A cultura de um grupo desviante:
o músico de casa noturna
Embora o comportamento desviante seja com freqüência proscrito por lei — rotulado de criminoso se praticado por adultos, ou de delinqüente, se praticado por jovens —, aqui este não é necessariamente o caso. Os músicos de casa noturna, cuja cultura investigamos neste e no próximo capítulo, são um exemplo pertinente. Embora suas atividades estejam formalmente dentro da lei, sua cultura e o modo de vida são suficientemente extravagantes e não-convencionais para que eles sejam rotulados de outsiders pelos membros mais convencionais da comunidade.
Muitos grupos desviantes, entre os quais os músicos de casa noturna, são estáveis e duradouros. Como todos os grupos estáveis, desenvolvem um modo de vida característico. Para compreender o comportamento de alguém que é membro de um grupo desse tipo é necessário entender tal modo de vida.
Robert Redfield expressou a concepção de cultura do antropólogo da seguinte maneira:
Ao falar de “cultura”, temos em mente os entendimentos convencionais, manifestos em ato e artefato que caracterizam as sociedades. Os “entendimentos” são os significados atribuídos a atos e objetos. Os significados são convencionais, e portanto culturais, à medida que se tornaram típicos para os membros dessa sociedade em razão da intercomunicação entre si. Uma cultura é, por conseguinte, uma abstração: é o conjunto de tipos ao qual tendem a se conformar os significados que os diferentes membros da sociedade atribuem a um mesmo ato ou objeto. Os significados são expressos em ações e nas produções de ações, a partir dos quais os inferimos; podemos assim identificar também a “cultura” como a medida que o comportamento convencional dos membros da sociedade é o mesmo para todos.1
Hughes observou que a concepção antropológica da cultura parece ser mais adequada para a sociedade homogênea, a sociedade primitiva com a qual o antropólogo trabalha. Mas o termo, no sentido de uma organização de entendimentos comuns aceitos por um grupo, é igualmente aplicável aos grupos menores que compõem uma sociedade moderna complexa, grupos étnicos, religiosos, regionais, ocupacionais. É possível mostrar que cada um desses grupos tem certos tipos de entendimento comuns e, portanto, uma cultura.
Sempre que um grupo de pessoas tem parcialmente uma vida comum com um pequeno grau de isolamento em relação a outras pessoas, uma mesma posição na sociedade, problemas comuns e talvez alguns inimigos comuns, ali se constitui uma cultura. Pode ser a cultura fantástica dos infelizes que, tendo se tornado viciados em heroína, partilham um prazer proibido, uma tragédia e uma batalha contra o mundo convencional. Pode ser a cultura de um par de crianças que, enfrentando os mesmos pais poderosos e arbitrários, criam uma linguagem e um conjunto de costumes próprios que persiste mesmo quando elas se tornam grandes e poderosas como os pais. Pode ser a cultura de um grupo de estudantes que, desejosos de se tornar médicos, vêem-se diante dos mesmos cadáveres, testes, pacientes complicados, professores e orientadores.2
Muitos sugeriram que cultura surge essencialmente em resposta a um problema enfrentado em comum por um grupo de pessoas, à medida que elas são capazes de interagir e se comunicar entre si de maneira eficaz.3 Pessoas que se envolvem em atividades consideradas desviantes enfrentam tipicamente o problema de que sua concepção a respeito do que fazem não é partilhada por outros membros da sociedade. O homossexual acha que sua vida sexual é adequada, mas os outros não pensam isso. O ladrão julga que é apropriado para ele roubar, mas ninguém mais acha isso. Quando pessoas que se envolvem em atividades desviantes têm oportunidade de interagir, é provável que desenvolvam uma cultura constituída em torno dos problemas decorrentes das diferenças entre sua definição do que fazem e a definição adotada por outros membros da sociedade. Elas desenvolvem perspectivas sobre si mesmas e suas atividades desviantes e sobre suas relações com outros membros da sociedade. (Alguns atos desviantes, claro, são cometidos isoladamente, e as pessoas que os cometem não têm oportunidade de desenvolver uma cultura. Exemplos disso são o piromaníaco compulsivo ou o cleptomaníaco.4) Como operam dentro da cultura da sociedade mais ampla, porém diferentemente dela, essas culturas são muitas vezes chamadas de subculturas.
O músico de casa noturna, a cuja cultura ou subcultura este capítulo é dedicado, pode ser definido simplesmente como alguém que toca música popular por dinheiro. Exerce uma ocupação do setor de serviços e a cultura de que participa tem seu caráter determinado pelos problemas comuns desse tipo de ocupação de serviço. Esses trabalhos distinguem-se em geral pelo fato de, neles, o trabalhador entrar em contato mais ou menos direto e pessoal com o consumidor final do produto de seu trabalho, o cliente para quem executa o serviço. Conseqüentemente, o cliente é capaz de dirigir ou tentar dirigir o trabalhador em sua tarefa e de aplicar sanções de vários tipos, variando desde a pressão informal até a recusa do serviço, que passa a ser solicitado a outras das muitas pessoas que o executam.
Ocupações de serviço reúnem uma pessoa cuja atividade em tempo integral está centrada nesse ofício — e cujo eu está profundamente envolvido nele — e outra cuja relação com o serviço prestado é muito mais casual. Talvez seja inevitável que as duas tenham visões amplamente diferentes a respeito de como o serviço deve ser realizado. De modo típico, membros de ocupações no setor de serviços consideram o cliente incapaz de julgar o valor próprio do serviço e se ressentem amargamente das tentativas que ele faz para exercer controle sobre o trabalho. Em conseqüência, surgem conflitos e hostilidades, os métodos de defesa contra a interferência externa tornam-se uma preocupação dos membros do grupo, e uma subcultura se desenvolve em torno desse conjunto de problemas.
Os músicos acham que a única música que vale a pena tocar é o que chamam de “jazz”, termo que pode ser parcialmente definido como aquela música produzida sem referência às demandas de outsiders. No entanto, eles têm de suportar a incessante interferência no que tocam por parte de patrões e do público. O problema mais árduo na carreira do músico médio, como iremos ver, é a necessidade de escolher entre sucesso convencional e seus padrões artísticos. Para alcançar sucesso, ele sente necessidade de se “tornar comercial”, isto é, tocar de acordo com os desejos dos não-músicos para quem trabalha; ao fazê-lo, sacrifica o respeito de outros músicos e, assim, na maioria dos casos, seu auto-respeito. Se continuar fiel a seus padrões, estará em geral condenado ao fracasso na sociedade mais ampla. Os músicos se classificam de acordo com o grau em que cedem aos outsiders; o continuum varia desde o músico de “jazz”, num extremo, até o músico “comercial”, no outro.
Focalizarei adiante os seguintes pontos: (1) as concepções que os músicos têm de si mesmos e dos não-músicos com quem trabalham e os conflitos que lhes parecem inerentes a essa relação; (2) o consenso básico subjacente às reações de músicos comerciais e de jazz diante desse conflito; e (3) os sentimentos de isolamento que os músicos experimentam em relação à sociedade mais ampla, e o modo como se segregam do público e da comunidade. Os problemas que surgem da diferença entre a maneira como os músicos definem seu trabalho e aquelas como as pessoas para quem trabalham os concebem podem ser considerados um protótipo dos problemas que os desviantes enfrentam ao lidar com outsiders que têm uma visão diferente de suas atividades desviantes.5
Colhi o material deste estudo por meio de observação participante, interagindo com músicos na variedade de situações que compõem suas vidas de trabalho e lazer. Na época em que fiz a pesquisa, eu era pianista profissional há alguns anos e atuava em círculos musicais de Chicago. Isso foi em 1948 e 1949, período em que músicos aproveitavam os benefícios previstos pelo G.I. Bill.a Assim, o fato de eu freqüentar a universidade não me diferençava no meio musical. Trabalhei com muitas bandas de diferentes tipos durante esse período e fiz amplas anotações sobre os eventos que ocorriam enquanto estava com outros músicos. A maioria das pessoas que eu observava não sabia que eu estava fazendo um estudo sobre músicos. Raramente eu realizava alguma entrevista formal, concentrando-me antes em ouvir e registrar as conversas habituais que ocorriam entre os músicos. A maior parte de minhas observações foi realizada no trabalho e até no palco, enquanto tocávamos. Conversas úteis para meus objetivos ocorriam muitas vezes nos costumeiros “mercados de emprego”, nos escritórios do sindicato local, onde músicos à procura de trabalho e líderes de banda à procura de homens para contratar se reuniam nas tardes de segunda-feira e sábado.
O mundo do músico de casa noturna é extremamente diferenciado. Alguns tocam sobretudo em bares e cafés, em bairros distantes ou na área central. Alguns tocam com bandas maiores, em salões de dança e boates. Outros, em vez de trabalhar regularmente num lugar, atuam com bandas que tocam em bailes privados e festas em hotéis e clubes campestres. Outros homens ainda tocam com bandas famosas, nacionalmente conhecidas, ou trabalham em estúdios de rádio e televisão. Os que trabalham em cada tipo de contexto têm problemas e atitudes característicos desse contexto. Eu tocava principalmente em bares e cabarés, e ocasionalmente com vários tipos de banda que faziam apresentações avulsas. Mas tinha bastante contato com membros dos outros grupos — por meio de encontros em serviços ocasionais e no prédio do sindicato — para poder colher evidências de suas atitudes e atividades.
Quando completava a pesquisa, trabalhei como músico em dois outros lugares: uma pequena cidade universitária (Champaign-Urbana, Illinois) e uma cidade grande, embora não tão grande quanto Chicago (Kansas City, Missouri). Há disparidades na organização da profissão de músico associadas às diferenças de tamanho das cidades. Em Chicago, é muito mais fácil para um músico especializar-se. Ele pode ser músico de salão de dança, ou trabalhar somente em cabarés e boates (como eu fazia). Nas cidades menores, nenhum desses tipos de trabalho existe em quantidade suficiente, e, além disso, há menos músicos em proporção à população. Um músico, portanto, pode ser chamado para tocar em qualquer um dos vários contextos que descrevi, seja porque tem pouca escolha quanto aonde tocar, seja porque o líder de banda que procura alguém para trabalhar com ele tem pouca opção entre os músicos disponíveis. Embora eu não tenha mantido registros formais de minhas experiências nesses outros contextos, nenhum deles forneceu dados que exigissem mudanças nas conclusões a que cheguei com base nos materiais de Chicago.
O sistema de crenças sobre o que são os músicos e o que são os públicos é resumido em uma palavra empregada pelos primeiros para se referir aos outsiders — “quadrado” [square]. Ela é utilizada como substantivo e adjetivo, denotando tanto um tipo de pessoa quanto uma qualidade de comportamento e objetos. Refere-se ao tipo de pessoa que é o oposto do que todo músico é, ou deveria ser; e uma maneira de pensar, sentir e se comportar (com sua expressão em objetos materiais) oposta àquilo que os músicos apreciam.
O músico é concebido como um artista que possui um misterioso dom artístico que o distingue de todos os demais. Possuindo esse dom, ele deveria estar livre de controle por parte de outsiders que não o detêm. O dom é algo que não pode ser adquirido pela instrução; o outsider jamais poderá, portanto, tornar-se membro do grupo. Um trombonista disse: “Não se pode ensinar um sujeito a ter batida. Ou ele tem ou não tem. Se não tem, você não pode lhe ensinar isso.”
O músico acha que em nenhuma circunstância se deveria permitir que um outsider lhe dissesse o que tocar ou como tocar. De fato, o elemento mais forte no código dos colegas é a proibição de criticar ou tentar pressionar de qualquer maneira um outro músico na situação real de tocar “no trabalho”. Se não é permitido nem a um colega influenciar o trabalho, é impensável que se permita que um outsider o faça.
Essa atitude é generalizada num sentimento de que os músicos são diferentes de outros tipos de gente e melhores que eles, não devendo assim estar sujeitos ao controle de outsiders em qualquer esfera da vida, em particular em suas atividades artísticas. O sentimento de ser alguém diferente que leva uma vida diferente é arraigado, como indicam os seguintes comentários:
Estou lhe dizendo, os músicos são diferentes das outras pessoas. Falam de maneira diferente, agem de maneira diferente, parecem diferentes. Simplesmente não são como as outras pessoas, só isso…. Sabe, é difícil deixar a profissão de músico porque a gente se sente tão diferente dos outros.
Os músicos vivem uma vida exótica, como numa selva ou coisa parecida. Quando começam, são garotos comuns de cidades pequenas — mas, depois que entram nessa vida, mudam. É como uma selva, com a diferença que a selva deles é um ônibus quente, apinhado. Você vive esse tipo de vida durante um tempo e fica completamente diferente.
É ótimo ser músico, nunca vou me arrepender. Compreendo coisas que os quadrados nunca compreenderão.
Um extremo dessa concepção é a crença de que somente músicos são sensíveis e não-convencionais o bastante para conseguir dar verdadeira satisfação sexual a uma mulher.
Fortemente imbuídos de sua diferença, os músicos acreditam também não ter qualquer obrigação de imitar o comportamento convencional dos quadrados. Da idéia de que ninguém pode dizer a um músico como tocar decorre logicamente a noção de que ninguém pode dizer a um músico como fazer coisa alguma. Assim, o comportamento que zomba de normas sociais convencionais é muito admirado. Histórias revelam essa admiração por atividades bastante individuais, espontâneas, alegremente irresponsáveis; muitos dos mais famosos jazzmen são renomados como “personalidades”, e suas proezas são amplamente recontadas. Por exemplo, um conhecido jazzman ficou famoso por ter saltado no cavalo de um policial que estava parado em frente à boate em que trabalhava e ir cavalgando. O músico comum gosta de contar histórias de coisas não-convencionais que fez:
Tocamos no baile e depois que o trabalho terminou fizemos as malas para entrar no velho ônibus e voltar a Detroit. A uma pequena distância da cidade, o ônibus simplesmente se recusou a funcionar. Havia gasolina, mas ele simplesmente não andava. Uns caras desceram e ficaram por ali resmungando. De repente alguém disse: “Vamos tacar fogo nele!” Então alguém tirou um pouco de gasolina dos tanques e borrifou em volta, encostou um fósforo e… xispe! Simplesmente virou fumaça. Que experiência! O ônibus queimando e os caras em volta gritando e batendo palmas. Foi realmente um espetáculo.
Isso é mais que idiossincrasia; é um valor ocupacional básico, como indicado pela seguinte observação de um jovem músico: “Sabe, os maiores heróis no meio musical são os grandes excêntricos. Quanto mais maluco um cara se mostra, maior ele é, e mais todos gostam dele.”
Assim como não desejam ser obrigados a viver em termos de convenções sociais, os músicos não tentam impingir essas convenções aos outros. Por exemplo, um músico declarou que a discriminação étnica é errada, já que todo mundo tem direito a agir como quiser e acreditar no que quiser:
Merda, não acredito em nenhuma discriminação desse tipo. As pessoas são pessoas, não importa que sejam latinas, judias, irlandesas, polacas ou o quê. Só os tremendos quadrados se importam com a religião delas. Isso não significa porra nenhuma para mim. Cada um tem direito a acreditar no que bem entende. É isso que eu acho. Claro, eu mesmo nunca vou à igreja, mas não critico quem vai. Tudo bem se você gosta desse tipo de coisa.
O mesmo músico classificava de errado o comportamento sexual de um amigo, embora defendesse o direito que o indivíduo tem de decidir o que é certo e errado para si mesmo.
Eddie trepa demais por aí; ele vai acabar se matando ou sendo morto por alguma garota. E depois ele tem uma ótima mulher também. Não deveria tratá-la desse jeito. Mas foda-se, isso é problema dele. Se é assim que ele quer viver, se é feliz desse jeito, então é assim que tem de ser.
Músicos tolerarão comportamento extraordinário num colega músico sem fazer tentativa alguma de puni-lo ou coibi-lo. No incidente a seguir, o comportamento descontrolado de um baterista levou a banda a perder um trabalho; no entanto, por mais furiosos que estivessem, emprestaram-lhe dinheiro e se abstiveram de puni-lo de alguma maneira. Se alguém o repreendesse, teria sido uma quebra dos costumes.
JERRY: Quando chegamos lá, a primeira coisa que aconteceu foi que a bateria dele não apareceu. O proprietário teve de sair e procurar uma bateria em toda parte para ele, e nisso amassou um pára-lama. Vi no ato que não estávamos começando bem. E Jack! Cara, o patrão é um latino velho, você sabe, não estava para conversa fiada, ele dirige uma casa de jogo; não aceita desaforo de ninguém. Então ele disse a Jack: “O que você vai fazer sem bateria?” Jack respondeu: “Fica frio, papito, vai dar tudo certo, você vai ver.” Pensei que o velho fosse perder as estribeiras. Que maneira de falar com o patrão. Cara, ele olhou em volta com fogo nos olhos. Eu sabia que não iríamos ficar depois dessa. Ele me perguntou: “Esse baterista é bom da cabeça?” Eu respondi: “Não sei, nunca o vi antes.” E acabamos contando para ele que vínhamos tocando juntos havia seis meses. Então isso ajudou também. Claro, quando Jack começou a tocar, foi o fim. Tão alto! E não tocou uma batida de jeito algum. Só usava o bumbo para as batidas mais fortes. Que tipo de percussão era aquela? Quanto ao mais, era uma boa turminha…. Era um bom trabalho. Poderíamos ter ficado lá para sempre…. Bom, depois que tocamos umas duas seqüências, o patrão nos disse que estávamos fora.
BECKER: Que aconteceu depois que vocês foram despedidos?
JERRY: O patrão deu 20 paus para cada um e disse para voltarmos para casa. Como gastamos 17 dólares para o transporte de ida e volta, faturamos três pelo trabalho. Claro, vimos muitas árvores. Três paus, merda, não faturamos nem isso. Emprestamos uns sete ou oito para o Jack.
Desse modo, o músico vê a si e aos seus colegas como pessoas com um dom especial que as torna diferentes de não-músicos e que não estão sujeitas a seu controle, seja no desempenho musical, seja no comportamento social comum.
O quadrado, por outro lado, não possui esse dom especial nem qualquer compreensão da música ou do modo de vida dos que o possuem. O quadrado é visto como uma pessoa ignorante e intolerante, que deve ser temida, uma vez que produz as pressões que forçam o músico a tocar de maneira não artística. A dificuldade do músico reside no fato de que o quadrado está em condições de impor sua vontade: se não gostar do tipo de música tocado, não pagará para ouvi-la uma segunda vez.
Sem compreender nada de música, o quadrado a avalia segundo padrões estranhos aos músicos e não respeitados por eles. Um saxofonista comercial comentou sarcasticamente:
Não faz a menor diferença o que tocamos, o modo como tocamos. É tão simples que qualquer um que tenha tocado por mais de um mês consegue se virar. O cara toca um refrão no piano, ou coisa parecida, depois os saxes ou outros instrumentos repetem aquilo em uníssono. É muito fácil. Mas as pessoas não se importam. Contanto que consigam ouvir o baterista está tudo bem. Elas ouvem a bateria, assim sabem pôr o pé direito diante do esquerdo e o pé esquerdo diante do direito. E se conseguirem aprender a assoviar a melodia, ficam felizes. Que mais poderiam querer?
A seguinte conversa ilustra a mesma atitude:
JOE: Se você saísse do estrado e andasse entre as mesas, alguém diria: “Rapaz, gosto muito da sua banda.” Só porque você tocava suavemente e o saxofonista também tocava violino, ou coisa que o valha, os quadrados gostavam…
DICK: Foi como quando eu trabalhei no M. Club. Todos os caras que tinham sido meus colegas no ensino médio costumavam ir e curtir a banda…. Foi uma das piores bandas em que já trabalhei, mas eles achavam uma maravilha.
JOE: Ah, é, eles são uma cambada de quadrados, de todo modo.
Considera-se que a “quadradice” penetra todos os aspectos do comportamento do quadrado, assim como seu oposto, o “avanço” é evidente em tudo que o músico faz. O quadrado parece fazer tudo errado, é risível e ridículo. O músico se diverte muito se sentando e observando os quadrados. Todos têm histórias para contar sobre as tolices risíveis de quadrados. Um homem chegou a ponto de sugerir que os músicos deviam trocar de lugar com as pessoas que estavam sentadas ao balcão do café onde trabalhava; afirmava que elas eram mais engraçadas e divertidas do que ele jamais conseguiria ser. Todos os itens do vestuário, fala e comportamento que diferem daqueles do músico são considerados novas evidências da insensibilidade e ignorância inerentes do quadrado. Como os músicos têm uma cultura hermética, essas evidências são muitas e servem apenas para fortalecer sua convicção de que músicos e quadrados são dois tipos diferentes de pessoa.
Mas também teme-se o quadrado, uma vez que é visto como a fonte máxima da pressão comercial. É a ignorância do quadrado que obriga o músico a tocar o que considera música ruim a fim de ter sucesso.
BECKER: Como você se sente em relação às pessoas para quem toca, o público?
DAVE: Eles são um saco.
BECKER: Por que diz isso?
DAVE: Bom, porque, se você está numa banda comercial, eles gostam, e assim você tem de tocar mais coisas melosas. Se você está trabalhando numa banda boa, eles não gostam, e isso é um saco. Se você está trabalhando numa banda boa e eles gostam, é um saco também. A gente os detesta de qualquer maneira, porque sabe que eles não conhecem nada. Eles são simplesmente um grande saco.
A última afirmação revela que aqueles que tentam evitar ser quadrados ainda são considerados como tal, porque ainda lhes falta a compreensão apropriada, que só um músico pode ter — “eles não conhecem nada”. Assim, o fã de jazz não é mais respeitado que os outros quadrados. Sua apreciação do jazz não está baseada numa compreensão e ele age exatamente como os outros quadrados. Pedirá músicas e tentará influenciar a execução do músico, exatamente como outros quadrados.
O músico se vê assim como um artista criativo que deveria estar livre de controle externo, uma pessoa melhor que aqueles outsiders que chama de quadrados — que não compreendem sua música nem seu modo de vida, por cuja causa, no entanto, ele deve tocar de maneira contrária a seus ideais de profissão.
Músicos de jazz e comerciais concordam fundamentalmente em sua atitude em relação ao público, embora variem na maneira como expressam esse consenso básico. Dois temas conflitantes constituem a base da concordância: (1) o desejo de auto-expressão de acordo com as crenças do grupo de músicos e (2) o reconhecimento de que pressões externas podem forçar o músico a se privar de satisfazer esse desejo. O jazzman tende a enfatizar o primeiro, o músico comercial o segundo; mas ambos reconhecem e sentem a força de cada uma dessas influências. Comum às atitudes de ambos os tipos de músico é um intenso desprezo e desapreço pelo público quadrado, por cuja culpa os músicos devem “se tornar comerciais” para ter sucesso.
O músico comercial, embora considere o público quadrado, opta por sacrificar o auto-respeito e o respeito de outros músicos (as recompensas do comportamento artístico) pelas recompensas mais substanciais do trabalho estável, a renda maior e o prestígio desfrutado pelo homem que se torna comercial. Um músico comercial comentou:
Eles têm um ótimo tipo de gente aqui, também. É claro que são quadrados. Não estou tentando negar isso. Sem dúvida são um bando de quadrados fodidos, mas, porra, quem paga as contas? Eles pagam, então você tem de tocar o que eles querem. Isto é, que merda, você não pode ganhar a vida se não tocar para os quadrados. Quantas porras de pessoas você pensa que não são quadrados? De 100 pessoas, você teria sorte se 15% não fossem quadrados. Isto é, talvez os profissionais liberais — médicos, advogados, esse pessoal —, eles podem não ser quadrados, mas a pessoa média não passa de um maldito quadrado. Claro, o pessoal do cinema não é assim. Mas, fora o pessoal do cinema e os profissionais, são todos uns grandes quadrados.6 Não sabem nada.
Vou lhe contar. Isso é uma coisa que aprendi uns três anos atrás. Se você quiser faturar algum, tem de agradar aos quadrados. São eles que pagam as contas, e você tem de tocar para eles. Um bom músico não consegue arranjar emprego. Você tem de tocar um monte de merda. Mas, que diabo, vamos encarar. Quero viver bem. Quero ganhar algum dinheiro; quero ter um carro, saca. Por quanto tempo a gente consegue se opor a isso? …
Não me entenda mal. Se você consegue ganhar dinheiro tocando jazz, ótimo. Mas quantos caras conseguem isso? … Se você puder tocar jazz, ótimo, como eu disse. Mas se você está na porcaria de um emprego ruim, não tem como evitar, tem de ser comercial. Quer dizer, os quadrados estão pagando o seu salário, então o melhor é você se acostumar com isso, é a eles que você tem de agradar.
Observe que este músico admite que é mais “respeitável” ser independente dos quadrados e manifesta desprezo pelo público, cuja “quadradice” é responsável por toda a situação.
Esses homens expressam o problema principalmente em termos econômicos.
Quero dizer, merda, se você está tocando para um bando de quadrados, está tocando para um bando de quadrados. Que porra você vai fazer? Você não pode empurrar isso pela goela deles abaixo. Bom, acho que você pode fazer eles engolirem isso, mas, afinal, eles estão lhe pagando.
O jazzman sente a necessidade de satisfazer a audiência com igual intensidade, embora sustentando que não se deve ceder a ela. Os jazzmen, como outros, apreciam empregos estáveis e bons, e sabem que precisam satisfazer o público para consegui-los, como a seguinte conversa entre dois jovens jazzmen ilustra:
CHARLIE: Não há nenhum emprego em que você possa tocar jazz. Você tem de tocar rumbas, canções populares e tudo o mais. Você não consegue nada tocando jazz. Cara, não quero brigar a minha vida inteira.
EDDIE: Bem, você quer se divertir, não quer? Você não seria feliz tocando coisas comerciais. Você sabe disso.
CHARLIE: Acho que não há meio de um sujeito ser feliz. Porque sem dúvida é um saco tocar música comercial, mas é um horror nunca fazer nada e tocar jazz.
EDDIE: Meu Deus, por que você não pode ser bem-sucedido tocando jazz? … Isto é, você poderia ter um grupinho ótimo e ainda tocar arranjos, mas bons, saca.
CHARLIE: Você nunca conseguiria arranjar emprego para uma banda assim.
EDDIE: Bem, você poderia ter uma putinha sexy para ficar de pé na frente, cantar e rebolar o traseiro para os caretas [quadrados]. Assim conseguiria emprego. E ainda poderia tocar muito bem quando ela não estivesse cantando.
CHARLIE: Bem, não era assim que era a banda de Q? Você gostava daquilo? Gostava do jeito que ela cantava?
EDDIE: Não, cara, mas a gente tocava jazz, sabe.
CHARLIE: Você gostava do tipo de jazz que tocavam? Era meio comercial, não era?
EDDIE: Era, mas poderia ter sido ótimo.
CHARLIE: É, mas se tivesse sido ótimo vocês não teriam continuado trabalhando. Acho que vou ser sempre infeliz. É assim que as coisas são. O sujeito vai sempre estar mal consigo mesmo…. Nunca haverá nenhum tipo de emprego realmente bom para um músico.
Além da pressão para agradar ao público que emana do desejo que o músico tem de maximizar salário e renda, há pressões mais imediatas. Muitas vezes é difícil sustentar uma atitude independente. Por exemplo:
Trabalhei num casamento italiano no Southwest Side ontem à noite, com Johnny Ponzi. Tocamos meia hora, fazendo os arranjos especiais que eles usam, que são muito pouco comerciais. Então um velho italiano (o sogro do noivo, como descobrimos mais tarde) começou a gritar: “Toquem umas polcas, toquem um pouco de música italiana. Ah, vocês não prestam, vocês são ruins.” Johnny sempre tenta evitar o inevitável nesses casamentos, adiando a execução de música popular enquanto pode. Eu perguntei: “Cara, por que não tocamos um pouco dessas coisas agora e acabamos com isso?” Tom respondeu: “Acho que se começarmos a fazer isso, vamos ter de fazer a noite inteira.” Johnny disse: “Ouçam, Howard, o noivo, é um sujeito realmente excelente. Ele nos disse para tocar o que quiséssemos e não dar nenhuma atenção ao que as pessoas dizem, por isso não se preocupem.”
O velho continuou gritando e logo o noivo chegou e disse: “Ouçam, companheiros. Sei que vocês não querem tocar nada dessas merdas, e não quero que toquem, mas é meu sogro, entendem. Só não quero deixar minha mulher sem graça por causa dele, por isso toquem um pouco de música latina para manter o velho sossegado, certo?” Johnny correu os olhos sobre nós e fez um gesto de resignação.
Ele disse: “Certo, vamos tocar a ‘Beer Barrel Polka’.” Tom disse: “Que merda! Lá vamos nós.” Tocamos isso e depois tocamos uma dança italiana, a “Tarantella”.
Às vezes o empregador faz uma pressão que leva até um jazz-man intransigente a ceder, pelo menos enquanto dura o trabalho.
Eu estava fazendo uma apresentação-solo por uma noite no Y, na rua X. Que saco! Na segunda parte de “Sunny Side”, toquei o refrão e, depois, um pouco de jazz. De repente o patrão se debruçou sobre o lado do balcão e gritou: “Viro mico de circo se alguém neste lugar souber que música você está tocando!” E todo mundo no lugar escutou. Que quadradão! O que eu podia fazer? Não disse nada, só continuei tocando. Claro que foi um saco.
Um tanto incoerentemente, o músico quer sentir que está alcançando o público, e que este obtém algum prazer com seu trabalho, e isso também o leva a ceder a demandas do público. Um homem falou:
Gosto mais de tocar quando há alguém para ouvir. A gente tem a impressão de que não há muito sentido em tocar se não há ninguém para nos ouvir. Isto é, afinal, música é para isso — para as pessoas ouvirem e terem prazer. É por isso que não me importo muito em tocar música melosa. Se alguém gosta disso, então de certo modo isso me dá prazer. Acho que sou meio diletante. Mas gosto de deixar as pessoas felizes dessa maneira.
Essa declaração é um tanto extrema; a maioria dos músicos, porém, é suficientemente sensível para querer evitar o desagrado ativo do público. “É por isso que gosto de trabalhar com Tommy”, diz o músico. “Pelo menos, quando você sai do palco, todo mundo no lugar não está odiando você. É um saco trabalhar nessas condições, em que todo mundo no lugar simplesmente detesta a banda toda.”
Os músicos são hostis a seus públicos, temerosos de ter de sacrificar seus padrões artísticos aos quadrados. Eles exibem certos padrões de comportamento e crença que podem ser considerados ajustes a essa situação. Esses padrões de isolamento e auto-segregação são expressos na situação real de execução musical e na participação no intercurso social da comunidade mais ampla. A principal função desse comportamento é proteger o músico da interferência do público quadrado e, por extensão, da sociedade convencional. Sua principal conseqüência é intensificar o status do músico como um outsider, por meio da operação de um ciclo de desvio crescente que, por sua vez, aumenta as possibilidades de dificuldades adicionais.
Em regra, o músico está espacialmente isolado do público. Trabalha sobre uma plataforma, que fornece uma barreira física e impede a interação direta. Esse isolamento é bem-vindo, porque o público, composto de quadrados, é sentido como potencialmente perigoso. O músico teme que o contato direto com o público só possa levar a interferência na execução musical. É mais seguro, portanto, estar isolado e nada ter a ver com ele. Uma vez em que esse isolamento não foi proporcionado, um músico comentou:
Uma outra coisa sobre casamentos, cara. Você fica ali mesmo no chão, bem no meio das pessoas. Você não pode escapar delas. É diferente se você toca num baile ou num bar. Num salão de dança você fica em cima de um palco, onde eles não podem lhe alcançar. A mesmacoisa num salão de coquetel, você fica no alto atrás do balcão. Mas num casamento, cara, você fica bem no meio deles.
Quando desprovidos das barreiras físicas em geral fornecidas, os músicos muitas vezes improvisam as suas próprias barreiras e segregam-se eficazmente de seu público.
Eu tinha um trabalho num casamento judaico sábado à noite…. Quando cheguei, o restante dos rapazes já estava lá. Como o casamento atrasara, as pessoas estavam apenas começando a comer. Decidimos, depois que conversei com o noivo, tocar durante o jantar. Sentamo-nos num canto afastado do salão. Jerry puxou o piano de modo que ele bloqueasse um pequeno espaço que ficou assim separado do resto das pessoas. Tony instalou sua bateria nesse espaço, e Jerry e Johnny ficaram ali enquanto tocamos. Quis deslocar o piano de modo que os rapazes pudessem ficar de pé diante dele e perto do público, mas Jerry disse, meio em tom de brincadeira: “Não, cara. Preciso ter alguma proteção contra os quadrados.” Assim, deixamos as coisas como estavam….
Jerry teve de passar para a frente do piano, mas, de novo meio como brincadeira, teve de pôr duas cadeiras diante de si, que o separavam do público. Quando um casal pegou as cadeiras para se sentar, Jerry pôs duas outras em seu lugar. Johnny perguntou: “Cara, por que não nos sentamos nessas cadeiras?” Jerry respondeu: “Não, cara. Deixe-as aí. Isso é a barricada para me proteger dos quadrados.”
Muitos músicos, de maneira quase reflexa, evitam estabelecer contato com integrantes do público. Quando andam no meio deles, de hábito evitam olhar nos olhos dos quadrados, temendo que isso estabeleça alguma relação a partir da qual o quadrado viria a solicitar músicas ou tentar influenciar a execução musical de alguma outra maneira. Alguns estendem esse comportamento a sua atividade social comum, fora de situações profissionais. Até certo ponto isso é inevitável, porque as condições de trabalho — trabalho madrugadas adentro, grande mobilidade geográfica, e assim por diante — tornam difícil a participação social fora do grupo profissional. Quando se trabalha enquanto os outros dormem, é difícil ter uma interação social normal com as pessoas. Isso foi citado por um músico que havia deixado a profissão, como uma explicação parcial de sua ação: “E é ótimo trabalhar em horários regulares, também, quando você pode ver pessoas em vez de ir trabalhar toda noite.” Alguns músicos mais jovens queixam-se de que os horários de trabalho tornam difícil para eles estabelecer contatos com garotas “direitas”, uma vez que impedem o namoro convencional.
Grande parte da segregação, porém, se desenvolve a partir da hostilidade em relação aos quadrados. A atitude é vista em seu limite entre os “X Avenue Boys”, um grupo de jazzmen radicais que rejeita a cultura norte-americana in toto. A qualidade de seu sentimento em relação ao mundo externo é indicada pelo título privado que um homem deu à sua música-tema: “Se vocês não gostam do meu jeito abichalhado, fodam-se.”b A composição étnica do grupo era mais um indicador de que sua adoção de atitudes artísticas e sociais extremas faziam parte de uma rejeição total da sociedade norte-americana convencional. Com poucas exceções, os homens provinham de grupos nacionais mais antigos, mais inteiramente assimilados: irlandeses, escandinavos, alemães e ingleses. Além disso, dizia-se que muitos vinham de famílias ricas e das classes sociais mais altas. Em suma, sua rejeição ao comercialismo na música e aos quadrados na vida social fazia parte do embargo a toda a cultura norte-americana erguido por homens que gozavam de uma posição privilegiada, mas eram incapazes de conseguir um ajuste pessoal satisfatório dentro dela.
Todos os interesses desse grupo enfatizavam seu isolamento dos padrões e interesses da sociedade convencional. Eles se associavam quase exclusivamente com outros músicos e moças que cantavam ou dançavam em boates na área de North Clark Street de Chicago, e tinham pouco ou nenhum contato com o mundo convencional. Eram descritos politicamente da seguinte maneira: “Eles detestam esta forma de governo de qualquer maneira e a consideram realmente ruim.” Eram infatigavelmente críticos das empresas e dos trabalhadores, desiludidos da estrutura econômica e cínicos com relação ao processo político e aos partidos políticos contemporâneos. Religião e casamento eram completamente rejeitados, assim como as culturas americanas popular e séria, e sua leitura restringia-se exclusivamente aos escritores e filósofos avant-garde mais herméticos. Em arte e música sinfônica, interessavam-se somente pelos desenvolvimentos mais herméticos. Em todo caso, apressavam-se a indicar que seus interesses não eram os da sociedade convencional, e que portanto se diferençavam dela. É razoável supor que a principal função desses interesses fosse tornar essa diferenciação inequivocamente clara.
Embora encontrassem seu desenvolvimento mais extremo entre os “X Avenue Boys”, o isolamento e a auto-segregação eram manifestados também por músicos menos desviantes. O sentimento de estar isolado do restante da sociedade era com freqüência muito forte; a seguinte conversa, que teve lugar entre dois jovens jazzmen, ilustra duas reações ao sentimento de isolamento.
EDDIE: Sabe, cara, detesto as pessoas. Não suporto estar no meio de quadrados. Eles me irritam tanto que simplesmente não consigo suportá-los.
CHARLIE: Você não devia ser assim, cara. Não deixe que eles o irritem. Apenas ria deles. É o que eu faço. Simplesmente ria de tudo que fazem. É a única maneira de conseguir suportar isso.
Um jovem músico judeu, que se identificava claramente com a comunidade judaica, sentia contudo seu isolamento profissional com intensidade suficiente para fazer as seguintes declarações.
Sabe, um pouco de conhecimento é uma coisa perigosa. Foi o que me aconteceu quando comecei a tocar. Eu realmente tinha a impressão de que sabia demais. De certo modo, eu sabia, ou sentia, que todos os meus amigos do bairro eram verdadeiros quadrados e estúpidos….
Você sabe, é engraçado. Quando você se senta naquele estrado ali, sente-se diferente dos outros. Eu até consigo entender como os gentios se sentem em relação aos judeus. Você vê essas pessoas se aproximarem, e elas parecem judias, ou têm um pouquinho de sotaque, ou algo assim, e elas pedem uma rumba ou uma porcaria dessas, e eu realmente penso: “Que quadrados irritantes, esses judeus”, exatamente como se eu mesmo fosse goy. É isso que quero dizer quando falo que a gente aprende demais sendo músico. Isto é, você vê muitas coisas e adquire uma perspectiva tão ampla da vida que a pessoa comum simplesmente não tem.
Em outra ocasião, o mesmo homem observou:
Sabe, desde que saí para trabalhar realmente fiquei de tal jeito que posso conversar com alguns daqueles caras no bairro.
[Quer dizer que tinha dificuldade em falar com eles antes?]
Bom, eu simplesmente ficava por ali e não sabia o que dizer. Ainda tenho dificuldade para conversar com aqueles caras. Tudo que eles dizem parece bobo e desinteressante.
O processo de auto-segregação é evidente em certas expressões simbólicas, em particular no uso de uma gíria profissional que identifica rapidamente o homem que a pode usar adequadamente como alguém que não é quadrado, e reconhecer c om igual rapidez, como outsider, a pessoa que a emprega incorretamente ou não a utiliza. Algumas palavras se desenvolveram para designar problemas profissionais e atitudes peculiares de músicos, e típico delas é “quadrado”. Essas expressões permitem que os músicos discutam problemas e atividades para os quais a linguagem comum não fornece uma terminologia adequada. Há, contudo, muitas palavras que são meros substitutos para expressões comuns, sem acrescentar nenhum novo significado. Por exemplo, estes são sinônimos de dinheiro: loot, gold, geetz e bread Empregos são chamados de gigs. Há inúmeros sinônimos para maconha, os mais comuns sendo gage, pot, charge, tea e shit. A função desse comportamento é indicada por um jovem músico que estava deixando a atividade:
Mas estou satisfeito por estar deixando a profissão. Estou enjoado de ficar no meio de músicos. Há tanto ritual e cerimônia sem sentido. Eles têm de falar uma língua especial, se vestir de maneira diferente, usar um tipo diferente de óculos. E tudo isso não significa porcaria alguma, a não ser: “Nós somos diferentes.”
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a G.I. Bill of Rights, ou The Servicemen’s Readjustment Act, lei sancionada em junho de 1944 que garantia aos militares veteranos uma ampla gama de benefícios, inclusive dinheiro para o pagamento de estudos universitários. (N.T.)
b No original, “If You Don’t Like my Queer Ways You Can Kiss My Fucking Ass”. (N.T.)