Carreiras num grupo ocupacional
desviante: o músico de casa noturna
Já discuti — em particular ao considerar o desenvolvimento do uso de maconha — a carreira desviante (isto é, o desenvolvimento de um padrão de comportamento desviante). Gostaria de examinar agora os tipos de carreira que desenvolve, entre músicos de casa noturna, um grupo de “outsiders” que se considera “diferente”, e é assim considerado pelos outros. Mas em vez de me concentrar na gênese de modos desviantes de comportamento, vou perguntar quais são as conseqüências, para a carreira ocupacional de uma pessoa, produzidas pelo fato de o grupo ocupacional em que ela faz essa carreira ser um grupo desviante.
Ao usar o conceito de carreira para estudar o destino do indivíduo dentro de organizações ocupacionais, Hughes definiu-a como:
Objetivamente, … uma série de status e funções claramente definidos, … seqüências típicas de posição, realização, responsabilidade e até de aventura…. Subjetivamente, uma carreira é uma perspectiva móvel em que uma pessoa vê sua vida como um todo e interpreta o significado de seus vários atributos, ações e as coisas que lhe acontecem.1
A discussão dos estágios da carreira médica desenvolvida por Hall concentra-se mais especificamente na carreira como uma série de ajustamentos à “rede de instituições, organizações formais e relações informais” em que a profissão é praticada.2
Os perfis de carreiras característicos de uma ocupação ganham sua forma a partir dos problemas peculiares a ela. Estes, por sua vez, são uma função da posição da ocupação vis-à-vis outros grupos na sociedade. Os principais problemas dos músicos, como vimos, giram em torno da manutenção de sua liberdade diante do controle sobre seu comportamento artístico. O controle é exercido pelos outsiders para quem o músico trabalha, que usualmente julgam seu desempenho e reagem a ele com base em padrões muito diferentes. A relação antagônica entre músicos e outsiders molda a cultura do músico e produz também as principais contingências e os pontos de crise em sua carreira.
Estudos de ocupações mais convencionais como a medicina mostraram que o sucesso ocupacional (tal como definido por membros da ocupação) depende de se encontrar uma posição para si naquele grupo ou naqueles grupos que controlam as recompensas dentro da ocupação, e que as ações e os gestos de colegas desempenham um grande papel na decisão do resultado da carreira de qualquer indivíduo.3 Os músicos não são exceção a essa proposição, e começarei considerando suas definições de sucesso ocupacional e o modo como o desenvolvimento de carreiras musicais depende da integração bem-sucedida na organização da profissão de músico.
Mas a história da carreira do músico não se resume a isso. O problema da liberdade em face do controle externo cria certas contingências de carreira adicionais que acrescentam algumas complicações à estrutura da ocupação; considerarei esses aspectos em seguida.
Por fim, a família do músico (tanto aquela em que ele nasceu quanto a que ele cria ao se casar) tem um importante efeito sobre sua carreira.4 Pais e esposas são tipicamente não-músicos e, como outsiders, muitas vezes não compreendem a natureza da ligação do músico com seu trabalho. As incompreensões e divergências que surgem freqüentemente alteram a direção da carreira de um músico e, em alguns casos, provocam seu encerramento.
“Panelinhas”a e sucesso
O músico concebe o sucesso como um movimento através de uma hierarquia de empregos disponíveis. Ao contrário do trabalhador industrial ou dos funcionários de colarinho-branco, ele não identifica sua carreira com um empregador; espera mudar de emprego com freqüência. Um ranqueamento informalmente reconhecido desses empregos — levando em conta a renda envolvida, as horas de trabalho e o grau percebido de reconhecimento da realização pela comunidade — constitui a escala pela qual um músico avalia seu sucesso segundo o tipo de emprego que de hábito tem.
No nível mais baixo dessa escala está o homem que toca esporadicamente em pequenos bailes, recepções de casamento e atividades semelhantes, e tem sorte quando recebe pela tabela do sindicato. No nível seguinte estão aqueles homens que têm empregos estáveis em “espeluncas” — bares e boates de classe inferior, pequenos cabarés etc. — onde a remuneração é baixa e o reconhecimento da comunidade é ainda mais baixo. O nível seguinte é compreendido por aqueles homens que têm empregos estáveis em bandas locais de salões de baile de bairro e pequenas boates e salões de coquetel “respeitáveis” em áreas melhores da cidade. Esses lugares pagam mais que as espeluncas, e quem trabalha neles pode esperar ser reconhecido como bem-sucedido em sua comunidade. Aproximadamente equivalentes a estes são aqueles que trabalham nas chamadas “orquestras famosas de classe B”, a segunda classe das orquestras de dança nacionalmente conhecidas. O nível seguinte consiste em homens que trabalham em bandas “famosas de classe A” e em orquestras locais que tocam nas melhores boates, hotéis, grandes convenções etc. Os salários são bons, os horários são leves, e os homens esperam ser reconhecidos como bem-sucedidos dentro e fora da profissão. As posições mais altas nessa escala são ocupadas por homens que pertencem ao staff de estações de rádio, televisão e teatros. Os salários são altos, os horários folgados, e os empregos são reconhecidos como o epítome da realização no mundo da música local e como atividades de alto nível de respeitabilidade por parte dos outsiders.
Uma rede de “panelinhas” informais, interligadas, distribui os empregos disponíveis num dado momento. Para obter trabalho em qualquer nível, ou para avançar até os empregos num novo nível, a posição que uma pessoa ocupa na rede é de grande importância. As “panelinhas” são unidas por laços de obrigação, os membros apadrinham-se uns aos outros na obtenção de empregos, seja contratando-se uns aos outros quando têm poder para tanto, seja recomendando-se uns aos outros para aqueles que fazem as contratações para uma orquestra. A recomendação é de grande importância, pois é assim que indivíduos disponíveis tornam-se conhecidos pelos que contratam; a pessoa desconhecida não será contratada, e o pertencimento a essas “panelas” assegura a um músico que ele tem muitos amigos que o recomendarão para as pessoas certas.
Assim, o pertencimento às “panelas” proporciona emprego estável ao indivíduo. Um homem explicou:
Veja, funciona assim. Minha mão direita aqui, são cinco músicos. Minha mão esquerda, são mais cinco. Agora um destes rapazes aqui consegue um emprego. Ele escolhe os homens para ele apenas entre os sujeitos deste grupo. Sempre que um deles consegue um emprego, naturalmente contrata esse sujeito. Você vê, portanto, como a coisa funciona. Eles nunca contratam ninguém que não esteja na panela. Se um deles trabalha, todos trabalham.
O músico estabelece e cimenta essas relações conseguindo empregos para outros homens e obrigando-os a retribuir o favor.
Havia uns sujeitos nesta banda para quem eu tinha conseguido bons empregos, e eles continuavam a ocupá-los desde então. Como um daqueles trombonistas. Eu o coloquei numa boa banda. Um dos trompetistas também…. Você sabe como isso funciona. Um líder lhe pede um homem. Se ele gostar do sujeito que você lhe arranja, toda vez que precisar de um, vai lhe pedir. Desse modo você consegue empregar todos os seus amigos.
A segurança vem do número e da qualidade das relações assim estabelecidas. Para ter uma carreira, é preciso trabalhar; para gozar da segurança de emprego estável, é preciso ter muitos “contatos”:
Você tem de fazer contatos desse tipo pela cidade inteira, até que se crie uma situação na qual quando qualquer pessoa quiser alguém ela o chame. Então você nunca ficará sem trabalho.
Convém observar certa semelhança com a organização informal da prática médica. Os músicos cooperam entre si recomendando-se uns aos outros para empregos de maneira muito parecida com a que membros da “fraternidade interna” médica cooperam entre si encaminhando pacientes uns aos outros.5 Os dois complexos institucionais diferem, contudo, pelo fato de que a prática médica (a não ser nas maiores cidades) tende a girar em torno de alguns grandes hospitais que uma ou poucas dessas fraternidades podem controlar. Na música, o número de focos possível é muito maior, com uma proliferação proporcionalmente maior da organização; por conseguinte, cada indivíduo tem melhores condições de estabelecer os contatos certos para si, e, portanto, há uma redução do poder de qualquer “panelinha” particular.
Além de um grau de garantia de trabalho para seus integrantes, as “panelinhas” fornecem ainda rotas pelas quais uma pessoa pode se deslocar ao longo dos níveis de empregos. Em várias “panelas” observadas, os participantes provinham de mais de um nível da hierarquia; assim, homens de posição inferior podiam se associar a homens de um nível mais alto. Quando um emprego se torna disponível num plano mais alto da escala, um homem do nível inferior pode ser apadrinhado por alguém de categoria mais alta, que o recomenda, ou contrata, e se responsabiliza pela qualidade de seu desempenho. Um músico que pertencia ao staff de uma rádio descreveu o processo nesses termos:
A outra maneira de ser um sucesso é ter uma porção de amigos. Você deve tocar bem, mas precisa ter amigos em diferentes bandas, e quando alguém sai de uma banda, eles se esforçam para encaixar você. Uma pessoa leva muito tempo para se firmar dessa maneira. Eu levei uns dez anos para conseguir o emprego que tenho agora.
Se o homem assim apadrinhado tiver um bom desempenho, poderá estabelecer outras relações informais no novo nível, e nele conseguir mais empregos. O bom desempenho no trabalho é necessário para que ele se estabeleça plenamente no novo nível, e os padrinhos exibem grande ansiedade com relação ao desempenho de seus protegidos. O apadrinhamento múltiplo descrito nesse incidente, em minhas anotações de campo, ilustra que essa ansiedade tem origem nas obrigações com relação a colegas:
Um amigo meu me perguntou se eu iria trabalhar aquela noite. Quando lhe disse que não, ele me levou até um outro sujeito que, por sua vez, me levou até um velho com forte sotaque italiano. Esse homem me perguntou: “Então, você toca piano?” Respondi: “Toco.” “Mas toca bem?” Eu disse: “Sim.” Ele falou: “Toca bem? Lê bastante bem?” Eu respondi: “Razoavelmente. De que se trata?” Ele disse: “É um clube aqui no Loop. É das 21h às 4h30, paga US$2,50 a hora. Tem certeza de que é capaz?” Respondi: “Certamente!” Ele tocou meu ombro e disse: “Certo. É que eu tenho de lhe fazer estas perguntas. Isto é, eu não sei, não sei como você toca, realmente tenho de perguntar, entende?” Respondi: “Claro.” Ele falou: “Você sabe, preciso ter certeza, é um lugar no centro. Bom, aqui está. Ligue para este número e diga-lhes que Mantuno mandou você ligar… Mantuno. Entenda, preciso ter certeza de que vai se sair bem, do contrário estou frito. Vá, ligue para eles agora. Lembre-se, Mantuno lhe disse para você ligar.”
Ele me deu o número. Liguei e consegui o emprego. Quando saí da cabine, meu amigo, que tinha originado a transação, se aproximou e falou: “Tudo certo? Conseguiu o emprego?” Respondi: “Sim, muitíssimo obrigado.” Ele disse: “Tudo bem. Ouça, faça um bom trabalho. Isto é, se for música comercial, toque música comercial. Que diabo! Quer dizer, se você não fizer isso, eu é que estarei com o traseiro na reta, você sabe. E não é nem só o meu, é o do Tony e o daquele outro cara. São quatro traseiros diferentes.”
Em suma, a obtenção desses empregos melhores requer da pessoa tanto competência quanto constituição de relações informais de obrigação mútua com homens que podem indicá-los para eles. Sem o mínimo necessário de competência, a pessoa não pode ter um bom desempenho no novo nível, mas essa competência só resultará no tipo apropriado de trabalho caso se tenha feito os contatos apropriados. Para os padrinhos, como indica a citação anterior, o sistema opera no sentido de levar homens disponíveis à atenção daqueles que têm empregos a preencher, e de lhes fornecer recrutas de quem se pode esperar um desempenho adequado.
A carreira bem-sucedida pode ser vista como uma série desses passos, cada qual uma seqüência de apadrinhamento, desempenho satisfatório e estabelecimento de relações a cada novo nível.
Observei uma semelhança entre a carreira do músico e carreiras na medicina e na indústria, revelada no fato de que o funcionamento bem-sucedido e a mobilidade profissional são funções da relação do indivíduo com uma rede de organizações informais composta por seus colegas. Passarei agora à variação nessa forma social típica criada pela forte ênfase dos músicos na manutenção de sua liberdade para tocar sem a interferência de não-músicos, vistos como pessoas que não dispõem da compreensão e da apreciação dos misteriosos dons artísticos. Como é difícil (se não impossível) alcançar a liberdade desejada, a maioria dos homens considera necessário sacrificar os padrões de sua profissão em algum grau, de modo a satisfazer as demandas de públicos e daqueles que controlam as oportunidades de emprego. Isso cria uma outra dimensão de prestígio profissional, baseada no grau em que uma pessoa se recusa a modificar seu desempenho em deferência a demandas externas — de um extremo, de “tocar o que você sente”, ao outro, de “tocar o que as pessoas querem ouvir”. O jazzman toca o que sente, enquanto o músico comercial atende ao gosto do público; a melhor síntese do ponto de vista comercial é uma declaração atribuída a um músico comercial de muito sucesso: “Faço qualquer coisa por um dólar.”
Como salientei anteriormente, os músicos sentem que há um conflito inerente a essa situação, e que não se pode agradar ao público e manter ao mesmo tempo a própria integridade artística. A seguinte citação, tomada de uma entrevista com um músico do staff de uma estação de rádio, ilustra o tipo de pressão que gera esses conflitos nos empregos de nível mais alto:
O importante no estúdio é não cometer nenhum erro, entende? Eles não se importam se você toca uma coisa bem ou não, contanto que toque todas as notas e não erre. É claro, você se importa se a coisa não soa bem, mas eles não estão interessados nisso…. Não se importam em como você soa quando passa por aquele microfone, estão interessados só no lado comercial. Isto é, você pode ter algum orgulho pessoal nisso, mas eles não se importam…. É isso que você tem de fazer. Dê a ele aquilo de que já sabe que ele gosta.
O emprego com maior prestígio é, portanto, aquele em que o músico tem de sacrificar sua independência artística e o conseqüente prestígio em termos profissionais. Um músico comercial de muito sucesso professou respeito pela independência artística ao mesmo tempo que enfatizava seu efeito negativo sobre o desenvolvimento da carreira:
Eu sei, você provavelmente gosta de tocar jazz. Claro que entendo. Eu costumava me interessar por jazz, mas descobri que não compensava. As pessoas não gostavam de jazz. Elas gostam de rumbas. Afinal, isto é um negócio, não é mesmo? Se você está nele para ganhar a vida, não pode jogar jazz em cima das pessoas o tempo todo, elas não vão aceitar. Então você tem de tocar o que elas querem, são elas que pagam as contas. Isto é, não me entenda mal. Se um sujeito consegue ganhar a vida tocando jazz, ótimo. Mas eu gostaria de conhecer o sujeito que consegue fazer isso. Se você quiser chegar a algum lugar, tem de ser comercial.
Os jazzmen, por outro lado, se queixam da baixa posição dos empregos disponíveis para eles em termos de renda e outras coisas além do prestígio artístico.
Assim, as “panelas” cujo acesso uma pessoa deve conquistar para alcançar sucesso e segurança são compostas por homens indiscutivelmente comerciais em sua orientação. As maiores recompensas da profissão são controladas por pessoas que abriram mão de alguns dos padrões profissionais mais básicos, e é preciso fazer sacrifício semelhante para ter alguma chance de chegar às posições desejáveis:
Veja, se você toca música comercial desse tipo, consegue entrar nessas “panelinhas” que têm todos os bons empregos, e pode realmente se dar bem. Toquei em alguns dos melhores empregos da cidade — o Q. Club e lugares assim —, e é isso que tem de fazer. Toque desse jeito e fique amigo desses caras, depois você nunca terá de se preocupar. Pode ter certeza de faturar aquela grana toda semana, e é isso que importa.
As “panelinhas” compostas por jazzmen não oferecem nada a seus integrantes além do prestígio de manter a integridade artística; as “panelas” comerciais fornecem segurança, mobilidade, renda e prestígio social.
Esse conflito é um grande problema para o músico, e o desenvolvimento de sua carreira depende de sua reação a ele. Embora eu não tenha colhido nenhum dado sobre esse ponto, parece razoável supor que a maioria dos homens entra na música com um grande respeito pelo jazz e a liberdade artística. Num certo ponto do desenvolvimento da carreira (que varia de um indivíduo para outro), o conflito torna-se aparente, e o músico se dá conta de que é impossível alcançar o tipo de sucesso que deseja e manter a independência de seu desempenho musical. Quando a incompatibilidade dessas metas torna-se óbvia, algum tipo de escolha deve ser feito, ainda que por omissão, determinando assim o futuro curso da carreira.
Uma resposta para o dilema é evitá-lo, abandonando a profissão. Incapaz de encontrar uma solução satisfatória para o problema, o indivíduo interrompe sua carreira. A justificativa desse passo é revelada na seguinte declaração de alguém que o deu:
É melhor pegar um emprego com o qual você sabe que ficará deprimido, no qual você espera ficar arrasado, que ter um emprego na música, que poderia ser excelente, mas não é. Por exemplo, você entra no comércio, mas não sabe nada sobre isso. Então imagina que vai ser uma amolação e espera por isso. Mas a música pode ser tão legal que, quando não é, torna-se uma grande decepção. Então, é melhor ter algum outro tipo de emprego, que não deixe você arrasado dessa maneira.
Vimos a gama das respostas para esse dilema por parte daqueles que permanecem na profissão. O jazzman ignora as demandas do público para se ater aos padrões artísticos, enquanto o músico comercial faz o oposto, ambos sentindo a pressão das duas forças. Meu interesse aqui é discutir a relação dessas respostas com as perspectivas da carreira.
O homem que opta por ignorar pressões comerciais vê-se efetivamente impedido de ter acesso a empregos de maior prestígio e renda, e de ingressar naquelas “panelas” que lhe proporcionariam segurança e a oportunidade de desfrutar essa mobilidade. Poucas pessoas estão dispostas a adotar uma posição tão extrema ou são capazes disso; a maioria transige em algum grau. O padrão de movimento envolvido nessa transigência é um fenômeno comum de carreira, muito conhecido entre os músicos e considerado praticamente inevitável:
Estive com K.E. Eu disse: “Você não pode me conseguir alguns contratos para tocar?” Ele respondeu, imitando um dos “velhos”:6 “Não, meu filho, quando você criar juízo e virar comercial, vou poder lhe ajudar, mas não agora.” Com a voz normal, continuou: “Por que você não se moderniza? Meu Deus, acho que estou liderando a tendência rumo ao comercialismo. Eu certamente escolhi isso com muita intensidade, não foi?”
Nesse ponto decisivo de sua carreira, o indivíduo julga necessário fazer uma mudança radical em sua auto-imagem; tem de aprender a pensar em si mesmo de uma nova maneira, a se ver como um tipo diferente de pessoa:
Acho que esse negócio comercial realmente me pegou. Você sabe, mesmo quando tenho um trabalho em que se espera que a gente toque jazz, em que a gente pode se soltar e tocar qualquer coisa, eu penso em ser comercial, em tocar o que as pessoas ali querem ouvir. Eu costumava ir para um trabalho com a idéia de tocar o melhor que pudesse, só isso, só tocar da melhor maneira possível. E agora vou para um trabalho e penso automaticamente: “O que essas pessoas vão querer ouvir? Será que elas querem ouvir o estilo Kenton, ou algo tipo Dizzy Gillespie [orquestras de jazz], ou algo tipo Guy Lombardo [orquestra comercial], ou o quê?” Não consigo deixar de pensar isso com meus botões. Eles realmente meteram isso em mim, acho que me dominaram.
Mudança mais drástica da auto-imagem relacionada a esse dilema de carreira está presente na seguinte declaração:
Vou lhe dizer, concluí que a única coisa a fazer é realmente virar comercial — tocar o que as pessoas querem ouvir. Acho que há um bom lugar para o cara que dá a eles exatamente o que querem. A melodia, só isso. Nenhuma improvisação, nada de técnica — só a pura melodia. Vou lhe dizer, por que eu não deveria tocar desse jeito? Afinal, vamos parar de nos enganar. Na maioria, não somos realmente músicos, somos apenas instrumentistas. Isto é, penso em mim mesmo como uma espécie de trabalhador comum, sabe. Não faz sentido tentar me enganar. A maioria desses caras é só instrumentista, eles não são músicos de verdade, de maneira alguma, deveriam parar de tentar se enganar achando que são.
Uma tomada de decisão como esta e a passagem por uma mudança como esta de auto-imagem abrem caminho para um movimento rumo aos níveis mais altos da hierarquia de empregos e criam as condições nas quais o sucesso completo é possível, se a pessoa for capaz de tirar proveito da oportunidade estabelecendo e mantendo os contatos apropriados.
Um modo de ajustar-se às realidades do trabalho sem sacrificar o auto-respeito é adotar a orientação do artesão. O músico que faz isso não está mais preocupado com o tipo de música que toca. O que o interessa é unicamente se a toca corretamente, se possui as habilidades necessárias para fazer o trabalho como deve ser feito. Encontra seu orgulho e auto-respeito na capacidade de “tirar de letra” qualquer tipo de música, em ter sempre um desempenho adequado.
As habilidades necessárias para manter essa orientação variam com o tipo de lugar em que o músico toca. O homem que trabalha em bares com grupos pequenos se orgulhará de conhecer centenas (ou até milhares) de músicas e ser capaz de tocá-las em qualquer tom. O homem que trabalha numa grande banda se orgulhará de sua sonoridade e do virtuosismo técnico. O homem que trabalha numa boate ou num estúdio de rádio se gaba de sua capacidade de ler à primeira vista qualquer tipo de música com fidelidade e precisão. Como esse tipo de orientação tende a produzir exatamente o que o empregador quer e num nível superior de qualidade, levará provavelmente ao sucesso ocupacional.
É mais fácil manter a orientação do artesão nos principais centros musicais do país: Chicago, Nova York, Los Angeles. Nessas cidades, o volume de trabalho disponível é grande o bastante para permitir uma especialização, e um músico pode se dedicar resolutamente a aperfeiçoar um único tipo de competência técnica. Encontram-se músicos de assombroso virtuosismo nesses centros. Em cidades menores, em contraposição, não há trabalho suficiente de tipo algum para que o músico se especialize, e eles são chamados a fazer um pouco de tudo. Embora as habilidades necessárias se superponham — a sonoridade, por exemplo, é sempre importante —, cada qual tem áreas em que é apenas minimamente competente. Um trompetista pode tocar excelente jazz e se sair bem em pequenos grupos, mas ler mal e ter um desempenho bem pior quando trabalha com uma grande banda. É difícil manter o orgulho como artesão quando se é continuamente confrontado com trabalhos para os quais se tem apenas as habilidades mínimas.
Em resumo, a ênfase que os músicos dão em estar livres da interferência inevitável em seu trabalho cria uma nova dimensão do prestígio profissional que de tal maneira entra em conflito com o prestígio do emprego anteriormente, uma vez discutido que não se pode ocupar ao mesmo tempo uma posição elevada nos dois. As maiores recompensas estão nas mãos daqueles que abriram mão de sua independência artística e pedem sacrifício semelhante daqueles que recrutam para essas posições mais altas. Isso cria um dilema para o músico, e sua resposta determina o curso futuro de sua carreira. A recusa a se sujeitar significa que toda esperança de conseguir empregos de prestígio e renda elevados deve ser abandonada, enquanto ceder às pressões comerciais lhe abre o caminho do sucesso. (Estudos de outras ocupações deveriam dedicar atenção a esses aspectos das contingências de carreira que também se ligam aos problemas colocados pelas relações de trabalho com clientes ou fregueses.)
Observei que os músicos estendem seu desejo de liberdade de interferência externa em seu trabalho a um sentimento generalizado de que não deveriam ser tolhidos pelas convenções comuns da sociedade. O ethos da profissão fomenta uma admiração pelo comportamento espontâneo e individualista e um desdém pelas regras da sociedade em geral. É de esperar que os membros de uma ocupação com esse ethos tenham problemas de conflito quando entrarem em contato mais próximo com essa sociedade. Um ponto de contato está no trabalho, em que o público é a fonte de problemas. O efeito dessa área de problemas sobre a carreira foi descrito anteriormente.
Outra área de contato entre profissão e sociedade é a família. O pertencimento a famílias vincula o músico a pessoas quadradas, outsiders que se atêm às convenções sociais cuja autoridade o músico não reconhece. Essas relações encerram germes de conflito que podem se manifestar com conseqüências desastrosas para a carreira e/ou a relação familiar. Esta seção explicará em detalhe a natureza desses conflitos e seu efeito sobre a carreira.
A família do indivíduo tem grande influência sobre sua escolha de ocupação pelo seu poder de patrocinar e ajudar o neófito na carreira que escolheu. Hall, em sua discussão dos estágios iniciais da carreira médica, observa que:
Na maioria dos casos, a família ou os amigos desempenharam um importante papel imaginando o perfil da carreira e reforçando os esforços do recruta. Proporcionaram esse reforço encorajando, ajudando a estabelecer as rotinas apropriadas, propiciando a privacidade necessária, desestimulando o comportamento anômalo e definindo as recompensas do dia-a-dia.7
Os pais do músico em geral não ajudam o desenvolvimento de sua carreira dessa maneira. Ao contrário, como um homem observou: “Meu Deus, a maioria dos caras tem uma briga terrível com os pais quando decide entrar na profissão de músico.” A razão é clara: seja qual for a classe de que ele provenha, é óbvio para a família do possível músico que ele está ingressando numa profissão que estimula seu rompimento com os padrões convencionais de comportamento do seu meio social. Famílias de classe baixa parecem ficar extremamente aflitas com a irregularidade do emprego no meio musical, embora haja evidências de que algumas estimularam esse tipo de carreira, vendo-a como uma possível rota de mobilidade. Na família de classe média, a escolha da música em casas noturnas como ocupação é vista como um movimento rumo à vida boêmia, envolvendo uma possível perda de prestígio tanto para o indivíduo como para a família, sendo por isso vigorosamente combatida. Considerável pressão é feita sobre a pessoa para que desista de sua escolha:
Sabe, todo mundo achou horrível quando decidi ser músico…. Lembro que me formei na escola secundária numa quinta-feira e deixei a cidade na segunda-feira para pegar um trabalho. Meus pais ficaram discutindo comigo e todos os meus parentes também. Eles me fizeram passar um mau bocado…. Teve um tio meu que foi drástico, dizendo que aquela não era uma vida normal, que eu nunca poderia me casar, e toda aquela conversa.
O conflito tem dois efeitos típicos sobre a carreira. Primeiro, o possível músico pode, em face da pressão da família, desistir da música como profissão. Um ajuste como esse é bastante comum no estágio inicial da carreira. Por outro lado, o jovem músico pode ignorar os desejos da sua família e continuar sua carreira, caso em que muitas vezes é privado do apoio familiar mais cedo do que em outras circunstâncias, e deve começar a “batalhar por conta própria”, abrindo seu caminho sem o patrocínio nem a ajuda financeira que de outro modo poderiam estar disponíveis. Na música, portanto, a carreira começa usualmente — se é que começa — sem a ajuda e o incentivo da família típicos de carreiras em muitas outras ocupações.
Depois que se casa e estabelece a própria família, o músico entra numa relação em que as convenções da sociedade lhe são apresentadas de maneira imediata e poderosa. Sua mulher, em geral não-música, espera que ele, como marido, seja um companheiro e provedor. Em algumas ocupações não há nenhum conflito entre as demandas do trabalho e da família. Em outras, há conflito, mas existem soluções socialmente sancionadas aceitas por ambos os cônjuges, como, por exemplo, na prática médica. Em ocupações desviantes, como a profissão de músico, as expectativas profissionais não se coadunam em absoluto com as expectativas leigas, com conseqüentes dificuldades para o músico.
Os músicos acham que os imperativos de seu trabalho devem ter precedência sobre os de suas famílias, e agem em conformidade com isso:
Cara, minha mulher é uma garota excelente, mas não há jeito de ficarmos juntos, não enquanto eu estiver trabalhando como músico. Nenhum jeito, nenhum jeito mesmo. Logo que nos casamos, era ótimo. Eu estava trabalhando na cidade, ganhando uma boa grana, todo mundo estava feliz. Mas quando esse trabalho acabou, fiquei sem nada. Então recebi uma oferta para viajar. Bem, que diabo, eu precisava do dinheiro, aceitei. Sally disse: “Não, quero você na cidade, comigo.” Ela preferia que eu fosse trabalhar numa fábrica! Bom, foi uma grande merda. Então fui embora com a banda. Que diabo, gosto demais da profissão. Não vou abrir mão dela por Sally ou por qualquer outra mulher.
É provável que o casamento se torne uma luta permanente em torno dessa questão; o desfecho da luta determina a interrupção ou a continuidade da carreira musical do marido, como ilustra o seguinte incidente retirado de minhas anotações de campo:
Os rapazes do Z. Club estão tentando convencer Jay Marlowe a voltar a trabalhar lá em horário integral. Ele está dividindo a semana com alguém agora. Conseguiu um emprego diurno no mesmo escritório em que a mulher dele trabalha, fazendo contabilidade ou algum pequeno serviço de escritório. Os rapazes estão tentando convencê-lo a deixar isso. Ao que parece, a mulher dele é totalmente contra.
Jay foi músico a vida inteira, pelo que sei; provavelmente é a primeira vez que tem um emprego diurno. Gene, o baterista do Z. Club, me disse: “É bobagem dele ter um emprego diurno. Quanto pode ganhar ali? Provavelmente não fatura mais de 30, 35 por semana. Ele fatura isso em três noites aqui. É claro, a mulher dele queria que deixasse a profissão. Ela não gostava da idéia de todas essas madrugadas, e as garotas que fazem ponto nos bares, esse tipo de coisa. Mas, afinal, quando um cara pode fazer alguma coisa e ganhar mais dinheiro, por que haveria de pegar um emprego triste e trabalhar por uma ninharia? Não faz sentido. Além disso, por que vai se deprimir assim? Ele preferiria estar tocando, e é uma amolação para ele ter a porcaria desse emprego diurno, então, por que deveria se agarrar a ele?” Johnny, o saxofonista, disse: “Sabe por quê? Porque a mulher dele o obriga a se agarrar ao emprego.” Gene falou: “Ele não devia deixar que ela mandasse nele desse jeito. Pelo amor de Deus, minha patroa não me diz o que fazer. Ele não deveria tolerar essa merda.”
Eles começaram a fazer alguma coisa em relação ao caso. Andaram convidando Jay para ir à pista de corridas com eles nos dias de semana, e ele andou faltando ao trabalho para ir. Depois de uma dessas ocasiões, Gene disse: “Cara! A mulher dele ficou enlouquecida! Ela não quer que ele dê uma mancada e perca esse emprego, e sabe que estamos metidos nisso. Acha que somos más influências. Bom, acho que somos mesmo, do ponto de vista dela.”
[Algumas semanas depois Marlowe deixou seu emprego diurno e voltou à música.]
Para outros músicos que sentem mais fortemente suas responsabilidades familiares a situação não é tão simples. A insegurança econômica da profissão de músico torna difícil ser um bom provedor e pode obrigar o indivíduo a abandonar a profissão, um dos padrões típicos de resposta a essa situação:
Não, não tenho trabalhado muito. Acho que vou pegar um maldito emprego diurno. Você sabe, quando você é casado é um pouco diferente. Antes era diferente. Eu trabalhava, não trabalhava, dava no mesmo. Se precisava de dinheiro, pedia cinco emprestados a minha mãe. Agora aquelas contas simplesmente não esperam. Quando você é casado, tem de estar sempre trabalhando, ou não dá conta do recado.
Mesmo que a carreira não seja interrompida dessa maneira, as demandas do casamento exercem uma pressão muito forte que impele o músico a se tornar comercial:
Se você quiser continuar trabalhando, tem de suportar um pouco de merda de vez em quando…. Eu não me importo. Tenho uma mulher e quero continuar trabalhando. Se algum quadrado se aproxima e me pede para tocar “Beer Barrel Polka”, eu apenas sorrio e toco a música.
O casamento pode, assim, acelerar a obtenção de sucesso ao forçar uma decisão que proporciona, embora não garanta, a oportunidade de ingresso naquelas “panelinhas” comercialmente orientadas que são mais capazes de manter seus integrantes em trabalho permanente.
A família, portanto, como uma instituição que exige do músico que ele se comporte convencionalmente, cria-lhe problemas de pressões, lealdades e auto-imagens conflitantes. Sua resposta a esses problemas tem um efeito decisivo sobre a duração e a direção de sua carreira.
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a No original, cliques. (N.T.)