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Outsiders a

Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em certos momentos e em algumas circunstâncias, impô-las. Regras sociais definem situações e tipos de comportamento a elas apropriados, especificando algumas ações como “certas” e proibindo outras como “erradas”. Quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como um outsider.

Mas a pessoa assim rotulada pode ter uma opinião diferente sobre a questão. Pode não aceitar a regra pela qual está sendo julgada e pode não encarar aqueles que a julgam competentes ou legitimamente autorizados a fazê-lo. Por conseguinte, emerge um segundo significado do termo: aquele que infringe a regra pode pensar que seus juízes são outsiders.

Tentarei a seguir elucidar a situação e o processo designados por esse termo ambíguo: a situação de transgressão da regra e de imposição da regra e os processos pelos quais algumas pessoas vêm a infringir regras, e outras a impô-las.

Cabe fazer algumas distinções preliminares. Há grande número de regras. Elas podem ser formalmente promulgadas na forma de lei, e, nesse caso, o poder de polícia do Estado será usado para impô-las. Em outros casos, representam acordos informais, recém-estabelecidos ou sedimentados com a sanção da idade e da tradição; regras desse tipo são impostas por sanções informais de vários tipos.

De maneira semelhante, quer uma regra tenha força de lei ou de tradição, quer seja simplesmente resultado de consenso, a tarefa de impingi-la pode ser o encargo de algum corpo especializado, como a polícia ou o comitê de ética de uma associação profissional; a imposição, por outro lado, pode ser uma tarefa de todos, ou pelo menos a tarefa de todos no grupo a que a regra se aplica.

Muitas regras não são impostas, e, exceto no sentido mais formal, não constituem o tipo de regra em que estou interessado. Exemplos disso são as leis que proíbem certas atividades aos domingos, que permanecem nos códigos legais, embora não sejam impostas há 100 anos. (É importante lembrar, contudo, que é possível reativar uma lei não imposta por várias razões e recuperar toda a sua força original, como ocorreu recentemente com relação às leis que regulam a abertura de estabelecimentos comerciais aos domingos em Missouri.) Regras informais podem morrer de maneira semelhante por falta de imposição. Estou interessado sobretudo no que podemos chamar de regras operantes efetivas de grupos, aquelas mantidas vivas por meio de tentativas de imposição.

Finalmente, o grau em que uma pessoa é outsider, em qualquer dos dois sentidos que mencionei, varia caso a caso. Encaramos a pessoa que comete uma transgressão no trânsito ou bebe um pouco demais numa festa como se, afinal, não fosse muito diferente de nós, e tratamos sua infração com tolerância. Vemos o ladrão como menos semelhante a nós e o punimos severamente. Crimes como assassinato, estupro ou traição nos levam a ver o transgressor como um verdadeiro outsider.

Da mesma maneira, alguns dos que violam regras não pensam que foram injustamente julgados. Quem comete uma infração no trânsito geralmente aprova as próprias regras que infringiu. Alcoólatras são muitas vezes ambivalentes, por vezes sentindo que aqueles que os julgam não os compreendem, outras vezes concordando que a bebida compulsiva é maléfica. No extremo, alguns desviantes (homossexuais e viciados em drogas são bons exemplos) desenvolvem ideologias completas para explicar por que estão certos e por que os que os desaprovam e punem estão errados.

Definições de desvio

O outsider — aquele que se desvia das regras de grupo — foi objeto de muita especulação, teorização e estudo científico. O que os leigos querem saber sobre desviantes é: por que fazem isso? Como podemos explicar sua transgressão das regras? Que há neles que os leva a fazer coisas proibidas? A pesquisa científica tentou encontrar respostas para estas perguntas. Ao fazê-lo, aceitou a premissa de senso comum segundo a qual há algo inerentemente desviante (qualitativamente distinto) em atos que infringem (ou parecem infringir) regras sociais. Aceitou também o pressuposto de senso comum de que o ato desviante ocorre porque alguma característica da pessoa que o comete torna necessário ou inevitável que ela o cometa. Em geral os cientistas não questionam o rótulo “desviante” quando é aplicado a atos ou pessoas particulares, dando-o por certo. Quando o fazem, aceitam os valores do grupo que está formulando o julgamento.

Observa-se com facilidade que diferentes grupos consideram diferentes coisas desviantes. Isso deveria nos alertar para a possibilidade de que a pessoa que faz o julgamento de desvio e o processo pelo qual se chega ao julgamento e à situação em que ele é feito possam todos estar intimamente envolvidos no fenômeno. À medida que supõem que atos infratores de regras são inerentemente desviantes, e assim deixam de prestar atenção a situações e processos de julgamento, a visão de senso comum sobre o desvio e as teorias científicas que partem de suas premissas podem deixar de lado uma variável importante. Se os cientistas ignoram o caráter variável do processo de julgamento, talvez, com essa omissão, limitem os tipos de teorias que podem ser desenvolvidos e o tipo de compreensão que se pode alcançar.1

Nosso primeiro problema, portanto, é construir uma definição de desvio. Antes disso, consideremos algumas das definições que os cientistas usam, atualmente, vendo o que é deixado de lado quando as tomamos como ponto de partida para o estudo dos outsiders.

A concepção mais simples de desvio é essencialmente estatística, definindo como desviante tudo que varia excessivamente com relação à média. Ao analisar os resultados de um experimento agrícola, um estatístico descreve o pé de milho excepcionalmente alto e o pé excepcionalmente baixo como desvios da média. De maneira semelhante, podemos descrever como desvio qualquer coisa que difere do que é mais comum. Nessa concepção, ser canhoto ou ruivo é desviante, porque a maioria das pessoas é destra e morena.

Assim formulada, a concepção estatística parece simplória, até trivial. No entanto, ela simplifica o problema pondo de lado muitas questões de valor que surgem usualmente em discussões sobre a natureza do desvio. Ao avaliar qualquer caso particular, basta-nos calcular a distância entre o comportamento envolvido e a média. Mas essa é uma solução simples demais. A procura com semelhante definição retorna com um resultado heterogêneo — pessoas excessivamente gordas ou magras, assassinas, ruivas, homossexuais e infratoras das regras de trânsito. A mistura contém pessoas comumente consideradas desviantes e outras que não infringiram absolutamente qualquer regra. A definição estatística de desvio, em suma, está longe demais da preocupação com a violação de regras que inspira o estudo científico dos outsiders.

Uma concepção menos simples, mas muito mais comum, de desvio o identifica como algo essencialmente patológico, revelando a presença de uma “doença”. Essa concepção repousa, obviamente, numa analogia médica. Quando está funcionando de modo eficiente, sem experimentar nenhum desconforto, o organismo humano é considerado “saudável”. Quando não funciona com eficiência, há doença. Diz-se que o órgão ou função em desajuste é patológico. Há, é claro, pouca discordância quanto ao que constitui um estado saudável do organismo. Há muito menos concordância, porém, quando se usa a noção de patologia, de maneira análoga, para descrever tipos de comportamento vistos como desviantes. Porque as pessoas não concordam quanto ao que constitui comportamento saudável. É difícil encontrar uma definição que satisfaça mesmo um grupo tão seleto e limitado como o dos psiquiatras; é impossível encontrar uma definição que as pessoas aceitem em geral, tal como aceitam critérios de saúde para o organismo.2

Por vezes as pessoas concebem a analogia de maneira mais estrita, porque pensam no desvio como produto de doença mental. O comportamento de um homossexual ou de um viciado em drogas é visto como o sintoma de uma doença mental, tal como a difícil cicatrização dos machucados de um diabético é vista como um sintoma de sua doença. Mas a doença mental só se assemelha à doença física na metáfora:

A partir de coisas como sífilis, tuberculose, febre tifóide, carcinomas e fraturas, criamos a classe “doença”. De início, essa classe era composta apenas de alguns itens, todos os quais partilhavam o traço comum da referência a um estado de estrutura ou função perturbada do corpo humano como uma máquina físico-química. Com o passar do tempo, no entanto, outros itens foram adicionados a essa classe. Eles não foram acrescidos, contudo, por serem doenças físicas recém-descobertas. A atenção do médico havia se desviado desse critério e passara a se concentrar, em vez disso, na incapacidade e no sofrimento como novos critérios de seleção. Assim, a princípio lentamente, coisas como histeria, hipocondria, neurose obsessivo-compulsiva e depressão foram adicionadas à categoria de doença. Depois, com crescente zelo, médicos e especialmente psiquiatras passaram a chamar de “doença” (isto é, evidentemente, doença mental) absolutamente tudo em que podiam detectar qualquer sinal de mau funcionamento, com base em não importa que regra. Portanto, a agorafobia é doença porque não se deveria ter medo de espaços abertos. A homossexualidade é doença porque a heterossexualidade é a norma social. Divórcio é doença porque indica o fracasso do casamento. Crime, arte, liderança política indesejada, participação em questões sociais ou o abandono dessa participação — todas essas e muitas outras coisas foram consideradas sinais de doença mental.3

A metáfora médica limita o que podemos ver tanto quanto a concepção estatística. Ela aceita o julgamento leigo de algo como desviante e, pelo uso de analogia, situa sua fonte dentro do indivíduo, impedindo-nos assim de ver o próprio julgamento como parte decisiva do fenômeno.

Alguns sociólogos usam um modelo de desvio baseado essencialmente nas noções médicas de saúde e doença. Consideram a sociedade, ou uma parte de uma sociedade, e perguntam se há nela processos em curso que tendem a diminuir sua estabilidade, reduzindo assim sua chance de sobrevivência. Rotulam esses processos de desviantes ou os identificam como sintomas de desorganização social. Discriminam entre aqueles traços da sociedade que promovem estabilidade (e são portanto “funcionais”) e os que rompem a estabilidade (e são portanto “disfuncionais”). Essa concepção tem a grande virtude de apontar para áreas de possível perturbação numa sociedade de que as pessoas poderiam não estar cientes.4

É mais difícil na prática do que parece ser na teoria especificar o que é funcional e o que é disfuncional para uma sociedade ou um grupo social. A questão de qual é o objetivo ou meta (função) de um grupo — e, conseqüentemente, de que coisas vão ajudar ou atrapalhar a realização desse objetivo — é muitas vezes política. Facções dentro do grupo discordam e manobram para ter sua própria definição da função do grupo aceita. A função do grupo ou organização, portanto, é decidida no conflito político, não dada na natureza da organização. Se isso for verdade, é igualmente verdadeiro que as questões de quais regras devem ser impostas, que comportamentos vistos como desviantes e que pessoas rotuladas como outsiders devem também ser encarados como políticas.5 A concepção funcional do desvio, ao ignorar o aspecto político do fenômeno, limita nossa compreensão.

Outra concepção sociológica é mais relativística. Ela identifica o desvio como a falha em obedecer a regras do grupo. Depois que descrevemos as regras que um grupo impõe a seus membros, podemos dizer com alguma precisão se uma pessoa as violou ou não, sendo portanto, nesta concepção, desviante.

Essa concepção é mais próxima da minha, mas não dá peso suficiente às ambigüidades que surgem ao se decidir quais regras devem ser tomadas como o padrão de comparação com referência ao qual o comportamento é medido e julgado desviante. Uma sociedade tem muitos grupos, cada qual com seu próprio conjunto de regras, e as pessoas pertencem a muitos grupos ao mesmo tempo. Uma pessoa pode infringir as regras de um grupo pelo próprio fato de ater-se às regras de outro. Nesse caso, ela é desviante? Os proponentes dessa definição talvez objetem que, embora possa surgir ambigüidade em relação às regras peculiares de um ou outro grupo na sociedade, há algumas regras que são geralmente aceitas por todos, caso em que a dificuldade não surge. Esta, claro, é uma questão de fato, a ser resolvida por pesquisa empírica. Duvido que existam muitas dessas áreas de consenso e considero mais sensato usar uma definição que nos permita lidar com as situações ambíguas e com aquelas sem ambigüidade.

Desvio e as reações dos outros

A concepção sociológica que acabo de discutir define o desvio como a infração de alguma regra geralmente aceita. Ela passa então a perguntar quem infringe regras e a procurar os fatores nas personalidades e situações de vida dessas pessoas, e que poderiam explicar as infrações. Isso pressupõe que aqueles que infringiram uma regra constituem uma categoria homogênea porque cometeram o mesmo ato desviante.

Tal pressuposto parece-me ignorar o fato central acerca do desvio: ele é criado pela sociedade. Não digo isso no sentido em que é comumente compreendido, de que as causas do desvio estão localizadas na situação social do desviante ou em “fatores sociais” que incitam sua ação. Quero dizer, isto sim, que grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma conseqüência da aplicação por outros de regras e sanções a um “infrator”. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal.6

Como o desvio é, entre outras coisas, uma conseqüência das reações de outros ao ato de uma pessoa, os estudiosos do desvio não podem supor que estão lidando com uma categoria homogênea quando estudam pessoas rotuladas de desviantes. Isto é, não podem supor que essas pessoas cometeram realmente um ato desviante ou infringiram alguma regra, porque o processo de rotulação pode não ser infalível; algumas pessoas podem ser rotuladas de desviantes sem ter de fato infringido uma regra. Além disso, não podem supor que a categoria daqueles rotulados conterá todos os que realmente infringiram uma regra, porque muitos infratores podem escapar à detecção e assim deixar de ser incluídos na população de “desviantes” que estudam. À medida que a categoria carece de homogeneidade e deixa de incluir todos os casos que lhe pertencem, não é sensato esperar encontrar fatores comuns de personalidade ou situação de vida que expliquem o suposto desvio.

O que é, então, que pessoas rotuladas de desviantes têm em comum? No mínimo, elas partilham o rótulo e a experiência de serem rotuladas como desviantes. Começarei minha análise com esta similaridade básica e verei o desvio como o produto de uma transação que tem lugar entre algum grupo social e alguém que é visto por esse grupo como infrator de uma regra. Estarei menos interessado nas características pessoais e sociais dos desviantes que no processo pelo qual eles passam a ser considerados outsiders e suas reações a esse julgamento.

Malinowski descobriu, muitos anos atrás, a utilidade dessa concepção para a compreensão da natureza do desvio, em seu estudo nas ilhas Trobriand.

Um dia uma explosão de gemidos e uma grande comoção me revelaram que ocorrera uma morte em algum lugar na vizinhança. Fui informado de que Kima’i, um garoto que eu conhecia, de cerca de 16 anos, caíra de um coqueiro e morrera…. Descobri que um outro rapaz fora gravemente ferido por alguma misteriosa coincidência. E no funeral havia obviamente um sentimento de hostilidade entre a aldeia em que o menino morreu e aquela para onde seu corpo foi levado para ser enterrado.

Só muito mais tarde consegui descobrir o verdadeiro significado desses eventos. O garoto se suicidara. A verdade era que ele infringira as regras de exogamia, e a parceira de seu crime era sua prima materna, a filha da irmã de sua mãe. Isso foi sabido e geralmente reprovado, mas nada se fizera até que o amante rejeitado da moça, que quisera desposá-la e sentira-se pessoalmente injuriado, tomou a iniciativa. Esse rival ameaçou primeiro usar magia negra contra o jovem culpado, mas isso não surtiu muito efeito. Depois, uma noite, ele insultou o culpado em público — acusando-o de incesto à vista de toda a comunidade e lançando-lhe certas expressões intoleráveis para um nativo.

Para isso, só havia um remédio; só restava uma saída ao infeliz rapaz. Na manhã seguinte ele vestiu um traje festivo, enfeitou-se e, tendo subido num coqueiro, dirigiu-se a toda a comunidade; falando em meio às folhas do coqueiro, despediu-se dela. Explicou as razões para o gesto desesperado e também lançou uma acusação velada contra o homem que o impelira para a morte, diante do que se tornou dever de seus companheiros de clã vingarem-se em seu nome. Depois gemeu alto, como é o costume, saltou de um coqueiro de cerca de 18 metros de altura e morreu no ato. Seguiu-se uma luta na aldeia, em que o rival foi ferido; e a briga repetiu-se durante o funeral….

Se fôssemos indagar sobre o assunto entre os nativos de Trobriand, descobriríamos … que eles demonstram horror à idéia de violação das regras de exogamia e acreditam que males, doença e até morte podem resultar de um incesto clânico. Esse é o ideal da lei nativa, e em questões morais é fácil e agradável aderir estritamente ao ideal — ao julgar a conduta de outros ou expressar uma opinião sobre conduta em geral.

Quando se trata da aplicação da moralidade e de ideais à vida real, contudo, as coisas podem assumir uma feição diferente. No caso descrito, era óbvio que os fatos não corresponderiam ao ideal de conduta. A opinião pública não ficou em nada ultrajada pelo conhecimento do crime, nem reagiu diretamente — teve de ser mobilizada por um relato público do crime e por insultos lançados ao culpado por uma parte interessada. Mesmo assim ele teve de levar a cabo, ele próprio, a punição…. Sondando mais profundamente a questão e colhendo informação concreta, descobri que a violação da exogamia — no tocante a relações sexuais, não a casamento — não é de modo algum uma ocorrência rara, e a opinião pública é leniente, embora decididamente hipócrita. Se o caso for levado adiante em segredo e com certo grau de decoro, e se ninguém em particular provocar tumulto, a “opinião pública” vai mexericar, mas não exigirá nenhuma punição severa. Se, ao contrário, irromper um escândalo, todos se voltarão contra o casal culpado e, por força de ostracismo ou insultos, um ou outro poderá ser levado ao suicídio.7

Se um ato é ou não desviante, portanto, depende de como outras pessoas reagem a ele. Uma pessoa pode cometer um incesto clânico e sofrer apenas com mexericos, contanto que ninguém faça uma acusação pública; mas será impelida à morte se a acusação for feita. O ponto é que a resposta das outras pessoas deve ser vista como problemática. O simples fato de uma pessoa ter cometido uma infração a uma regra não significa que outros reagirão como se isso tivesse acontecido. (Inversamente, o simples fato de ela não ter violado uma regra não significa que não possa ser tratada, em algumas circunstâncias, como se o tivesse feito.)

O grau em que outras pessoas reagirão a um ato dado como desviante varia enormemente. Diversos tipos de variação parecem dignos de nota. Antes de mais nada, há variação ao longo do tempo. Uma pessoa que se considera praticante de certo ato “desviante” pode em um momento despertar reações muito mais lenientes do que em algum outro momento. A ocorrência de “campanhas” contra vários tipos de desvio ilustra isso claramente. Em diversos momentos, os agentes da lei podem decidir fazer um ataque em regra a algum tipo particular de desvio, como jogos de azar, vício em drogas ou homossexualidade. É obviamente muito mais perigoso envolver-se numa dessas atividades quando uma campanha está em curso que em qualquer outro momento. (Num estudo muito interessante sobre notícias a respeito da criminalidade nos jornais do Colorado, Davis descobriu que a quantidade de crimes noticiados nos jornais do estado mostrava muito pouca associação com mudanças reais na quantidade de crimes que ocorriam no território. E, além disso, que a estimativa das pessoas sobre o aumento da criminalidade em Colorado estava associada ao aumento na quantidade de notícias de crime, não a qualquer aumento na quantidade de crimes. 8)

O grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem o comete e de quem se sente prejudicado por ele. Regras tendem a ser aplicadas mais a algumas pessoas que a outras. Estudos da delinqüência juvenil deixam isso muito claro. Meninos de áreas de classe média, quando detidos, não chegam tão longe no processo legal como os meninos de bairros miseráveis. O menino de classe média tem menos probabilidade, quando apanhado pela polícia, de ser levado à delegacia; menos probabilidade, quando levado à delegacia, de ser autuado; e é extremamente improvável que seja condenado e sentenciado.9 Essa variação ocorre ainda que a infração original da norma seja a mesma nos dois casos. De maneira semelhante, a lei é diferencialmente aplicada a negros e brancos. Sabe-se muito bem que um negro que supostamente atacou uma mulher branca tem muito maior probabilidade de ser punido que um branco que comete a mesma infração; sabe-se um pouco menos que um negro que mata outro negro tem menor probabilidade de ser punido que um branco que comete homicídio.10 Este, claro, é um dos principais pontos da análise que Sutherland faz do crime do colarinho-branco: delitos cometidos por empresas são quase sempre processados como causa civil, mas o mesmo crime cometido por um indivíduo é usualmente tratado como delito criminal.11

Algumas regras são impostas somente quando resultam em certas conseqüências. A mãe solteira fornece um claro exemplo. Vincent salienta que relações sexuais ilícitas raramente resultam em punição severa ou censura social para os infratores.12 Se uma moça engravida em decorrência dessas atividades, no entanto, a reação dos outros provavelmente será severa. (A gravidez ilícita é também um interessante exemplo da imposição diferencial de regras sobre diversas categorias de pessoas. Vincent observa que pais solteiros escapam da severa censura infligida à mãe.)

Por que repetir estas observações banais? Porque, tomadas em seu conjunto, elas sustentam a proposição de que o desvio não é uma qualidade simples, presente em alguns tipos de comportamento e ausente em outros. É antes o produto de um processo que envolve reações de outras pessoas ao comportamento. O mesmo comportamento pode ser uma infração das regras num momento e não em outro; pode ser uma infração quando cometido por uma pessoa, mas não quando cometido por outra; algumas regras são infringidas com impunidade, outras não. Em suma, se um dado ato é desviante ou não, depende em parte da natureza do ato (isto é, se ele viola ou não alguma regra) e em parte do que outras pessoas fazem acerca dele.

Pode-se objetar que essa é uma simples crítica terminológica menor, que, afinal, podemos definir termos da maneira que quisermos e que, se alguns querem falar do comportamento de violação de regra como desviante sem referência às reações dos outros, são livres para fazê-lo. Isso é sem dúvida verdade. Talvez valesse a pena, contudo, referir-se a tal comportamento como comportamento de violação de regra, e reservar o termo desviante para aqueles rotulados como tal por algum segmento da sociedade. Não insisto em que esse uso seja seguido. Mas deveria ficar claro que, à medida que um cientista usar “desviante” para se referir a qualquer comportamento de violação de regra, e tomar como seu objeto de estudo apenas aqueles que foram rotulados desviantes, será estorvado pelas disparidades entre as duas categorias.

Se tomamos como objeto de nossa atenção o comportamento que vem a ser rotulado de desviante, devemos reconhecer que não podemos saber se um dado ato será categorizado como desviante até que a reação dos outros tenha ocorrido. Desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aquelas que reagem a ele.

Regras de quem?

Venho usando o termo “outsiders” para designar aquelas pessoas que são consideradas desviantes por outras, situando-se por isso fora do círculo dos membros “normais” do grupo. Mas o termo contém um segundo significado, cuja análise leva a um outro importante conjunto de problemas sociais: “outsiders”, do ponto de vista da pessoa rotulada de desviante, podem ser aquelas que fazem as regras de cuja violação ela foi considerada culpada.

Regras sociais são criação de grupos sociais específicos. As sociedades modernas não constituem organizações simples em que todos concordam quanto ao que são as regras e como elas devem ser aplicadas em situações específicas. São, ao contrário, altamente diferenciadas ao longo de linhas de classe social, linhas étnicas, linhas ocupacionais e linhas culturais. Esses grupos não precisam partilhar as mesmas regras e, de fato, freqüentemente não o fazem. Os problemas que eles enfrentam ao lidar com seu ambiente, a história e as tradições que carregam consigo, todos conduzem à evolução de diferentes conjuntos de regras. À medida que as regras de vários grupos se entrechocam e contradizem, haverá desacordo quanto ao tipo de comportamento apropriado em qualquer situação dada.

Imigrantes italianos que continuaram fabricando seu próprio vinho para si e para os amigos durante a Lei Seca estavam agindo adequadamente segundo os padrões dos imigrantes italianos, mas violavam a lei de seu novo país (como também o faziam, é claro, muitos de seus velhos vizinhos norte-americanos). Pacientes que consultam vários médicos, da perspectiva de seu próprio grupo, talvez estejam fazendo o necessário para proteger sua saúde, assegurando-se de conseguir o que lhes parece ser o melhor médico possível; da perspectiva do médico, porém, o que fazem é errado, porque viola a regra da confiança que o paciente deveria depositar em seu médico. O delinqüente de classe baixa que luta para defender seu “território” faz apenas o que considera necessário e direito, mas professores, assistentes sociais e a polícia vêem isso de maneira diferente.

Embora se possa afirmar que muitas regras ou a maioria delas conta com a concordância geral de todos os membros de uma sociedade, a pesquisa empírica sobre uma determinada regra em geral revela variação nas atitudes das pessoas. Regras formais, impostas por algum grupo especialmente constituído, podem diferir daquelas de fato consideradas apropriadas pela maioria das pessoas.13 Facções de um grupo podem discordar quanto ao que chamei de regras operantes efetivas. Mais importante para o estudo do comportamento de hábito rotulado como desviante, as perspectivas das pessoas que se envolvem são provavelmente muito diferentes das visões daquelas que o condenam. Nesta última situação, uma pessoa pode sentir que está sendo julgada segundo normas para cuja criação não contribuiu e que não aceita, normas que lhe são impostas por outsiders.

Em que medida e em que circunstâncias pessoas tentam impor suas regras a outros que não as aprovam? Vamos distinguir dois casos. No primeiro, somente aqueles que são realmente membros do grupo têm algum interesse em fazer e impor certas regras. Se um judeu ortodoxo desobedece às leis da kashrut,b somente outros judeus ortodoxos verão isso como transgressão. Cristão ou judeus não-ortodoxos não considerarão um desvio nem teriam nenhum interesse em intervir. No segundo caso, integrantes de um grupo consideram importante para seu bem-estar que membros de alguns outros grupos obedeçam a certas regras. Assim, algumas pessoas consideram extremamente importante que aqueles que praticam as artes terapêuticas atenham-se a certas regras; é por isso que o Estado licencia médicos, enfermeiros e outros, e proíbe todos os não licenciados de se envolver em atividades terapêuticas.

À medida que um grupo tenta impor suas regras a outros na sociedade, somos apresentados a uma segunda questão: quem, de fato, obriga outros a aceitar suas regras e quais são as causas de seu sucesso? Esta é, claro, uma questão de poder político e econômico. Mais adiante iremos analisar o processo político e econômico pelo qual as regras são criadas e impostas. Aqui, é suficiente observar que as pessoas estão sempre, de fato, impondo suas regras a outras, aplicando-as mais ou menos contra a vontade e sem o consentimento desses outros. Em geral, por exemplo, regras são feitas pelos mais velhos para os jovens. Embora a juventude norte-americana exerça uma forte influência cultural — os meios de comunicação de massa são feitos sob medida para seus interesses, por exemplo —, muitos tipos importantes de regras são criados para os jovens pelos adultos. Regras relativas ao comparecimento na escola e ao comportamento sexual não são formuladas tendo-se em vista os problemas da adolescência. De fato, adolescentes se vêem cercados por regras concernentes a esses assuntos feitas por pessoas mais velhas e acomodadas. Vê-se como legítima essa atitude, porque os jovens não são considerados sensatos nem responsáveis o bastante para traçar regras adequadas para si mesmos.

Da mesma maneira, é verdade, em muitos aspectos, que os homens fazem regras para as mulheres em nossa sociedade (embora nos Estados Unidos isso esteja mudando rapidamente). Os negros vêem-se sujeitos às regras feitas para eles por brancos. Os nascidos no exterior e aqueles etnicamente peculiares de outra maneira muitas vezes têm regras elaboradas para eles pela minoria anglo-saxã protestante. A classe média traça regras que a classe baixa deve obedecer — nas escolas, nos tribunais e em outros lugares.

Diferenças na capacidade de fazer regras e aplicá-las a outras pessoas são essencialmente diferenciais de poder (seja legal ou extralegal). Aqueles grupos cuja posição social lhes dá armas e poder são mais capazes de impor suas regras. Distinções de idade, sexo, etnicidade e classe estão todas relacionadas a diferenças em poder, o que explica diferenças no grau em que grupos assim distinguidos podem fazer regras para outros.

Além de reconhecer que o desvio é criado pelas reações de pessoas a tipos particulares de comportamento, pela rotulação desse comportamento como desviante, devemos também ter em mente que as regras criadas e mantidas por essa rotulação não são universalmente aceitas. Ao contrário, constituem objeto de conflito e divergência, parte do processo político da sociedade.

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a A edição anterior deste capítulo em português optou por traduzir outsiders por “marginais e desviantes”, assinalando que “marginais” significava, nesse contexto, alguém que está do lado de fora, para além das margens de determinada fronteira ou limite social. Na presente edição, optou-se por manter o termo outsider porque seu uso já se tornou consagrado nas ciências sociais. (N.R.T.)

b Regras alimentares judaicas. (N.T.)