Tornando-se um
usuário de maconha
Um número desconhecido mas provavelmente muito grande de pessoas nos Estados Unidos usa maconha. Elas fazem isso embora fumar maconha seja ao mesmo tempo ilegal e reprovado.
O fenômeno do uso da maconha recebeu muita atenção, em particular de psiquiatras e agentes da lei. A pesquisa feita — como freqüentemente ocorre com pesquisas sobre comportamentos considerados desviantes — diz respeito sobretudo à questão: por que fazem isso? Tentativas de explicar o uso da maconha apóiam-se com firmeza na premissa de que a presença de qualquer tipo particular de comportamento num indivíduo pode ser mais bem explicada como resultado de algum traço que o predispõe ou motiva a se envolver nesse comportamento. No caso do uso de maconha, esse traço é de hábito identificado como psicológico, como uma necessidade de devanear e fugir de problemas psicológicos que o indivíduo não é capaz de enfrentar.1
Não me parece que essas teorias possam explicar adequadamente o uso de maconha. Esse uso é um caso interessante para as teorias do desvio, porque ilustra a maneira como motivos desviantes realmente se desenvolvem no curso da experiência com a atividade desviante. Para reduzir uma argumentação complexa a poucas palavras: ao invés de os motivos desviantes levarem a comportamento desviante, ocorre o contrário; o comportamento desviante acaba por produzir a motivação desviante. Impulsos e desejos vagos — neste caso, provavelmente com maior freqüência, uma curiosidade acerca do tipo de experiência que a droga induz — são transformados em padrões definidos de ação por meio da interpretação social de uma experiência física em si mesma ambígua. O uso de maconha é uma função da concepção que o indivíduo tem dela e dos usos a que ela se presta, e essa concepção se desenvolve à medida que aumenta a experiência do indivíduo com a droga.2
A pesquisa relatada neste capítulo e no seguinte diz respeito à carreira do usuário de maconha. Neste, examinamos o desenvolvimento da experiência física imediata do indivíduo com a maconha. No próximo, consideramos o modo como ele reage aos vários controles sociais que se desenvolveram em torno do emprego da droga. O que tentamos compreender aqui é a seqüência de mudanças na atitude e na experiência que leva ao uso de maconha por prazer. Essa maneira de formular o problema requer uma pequena explicação. A maconha não produz adição, pelo menos não no mesmo sentido em que o álcool e as drogas opiáceas. O usuário não experimenta nenhuma síndrome de abstinência e não exibe qualquer ânsia inextirpável pela droga.3 O padrão mais freqüente de uso poderia ser denominado “recreativo”. Lança-se mão da droga ocasionalmente pelo prazer que o usuário encontra nela, um tipo de comportamento relativamente casual em comparação com aquele associado ao uso de drogas que geram dependência. O relatório do Comitê sobre Maconha da Prefeitura da Cidade de Nova York enfatiza esse aspecto:
Uma pessoa pode ser fumante confirmado por um período prolongado e abandonar a droga voluntariamente sem experimentar ânsia por ela ou exibir sintomas de abstinência. Pode, em algum momento posterior, retornar ao uso. Outros podem permanecer usuários infreqüentes do cigarro, fumando-o apenas uma ou duas vezes por semana, ou apenas quando o “contexto social” requer participação. Ocasionalmente um de nossos investigadores associou-se a um usuário de maconha. O investigador trazia à baila o assunto do fumo. Isso levava invariavelmente à sugestão de que obtivessem alguns cigarros de maconha. Procuravam um lugar onde maconheiros costumavam se reunira e, se ele estivesse fechado, o fumante e nosso investigador retomavam calmamente sua atividade anterior, como a discussão da vida em geral ou um jogo de sinuca. Não havia aparentemente qualquer sinal indicativo de frustração no fumante por não ter podido satisfazer seu desejo da droga. Consideramos este ponto extremamente significativo, uma vez que é em tudo contrário à experiência de usuários de outros narcóticos. A ocorrência de uma situação semelhante com um usuário de morfina, cocaína ou heroína resultaria numa atitude compulsiva da parte do viciado em drogas para obter a droga. Se não conseguisse obtê-la, haveria as óbvias manifestações físicas e mentais de frustração. Isso pode ser considerado como uma presumível evidência de que não há verdadeira adição no sentido médico associada ao uso de maconha.4
Ao usar a expressão “uso por prazer”, pretendo enfatizar o caráter não compulsivo e casual do comportamento. (Pretendo também eliminar de consideração aqui aqueles poucos casos em que a maconha é fumada unicamente por seu valor de prestígio, como um símbolo de certo tipo de pessoa, sem que absolutamente nenhum prazer derive de seu uso.)
A pesquisa que estou prestes a relatar não foi planejada de modo a constituir um teste decisivo das teorias que relacionam o uso de maconha a algum traço psicológico do usuário. Ela mostra, no entanto, que explicações psicológicas não são em si suficientes para indicar a razão do uso de maconha e que talvez não sejam mesmo necessárias. Pesquisas que tentam provar essas teorias psicológicas depararam com duas grandes dificuldades, nunca satisfatoriamente resolvidas, que a teoria aqui apresentada evita. Em primeiro lugar, teorias baseadas na existência de algum traço psicológico de predisposição têm dificuldade de explicar aquele grupo de usuários que aparece em números bastante grandes em todos os estudos5 e que não exibe o traço ou os traços considerados causadores do comportamento. Em segundo, teorias psicológicas encontram dificuldade de explicar a grande variabilidade do comportamento de um dado indivíduo com relação à droga ao longo do tempo. A mesma pessoa que, num momento, é incapaz de usar a droga por prazer, num estágio posterior será capaz e estará desejosa de fazê-lo, e, mais tarde ainda, se tornará de novo incapaz de usá-la dessa maneira. Tais mudanças, difíceis de explicar a partir de uma teoria baseada nas necessidades de “fuga” do usuário, são facilmente compreensíveis como conseqüências de mudanças em sua concepção da droga. De maneira semelhante, se pensarmos no usuário de maconha como alguém que aprendeu a vê-la como algo que pode lhe dar prazer, não teremos dificuldade alguma em compreender a existência de usuários psicologicamente “normais”.
Ao fazer o estudo, lancei mão do método da indução analítica. Tentei chegar a uma formulação geral da seqüência de mudanças na atitude e experiência individual que sempre ocorriam quando o indivíduo tornava-se desejoso e capaz de usar maconha por prazer, e nunca ocorria ou não era permanentemente mantida quando a pessoa não estava disposta a usar maconha por prazer. O método requer que todos os casos colhidos na pesquisa comprovem a hipótese. Se for encontrado um caso que não a comprove, o pesquisador é obrigado a alterar a hipótese para que corresponda ao caso que provou que sua idéia original estava errada.6
Para desenvolver e testar minha hipótese sobre a gênese do uso de maconha por prazer, realizei 50 entrevistas com usuários da droga. Eu havia sido músico profissional de casa noturna durante alguns anos quando fiz o estudo, e minhas primeiras entrevistas foram com pessoas que havia conhecido no meio musical. Pedi-lhes que me pusessem em contato com outros usuários que estivessem dispostos a discutir suas experiências comigo. Colegas que trabalhavam num estudo de usuários de drogas opiáceas colocaram à minha disposição algumas entrevistas que continham, além de material sobre drogas opiáceas, material suficiente sobre o uso de maconha que fornecesse um teste de minha hipótese.7 Embora, por fim, metade das 50 entrevistas tivessem sido feitas com músicos, a outra metade cobria uma ampla variedade de pessoas, incluindo operários, mecânicos e profissionais liberais. A amostra, evidentemente, não é de maneira alguma “aleatória”; não seria possível obter uma amostra aleatória, uma vez que ninguém conhece a natureza do universo do qual ela deveria ser extraída.
Ao entrevistar usuários, focalizei na história da experiência da pessoa com a maconha, procurando mudanças importantes em sua atitude com relação a ela e no seu uso efetivo, e as razões dessas mudanças. Quando foi possível e apropriado, usei o jargão do próprio usuário.
A teoria começa com a pessoa que chegou a ponto de se dispor a experimentar maconha. (Discuto como ela chegou a isso no próximo capítulo.) Ela sabe que outros usam maconha para “ter um barato”, mas não sabe o que isso significa de maneira concreta. Está curiosa com relação à experiência, ignorante do que ela pode ser e temerosa de que possa ser mais do que espera. Os passos delineados a seguir — se a pessoa passar por todos eles e mantiver as atitudes neles desenvolvidas — a deixarão desejosa e apta a usar a droga por prazer quando a oportunidade se apresentar.
O noviço em geral não fica no barato na primeira vez que fuma maconha, e várias tentativas são necessárias para induzir esse estado. Uma explicação para isso pode ser que a droga não é fumada “da maneira apropriada”, isto é, de um modo que assegure dosagem suficiente para produzir sintomas reais de embriaguez. A maioria dos usuários concorda que ela não pode ser fumada como tabaco para que a pessoa fique no barato.
Inalar muito ar, sabe, e, … não sei como descrever isso, você não fuma maconha como um cigarro, você aspira muito ar e faz descer bem fundo, em seu sistema, e depois segura ele ali. Tem de segurar o ar ali o máximo de tempo possível.
Sem o uso de alguma técnica desse tipo, a droga não produzirá qualquer efeito, e o usuário será incapaz de entrar no barato:8
O problema com pessoas assim [que não são capazes de entrar no barato] é apenas que não estão fumando direito, só isso. Ou não estão segurando tempo suficiente, ou estão inalando ar demais, e não a fumaça, ou o contrário, ou alguma coisa desse tipo. Muita gente simplesmente não fuma maconha direito, então é claro que nada vai acontecer.
Se nada acontece, é manifestamente impossível para o usuário desenvolver uma concepção da droga como um objeto que pode ser consumido por prazer, e portanto o uso não continuará. O primeiro passo na seqüência de eventos que deve ocorrer para que a pessoa se torne usuária é que ela precisa aprender a empregar a técnica adequada de fumar, de modo que seu uso da droga produza efeitos em termos dos quais sua concepção sobre ela possa mudar.
Tal mudança é, como seria de esperar, resultado da participação do indivíduo em grupos nos quais a maconha é usada. Neles o indivíduo aprende a maneira adequada de fumar a droga. Isso pode ocorrer mediante ensinamento direto.
Eu estava fumando como se fosse um cigarro comum. Ele disse: “Não, não faça assim.” Falou: “Sugue, sabe, inale e segure nos pulmões até você … por um período de tempo.”
Perguntei: “Há algum limite de tempo para segurar?”
Ele disse: “Não, só até você sentir que quer soltar, soltar.” Então eu fiz isso umas três ou quatro vezes.
Muitos novos usuários têm vergonha de admitir ignorância e, fingindo já saber, devem aprender por meios mais indiretos de observação e imitação:
Cheguei como se já tivesse dado um tapa [fumado maconha] muitas vezes antes, sabe. Não queria parecer principiante. Sabe, como se não soubesse coisa nenhuma sobre isso — como fumar, ou o que ia acontecer, ou o quê. Fiquei só observando o cara como um falcão — não desgrudei os olhos dele um segundo, porque queria fazer tudo exatamente como ele. Observei como segurava, como fumava, e tudo. Depois, quando ele me passou o baseado, eu simplesmente fumei tranqüilo, como se soubesse exatamente da coisa. Segurei como ele tinha segurado e dei uma puxada exatamente como ele tinha feito.
Ninguém que entrevistei continuou a usar maconha por prazer sem aprender uma técnica que fornecesse uma dosagem suficiente para que os efeitos da droga se manifestassem. Somente quando isso era aprendido tornava-se possível a emergência de uma concepção da droga como um objeto que podia ser usado por prazer. Sem tal concepção, o uso da maconha era considerado sem sentido e não prosseguia.
Aprender a perceber os efeitos
Mesmo depois que aprende a técnica adequada de fumar, o novo usuário pode não ter um barato e não formar uma concepção da droga como algo que pode ser usado por prazer. Um comentário feito por um usuário sugeriu a razão dessa dificuldade para ter um barato e indicou o passo seguinte no caminho que leva alguém a se tornar usuário:
Na verdade, vi um cara que estava no maior barato e não sabia disso.
[Como assim, cara?]
Bom, é muito estranho, eu reconheço, mas eu vi. O sujeito ficou meu amigo, e afirmava que nunca tinha ficado no barato, um desses caras, e ele ficou completamente doidão. E continuava insistindo que não estava no barato. Assim, tive de provar para ele que estava.
Que significa isso? Sugere que ter um barato consiste em dois elementos: a presença de sintomas causados pelo uso da maconha e o reconhecimento desses sintomas e sua vinculação, pelo usuário, com o uso da droga. Isto é, não basta que os efeitos estejam presentes; por si sós, eles não fornecem automaticamente a experiência de estar no barato. Antes de ter essa experiência, o usuário precisa ser capaz de mostrá-los para si mesmo e associá-los conscientemente ao fato de ter fumado maconha. De outra maneira, quaisquer que sejam os efeitos reais produzidos, ele considera que a droga não teve efeito algum sobre ele. “Achei que ela não tinha nenhum efeito sobre mim ou que os outros estavam exagerando o efeito sobre eles, entende? Achei que provavelmente era psicológico, sabe.” Essas pessoas pensam que a coisa toda é uma ilusão e que o desejo de entrar num barato leva o usuário a se enganar, acreditando que alguma coisa está acontecendo quando de fato não está. Elas não continuam usando maconha, sentindo que a droga “não faz nada” para elas.
De modo típico, porém, o noviço tem fé (desenvolvida a partir de sua observação de usuários que de fato têm barato) de que a droga realmente produzirá alguma experiência nova, e continua a experiência até que ela o faça. Seu malogro em ter um barato o preocupa, e é provável que ele interrogue usuários mais experientes ou provoque comentários sobre isso. Nessas conversas, ele se dá conta de detalhes específicos de sua experiência que talvez não tivesse notado, ou que talvez tivesse, mas não identificara como sintomas do barato.
Não fiquei no barato na primeira vez…. Acho que não segurei a coisa tempo suficiente. Provavelmente soltei, sabe, a gente fica com um pouco de medo. Na segunda vez eu não tive certeza, e ele [um companheiro de fumo] me disse, quando lhe perguntei sobre alguns dos sintomas, e coisa e tal, como eu podia ficar sabendo, você sabe…. Então ele me disse para sentar num tamborete. Eu sentei — acho que sentei num tamborete de bar —, e ele disse: “Deixe os pés pendurados”, e depois, quando desci, meus pés estavam muito frios, sabe.
E comecei a sentir a coisa, saca. Aquela foi a primeira vez. Depois, cerca de uma semana mais tarde, mais ou menos por aí, eu realmente consegui. Essa foi a primeira vez que tive um grande ataque de riso, sabe como é. Então soube que realmente estava no barato.
Um dos sintomas de estar no barato é sentir uma fome intensa. No caso seguinte, o noviço se dá conta disso e entra no barato pela primeira vez:
Eles só morriam de rir de mim porque eu estava comendo tanto. Eu só mandava para dentro [devorava] um monte de comida, e eles ficavam só rindo de mim, sacou? De vez em quando eu olhava para eles, pensando por que estariam rindo, entende, sem saber o que eu estava fazendo. [Bom, mas eles não acabaram lhe contando por que estavam rindo?] Sim, sim, eu repetia: “Ei, cara, o que está acontecendo?” Você sabe, eu perguntava: “O que está acontecendo?”, e de repente eu me senti esquisito, sabe. “Cara, você está no maior barato, sabia? Você está doidão.” Eu respondi: “Não estou mesmo?” Como se eu não soubesse o que estava acontecendo.
O aprendizado pode ocorrer de maneiras mais indiretas:
Eu ouvia pequenos comentários feitos por outras pessoas. Alguém dizia: “Minhas pernas estão parecendo de borracha”, e não posso me lembrar de todos os comentários que eram feitos porque estava muito atento, ouvindo todas aquelas dicas sobre como eu devia me sentir.
O noviço, então, ansioso por ter essa sensação, aprende com os outros usuários alguns referentes concretos do termo “barato” e aplica essas noções à sua própria experiência. Os novos conceitos tornam possível para ele localizar esses sintomas entre suas próprias sensações e indicar para si mesmo “algo diferente” em sua experiência que associa com o uso da droga. É somente quando pode fazer isso que entra no barato. No caso a seguir, o contraste entre duas experiências sucessivas de um usuário deixa clara a importância crucial da consciência dos sintomas para se obter um barato e reenfatiza o importante papel da interação com outros usuários na aquisição dos conceitos que tornam essa consciência possível:
[Você ficou no barato a primeira vez que fumou?] Fiquei, com certeza. Se bem que, pensando melhor, acho que não. Isto é, daquela primeira vez foi mais ou menos como um porre leve. Fiquei feliz, acho, você sabe o que eu quero dizer. Mas eu realmente não sabia que estava num barato, entende. Foi só depois da segunda vez que entrei num barato que me dei conta de que fiquei no barato na primeira vez. Então eu soube que alguma coisa diferente estava acontecendo.
[Como soube?] Como soube? Se o que aconteceu comigo aquela noite acontecesse com você, você ia saber, acredite. Tocamos a primeira música por quase duas horas — uma música! Imagine, cara! Subimos no estrado e tocamos essa única música, começamos às 9h. Quando acabamos, olhei meu relógio, eram 10h45. Quase duas horas numa música só. E não pareceu nada de mais.
Quero dizer, você sabe, ela faz isso com a gente. É como se você tivesse muito mais tempo, uma coisa assim. De qualquer maneira, quando eu vi isso, cara, foi demais. Eu sabia que devia realmente estar no barato se uma coisa dessas podia acontecer. Então eles me explicaram que era isso que ela fazia com a gente, você tinha uma percepção diferente do tempo e de tudo. Então me dei conta de que era assim que a coisa funcionava. Então eu saquei. Na primeira vez, provavelmente eu me senti daquele jeito, mas não sabia o que estava acontecendo.
É somente quando se torna capaz de ter um barato nesse sentido que o principiante continua a usar maconha por prazer. Em todos os casos nos quais o uso prosseguiu, o usuário havia adquirido os conceitos necessários com que expressar para si mesmo o fato de que experimentava novas sensações causadas pela droga. Isto é, para que o uso continue, é necessário não apenas usar a droga de modo que produza efeitos, mas também aprender a perceber esses efeitos quando eles ocorrem. Dessa maneira, a maconha adquire sentido para o usuário como um objeto de que se pode lançar mão por prazer.
Com a crescente experiência, o usuário desenvolve uma maior percepção dos efeitos da droga; continua aprendendo a ter um barato. Ele examina atentamente sucessivas experiências, pro curando novos efeitos, certificando-se de que os antigos continuam presentes. A partir disso, desenvolve-se um conjunto estável de categorias para a experimentação dos efeitos da droga cuja presença permite ao usuário ter um barato com facilidade.
À medida que adquirem esse conjunto de categorias, os usuários se tornam connaisseurs. Como especialistas em vinhos finos, são capazes de especificar onde uma planta particular foi cultivada e em que época do ano foi colhida. Embora geralmente não seja possível saber se essas atribuições são corretas, é verdade que eles distinguem entre lotes de maconha, não somente segundo a potência, mas também com relação aos diferentes tipos de sintoma produzidos.
A capacidade de perceber os efeitos da droga deve ser mantida para que o uso continue; se for perdida, o uso de maconha cessa. Dois tipos de evidência sustentam essa afirmação. Primeiro, pessoas que se tornam usuários inveterados de álcool, barbitúricos ou drogas opiáceas não continuam a fumar maconha, em grande parte porque perdem a capacidade de distinguir entre seus efeitos e os das outras drogas.9 Elas não sabem mais se a maconha lhes dá barato. Segundo, naqueles poucos casos em que um indivíduo usa maconha em quantidades tais que está sempre no barato, ele tende a sentir que a droga não faz efeito sobre ele, visto que falta o elemento essencial de uma diferença perceptível entre sentir-se no barato e sentir-se normal. Nessa situação, o uso tende a ser abandonado por completo, mas de forma temporária, de modo que o usuário possa novamente ser capaz de perceber a diferença.
Mais um passo é necessário para que o usuário que já aprendeu a ter um barato continue a usar maconha. Ele deve aprender a gostar dos efeitos que acaba de aprender a experimentar. As sensações produzidas pela maconha não são automática ou necessariamente agradáveis. O gosto por tal experiência é socialmente adquirido, de gênero não diferente do gosto adquirido por ostras ou dry martíni. O usuário sente-se tonto, sedento; seu couro cabeludo formiga; ele avalia mal o tempo e as distâncias. Essas coisas são agradáveis? Ele não tem certeza. Para que continue a usar maconha, deve concluir que são. De outra maneira, ter um barato, ainda que seja uma experiência bastante real, será uma experiência desagradável que ele preferiria evitar.
Os efeitos da droga, quando percebidos pela primeira vez, podem ser fisicamente desagradáveis ou pelo menos ambíguos:
Comecei a sentir o efeito e não sabia o que estava acontecendo, sacou? O que era aquilo? E fiquei muito enjoado. Andei pela sala, fiquei andando pela sala tentando me livrar; de início aquilo me deixou apenas assustado, sabe. Eu não estava acostumado com aquele tipo de sensação.
Além disso, a interpretação ingênua que o noviço dá para o que está acontecendo pode confundi-lo e amedrontá-lo ainda mais, em particular se ele conclui, como muitos fazem, que está ficando louco:
Achei que estava louco, sabe. Tudo que as pessoas me faziam só me alvoroçava. Não conseguia manter uma conversa, minha cabeça divagava, e eu ficava pensando sem parar, ah, não sei, coisas estranhas, como ouvir música diferente…. Fico com a sensação de que não posso falar com ninguém. Vou virar um completo mané.
Dadas essas primeiras experiências tipicamente assustadoras e desagradáveis, o iniciante não dará continuidade ao uso, a menos que aprenda a redefinir as sensações como agradáveis:
Ofereceram o bagulho para mim e eu experimentei. Vou lhe dizer uma coisa. Jamais gostei disso, de jeito nenhum. Isto é, não era uma coisa de que eu pudesse gostar. [Bom, você ficava no barato quando fumava?] Ah, ficava, eu tinha sensações muito claras. Mas não gostava delas. Quer dizer, eu tinha uma porção de reações, mas eram sobretudo reações de medo. [Você ficava amedrontado?] Ficava. Eu não gostava daquilo. Não tinha a impressão de relaxar com aquilo, você sabe. Se você não consegue relaxar com uma coisa, você não consegue gostar dela, acho que não.
Em outros casos, as primeiras experiências foram também claramente desagradáveis, mas a pessoa tornou-se usuária de maconha. Isso só aconteceu, no entanto, depois que uma experiência posterior lhe permitiu redefinir as sensações como agradáveis.
[A primeira experiência deste homem foi extremamente desagradável, envolvendo distorção de relações espaciais e sonoras, sede violenta e pânico produzido por esses sintomas.] Depois da primeira vez, eu diria que não fumei durante cerca de dez meses a um ano…. Não era uma coisa moral; era porque eu tinha ficado assustado com um barato tão grande. E não queria passar por aquilo de novo, isto é, minha reação era: “Bom, se é isso que eles chamam de barato, não curto isso.” … Por isso não fumei durante quase um ano, por causa disso….
Meus amigos começaram, e conseqüentemente eu comecei de novo. Mas não tive mais, não tive aquela mesma reação inicial depois que comecei a fumar de novo.
[Em interação com seus amigos, ele se tornou capaz de encontrar prazer nos efeitos da droga e finalmente tornou-se usuário regular.]
Em nenhum caso o uso continua sem uma redefinição dos efeitos como agradáveis.
Essa redefinição ocorre tipicamente em interação com usuários mais experientes que, de diversas maneiras, ensinam o noviço a encontrar prazer nessa experiência a princípio tão assustadora.10 Podem tranqüilizá-lo quanto ao caráter temporário das sensações desagradáveis e minimizar sua gravidade, chamando atenção ao mesmo tempo para os aspectos mais prazerosos. Um usuário experiente descreve como lida com recém-chegados ao uso de maconha:
Bom, às vezes eles entram num grande barato. A pessoa comum não está preparada para isso, e é um pouco amedrontador para eles, às vezes. Isto é, eles já ficaram de porre, entram num barato mais forte que qualquer coisa que consumiram antes e não sabem o que está acontecendo com eles. Porque pensam que o barato vai continuar aumentando, aumentando, até que eles percam a cabeça ou comecem a agir de maneira esquisita, essas coisas. Você tem meio que tranqüilizar eles, explicar que não estão realmente ficando malucos nem nada, que vão ficar bem. Você tem de convencer a não ter medo. Ficar falando com eles, tranqüilizando, dizendo que está tudo bem. E contar sua própria história, você sabe: “A mesma coisa aconteceu comigo. Você vai passar a gostar disso depois de um tempo.” Continuar falando desse jeito; logo a gente consegue fazer eles deixarem de ficar apavorados. Além disso, eles vêem a gente fazendo isso, e nada de horrível está acontecendo com a gente, e isso lhes dá mais confiança.
O usuário mais experiente pode também ensinar o noviço a regular a quantidade com maior cuidado, de modo a evitar qualquer sintoma severamente desconfortável, conservando ao mesmo tempo os agradáveis. Finalmente, ensina ao novo usuário que ele pode “passar a gostar disso depois de um tempo”. Ensina-lhe a considerar agradáveis essas experiências ambíguas antes definidas como desagradáveis. O usuário mais antigo no incidente a seguir é uma pessoa cujos gostos mudaram dessa maneira, e seus comentários têm o efeito de ajudar os outros a fazer uma redefinição semelhante:
Uma nova usuária teve sua primeira experiência dos efeitos da maconha e ficou amedrontada e histérica. Ela “teve a impressão de que estava meio dentro e meio fora da sala” e experimentou vários sintomas físicos alarmantes. Um dos usuários mais experientes que estava lá comentou: “Ela está chateada por estar num barato desses. Eu daria tudo para entrar num barato igual. Faz anos que não tenho um desses.”
Em suma, o que antes foi amedrontador e desagradável torna-se, depois que um gosto pela maconha é desenvolvido, prazeroso, desejado e procurado. O prazer é introduzido pela definição favorável da experiência que uma pessoa adquire de outras. Sem isso, o uso não prosseguirá, porque a maconha não será, para o usuário, um objeto de que ele pode lançar mão por prazer.
Além de ser um passo necessário para que alguém se torne um usuário, isso representa uma importante condição para a utilização constante. É muito comum que os experientes tenham subitamente uma vivência desagradável ou assustadora, que não podem definir como prazerosa, seja porque consumiram uma quantidade maior de maconha do que a habitual, seja porque a maconha que usaram se revela de qualidade mais potente do que esperavam. O usuário tem sensações que vão além de qualquer concepção que tem do que é ficar no barato e vê-se numa situação muito semelhante à do noviço, inquieto e assustado. Pode pôr a culpa numa dose excessiva, ou simplesmente ser mais cuidadoso no futuro. Mas talvez faça disso uma ocasião para repensar sua atitude em relação à droga e decidir que ela não pode mais lhe dar prazer. Quando isso ocorre, e não é seguido por uma redefinição da droga como capaz de produzir prazer, o uso cessará.
A probabilidade de que tal redefinição ocorra depende do grau da interação do indivíduo com outros usuários. Quando essa interação é intensa, o indivíduo é rapidamente demovido de seu sentimento contra o uso de maconha. No caso a seguir, por outro lado, a experiência foi muito perturbadora, e as conseqüências do incidente reduziram a interação da pessoa com outros usuários a quase zero. O uso foi interrompido por três anos e só recomeçou quando uma combinação de circunstâncias, principalmente a retomada de relações com outros usuários, tornou possível uma redefinição da natureza da droga:
Foi demais, eu tinha dado só umas quatro tragadas e não conseguia nem tirar aquilo da boca, tão grande era o meu barato, e fiquei realmente maluco. No porão, saca, eu não consegui mais ficar lá. Meu coração batia muito forte, eu estava ficando fora de mim; pensei que estava perdendo a cabeça por completo. Então fui embora depressa daquele porão, e um outro sujeito, um cara fora de si, me disse: “Não, não me deixe, cara. Fique aqui.” E não consegui.
Saí caminhando, estava cinco abaixo de zero, eu pensei que ia morrer e abri o sobretudo; estava suando, estava transpirando. Minhas entranhas estavam todas, … e caminhei uns dois quarteirões e desmaiei atrás de um arbusto. Não sei quanto tempo fiquei deitado ali. Acordei e estava me sentindo pior, não posso descrever aquilo de jeito nenhum, então fui para uma pista de boliche, cara, e tentei agir normalmente, fui tentar jogar sinuca, saca, tentei agir normalmente, e não conseguia ficar deitado, não conseguia ficar de pé, não conseguia ficar sentado. Subi e me deitei onde alguns caras que marcam os pinos se deitam, e aquilo não me ajudou, e fui para o consultório de um médico. Ia entrar lá e dizer ao médico que me tirasse do meu tormento, … porque meu coração batia tão forte, você sabe…. Então, depois, todo fim de semana eu começava a ficar maluco, vendo coisas ali e sofrendo o diabo, sabe, todo tipo de coisas anormais…. Eu realmente abandonei por um longo tempo naquela época.
[Ele foi a um médico que definiu seus sintomas como os de um colapso causado por “nervosismo” e “ansiedade”. Embora não estivesse mais usando maconha, teve algumas recorrências dos sintomas que o levaram a suspeitar que “eram só os seus nervos”.] Então parei de me preocupar, sabe; foi mais ou menos uns 36 meses mais tarde que comecei de novo. Eu só dava uns tapinhas, sabe? [Ele retomou o ritmo de uso inicial na companhia do mesmo usuário-amigo com quem estivera envolvido no incidente original.]
Uma pessoa, portanto, não pode começar a usar maconha por prazer, ou continuar seu uso por prazer, a menos que aprenda a definir seus efeitos como agradáveis, a menos que a maconha se torne e continue a ser um objeto que ela considere capaz de produzir prazer.
Em resumo, um indivíduo só será capaz de fumar maconha por prazer quando atravessa um processo de aprendizagem para concebê-la como um objeto que pode ser usado dessa maneira. Ninguém se torna usuário sem (1) aprender a fumar a droga de uma maneira que produza efeitos reais; (2) aprender a reconhecer os efeitos e associá-los ao uso da droga (aprender, em outras palavras, a ter um barato); e (3) aprender a gostar das sensações que percebe. No curso desse processo, o sujeito desenvolve uma disposição ou motivação para usar maconha que não estava e não poderia estar presente quando começou, pois envolve concepções da droga que só seria possível formar a partir do tipo de experiência real antes detalhado, e depende delas. Ao concluir esse processo, ele está desejoso e é capaz de usar maconha por prazer.
Ele aprendeu, em suma, a responder “Sim” à pergunta: “É agradável?” A direção que seu uso da droga assume a partir disso depende de sua capacidade de responder “Sim” a essa pergunta, e, ademais, de sua capacidade de responder “Sim” a outras perguntas que surgem à medida que toma consciência das implicações do fato de que a sociedade reprova a prática: “É conveniente?” “É moral?” Depois que a pessoa adquiriu a capacidade de obter prazer pelo uso da droga, esse uso continuará possível para ela. Considerações de moralidade e conveniência, ocasionadas por reações da sociedade, podem interferir no uso e inibi-lo, mas este continua a ser uma possibilidade em termos da concepção que a sociedade tem da droga. O ato só se torna impossível quando se perde a capacidade de desfrutar a experiência de estar no barato, por uma mudança na concepção do usuário sobre a droga, ocasionada por certos tipos de experiência que viveu com ela.
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a No original, tea-pad. A expressão é definida no próprio relatório como um quarto ou apartamento em que pessoas se reúnem para fumar maconha. (N.T.)