2

Tipos de desvio:
um modelo seqüencial

Não é minha intenção aqui afirmar que somente atos considerados desviantes por outros são “realmente” desviantes. Mas é preciso reconhecer que esta é uma dimensão importante, que deve ser levada em conta em qualquer análise de comportamento desviante. Combinando essa dimensão com outra — se um ato adequa-se ou não a uma regra particular —, podemos construir o seguinte conjunto de categorias para a discriminação de diferentes tipos de desvio.

Dois desses tipos demandam muito pouca explicação. Comportamento apropriado é simplesmente aquele que obedece à regra e que outros percebem como tal. No outro extremo, o tipo desviante puro de comportamento é aquele que desobedece à regra e é percebido como tal.a

Tipos de comportamento desviante

  Comportamento Comportamento infrator
Percebido como desviante Falsamente acusado Desviante puro
Não percebido como desviante Apropriado Desviante secreto

As duas outras possibilidades são de interesse mais amplo. A situação falsamente acusado é aquela a que criminosos muitas vezes se referem como “bum rap”.b A pessoa é vista pelos outros como se tivesse cometido uma ação imprópria, embora de fato não o tenha feito. Falsas acusações ocorrem mesmo em tribunais, onde a pessoa é protegida por regras processuais e de prova. Provavelmente ocorrem com muito maior freqüência em contextos não legais, em que salvaguardas processuais não estão disponíveis.

Um tipo de caso ainda mais interessante é encontrado no outro extremo, o desvio secreto. Aqui, um ato impróprio é cometido, mas ninguém o percebe ou reage a ele como uma violação das regras. Como no caso da falsa acusação, ninguém sabe realmente em que medida o fenômeno existe, mas estou convencido de que a quantidade é bastante grande, muito mais do que pensamos. Uma breve observação me convence de que isso é verdade. A maioria das pessoas provavelmente vê o fetichismo (e o fetichismo sadomasoquista em particular) como uma perversão rara e exótica. Vários anos atrás, no entanto, tive ocasião de examinar o catálogo de um vendedor de fotografias pornográficas destinadas exclusivamente a devotos dessa especialidade. O catálogo não continha nenhuma foto de nus, nenhuma foto de qualquer versão do ato sexual. Em contrapartida, continha páginas e mais páginas de fotos de moças vestindo camisas-de-força, usando botas com saltos de 15 centímetros de altura, empunhando chicotes, algemadas e espancando-se umas às outras. Cada página servia de amostra para nada menos que 120 fotos estocadas pelo vendedor. Um cálculo rápido revelou que o catálogo anunciava para venda imediata algo entre 15 e 20 mil diferentes fotografias. O próprio catálogo era dispendiosamente impresso, e esse fato, ao lado do número de fotos à venda, indicava que o vendedor tinha um negócio florescente e uma clientela bem grande. No entanto, não topamos com fetichistas sadomasoquistas a toda hora. Obviamente, eles são capazes de manter em segredo sua perversão (“Todas as encomendas enviadas num envelope simples”).1

Observações semelhantes foram feitas por estudiosos da homossexualidade, relatando que muitos homossexuais são capazes de ocultar seu desvio de companheiros não desviantes. E muitos usuários de narcóticos, como veremos adiante, são capazes de ocultar sua adição dos não-usuários com que se associam.

Os quatro tipos teóricos de desvio, que criamos ao fazer uma classificação cruzada de tipos de comportamento e das reações que evocam, distinguem fenômenos que diferem em aspectos importantes, mas são usualmente considerados semelhantes. Se ignorarmos as diferenças, poderemos cometer a falácia de tentar explicar vários tipos de coisas da mesma maneira e ignorar a possibilidade de que exijam variadas explicações. Um menino que inocentemente dá umas voltas por perto de um grupo delinqüente pode ser preso com eles, alguma noite, como suspeito. Ele aparecerá nas estatísticas oficiais como delinqüente tanto quanto aqueles que estavam realmente envolvidos em delitos. Os cientistas sociais que se empenham em desenvolver teorias para explicar a delinqüência tentarão explicar sua presença nos registros oficiais da mesma maneira como se esforçam para explicar a presença dos outros.2 Mas os casos são diferentes. A mesma explicação não servirá para ambos.

Modelos simultâneo e seqüencial de desvio

A discriminação de tipos de desvio pode nos ajudar a compreender como o comportamento desviante se origina. Fará isso ao nos permitir desenvolver um modelo seqüencial do desvio que leva em conta a mudança ao longo do tempo. Antes de discutir o próprio modelo, porém, consideremos as diferenças entre o modelo seqüencial e o simultâneo no desenvolvimento do comportamento individual.

Antes de mais nada, observemos que quase toda pesquisa sobre desvio lida com o tipo de questão que surge quando ele é encarado como patológico. Isto é, a pesquisa tenta descobrir a “etiologia” da “doença”. Busca desvelar as causas do comportamento indesejado.

Essa investigação é tipicamente empreendida com as ferramentas da análise multivariada. As técnicas e ferramentas usadas na pesquisa social contêm invariavelmente um compromisso teórico e metodológico, e este é o caso aqui. A análise multivariada pressupõe (ainda que seus usuários possam de fato saber melhor sobre isso) que todos os fatores que operam para produzir o fenômeno sob estudo o fazem simultaneamente. Ela busca descobrir que variável ou que combinação de variáveis poderá “predizer” melhor o comportamento sob estudo. Assim, uma pesquisa sobre a delinqüência juvenil pode tentar descobrir se é o quociente de inteligência, a área em que uma criança vive, se ela vem ou não de um lar desfeito, ou uma combinação desses fatores que explica o fato de ela ser delinqüente.

Na verdade, porém, todas as causas não operam ao mesmo tempo, e precisamos de um modelo que leve em conta o fato de que padrões de comportamento se desenvolvem numa seqüência ordenada. Ao explicar o uso de maconha por um indivíduo, como veremos adiante, devemos lidar com uma seqüência de passos, de mudanças no comportamento e nas perspectivas do indivíduo, a fim de compreender o fenômeno. Cada passo requer explicação, e o que opera como causa em um passo da seqüência pode ter importância desprezível em outro. Precisamos, por exemplo, de um tipo de explicação de como uma pessoa chega à situação em que a maconha lhe é facilmente disponível, e outro tipo de explicação sobre por que, dada a disponibilidade da droga, ela se inclina a experimentá-la pela primeira vez. E precisamos ainda de outra explicação: por que, tendo-a experimentado, a pessoa continua a usá-la. De alguma maneira, cada explicação constitui uma causa necessária do comportamento. Ou seja, ninguém pode se tornar usuário de maconha se não tiver dado cada passo. Essa pessoa precisa ter tido acesso à droga, experimentado-a e continuado seu uso. A explicação de cada passo é assim parte da explicação do comportamento resultante.

No entanto, as variáveis que explicam cada passo, tomadas separadamente, não distinguem entre usuários e não-usuários. A variável que permite a uma pessoa dar determinado passo pode não operar porque ela ainda não atingiu o estágio no processo em que é possível dá-lo. Suponhamos, por exemplo, que um dos passos na formação de um padrão habitual de uso de drogas — disposição para experimentar a droga — seja realmente resultado de uma variável de personalidade ou de orientação pessoal, como a alienação de normas convencionais. A variável da alienação pessoal, contudo, só produzirá uso de drogas em pessoas que estão em condições de experimentá-las porque participam de grupos em que elas estão disponíveis; pessoas alienadas e para as quais as drogas não estão disponíveis não podem iniciar a experimentação e, por conseguinte, não podem se tornar usuárias, por mais alienadas que sejam. A alienação poderia, portanto, ser uma causa necessária do uso de drogas, mas só é critério de prisão entre usuários e não-usuários num estágio particular do processo.

Uma concepção útil no desenvolvimento de modelos seqüenciais de vários tipo de comportamento desviante é a de carreira.3 Originalmente desenvolvido em estudos de ocupações, o conceito se refere à seqüência de movimentos de uma posição para outra num sistema ocupacional, realizados por qualquer indivíduo que trabalhe dentro desse sistema. Além disso, inclui a noção de “contingência de carreira”, aqueles fatores dos quais depende a mobilidade de uma posição para outra. Contingências de carreira incluem tanto fatos objetivos de estrutura social quanto mudanças nas perspectivas, motivações e desejos do indivíduo. Em geral, no estudo de ocupações, usamos o conceito para distinguir entre os que têm uma carreira “bem-sucedida” (quaisquer que sejam os termos em que o sucesso é definido dentro da ocupação) e aqueles que não têm. Ele pode ser usado também para discernir diversas variedades de resultados de carreiras, ignorando a questão do “sucesso”.

O modelo pode ser facilmente transformado para o estudo de carreiras desviantes. Ao modificá-lo dessa maneira, não deveríamos restringir nosso interesse àqueles que seguem uma carreira que os leva a desvios cada vez maiores, àqueles que, em última análise, assumem uma identidade e um modo de vida extremamente desviantes. Deveríamos considerar também os que têm um contato mais fugaz com o desvio, cujas carreiras os afasta dele rumo a maneiras de viver convencionais. Assim, por exemplo, estudos de delinqüentes que não se tornam criminosos adultos poderiam nos ensinar mais que os de delinqüentes que progridem no crime.

Irei considerar a seguir as possibilidades inerentes à abordagem do desvio como carreira. Depois passarei a um estudo de um tipo particular de desvio: o uso de maconha.

Carreiras desviantes

O primeiro passo na maioria das carreiras desviantes é o cometimento de um ato não apropriado, um ato que infringe algum conjunto particular de regras. Como explicar o primeiro passo?

As pessoas usualmente pensam em atos desviantes como motivados. Acreditam que a pessoa que comete um ato desviante, mesmo pela primeira vez (e talvez especialmente pela primeira vez), pratica-o de propósito. Seu propósito pode ser ou não inteiramente consciente, mas há uma força motivacional por trás dele. Logo passaremos à consideração de casos de não-conformidade intencional, mas primeiro quero salientar que muitos atos não apropriados são cometidos por pessoas que não têm intenção alguma de fazê-lo; estes demandam claramente uma explicação diferente.

Atos não intencionais de desvio provavelmente são explicados de maneira relativamente simples. Eles implicam uma ignorância da existência de regra, ou do fato de que ela é aplicável nesse caso, ou a essa pessoa particular. Mas é necessário explicar a falta de conhecimento. Como pode alguém saber que seu ato é impróprio? Pessoas profundamente envolvidas numa subcultura particular (como uma subcultura religiosa ou étnica) podem simplesmente não ter consciência de que nem todos agem “daquela maneira” e assim cometer uma impropriedade. Pode, de fato, haver áreas estruturadas de ignorância de regras particulares. Mary Haas salientou o interessante caso dos tabus vocabulares interlinguais.4 Palavras perfeitamente apropriadas numa língua podem ter um sentido “grosseiro” em outra. Assim, a pessoa que usa uma palavra comum em sua própria língua descobre que chocou e horrorizou seus ouvintes que vêm de uma cultura diferente.

Ao analisar casos de não-conformidade intencional, as pessoas geralmente perguntam sobre a motivação: por que a pessoa quer fazer a coisa desviante que faz? A pergunta pressupõe que a diferença básica entre os desviantes e os que se conformam reside no caráter de sua motivação. Foram propostas muitas teorias para explicar por que alguns têm motivações desviantes e outros não. Teorias psicológicas encontram a causa de motivações e atos desviantes nas primeiras experiências do indivíduo, produzindo necessidades inconscientes que devem ser satisfeitas para que ele mantenha seu equilíbrio. Teorias sociológicas procuram fontes socialmente estruturadas de “tensão” na sociedade, posições sociais sujeitas a tais demandas conflitantes, de modo que o indivíduo busca uma maneira ilegítima de resolver os problemas que sua posição lhe apresenta. (A famosa teoria da anomia de Merton se encaixa nessa categoria.)5

Mas os pressupostos em que essas abordagens se fundam podem ser inteiramente falsos. Não há razão para se supor que somente aqueles que finalmente cometem um ato desviante têm o impulso de fazê-lo. É muito mais provável que a maioria das pessoas experimente impulsos desviantes com freqüência. Pelo menos em fantasia, as pessoas são muito mais desviantes do que parecem. Em vez de perguntar por que desviantes querem fazer coisas reprovadas, seria melhor que perguntássemos por que as pessoas convencionais não se deixam levar pelos impulsos desviantes que têm.

Uma espécie de resposta para essa pergunta pode ser encontrada no processo de compromisso pelo qual a pessoa “normal” torna-se progressivamente envolvida em instituições e comportamento convencionais. Ao falar em compromisso, refiro-me ao processo através do qual vários tipos de interesses tornam-se ligados de modo restrito a certas linhas de comportamento às quais são formalmente alheios.6 O que acontece é que o indivíduo, em conseqüência de ações que praticou no passado ou da operação de várias rotinas institucionais, descobre que deve aderir a certas linhas de comportamento, porque muitas outras atividades que não aquela em que está envolvido de forma direta serão adversamente afetadas se não o fizer. O jovem de classe média não deve abandonar a escola porque seu futuro profissional depende do grau de instrução. A pessoa convencional não deve satisfazer seus interesses por narcóticos, por exemplo, porque está em jogo muito mais que a busca de prazer imediato; talvez julgue que o emprego, a família e a reputação na vizinhança dependem de que continue a evitar a tentação.

De fato, o desenvolvimento normal das pessoas em nossa sociedade (e provavelmente em qualquer sociedade) pode ser visto como uma série de compromissos progressivamente crescentes com normas e instituições convencionais. A pessoa “normal”, quando descobre em si um impulso desviante, é capaz de controlá-lo pensando nas múltiplas conseqüências que ceder a ele lhe produziria. Já apostou demais em continuar a ser normal para se permitir ser dominada por impulsos não-convencionais.

Isso sugere que ao examinar casos de não-conformidade intencional, devemos perguntar como a pessoa consegue evitar o impacto de compromissos convencionais. Ela pode fazê-lo de duas maneiras. Antes de mais nada, no curso de seu desenvolvimento, a pessoa pode ter evitado de algum modo alianças embaraçosas com a sociedade convencional. Assim, é possível que esteja livre para seguir seus impulsos. A pessoa que não tem uma reputação a zelar ou um emprego convencional a conservar pode seguir seus impulsos. Não apostou nada em continuar a parecer convencional.

A maioria das pessoas, contudo, permanece sensível a códigos de conduta convencionais e tem de lidar com suas sensibilidades para se envolver num ato desviante pela primeira vez. Sykes e Matza sugeriram que os delinqüentes realmente sentem fortes impulsos para cumprir a lei, e lidam com eles mediante técnicas de neutralização: “Justificações para o desvio que são vistas como válidas pelo delinqüente, mas não pelo sistema legal ou pela sociedade em geral.” Eles distinguem várias técnicas para neutralizar a força dos valores de aceitação da ordem.

À medida que se pode definir o delinqüente como aquele que carece de responsabilidade por suas ações desviantes, a reprovação dele mesmo ou de outros é claramente reduzida em eficácia como a influência repressora…. O delinqüente se aproxima de uma concepção de si como uma “bola de bilhar”, vê a si mesmo como irremediavelmente impelido para novas situações…. Aprendendo a se ver mais como objeto de ação do que como agente, o delinqüente prepara o caminho para o desvio em relação ao sistema normativo dominante sem a necessidade de um ataque frontal às próprias normas….

Uma segunda técnica importante de neutralização centra-se no dano ou prejuízo envolvido no ato delinqüente…. Para o delinqüente, … a transgressão pode ser uma questão de ter alguém sido ou não claramente prejudicado por seu desvio, e isso é passível de uma variedade de interpretações…. O roubo de automóvel pode ser visto como “empréstimo”, e luta de gangues como uma disputa privada, um duelo como disputa travada de comum acordo entre dois grupos, sem importância, portanto, para a comunidade em geral….

Sua própria indignação moral ou a dos outros pode ser neutralizada por uma insistência em que o dano não está errado à luz das circunstâncias. O dano, pode-se afirmar, não é realmente um dano; é antes uma forma de legítima retaliação ou punição…. Ataques a homossexuais ou a pessoas suspeitas de homossexualidade, investidas contra integrantes de grupos minoritários que teriam sido apanhados “fora de lugar”, vandalismo como vingança contra uma autoridade escolar ou professor injusto, roubos de um lojista trapaceiro — tudo pode ser, aos olhos do delinqüente, danos infligidos a um transgressor….

Uma quarta técnica de neutralização parece envolver uma condenação dos condenadores…. Seus condenadores, pode ele afirmar, são hipócritas, desviantes disfarçados, ou impelidos por despeito pessoal…. Com esse ataque aos outros, a transgressão de seu próprio comportamento é mais facilmente reprimida ou ignorada….

Controles internos e externos podem ser neutralizados sacrificando-se as exigências da sociedade mais ampla diante das imposições dos grupos sociais menores a que o delinqüente pertence, como os “irmãos”, a gangue, a turma de amigos…. O aspecto mais importante é que o desvio em relação a certas normas pode ocorrer não porque as normas sejam rejeitadas, mas porque outras normas, consideradas mais prementes ou envolvendo maior lealdade, ganham precedência.7

Em alguns casos, é possível que um ato não apropriado pareça necessário ou conveniente para uma pessoa em geral cumpridora da lei. Empreendido na busca de interesses legítimos, o ato desviante se torna, se não de todo apropriado, pelo menos não de todo impróprio. Encontramos um bom exemplo num romance que trata de um jovem médico ítalo-americano.8 O rapaz, recém-saído da escola de medicina, gostaria de ter uma clientela que não se fundasse em sua nacionalidade. Sendo italiano, porém, tem dificuldade em ganhar aceitação de profissionais ianques de sua comunidade. Um dia é subitamente solicitado por um dos maiores cirurgiões a tratar de um caso para ele, e pensa que finalmente será admitido no sistema de recomendações dos melhores médicos da cidade. Quando o paciente chega a seu consultório, porém, constata que se trata de um caso de aborto ilegal. Vendo, de maneira equivocada, a recomendação como o primeiro passo numa relação regular com o cirurgião, ele realiza a operação. Esse ato, embora impróprio, é considerado necessário para a construção de sua carreira.

Mas estamos menos interessados na pessoa que comete um ato desviante apenas uma vez do que naquela que mantém um padrão de desvio por um longo período de tempo, faz do desvio uma maneira de viver, organiza sua identidade em torno de um padrão de comportamento desviante. Não é sobre os que fazem experiências casuais com a homossexualidade (e que apareceram em números tão surpreendentemente expressivos no Relatório Kinsey) que queremos saber, mas sobre a pessoa que segue um padrão de atividade homossexual durante toda a sua vida adulta.

Um dos mecanismos que levam da experimentação casual a um padrão mais permanente de atividade desviante é o desenvolvimento de motivos e interesses desviantes. Examinaremos esse processo em detalhe mais adiante, quando considerarmos a carreira do usuário de maconha. Aqui é suficiente dizer que muitos tipos de atividade desviante provêm de motivos socialmente aprendidos. Antes de se envolver na atividade em bases mais ou menos regulares, a pessoa não tem noção dos prazeres que dela podem ser obtidos; toma conhecimento deles no curso da interação com desviantes mais experientes. Aprende a ter consciência de novos tipos de experiência e a pensar neles como prazerosos. O que certamente pode ter sido um impulso aleatório de experimentar algo novo torna-se um gosto estabelecido por algo já conhecido e experimentado. Os vocabulários nos quais motivações desviantes são expressas revelam que seus usuários os adquirem na interação com outros desviantes. O indivíduo aprende, em suma, a participar de uma subcultura organizada em torno da atividade desviante particular.

As motivações desviantes têm um caráter social mesmo quando a maior parte da atividade é realizada de uma forma privada, secreta e solitária. Nesses casos, vários meios de comunicação podem assumir o lugar da interação face a face na introdução do indivíduo à cultura. As fotografias pornográficas que mencionei anteriormente eram descritas para possíveis compradores em linguagem estilizada. Palavras comuns eram usadas numa terminologia técnica destinada a despertar paladares específicos. A palavra “servidão”, por exemplo, era empregada repetidas vezes para aludir a fotos de mulheres algemadas ou presas em camisas-de-força. Não se adquire gosto por “fotos de servidão” sem ter aprendido o que são e como podem ser apreciadas.

Um dos passos mais decisivos no processo de construção de um padrão estável de comportamento desviante talvez seja a experiência de ser apanhado e rotulado publicamente de desviante. Se alguém dá ou não esse passo, depende menos do que ele faz do que daquilo que outras pessoas fazem, do fato de elas imporem ou não a regra que ele violou. Vou considerar em detalhe, adiante, as circunstâncias nas quais a imposição tem lugar, mas duas observações são necessárias. Antes de mais nada, ainda que ninguém descubra a impropriedade ou imponha as regras contra ela, o indivíduo que cometeu a impropriedade pode agir ele próprio como impositor. Pode marcar a si mesmo como desviante em razão do que fez e punir-se de uma maneira ou de outra por seu comportamento. Esse não é sempre ou necessariamente o caso, mas pode acontecer. Segundo, pode haver casos como aqueles descritos por psicanalistas em que o indivíduo realmente quer ser apanhado e perpetra seu ato desviante de tal maneira que quase certamente será.

Em qualquer dos casos, ser apanhado e marcado como desviante tem importantes conseqüências para a participação social mais ampla e a auto-imagem do indivíduo. A mais importante é uma mudança drástica em sua identidade pública. Cometer o ato impróprio e ser apanhado lhe confere um novo status. Ele revelou-se um tipo de pessoa diferente do que supostamente era. É rotulado de “bicha”, “viciado”, “maluco” ou “doido”,c e tratado como tal.

Ao analisar as conseqüências da adoção de uma identidade desviante, vamos fazer uso da distinção que Hughes estabelece entre traços de status principais e auxiliares.9 Hughes observa que a maioria dos status tem um traço-chave que serve para distinguir entre os que os possuem ou não. Assim, o médico, não importa o que mais possa ser, é alguém que tem um certificado afirmando que preencheu certos requisitos e está licenciado para praticar a medicina; esse é o traço principal. Como Hughes mostra, na sociedade norte-americana presume-se também informalmente que um médico tenha vários traços auxiliares: a maioria das pessoas espera que ele seja da classe média alta, branco, do sexo masculino e protestante. Se não for assim, tem-se a impressão de que de certo modo não preencheu os requisitos. De maneira semelhante, embora a cor da pele seja o traço principal para determinar quem é negro e quem é branco, espera-se informalmente que os negros tenham certos traços de status, e não tenham outros; as pessoas ficam surpresas e vêem como anomalia o fato de um negro ser um médico ou professor universitário. As pessoas freqüentemente possuem o traço de status principal, mas carecem de algumas das características auxiliares informalmente esperadas; por exemplo, alguém pode ser médico, mas do sexo feminino ou negro.

Hughes lida com esse fenômeno em relação a status que são bem vistos, desejados ou desejáveis (observando que se pode possuir as qualificações formais para ingressar num status, e ainda assim ter o pleno acesso negado pela falta dos traços auxiliares apropriados), mas o mesmo processo ocorre no caso de status desviantes. A posse de um traço desviante pode ter um valor simbólico generalizado, de modo que as pessoas dão por certo que seu portador possui outros traços indesejáveis presumivelmente associados a ele.

Para ser rotulado de criminoso só é necessário cometer um único crime, isso é tudo a que o termo formalmente se refere. No entanto a palavra traz consigo muitas conotações que especificam traços auxiliares característicos de qualquer pessoa que carregue o rótulo. Presume-se que um homem condenado por arrombamento, e por isso rotulado de criminoso, seja alguém que irá assaltar outras casas; a polícia, ao recolher delinqüentes conhecidos para investigação após um crime, opera com base nessa premissa. Além disso, considera-se provável que ele cometa também outros tipos de crime, porque se revelou uma pessoa sem “respeito pela lei”. Assim, a detenção por um ato desviante expõe uma pessoa à probabilidade de vir a ser encarada como desviante ou indesejável em outros aspectos.

Há outro elemento na análise de Hughes que podemos tomar emprestado com proveito: a distinção entre status principal e subordinado.10 Alguns status, em nossa sociedade como em outras, sobrepõem-se a todos os outros e têm certa prioridade. Raça é um deles. O pertencimento à raça negra, tal como socialmente definida, irá sobrepujar a maior parte das outras considerações na maioria das outras situações; o fato de alguém ser médico, ou de classe média ou do sexo feminino não o protegerá contra o fato de ser tratado em primeiro lugar como negro, e depois como qualquer um desses aspectos. O status de desviante (dependendo do tipo de desvio) é esse tipo de status principal. Uma pessoa recebe o status como resultado da violação de uma regra, e a identificação prova-se mais importante que a maior parte das outras. Ela será identificada primeiro como desviante, antes que outras identificações sejam feitas. Formula-se a pergunta: “Que tipo de pessoa infringiria uma regra tão importante?” E a resposta é dada: “Alguém que é diferente de nós, que não pode ou não quer agir como um ser humano moral, sendo portanto capaz de infringir outras regras importantes.” A identificação desviante torna-se a dominante.

Tratar uma pessoa como se ela fosse em geral, e não em particular, desviante produz uma profecia auto-realizadora. Ela põe em movimento vários mecanismos que conspiram para moldar a pessoa segundo a imagem que os outros têm dela.11 Em primeiro lugar, após ser identificada como desviante, ela tende a ser impedida de participar de grupos mais convencionais, num isolamento que talvez as conseqüências específicas da atividade desviante nunca pudessem causar por si mesmas caso não houvesse o conhecimento público e a reação a ele. Por exemplo, ser homossexual pode não afetar a capacidade que uma pessoa tem de realizar serviços de escritório, mas ser conhecido como homossexual num escritório talvez torne impossível continuar trabalhando ali. De maneira semelhante, ainda que os efeitos de drogas opiáceas possam não prejudicar a capacidade de trabalho de uma pessoa, ser conhecida como viciada provavelmente a fará perder o emprego. Nesse caso, o indivíduo encontra dificuldade em se conformar a outras regras que não tem intenção ou desejo de infringir, e se descobre forçosamente desviante também nessas áreas. O homossexual privado de um emprego “respeitável” pela descoberta de seu desvio pode ser levado a assumir ocupações não-convencionais, marginais, em que isso não faz tanta diferença. O viciado em drogas se vê impelido para outros tipos de atividade ilegítima, como roubo e furto, porque os empregadores respeitáveis se recusam a tê-lo por perto.

Quando apanhado, o desviante é tratado de acordo com o diagnóstico popular que descreve sua maneira de ser, e esse tratamento pode, ele mesmo, de maneira semelhante, produzir um desvio crescente. O viciado, popularmente visto como um indivíduo sem força de vontade, que não consegue se privar dos prazeres indecentes que lhe são fornecidos pelas drogas opiáceas, é tratado de forma repressiva. Proíbem-no de usar drogas. Como não consegue obter drogas legalmente, tem de obtê-las ilegalmente. Isso impele o mercado para a clandestinidade e empurra o preço das drogas para cima, muito além do legítimo preço de mercado corrente, para um nível que poucos têm condições de pagar com um salário comum. Portanto, o tratamento do desvio do drogado situa-o numa posição em que será provavelmente necessário recorrer a fraude e crime para sustentar seu hábito.12 O comportamento é uma conseqüência da reação pública ao desvio, não um efeito das qualidades inerentes ao ato desviante.

Expressa de maneira mais geral, a questão é que o tratamento dos desviantes lhes nega os meios comuns de levar adiante as rotinas da vida cotidiana acessíveis à maioria das pessoas. Em razão dessa negação, o desviante deve necessariamente desenvolver rotinas ilegítimas. A influência da reação pública pode ser direta — como nos casos antes considerados — ou indireta — conseqüência do caráter integrado da sociedade em que o desviante vive.

As sociedades são integradas no sentido de que os arranjos sociais numa esfera de atividade se enredam com outros arranjos em outras esferas de maneiras particulares e dependem da existência desses outros arranjos. Certo tipo de vida no trabalho pressupõe determinado tipo de vida familiar, como veremos quando considerarmos o caso do músico de casa noturna.

Muitas variedades de desvio criam dificuldades ao não se coadunar com expectativas em outras áreas da vida. A homossexualidade é um bom exemplo. Os homossexuais têm dificuldades em qualquer área de atividade social em que os interesses sexuais normais e as tendências para se casar são vistos como inquestionáveis. Em organizações de trabalho estáveis, como grandes organizações comerciais ou industriais, há com freqüência momentos nos quais o homem que quer obter sucesso deveria se casar; se não o fizer, tornará difícil para ele fazer as coisas necessárias para ter sucesso na organização e frustrará suas ambições. A necessidade do casamento muitas vezes cria problemas bastante difíceis para o homem normal, e põe o homossexual em situação quase impossível. De maneira semelhante, em alguns grupos de trabalho masculinos, em que se exigem proezas heterossexuais para se conservar a estima no grupo, o homossexual encontra-se em óbvias dificuldades. A não-correspondência à expectativa dos outros pode obrigar o indivíduo a tentar maneiras desviantes de alcançar resultados automáticos para a pessoa normal.

É evidente que nem todos aqueles apanhados em ato desviante e rotulados de desviantes se encaminham de modo inevitável para um desvio maior, como já foi sugerido em minhas observações anteriores. As profecias nem sempre se confirmam, os mecanismos nem sempre funcionam. Que fatores tendem a tornar mais lento ou deter o movimento rumo a um desvio crescente? Em que circunstâncias eles entram em jogo?

Uma sugestão sobre como a pessoa pode se imunizar contra a progressão do desvio encontra-se num recente estudo acerca de delinqüentes juvenis que procuram homossexuais.13 Esses meninos agem como prostitutos homossexuais para homossexuais adultos confirmados. No entanto, eles próprios não se tornam homossexuais. Vários fatores contribuem para a suspensão desse tipo de desvio sexual. Em primeiro lugar, os meninos estão protegidos contra a ação da polícia pelo fato de serem menores. Se forem detidos num ato homossexual, serão tratados como crianças exploradas, embora de fato sejam eles os exploradores; a lei torna o adulto culpado. Em segundo lugar, eles encaram os atos sexuais em que se envolvem simplesmente como um meio de ganhar dinheiro mais seguro e rápido que o roubo ou atividades semelhantes. Em terceiro, os padrões de seu grupo de iguais, embora permita a prostituição homossexual, tolera-a apenas como uma atividade, proibindo os menores de obter qualquer prazer especial com ela ou de favorecer qualquer expressão de carinho por parte do adulto com que eles têm relações. Infrações dessas regras, ou outros desvios em relação à atividade heterossexual normal, são severamente punidas pelos companheiros do menino.

A prisão pode não levar ao desvio crescente se a situação na qual o indivíduo é detido pela primeira vez ocorrer num momento em que ainda lhe é possível escolher entre linhas alternativas de ação. Confrontado pela primeira vez com as possíveis conseqüências finais e drásticas do que está fazendo, talvez decida que não quer tomar o caminho desviante, e volte atrás. Se fizer a escolha certa, será bem recebido na comunidade convencional; mas se der o passo errado, será rejeitado e iniciará um ciclo progressivo de desvio.

Ray mostrou, no caso de viciados em drogas, como pode ser difícil reverter um ciclo desviante.14 Ele salienta que os viciados freqüentemente tentam se curar, e que a motivação subjacente a essas tentativas é um esforço para mostrar a não drogados cujas opiniões respeitam que não são realmente tão maus quanto se pensa. Quando conseguem se livrar de seu hábito, descobrem, para sua consternação, que as pessoas continuam a tratá-los como se fossem drogados (com base, aparentemente, na premissa de que “uma vez drogado, sempre drogado”).

Um passo final na carreira de um desviante é o ingresso num grupo desviante organizado. Quando uma pessoa faz um movimento definido para entrar num grupo organizado — ou quando percebe e aceita o fato de que já o fez —, isso tem forte impacto sobre sua concepção de si mesma. Certa vez uma viciada me contou que o momento em que se sentiu realmente viciada foi aquele no qual percebeu que não tinha mais nenhum amigo que não fosse viciado em drogas.

Membros de grupos desviantes organizados têm, claro, algo em comum: o desvio. Ele lhes dá um sentimento de destino comum, de estar no mesmo barco. A partir desse sentimento de destino comum, da necessidade de enfrentar os mesmos problemas, desenvolve-se uma cultura desviante: um conjunto de perspectivas e entendimentos sobre como é o mundo e como se deve lidar com ele — e um conjunto de atividades rotineiras baseadas nessas perspectivas. O pertencimento a um grupo desse tipo solidifica a identidade desviante.

O ingresso num grupo organizado tem várias conseqüências para a carreira do desviante. Antes de mais nada, os grupos desviantes tendem, mais que indivíduos desviantes, a racionalizar sua posição. Num extremo, eles desenvolvem uma justificativa histórica, legal e psicológica muito complicada para a atividade desviante. A comunidade homossexual é um bom exemplo. Revistas e livros publicados por homossexuais para homossexuais incluem artigos sobre homossexuais famosos na história. Contêm artigos sobre a biologia e a fisiologia do sexo, destinados a mostrar que a homossexualidade é uma resposta sexual “normal”. Incluem artigos jurídicos, reivindicando liberdades civis para os homossexuais.15 Tomado em conjunto, esse material fornece uma filosofia operacional para o homossexual, explicando-lhe por que ele é como é, que outras pessoas também foram assim, e por que está certo ser assim.

A maior parte dos grupos desviantes tem uma fundamentação autojustificadora (ou “ideologia”), embora raramente tão bem elaborada quanto a dos homossexuais. Ao mesmo tempo que esses argumentos atuam, como foi mostrado anteriormente, para neutralizar as atitudes convencionais que os desviantes ainda podem encontrar em si mesmos em relação a seu próprio comportamento, desempenham também uma outra função. Fornecem ao indivíduo razões que parecem sólidas para levar adiante a linha de atividade que iniciou. Uma pessoa que aplaca suas próprias dúvidas adotando a racionalização passará a apresentar um tipo de desvio baseado em princípios e coerente do que lhe seria possível antes de adotá-la.

A segunda coisa que acontece quando alguém ingressa num desses grupos é que aprende como levar adiante sua atividade desviante com um mínimo de contratempo. Todos os problemas que enfrenta para escapar da imposição da regra que está infringindo foram enfrentados antes por outros. Soluções foram encontradas. Assim, o jovem ladrão encontra-se com ladrões mais velhos, mais experientes, que lhe explicam como se livrar de mercadoria roubada sem correr o risco de ser apanhado. Cada grupo desviante tem um grande repertório de conhecimento sobre assuntos desse tipo, e o novo recruta o aprende rapidamente.

Assim, o desviante que ingressa num grupo desviante organizado e institucionalizado tem mais probabilidade que nunca de continuar nesse caminho. Ele aprendeu, por um lado, como evitar problemas; por outro, assimilou uma fundamentação para continuar.

Outro fato merece atenção. As fundamentações dos grupos desviantes tendem a conter um repúdio geral às regras morais da convenção, às instituições convencionais e a todo o mundo convencional. Examinaremos uma subcultura desviante adiante, ao considerar o caso do músico de casa noturna.

_______________

a Convém lembrar que essa classificação deve sempre ser usada da perspectiva de um dado conjunto de regras; ela não leva em conta as complexidades, já discutidas, que aparecem quando há mais de um conjunto de regras disponível para ser usado pelas mesmas pessoas ao definir o mesmo ato. Além disso, a classificação se refere a dois tipos de comportamento, e não a tipos de pessoa, a atos e não a personalidades. O comportamento de uma mesma pessoa pode obviamente ser apropriado em algumas atividades e desviante em outras.

b Acusação ou punição injustas feitas sem base em evidências – algo equivalente à polícia prender alguém “suspeito” para averiguação. (N.R.T.)

c No original, fairly, dope friend, nut e lunatic. (N.T.)