, contudo a expressão que carregava no semblante. O medo virou coragem, a tristeza em júbilo, o estresse em paz. Sua timidez havia desvanecido.
— Senhor bauče – saudou Paula, quando ele se aproximou. – A milady Ardilis mandou-lhe lembranças.
— Olá, Paula – replicou ele. – Ardilis? Por obséquio, diga-me que ela não atiçou outra fera selvagem ao atirar em seu traseiro.
— Não, senhor. Foi difícil convencê-la que essa era uma atitude imatura e sem lógica. Aliás, principiei a nossa estimada reunião. Os outros balvares-de-exército estão nos esperando.
Pôde, sem sombra de dúvida, parecer um diálogo simples, mas não para Marie. Ela sempre via sua irmã cosida em uma parede durante as conversas que presenciavam juntas, ou seja, isso era algo deslumbrante.
À medida que se dirigiam à sala principal (aquela onde conheceram Dio ainda pequenas), as irmãs contavam uma para a outra o que ocorrera em suas vidas nesses anos de separação. Não entrarei nas minudências de seus enredos, pois Paula ainda gostava mais de ouvir, e Marie de exagerar. Com efeito, Paula enchia-se de terror de impressionismo. Dio, contudo, de tempo em tempo, dizia:
— Acho que não foi bem assim.
Chegaram, enfim, à sala principal, e outra jubilosa surpresa esperava por Marie, Kinorel e Tsitarel. Os dois sentavam-se perto da grande parede de vidro, conversando a modo dos harakes, com música. Todavia, cessaram sua música (ou diálogo) e foram abraçar Marie. Ela não pôde, entretanto, dar total atenção aos seus velhos amigos antes de notar os outros balvares-de-exército. Eram oito homens e duas mulheres, quatro com as gêmeas. Tinham por volta dos 40 a 60 anos de idade. A maioria deles se juntou à salva de palmas para sua nova companheira, Marie. Havia, todavia, os que desprezavam, como fora com Paula, tal decisão.
— Senhora – levantou-se e disse Firin, balvar-de-exército, formado na divisão marinha –, com o devido respeito, não acha que seja um desvario termos duas jovens como balvares-de-exército, ainda mais sendo representantes de duas grandes divisões, a espada e a flecha? Sei que é lícito, mas a lei natural exige maturidade para a liderança.
— De forma alguma – replicou Dio. – De fato, a liderança vem com o desenvolvimento. Todavia, não se pode cotejar o tempo de cada um e o processo de evolução. Os apaixonados e prudentes não esperam a chuva cessar, ou o mar se acalmar, ou o orvalho na relva se secar, eles quebram a lei da recomendação e cometem o delito de ir além. Assim são as gêmeas.
— Paula é inquestionavelmente a segunda melhor arqueira de nossa nação e a mais inteligente. Da mesma maneira é com Marie, sendo o segundo melhor espadachim e com uma alma inebriada de bravura.
Dio apregoou a respeito das gêmeas sem palavras pérfidas ou torpes. Então os balvares-de-exército ficaram atônitos que, embora conhecessem a credibilidade dos feitos das duas, não engoliram com facilidade a juventude. Confiaram, no entanto, em seu bauče.
Um senhor com as costas cansadas e mão aduncas, porém com uma história de honra, pôs-se de pé e declarou:
— Tomo partido das gêmeas. Pelo tempo que Paula passou comigo, na divisão de inteligência, e entre nós aqui, deposito minha confiança e vida nela.
— Tens o meu consentimento, Dair – disse Teir, da divisão dos batedores. – Na ocasião em que lutamos contra os Nérilins, na ilha dos boilis e em seu próprio território, pude apreciar quão valentes e companheiras elas são.
— O ar de coragem pode ser respirado tanto por jovens quanto por senhores – retrucou Feo, da divisão médica. Essa bem sabia o que ingênuos erros poderiam causar.
Os balvares-de-exército irrompem uma longa discussão. Mas logo Dio tornou a falar:
— Não temos tempo a perder com vossas aprovações e desacordos. Paula, além de ser a melhor em elaborar estratagemas, como disse, só está atrás de Ardilis no arco e flecha. E Marie, posso afirmar sem escrúpulos, é a melhor na arte da espada que já enfrentei. Elas, querendo ou não, estão em pé de igualdade com os senhores. Por fim, precisamos delas para enfrentar Zalqui.
Ao citar esse terrível nome, a sala ficou em silêncio.
— Senhor – disse Marie –, por ter passado meus últimos anos no campo de batalha e treinando contigo, não tomei total conhecimento deste mal que tanto os assola. – Ela faz uma pausa brusca e torna: – E, pelo que vejo, pronunciar tal nome faz com que os balvares se amedrontem. O pouco que sei veio dos harakes e dos vergs, mas não de vós.
— Um persim – replicou Dio – é o nome da raça deles. Possuem uma estatura incomum, nenhum deles têm menos de dois metros de altura em sua maioridade. Sua tez é azul-cinzenta. Seus olhos e o topo de suas cabeças queimam em brasas de fogo, servindo como sinal vital. Todavia, apesar do aspecto lúgubre, sempre, desde o começo de sua existência, foram um povo pacífico.
“Foi Zalqui o autor do ódio. Ele demorou muito para tomar o poder e a confiança dos persins. Um só povo, língua, cultura e pensamento, dizia ele. Vemos ele como mais uma criança a idealizar um mundo perfeito.
“Tentei detê-lo anos atrás, mas fui derrotado. Por sorte, ainda estou vivo. Quase fomos totalmente aniquilados. Na época, fazia ronda por aquelas terras, ou seja, não estava com todas as minhas tropas. E mesmo que estivesse, nós estaríamos em desvantagem.”
— Mas somente foram acrescentadas minha irmã e eu – disse Marie. – E fala como isso mudasse tudo.
— E graças a vocês – continua Dio – temos anaquins e vergs do nosso lado. Pela mensagem que recebi há oito anos, ajudaram a evitar uma guerra civil. E estar em dívida não faz parte da conduta de um mercenário. Ademais, a alcateia de Strolf daria qualquer coisa por vossas vidas.
Marie, assim como Paula, já era parte dos alruns. Não estava com medo, mas se preocupava com eles.
O concílio terminou com os balvares colocando sua confiança nas gêmeas. Assim que esvaziou o salão, sobraram apenas as irmãs, os harakes e o bauče. Este lembrou-se da promessa que fizera as duas, as armaduras. Entregou-as com contentamento.
Em relação às longas horas de planejamento para a guerra vindoura, o leitor saberá todos os pormenores ao decorrer dela. Mas posso informar quando ela começará: em dois meses.
Se estiver se perguntando por que demorou anos para tudo isso acontecer, é devido à grande extensão do continente Pérer, em que ocorre nossa história. São sete ao todo. Pérer é o terceiro maior. Ademais, não existe somente um povo para dar resistência aos persins.
Após a reunião que Marie foi anunciada como balvar-de-exército, as gêmeas e os harakes puderam desfrutar de um período de sossego. Mas não demorou muito para as irmãs voltarem a brigar. Parece que as rixas de irmãos crescem junto com eles.
Bem, a bonança terminou e a última tempestade se aproximava.
Se era verão, ou primavera, ou outono, ou inverno, isto pouco importa, porque a guerra torna o ambiente turbado, tristonho e cinzento. Gritos, sangue quente sendo jorrado, cavalos trotando, fogo, destruição, essa quentura das ações que são providas do coração gélido do homem.
Semelhantemente era com os alruns. O silêncio que reinava no ar antecedia o estrondo de raiva que mal conheciam. No dia que partiam, os cavaleiros despediam-se de suas famílias, pedindo-lhes a proteção e o conforto de Tinél (a mesma mencionada na canção do capítulo anterior).
Paula e Marie, especialmente Paula, fizeram diversas amizades em cada região que passaram os anos de treinamento. Portanto, alguns dias antes da peleja, cada uma foi conversar – talvez pela última vez – com seus compatriotas.
O pior de tudo foi se desvencilharem de Kinorel e Tsitarel outra vez. Os harakes eram bons amigos e companheiros, mas, acima de tudo, eram músicos, e não guerreiros. Sendo assim, tiveram que ficar no país dos alruns.
Enfim as milhares de tropas de Dio deixam sua sacra cidadela sob vivas e gritos de boa sorte. Não era difícil saber quando se saiu das terras dos alruns, devido à grande muralha que a ourelava. O exército estava dividido em perfeita ordem: os que montavam cavalos iam à frente. Em seguida, os que usavam lança e escudo, apenas lança, espada e escudo, arqueiros e médicos, respectivamente. Os batedores puseram-se a ir dois dias antes.
À medida que avançavam sobre os ermos, a paisagem ao redor mudava constantemente. Viram vales com carvalhos, com macieiras, com laranjeiras, com relvas ou, às vezes, urzes para jazerem a cabeça durante a noite. Em verdade, uma plaga boa para preservarem o mantimento e descansarem. Todavia, a natureza não é serva dos conflitos ou, para ser mais exato, dos interesses de povos e nações. Desta forma, os alruns enfrentaram cumes de montes desertos, e frios, e sem cavernas, vales sem vegetação e vida, o natural que, para os desprovidos de razão, podem achar que significasse algum tipo de agouro ou maldição do etéreo. Não se rendiam, entretanto, os alruns a tais fábulas. Eram valentes, e não parvos covardes. Não paravam para murmurar ou fazer adivinhas sobre seu futuro desconhecido, mas seguiam em frente.
Agora vinham descendo por uma encosta íngreme que dava para um riacho. Cruzaram-no a vala e vislumbraram uma floresta que depois acamparam para a tão esperada batalha. Os batedores disseram que estavam a um dia para travarem a guerra com os persins.
As gêmeas tinham por costume dormirem na mesma tenda durante a noite. Havia um estandarte hasteado em cada uma das tendas, com o símbolo dos alruns. As duas estavam deitadas uma ao lado da outra, conversando em voz baixa.
— Será amanhã – disse Marie.
— Pois é – replicou Paula.
— A ignorância cegava minha razão. Na minha primeira missão com Dio, na ilha dos boilis, tive o desfortuno de ver um dos meus companheiros perecer. Não o conhecia pessoalmente, mas percebia o quanto sorria, brincava com seus camaradas, a dor que desatinava ao sentir falta da família. Porém sua história fora interrompida por um nérilim, cujo fado tornou-se igual momentos seguidos. Enfim, um dia beijava a testa de sua filha, no outro a terra o engoliu.
Marie sentia uma dor na alma e refletia um pouco antes de continuar.
— O pior de tudo – tornou ela – é saber que seus amigos e sua família não poderão curar essa ferida. E do que adiantou ele ter lutado como um cavaleiro? Lembra do que o vovô nos ensinou? Nunca haverá mais lembrança do sábio do que do tolo, porquanto de tudo nos dias futuros total esquecimento haverá. E como morre o sábio, assim morre o tolo! Havia voltado meu coração para as minhas ambições: ser para sempre lembrada e conquistar todo o tipo de tesouro. Mas, depois de uma vida penosa, nada irá comigo no fim. E uma geração vai e outra vem. Quando a minha terminar, meu nome será esquecido. Portanto compreendo o que realmente vale a pena: regozijar de meus frutos com quem amo.
— Então – interrompeu Paula – por que lutas?
— Para proteger e conservar este direito natural que ninguém pode deturpar. Zalqui vem a eliminar isso. E meu dever é, como cavaleiro, balvar-de-exército, o Coração-bravio, fazer justiça.
Paula pôde sentir, pelas palavras de Marie, uma coragem e altruísmo imensuráveis. A caçula era mais inteligente e prudente, mas a bravura da mais velha a convencera de ir atrás dela aonde quer que fosse.
Amanhece.
Os cavaleiros partem para o lugar cuja terra servirá de sepulcro ou alvoreará o pendão da vitória. Seus passos fazem-se ouvir até nas plagas mais longínquas. Com efeito, o solo entra em tremor. À esquerda, bem longe, montes cinzentos devido às densas neblinas. À direita, um pouco afastada das tropas, uma floresta de abetos. No céu, as nuvens eram como embriões, pequenas e em desenvolvimento, talvez em sua maturidade sejam uma forte tempestade. O sol se posicionava no canto direito do grande retângulo azul. À frente, sem relva, ou animais, ou flores, apenas pó e pedras. Atrás, por fim, um pouco distante, uma encosta íngreme que dava acesso à floresta de faias. O pó e as pedras formavam uma planície extensa.
No topo da encosta íngreme, um excelente lugar estratégico, estavam plantados a legião de arqueiros (junto dos médicos que se escondiam na sombra das faias) e todo resto estava lá embaixo. Eles estavam na mesma formação da qual saíram do país dos alruns.
Agora vinha uma das piores partes, esperar. Era um tormento sem par, que pungia a alma. O suor frio inundou os cavaleiros. Era como um barco ancorado no mar de bonança, mas avistava uma terrível tempestade, e ela chegou ao barco dos alruns, afinal. De longe, viu-se surgir milhares de pontos amarelos, devido à chama que queimava, sem consumá-los, na cabeça dos persins com sua cavalaria. No firmamento, uma nuvem cinzenta se aproximava. No começo parecia insetos, mas eram os faldor.
Na visão de Paula, estava tudo mais claro. Ela pensou por muito tempo que o exército de Dio era o maior que já vira. Perdoai, Tinél, por este engano. De tempo em tempo, os alruns aqueciam seus corações e apertavam o cabo de suas espadas e lanças. Como o bom provérbio diz: o desolador vem a desolar. Este ditado resume bem os persins e os faldor. Assim que estes avistaram seus inimigos os aguardando, apertaram o passo e vieram com sede de sangue. Quando estavam a uma boa distância da vanguarda de Dio, Ardilis deu permissão para a primeira revoada de flechas. Não foram todas na mesma direção, mas umas para cima e outras para baixo, derrubando persins de seus cavalos, e os faldor do céu.
A primeira resposta inimiga veio com bastante rapidez dos generais de Zalqui dentre os faldor, Palkim e Valkim. Estes réprobos dividiram a tropa aérea em dois, com uma parte tendo mais integrantes do que a outra. Uns faldor (os de menor número) continuaram a voar em direção aos arqueiros enquanto os outros esconderam-se acima das nuvens. Assim o aglomerado dissipou e passaram a desviar das setas com mais facilidade. Com efeito, os arqueiros tiraram sua atenção da cavalaria de Zalqui para os faldor, que se aproximavam cada vez mais.
Os persins, iracundos pelas mortes de seus companheiros, vinham ferozes e mais sanguinários do que nunca. Precipitaram-se, enfim, na vanguarda do alruns. Ouviu-se, então, o primeiro retinir de espadas como som de trovão. Havia diversos cavaleiros para comentar, todavia, esta história é de duas protagonistas. Portanto, vejamos como elas estavam se saindo. A começar por Marie. Os persins eram guerreiros difíceis de se lidar, a despeito de seu grande tamanho, destreza e agilidade. Porém estes empecilhos não intimidaram Marie. Quando os persins perfuraram a tão relutante vanguarda de lanceiros dos alruns, ela, Dio e os outros espadachins puseram-se à frente para enfrentá-los com ímpeto. Primeiro derrubaram os que estavam montados em cavalos. Em seguida, os espadachins. Terrível e árduo confronto foi este. Os ávidos e inefáveis persins atacavam e recuavam com velocidade. Os mais imprudentes dos alruns caíam mortos antes que tivessem a oportunidade de pensar numa evasiva. Mas algo começava a esquentar: a fúria da lâmina de Dio.
Devo esclarecer algo antes que provoque certa estranheza na mente do leitor. Não confundamos a chama dos olhos e dos cabelos dos persins com imunidade ao fogo. Sim, tinham mais resistência do que um humano ou alrum qualquer. Havia, entretanto, níveis de calor que não suportavam e torravam, como o fogo de dragão. Este era o mais poderoso de todos em Tokarisen. Aliás, o mesmo da espada de Dio.
Graças a isso, os persins deram a primeira recuada de temor, pois, quando eram cortados, seus sangues ferviam. E, indubitavelmente, Marie sabia o que Dio faria, por ter lutado com ele tantas vezes. Então incrementou eficácia nas investidas, porquanto quando os inimigos brevemente se distraíam pela terrível quentura que sentiam borbulhando em seus corpos, ela os empalava.
Desfortuno foi isso não funcionar de modo perene. Os persins, sem perder tempo, formaram duplas, uma para atacar os cavaleiros de Dio, que não tinham a mesma destreza de seu bauče, e a outra para defender os ataques do Nobre. Era um estratagema esquisito, no entanto funcional. Logo, Dio se viu numa situação aterradora. Não conseguia atacá-los, tampouco defender seus subordinados. Mas a voz de sua pupila deu-lhe forças:
— Façamos como eles – vociferou Marie. Queria atacá-los em dupla.
Num átimo, Dio compreendeu. Ainda por cima fez Marie trocar uma de suas espadas com ele.
— Não tem um escudo para se defender – disse ele. – Não tem o que temer. Assim como o dragão não queima com seu próprio fogo, assim também é com minha espada. Somente um pode empunhá-la. – E jogou sua espada, pois dois não podiam tocar em seu cabo ao mesmo tempo.
Marie retribui jogando a sua espada com a inscrição M, pois não daria a que tinha o P. Por mais que a troca acontecesse em segundos, guardar essa espada era claramente um sinal de afeto.
De fato, esse estratagema funcionou muitíssimo bem. Como Dio lhe protegia, Marie pôde fazer cortes mais arriscados. Os persins agonizavam quando recebiam os golpes da balvar-de-exército, pois com uma espada ela fazia o sangue ferver, e com a outra sangrar até sentir tonturas. E, outra vez, estavam recuando o exército dos persins. Todavia, a desventura havia chegado no campo de peleja. Uma lança voou e acertou o peito de um dos alruns. Os persins paralisaram de temor. O caminho foi se abrindo no meio da tropa e o personagem mais citado desta história apareceu, afinal. Ele vestia uma armadura contendo rostos de guerreiros esculpidos, seu elmo, claro, onde devia estar aveludado, uma chama tremia.
— Não seja minha lança sujada com seu sangue fraco – disse Zalqui, retirando a ponta da lança encravada do peito do alrum abatido por ele. – O contra-ataque é mais efetivo. Escudos não funcionam contra mim. Não tenho por costume me defender. Fito em torno de oito a nove cavaleiros ao mesmo tempo. E agora seria uma excelente hora para me acertarem com uma seta – explicou ele, detalhadamente. – Se me matarem, venceram a guerra. Não me decepcionem.
Que jactância e confiança! Zalqui disse tudo isso sob um tom de grande seriedade e calma. Ninguém ousava tocá-lo. Dio olhou para os arqueiros, esperando por uma flechada. Eles estavam preocupados com a grande aluvião de faldor acima deles, pois os que se escondiam entres as nuvens desciam todos de uma vez.
Ardilis e Paula conduziram os arqueiros para uma sequência incrível de setas, de modo que todas eram atiradas ao mesmo tempo, formando uma grande parede afiada. Com efeito, vários faldor eram abatidos. Os alruns tinham que desviar dos corpos e se prepararem para o próximo disparo. Não é à toa que eram imputados como os melhores. Contudo, à medida que faziam as flechas voarem, era notório que mais e mais faldor surgiam das nuvens. Então Paula alertou Ardilis.
— Por mais que matemos, vão chegando mais perto daqui. Corramos para as faias atrás de nós. Lá serão obrigados a lutarem no chão.
— Minha inteligência e sabedoria foram lhe dadas como herança – disse Ardilis, elogiando sua pupila e a si mesma. – Arqueiros! Para as árvores, agora!
O leitor deve se lembrar que, no começo deste capítulo, as gêmeas conversavam em sua tenda. Esta e todas as outras estavam armadas floresta adentro com os médicos. Sendo assim, seria perigoso avançarem até eles.
Então, quando deram a última revoada de setas, partiram em disparada para a orla da floresta. Foi por pouco. Pois, se tivessem chegado, temo eu, segundos atrasados, as maléficas garras dos faldor teriam os alcançado.
A propósito, aproveitando essa aterrissagem dos faldor, posso descrever seu aspecto lúgubre. Eles tinham uma pele azulada, altos, quase com dois metros e meio de altura, uma língua de serpente, olhos, da íris à pálpebra, verde-escuro, como algo podre, um nariz pontudo, calvos, olheiras longas e pontudas e garras como de uma águia. Além disso, vestiam uma cota de malha.
Dito isso, prossigamos.
Alguma vez na vida você se arrependeu de estar no chão? Pois isso aconteceu com os faldor. As faias e os arbustos ofuscaram a reação das flechas que vinham de acolá. Os réprobos, no entanto, fizeram de sua desvantagem em vantagem, porquanto usaram as faias de proteção, avançando gradativamente. Os alruns, atordoados de surpresa, recuaram. Infelizmente, alguns ficaram para atrasar o inimigo e pereceram. Paula não se desesperou pelo contratempo. Assim que chegaram a uma clareira, ela fez bruxulear as setas dos alruns com fogo. Os disparos foram feitos e, em segundos, a floresta estava em chamas. Com efeito, uma parcela da hoste dos faldor foi queimada, e a outra atravessou a orla com chamuscos nos rostos, ou nas pernas, ou nas asas.
Num átimo, exasperado, Palkim dá uma ordem ao resto de batalhão que sobrou. Como antes, separou-os em dois grupos, porém um voou por cima dos alruns, enquanto o resto precipitava-se neles.
— Estão indo até os médicos – bradou Paula.
— Pegue metade dos arqueiros e salve quem nos salva – ordenou Ardilis.
— Segunda tropa, aos médicos!
Sem perder tempo, correm para onde os médicos estavam acampados, deixando Ardilis e sua tropa para trás com os faldor e uma floresta que começava a queimar a relva. Halbar, que sempre acompanhava Paula, perguntou à sua comandante a respeito da grave situação enquanto corriam:
— O que faremos? Não temos munição o suficiente para tantos.
— Esperava que algo baixo desse tipo acontecesse – replicou Paula, arfando. – Por isso coloquei nossos médicos numa clareira.
— Isso não facilitaria o trabalho dos faldor?
— Não, pois se trata de uma armadilha.
Paula sempre foi, desde sua infância, uma pessoa prevenida. Sabia que seus inimigos eram aéreos e impiedosos e sujos de espírito. Previu, assim, um possível ataque aos médicos. Então, pela ideia das tendas nas árvores no acampamento dos arqueiros, engendrou uma armadilha jamais vista: a teia-de-fogo. Funcionava da seguinte maneira: amarrava-se ao tronco, na parte superior, perto da ramificação dos galhos, um fio que ia até outra árvore, diametralmente oposta, e se repetia com várias outras. Molhava-se a teia com álcool e a acendia com uma tocha, incendiando-a.
Foi exatamente como planejado. Os médicos, esperando a chegada de pacientes, os quais viriam a ser carregados pelos batedores, ouviram um grande estardalhaço. Não demoraram para avistar o enxame de faldor que toldava a clareira.
— Corram! – gritou a sentinela encarregada de botar fogo na teia. Calafrios e um suor mais gelado do que polo Norte escorreu pelo seu rosto. Os faldor desceram atrás de suas presas indefesas. Em instantes, havia uma grande aglomeração na teia. Se o vigia demorasse segundos a mais, eles derrubariam as faias com seu peso. Entretanto isso não aconteceu. As chamas foram tão rápidas que queimaram um grande número de faldor e outros que ainda sobrevoavam a clareira ficaram atônitos. E isso deu o tempo suficiente para os médicos fugirem.
A fúria dos faldor aumentou e explodiu com brados, como um vulcão que entrou em erupção. Eles foram em cada ponto que a teia estava prendida, em cada faia, e derrubaram todas. Palkim e Falk, com os dentes rangendo, e as veias saltando, e urrando, só sabiam esbravejar ao remanescente dos faldor:
— Peguem-nos! Agarrem-nos! Matem-nos! Não deixem que fujam!
Isso foi um comando errôneo, porque não viu a chuva de flechas atingirem os faldor que estavam no chão. Eis que surge Paula com os arqueiros que mal tinham setas em suas aljavas.
— Falk – disse Palkim –, conduza o restante da tropa ao auxílio dos persins. Esses mal setas têm.
— Como queira – replicou Falk, partindo com o que sobrara dos faldor (em torno de um terço, ou menos).
— Halbar – disse Paula –, volte, ache os médicos e vá para onde Ardilis está.
— Mas você não tem mais flechas. Como irá…
— Agora!
Num átimo, Halbar e os arqueiros sumiram entre as faias.
Paula fitou, por certo tempo, aquela terrível criatura. A fumaça das árvores e das tendas subiam num negrume horrendo. Palkim, com sua voz infernal, indagou:
— Um arqueiro sem flechas, que vem a pelejar?
Em resposta, Paula sobe em uma das faias (que não foi devorada pelo fogo). Lá achou um embrulho. Abrindo-o, pegou uma lança e um escudo de aço. Então, assim que desceu da árvore, a balvar batia com o cabo da lança no escudo, como uma gladiadora. Após isso, esconde o semblante detrás do escudo, deixando à mostra seus olhos castanhos sob a sombra do elmo.
Entre as cinzas que flutuavam como flocos de neve, Palkim precipitou-se em cima da balvar. Ela se defende. Contudo, com o ímpeto do ataque que é atingida, faz com que fosse arremessada para trás, batendo as costas na árvore.
— Vejo que não é tão boa no combate a curta distância – disse Palkim, ríspido.
— Na verdade – respondeu Paula, levantando-se –, passei a treinar a lança nos últimos dois anos. Sobrou-me tempo por ter alcançado a mais alta patente num período curto. Mas se engana, tenho alguns truques na manga.
Paula põe-se atrás do escudo e parte pra cima de Palkim. – Insensatez – pensou ele ao vê-la vir de modo tão rebelde. Então alçou voo (não tão alto, pois estava sob as copas das faias).Isso fez com que Paula parasse a investida, pois sua lança não o alcançava dali.
— Desça, covarde! – bramou Paula.
Ele obedece, descendo num rasante. Dessa vez, Paula desvia. Palkim, entretanto, recompõe-se e inflige diversos golpes com suas garras. Vale a pena lembrar que um faldor possui duas pernas, dois braços e um par de asas. Paula, esperando uma brecha, apenas se defendia. Quando esta apareceu, vendo Palkim inclinando seu ombro direito, conseguiu furar uma de suas asas. O faldor emite diversos ganidos agonizantes de dor e espuma de raiva.
Agora a balvar ganhou uma tremenda vantagem, pois o faldor não podia mais voar e, além disso, estava fora de si. Por causa disso, precipitou-se em Paula, que esquivou com certa facilidade e empalou Palkim no coração. Vitória de Paula.
Era um alívio tê-lo derrotado, contudo, alarmante, porquanto sem tomar um fôlego de paz, voltou para a tropa de Ardilis. Chegando lá, avistou a balvar-de-divisão com mortos e outros feridos ao seu redor jazidos em macas e recebendo os devidos cuidados dos médicos. Paula se achega a ela.
— Ela ficará bem? – indagou ao médico que cuidava de Ardilis.
— Sim – replicou ele –, mas não poderá voltar ao combate. – Ardilis estava com um terrível arranhão na barriga.
— Paula – disse Ardilis, bem baixinho e com a mão na ferida –, mesmo eu não escolhendo a mais alta patente, estive no comando dos arqueiros até aqui. Mas agora delego esta responsabilidade para ti. Dissipei a sua vergonha e despertei a sua coragem. És a pessoa mais inteligente que conheci. Vá. Volte apenas quando tiver vencido esta guerra amaldiçoada.
Paula, estancando o choro, sabendo que não poderia dizer sequer uma palavra sem soluçar, bate continência como consentimento. E, sem demorar muito, ela reagrupa os arqueiros saudáveis. Por sorte, Halbar estava bem.
— Quantas flechas temos? – perguntou Paula a ele.
— Não muitas – responde Halbar. – Recolhemos as dos corpos dos faldor e algumas que ainda havia no acampamento dos médicos.
— Somo em quantos?
— Os aptos, por volta dos quatrocentos. Mas são muitos os feridos. Todos estão sendo deslocados para longe daqui, pois o fogo, tanto da clareira das tendas, quanto o causado por nossas setas, está se espalhando rapidamente. E…
Súbito, uma sombra com as asas passou por aquela clareira em que estavam. Pela direção, estava indo para a guerra. Mas algo a fez voltar e começou a planar. Halbar se preparou para atirar (pensou que fosse um faldor), mas Paula o impediu, dizendo:
— É um aliado – disse ela, quando enfim pousou o caça. – Há quanto tempo, Ametraton.
— Se não fosse pela cor do cabelo – disse ele –, não reconheceria que é uma das irmãs que tentou roubar meu cetro anos atrás. Mas qual das duas é você?
— Não seja bobo, pai – repreendeu uma moça que pousou de seu caça. Era Izabel. – Esta é Paula – tornou ela.
Izabel estava diferente. Paula demorou um tempo para reconhecê-la. Claro, a última vez que a viu foi há oitos e eram crianças. Ela estava com tranças na cabeça com pequenos ornamentos de prata. Tinham escamas mais desenvolvidas. E seu rosto inspirava liderança.
— Izabel! – exclamou Paula, contente. – Puxa vida! Como está diferente. E o resto da malta?
— Pergunte a eles – replicou ela, apontando para cima. Lá estavam eles, Arão, Faust, Demetris, Arquedis e Zaia. – Salve, cachinhos vermelhos – disse esta. E não somente os arruaceiros sobrevoavam a clareira, mas todo o exército de anaquins.
— Não temos tempo para abraços – interrompeu Ametraton.
— Quem comanda esta tropa de arqueiros? – indagou Izabel.
— Eu mesma – responde Paula.
— Como!? Você!? É algum tipo de balvar?
— A de exército.
— Inacreditável. E tem algo em mente?
— Sempre tenho. Divida os anaquins em duas tropas. Os arqueiros ficarão nesta região, avistando o vale lá embaixo. Faça com que os caças destes desçam para atacar os faldor que, provavelmente, estão em cima dos alruns. Quando isso acontecer, o segundo batalhão se ajuntará com os cavaleiros. Mas pelo flanco, e não descerão pela encosta íngreme até o vale.
— Por que não aterrissaremos na linha frente? – indagou Ametraton.
— Há montes no lado esquerdo do vale e uma plantação escassa, e um rio no lado direito. Se vocês forem por este lado, deixando os caças indo pelo subsolo para alcançarem a retaguarda dos persins, assim…
— Vamos encurralá-los – concluiu Izabel.
— Deduziu isso nesse curto intervalo de tempo? – disse Ametraton, atordoado. – Não me surpreende mais você ser uma balvar-de-exército. Agora vamos, pois perdemos muito tempo. Ana – chamou ele.
— Senhor – apresentou-se ela (aquela mesma que as gêmeas conheceram num restaurante no deserto de prata).
— Faça tudo o que sua velha amiga lhe disser. A princípio, leve os arqueiros que estão aqui, e os nossos para onde ela lhe ordenar. Nero!
— Senhor – apresentou-se ele (aquele mesmo que as gêmeas conheceram no deserto de prata).
— Organize os guerreiros para o leste do vale. Atacaremos pelo flanco. E não esqueça de avisá-los para que os caças se dirijam por debaixo da terra para a retaguarda do inimigo. Não gosto de esperar. Vou rever e me juntar com meu velho camarada, Dio. Vão!
Assim todos, alruns e anaquins, montados em caças, voaram para cima daquelas faias em chamas. Rapidamente chegaram na região alta que foi citada por Paula. Os arqueiros desceram ali enquanto os caças, após deixaram seus respectivos donos, mergulharam vale abaixo com suas garras e mordidas letais nos faldor. Os guerreiros anaquianos foram aterrissar no flanco direito enquanto seus caças se infiltravam na terra. Por fim, Ametraton se junta com Dio e Marie. E quando o restante dos faldor, ou grande parte, foram liquidados pelos caças, veio sobre os persins uma nova revoada de setas e o ataque dos anaquins pelo flanco. Ademais, quando a linha de trás encetou uma investida para cima dos caças na retaguarda, uivos e novas presas apareceram ajudar os leões-negros. Strolf, Bellolfa, Snolf e toda a alcateia dos vergs vieram para apoiar os alruns e os anaquins.
Um por um, dez por dez, cem por cem, vários e vários persins iam caindo, apesar de Zalqui ser implacável. Certamente, se continuasse daquela maneira, ele perderia a guerra. Contudo seu lúgubre e calmo semblante continuou indiferente, sem pavor algum. Ainda não tinha perdido as estribeiras até aquele momento.
— Desista! – gritou Dio, indulgente. – Senão os persins perecerão!
Súbito, as hostes, os inimigos ou os aliados ouviram um barulho vindo do leste. A guerra foi parada. Aturdidos estavam, exceto os persins. Temo que aquilo foi um sinal dalguma ajuda que se aproximava.
— Previ que fortaleceria seu exército com outras nações e povos – disse Zalqui a Dio. – Então, claro, convidei alguém que não é meu aliado, mas é seu inimigo.
Zalqui, estranhamente, encetou batidas no escudo que pegou do chão. Os persins o imitam com seus próprios escudos. O barulho era alto e forte. Poderia ouvi-lo a quilômetros de distância. Logo veio a resposta para esta balbúrdia. Uns faldor surgiram atrás dos montes do ocidente. Todavia não vieram pelejar, mas sim para resgatar. Um por um, os persins foram agarrados pelos faldor e levados para a mesma direção donde vieram.
Os arqueiros, de fato, tentaram impedi-los, mas o horrendo som retumbou, mais aterrorizador do que nunca, que os deixou atônitos. Desta vez, ficou mais nítido que aquilo era uma voz. Uma voz que chamava: – Dio. – Isto fez toda a espinha dorsal do bauče derreter. Conhecia aquela voz.
— Foug – disse ele, afinal.
Havia se passado mais de vinte anos que Dio enfrentou Foug. Ele tinha acabado de sair do ovo (uma raridade, pois os dragões bebês, especialmente os brancos, eram muito bem protegidos por suas mães). Foug tinha por volta dos quatro metros de comprimento. Porém, em Tokarisen, chegam à fase adulta quando completam quinze anos. Depois disso, continuam a crescer vagarosamente até a sua morte. Qual é o tamanho de um adulto? Bem… por volta dos vinte a vinte e dois metros de comprimento, e o seu diâmetro, tendo em mente seu corpo de serpe alado com três pares de membros, quatro patas e duas asas, uns doze metros.
— Dio – ribombou Foug, era ensurdecedor. – Dio, infame e desafortunado. Como ousas viver após ferir minha honra?
Dragões são seres orgulhosos (alguns são ambiciosos e avarentos. Os brancos são impossibilitados disso, pois vivem metade do ano nas águas, e a outra parte em terra ou nos céus, nunca podendo vigiar seus tesouros). Foug tornou-se um dragão poderoso, mas por causa de quase ter sido morto por um mero alrum, carregava um fardo desdenhoso demais para qualquer um deles. E Foug não suportava mais carregá-lo.
É crível o medo que navegou por aquele vale, porquanto se afastaram da fogueira (a guerra) para adentrarem numa fornalha (Foug).
Zalqui pousou junto de seu exército nos cumes dos montes a oeste do vale da batalha para ver seu adversário tendo sua bravura definhada.
— Ametraton – disse Dio –, imploro-te, em nome de Tinél, chame os caças e os faça carregar o máximo de anaquins e alruns para longe daqui. Devo enfrentar minha imprudência da juventude e ninguém deve ser penalizado por causa dela.
— De forma alguma – respondeu Ametraton, com ímpeto.
— Como!?
— Você deu a vida pelo seu povo – retrucou Marie. – Agora é chegada a hora de lutarmos por ti.
Todos os alruns urram com o pronunciamento de Marie.
— E de minha parte – retomou Ametraton –, perderia o maior líder que meu maior aliado já teve e um amigo. Todavia, sendo eu o maior mercenário da história, também não estou disposto a perder vários de meus soldados. Ou elaboramos um bom plano de luta, ou fujamos todos.
— Tenho algo em mente – disse Paula, surgindo do meio da conversa, montando um caça.
— Por que está com um caça? – indagou Marie. – Eles deviam estar onde estava a retaguarda das hostes de Zalqui.
— Ele ficou lá em cima comigo. É o mesmo que conhecemos no estábulo de Ametraton. Enfim, tenho um plano, porém arriscado.
O tal plano de Paula não era reconfortante, mas era a única saída que tinham além de fugirem. Em segundos, ele começou a ser executado. Os arqueiros, alruns e anaquins continuaram na mesma posição na qual estavam. Por outro lado, alguns dos que portavam espadas e lanças, uma boa quantidade de cada exército, montavam caças, todos direcionados donde vinha Foug. Agora o que restava era aguardar o advento do dragão.
Os corações batiam descompassados. O medo singrou pelo ar. Serenai os maus pensamentos, pois a cabeçorra branca da torpe serpe havia surgido. Uma fileira de dentes preenchiam sua grande boca. Tinha um corpo branco com uma densa listra dourada e ondulante, e escamoso. Seus olhos eram azuis como o céu do meio-dia. E tinha esplêndidas asas gigantescas.
Quando o dragão chegou perto do rio ao oriente, fez com que suas chamas lambessem nele, fazendo-o borbulhar e subir uma nuvem de fumaça. De súbito, os que montavam os caças, inclusive Marie, Dio e Ametraton, alçaram voo a oeste da serpe alada. Sem perder tempo, os arqueiros atiravam contra o dragão, a leste dele. E isso o irritou muitíssimo. Quando ele se virara na direção deles, sentiu cortes no lado oposto que estava virado. Os alruns e os anaquins, dentre rasantes, desciam e subiam, cortando o máximo da pele grossa de Foug.
Ele rosnou de modo amedrontador. Com isso, tentou engolir os que montavam os caças ao seu redor, mas novas setas cravavam em sua tez lívida. De fato, o plano de Paula decorria bem.
Entretanto, vendo os persins sendo desolados, resolveram voltar para a batalha, voando novamente com os faldor na direção dos arqueiros. Estes perceberam, todavia, um pouco tarde. Os vergs subiram a encosta para ajudar seus companheiros. Nada adiantou. Vários arqueiros pereceram nas vis mãos dos persins. Os vergs não conseguiam, sem os caças, achegarem-se em inimigo sem serem empalados. Paula estava em apuros. Enquanto tinha setas em sua aljava, derrubava o máximo de persins e faldor que podia. Contudo, a lança de Zalqui dardejou na direção de seu peito.
Clap!
Não foi o corpo de Paula a cair, mas o de Strolf. A garota abriu as comportas da angústia e inflou sua alma com o desgosto da vingança.
— Maldito, Zalqui – vociferou ela.
Os que não puderam enfrentar Foug e ficaram em terra tentaram ir em resgate de seus companheiros, mas os persins armaram o cerco na encosta e bloquearam a passagem.
Com Foug, a situação estava mais do que crítica. Como estavam sem os arqueiros, não conseguiram mais uma distração para cortá-lo. Como uma torre inabalável por eras passadas, mas com um terrível vento vindo ao chão, assim era com os alruns, os anaquins e os vergs. Marie tentava salvar vários de seus companheiros que caíam ao receberem o baque do vento das asas do dragão, ou quando os caças enlouqueciam ao receberem suas chamas infernais. Com efeito, Dio, que era o mais procurado por Foug, fazia de tudo para chamar atenção da serpe. Mas, num momento de distração, fitou o aglomerado de persins e faldor que sobrepujavam os arqueiros. De abrupto, ele foi empurrado por um caça sem ser derrubado pelo seu, era Marie. Quando o bauče ia questioná-la pelo ato, a boca de Foug fechou e a engoliu.
Dio se descontrolou de todo, pois Marie já não era mais uma criança malcriada que recebera em seu reino. Não, era como uma filha e amiga agora. Ao vê-la sendo digerida por Foug, perdeu as estribeiras. Isto entenebreceu, depois de muitos anos, seu juízo. Ainda na sua montaria alada, depois de quase ter caído dela, avança para cima do dragão sem escrúpulos ou sem plano prévio. A princípio, conseguiu rasgar a pele da réproba serpe. Contudo não demorou para que ela castigasse a imprudência do bauče e despejasse suas chamas nele. Elas atingiram o lado traseiro e a asa do caça, que enlouqueceu pelas queimaduras e buscou o riacho que corria lá embaixo. Quem visse, afirmaria que deslumbrou uma estrela caindo, prestes a chocar com a terra. Por sorte, quando o caça sentiu o rabo pegando fogo, começou a dar cabriolas no ar antes de mergulhar na água naquela velocidade. Splash!
O caça ficou muito machucado. Temo sua sobrevivência. Dio estava debilitado também, com seu ombro esquerdo queimado e sua perna quebrada. Havia médicos no vale, mas ele estava embaixo do dragão. Eles temiam que ele descesse e queimasse a todos. Na beira do riacho, o bauče viu pouco a pouco dos anaquins e dos alruns sendo liquidados, tanto os que batalhavam fervorosamente com Foug, quanto os que pelejavam com os persins e os faldor.
De súbito, todavia, algo estranho veio a acontecer. O milagre da guerra. Foug começou a se contorcer e a ganir. Muitas dores o afligiam. Isto o fez pousar entre Dio e a encosta íngreme. O dragão rugiu um rugido que ribombou muitas milhas e ficou inerte. Ele estava morto. Dio viu, bem de longe, uma funda se abrindo no corpo da grande serpe. Suas entranhas eram vomitadas para fora de seu escamoso corpo. E eis que se projetou um ser que fulgentava. Trajada numa armadura que inflamava e ardia, como o aço que saiu da própria fornalha para ser moldado, Marie, o Coração-bravio, e agora matadora de dragões, estava de pé e viva.
Os médicos, vendo quem saíra de dentro de Foug, correram para socorrer seu bauče. Marie também o faz. Seus martelados passos queimavam a terra. Ela parou a uma certa distância de Dio (para não o queimar) e lhe indagou:
— Permissão para comandar o exército?
— Permissão concedida – replicou Dio, aturdido.
Marie se dirige para a batalha no topo da encosta.
Ao chegar no sopé da encosta, os inimigos e os aliados, conquanto não terem visto ela saindo do dragão, já anoitecendo, contemplaram Marie bruxuleando como o sol. E ela bradou:
— Quem são esses que assolam o meu exército?
Os alruns e os anaquins urraram e retomaram a batalha com suas coragens e esperanças renovadas. Marie achou um corredor aberto para chegar nos persins para não queimar seus aliados. Não era só a armadura que inflamava, mas suas espadas também. Com efeito, um a um, caiam-se persins. Não sabiam, sequer, se poderiam lutar contra ela. Era como lutar contra uma fornalha que lhe cortava.
Os persins, então, passaram a ser pressionados. Portanto os arqueiros puderam respirar outra vez. Os inimigos tiveram que correr para perto da floresta de faias, afastando dos atiradores. Os faldor bateram em retirada. Zalqui resolve jogar sua última carta. Ele toma a dianteira de seu exército, fazendo um sinal aos seus adversários. Marie faz todos pararem.
— Tu declaras derrota? – inquiriu ela.
— Disse-lhe que a única maneira de me vencerem seria me matando – rosnou ele.
— E então?
— Dar-te-ei uma alternativa: um duelo.
— Entre tu e mim?
— Sim.
Que fique bem esclarecido na mente do leitor que Zalqui via como Marie sobrepujava sobre suas tropas. Se continuasse daquela maneira, perderia, afinal, a guerra. Ele seria levado como prisioneiro e tomariam seus tesouros do seu povo como despojo. Entretanto, com um duelo, tiraria o maior dos alruns e teria uma chance de vencer.
Marie aceita sem relutância.
Ambos ficam frente a frente, com seus exércitos às suas costas. Halbar, com um pano velho, daria o sinal do início do duelo. Marie avisa que está pronta. Zalqui, antes, pergunta algo a ela:
— Por que proteges com afinco a maldade dos alruns?
— Como!? – perguntou Marie, perplexa com tal declaração. – Não entendo o que dizes. Diga abertamente e sem enigmas.
Zalqui fita a multidão ao seu redor e retoma: – Nós, os persins, em nossa origem, fomos agraciados pela paz. Construímos nossa cidade e edificamos nossa lei sem qualquer conflito. Mas depois a abolimos, pois não precisávamos dela. E o respeito mútuo não foi necessário ensinar.
— Fui enxertado nesse meio. Um dia, resolvi ir além das fronteiras e, então, vi os descentes dos homens. Desde o nascimento, já voltavam seus rostos para as más veredas. Se uma criança não fosse instruída e domada pelas leis, viraria uma besta maldita.
“Mostrei essa abominação ao meu povo que vês em derredor de mim e ficaram pasmados. Contudo, os que diziam ser mais sábios falavam que isso era parte da natureza deles, e que, no máximo, podíamos dar ajuda, mostrando-lhes um novo ideal a ser seguido. Loucos. Tive que mostrar aos persins que devíamos dominá-los e expurgar a maldade que habita neles.
“Em resumo, vou dar a eles e aos demais descendentes dos homens a honra de fazerem parte do verdadeiro mundo real que nós, os persins, vivemos. De mim, virá a verdadeira paz.”
— Que criança tola e hipócrita! – exclamou Marie. – Maculou seu povo com ódio para trazer a paz? Dizem-se perfeitos, mas agem como animais irracionais. Vocês vivem de maneira diferente da nossa, logo estão certos? Enxergam nossos podres e, por dominação, trazem-nos a solução? Tu tens a paz, parvo? Uma videira não pode dar figo, e uma figueira, uva. Alguém que é mau e traz a guerra não pode conceder o bem ou prover a paz. Uma árvore má não pode dar bons frutos. Tu és a árvore que cortarei pela raiz. Jogarei a carcaça do seu corpo aos pássaros e cortarei sua cabeça. Em guarda!
Zalqui ouviu atentamente as palavras de Marie e ficou pensativo. Mas logo se desvaneceu de seus pensamentos e deu sinal a Halbar. Ele balança o pano e o duelo começa.
Há algo a ser dito enquanto os duelistas se fitavam. A armadura e as espadas de Marie simplesmente estavam apagadas. Com relação a estas, sabia que depois de algumas retinidas elas voltariam a fulgentar e arder. Todavia e a armadura? Marie tinha uma sugestão sobre isso e era um tanto perigosa e desagradável.
Os dois cruzam as lâminas, espadas por Marie e lança por Zalqui. Dois passos para frente e dois para trás. O retinir era como raios se chocando. Saltos para desviar. Recuam e investem. Em pouco tempo, as espadas de Marie fulgentavam a luta. Todavia, por mais que retomara com essa ajuda, não conseguia pressionar Zalqui. Ele, sem dúvida, era o maior portador de lança em Tokarisen. Os braços da garota doíam pelos golpes que defendia. Ela precisava arriscar. Um vislumbre passou por sua cabeça e lembrou da luta que tivera com o velho Luck. Então partiu em direção de Zalqui e, a poucos passos, pulou pra cima dele. Aconteceria o mesmo da última vez, mas ela aprendeu com o seu erro. Enquanto saltava para frente, com a espada da mão esquerda, parou o cabo da lança de Zalqui que avançava da mesma forma que a de Luck e a cortou em duas, e, com a outra, devido à altura de seu adversário, empalou seu abdômen.
Zalqui se ajoelhou. Parecia o fim, até ele segurar o pulso de Marie e lhe dar uma cabeçada. Imediatamente, ela soltou as duas espadas. Estava zonza e titubeava pela pancada. Zalqui tirou a espada encravada, que já cicatrizou devido ao calor. Em seguida, ele desfere vários socos e joelhadas na garota antes de dar o golpe final com a espada que pegara dela. Marie cai, mas se levanta com dificuldade. Zalqui a chuta na barriga e faz ela se ajoelhar. Ele se vangloria e torna a dar outro soco. Entretanto solta um ganido de dor. A armadura estava como brasas de fogo.
Desta vez, Marie não perdoaria. Com uma sequência impressionante de socos, ela o faz cair se contorcendo de dor. As queimaduras eram insuportáveis. Ela pega sua espada, queima o peito de Zalqui com sua bota e corta a sua cabeça. O líder dos persins pereceu. A guerra acabou.
A fortuna (digo, a recompensa que vem abraçar o vencedor de uma batalha) é a pior que existe, pois não há ganhos, somente um fogo de raiva que sai dos corações e um rio tristeza dos olhos. Assim foi com os alruns, os anaquins e os vergs. Estes pranteavam aos uivos a morte de Strolf, um de seus irmãos mais amados e respeitados. Paula sofria e desvairava. Ela apertava sua cabeça cinzenta e beijava seu focinho, agora seco. Marie, após finalmente tirar seu elmo, leva a concha de suas mãos ao rosto e ajoelha perto do corpo do verg. Por alguns minutos, recordou-se de todo apego que ele tinha por ela e sua irmã, como um pai que protege a todos custo suas filhas.
Os médicos cuidavam de seus pacientes no vale. Portanto todos tiveram que descer encosta abaixo para tratarem seus ferimentos e devido à fumaça sufocante que vinha do incêndio da floresta de faias. Mas, de forma alguma, deixaram para trás o corpo de Strolf. Alruns e anaquins ergueram-no e o levaram até lá, onde fizeram seu funeral e de todos os outros que pereceram na batalha. Por causa disso, o vale ficou conhecido como o Sepulcro dos Valentes.
Em seguida, devido à queima de provisões que desenrolou no ataque dos faldor no acampamento dos médicos, tiveram que comer a carne do dragão. E sobre o mistério que permanece na mente do leitor, em relação às espadas e a armadura que, uma vez, perderam-se no interior da serpe e foram encantadas, somente Teor-Dim, no princípio de todas as coisas, pode revelar isso.
Por fim, antes dos alruns, dos anaquins e dos vergs regressarem cada um para as suas devidas terras, resolveram repousar pelo resto do dia naquele lugar. Assim, Paula e Marie ficaram a conversar com seus respectivos mestres, Ardilis e Dio. Ora, era sorte por terem colocado-os na mesma tenda, com suas camas a poucos metros um do outro. Quando Dio viu as gêmeas adentrarem, ainda com os semblantes e com as almas contritas, sentou-se, conquanto estava com a perna quebrada, uma parte do corpo queimado e o resto dolorido, na beirada de sua cama. E disse:
— Não há palavras, nem tesouro, e tampouco algum engenho que possam retribuir o que vós fizestes por nós, os alruns. Marie, tu mostraste a verdadeira bravura e o deleite pela justiça. Portanto é mister a alcunha de Coração-bravio. Outrossim, por ter matado Foug, o Branco, dou-lhe, também, a de Matadora-de-dragões – encerrou Dio, batendo continência.
Ardilis, por mais que estivesse com um ferimento na barriga, tenta se sentar na beira de sua cama e glosar de forma cortês a Paula:
— E Paula, foste a candeia que alumiava as vias corretas por meio de seus planos. Quebraste a vergonha que lhe aprisionava e pudeste comandar os arqueiros. Por isso, é irrevogável a alcunha de Lírio-da-aurora, pois tu foste a luz para os nossos empecilhos e possui o mais brando e generoso coração que conheci. Ademais, derramaste o sangue dos que provocavam o medo e a desordem em nosso país. Assim sendo, conservarei o epíteto que já se espalhou por lá, Lírio-escarlate.
Paula e Marie, em reverências abastadas, agradecem e batem a continência-alruniana. Elas passaram, enfim, o resto do dia juntas, e conversando, e, em raros momentos, rindo.
No dia seguinte, os alruns, os anaquins e os vergs se aprontavam para a eventual despedida. Os persins, remanescentes da guerra, foram tomados cativos pelos alruns e voltarão junto com eles.
Estavam reunidos Paula, Marie, Ametraton, os arruaceiros, Bellolfa e Snolf. Os vergs vieram lamber as gêmeas como forma de despedida.
— Foram grandes companheiras nesta jornada, enfim, terminada – disse Snolf. – Esperamos reencontrá-las um dia.
— Vocês nos ensinaram bastante, mesmo quando eram crianças – completou Bellolfa.
As gêmeas não estavam gostando nada disso. Era muito triste dizer adeus. Não sabiam como fazer. Então decidiram abraçar as cabeças de cada verg e beijar seus focinhos. Foi um abraço difícil de desvencilhar. Enfim, os vergs foram embora uivando alto.
Ametraton, Izabel e Arão tomaram a dianteira da despedida.
— Pensei que um dia trabalharia para o meu bando – disse Arão.
— Aqueles desafios foram fáceis demais – ironizou Marie. – Não sei se realmente mereciam a nós.
— Foram fáceis porque os facilitei.
— É uma despedida, Arão – disse Izabel. – Não o princípio de uma competição. Ainda temos muito a resolver com o povo do leste. Mas estamos caminhando na direção certa, acredito. E vocês – disse ela às gêmeas – nos ajudaram a encontrar a vereda justa. Obrigada.
— Esperamos que venham nos visitar – disse Ametraton. – Mas, por obséquio, sem roubar nada.
As irmãs despediram-se dos anaquins que alçaram voo em seus caças.
Eles foram recebidos com grande júbilo e festa. As gêmeas foram aclamadas como heroínas e se eternizarão nas histórias e lendas dos alruns.
O festejo durou uma semana. Depois disso, Paula e Marie organizaram uma nova expedição, levando consigo os persins cativos, uma tropa de expedição, Kinorel e Tsitarel até a vila dos harakes. A viagem durou cerca de três meses.
No país dos alruns, sem guerra ou aventuras em mente, as gêmeas começaram a se perguntar: – Como voltar para casa? – Este questionamento chegou aos ouvidos de Dio. Ele respondeu:
— Do mesmo lugar que vieram.
— Mas caímos do céu – responderam em uníssono.
— Se sois do céu, voltais para o céu. Pedirei aos anaquins que enviem um caça até aqui.
Demorou alguns dias para que o caça chegasse. Enfim, estavam prontas para irem embora. Um cortejo do exército as esperava no pátio da central. Todos bateram continências. Dio deu-lhes suas últimas palavras, em segredo para que ninguém soubesse. Era algo a respeito do avô delas voltar a Tokarisen para que tivesse a revanche no xadrez. Sob aplausos e aclamações, enfim partiram.
Com um caça, a viagem tornou-se mais rápida. Teriam chegado mais cedo ao desejado destino se não tivessem se perdido.
— Paula – sussurrou Marie. – Como desceu tão rápido? Droga, voltamos a ser crianças.
De fato, voltaram a sua idade original. Não somente isso, estavam com a mesma roupa de quando entraram em Tokarisen, pijama branco com estrelas douradas. Paula tinha descido com facilidade por ter se lembrado de todo o procedimento que foi subir em uma árvore no acampamento dos arqueiros. Marie tinha uma pequena cicatriz.
— Vou buscar uma escada – sussurrou Paula de volta.
Mas o avô delas já estava na soleira da porta, e trazendo uma escada.
— Vamos rápido – disse ele. – Antes que seus pais acordem.
Ele tirou Marie da árvore e fez as duas voltarem pro quarto e contarem todas as aventuras que viveram em Tokarisen.
Os dias seguintes, principalmente no Natal (o mesmo dia do aniversário delas), reviveram tudo o que passaram em Tokarisen. Contudo, uma pergunta ainda vagava no ar: como aquela droga daquele armário foi aberto?
Essa e outras obras em:
eviseu.com
Saiba mais em:
Contatos:
contato@editoraviseu.com
Quer enviar sua obra para nossa avaliação?
originais@editoraviseu.com
← Prev
Back
Next →
← Prev
Back
Next →