As regras são produto da iniciativa de alguém e podemos pensar nas pessoas que exibem essa iniciativa como empreendedores morais. Duas espécies relacionadas — criadores de regras e impositores de regras — ocuparão a nossa atenção.
O protótipo do criador de regras, mas não a única variedade, como veremos, é o reformador cruzado. Ele está interessado no conteúdo das regras. As existentes não o satisfazem porque há algum mal que o perturba profundamente. Ele julga que nada pode estar certo no mundo até que se façam regras para corrigi-lo. Opera com uma ética absoluta; o que vê é total e verdadeiramente mal sem nenhuma qualificação. Qualquer meio é válido para extirpá-lo. O cruzado é fervoroso e probo, muitas vezes hipócrita.
É apropriado pensar em reformadores como cruzados porque eles acreditam tipicamente que sua missão é sagrada. O defensor da Lei Seca proporciona um excelente exemplo, assim como a pessoa que quer eliminar o vício e a delinqüência sexual, ou aquela que quer extirpar o jogo.
Esses exemplos sugerem que o cruzado moral é um intrometido, interessado em impor sua própria moral aos outros. Mas esta é uma visão unilateral. Muitos cruzados morais têm fortes motivações humanitárias. O cruzado não está interessado apenas em levar outras pessoas a fazerem o que julga certo. Ele acredita que se fizerem o que é certo será bom para elas. Ou pode pensar que sua reforma evitará certos tipos de exploração de uma pessoa por outra. Os defensores da Lei Seca não pensavam que estavam simplesmente impondo sua moral aos outros, mas que criavam condições para melhorar o modo de viver das pessoas impedidas pelo álcool de gozar de uma vida realmente boa. Os abolicionistas não estavam simplesmente tentando impedir os donos de escravos de fazer a coisa errada; buscavam ajudar os escravos a obter uma vida melhor. Em razão da importância do motivo humanitário, os cruzados morais (apesar da devoção relativamente obcecada à sua causa particular) muitas vezes emprestam seu apoio a outras cruzadas humanitárias. Joseph Gusfield salientou:
O movimento norte-americano da temperança durante o século XIX foi parte de um esforço geral em prol da valorização do ser humano por meio de uma melhoria da moralidade e das condições econômicas. A mistura de religioso, igualitário e humanitário foi uma faceta importante do reformismo moral de muitos movimentos. Os adeptos da temperança formavam uma ampla parcela de movimentos como o sabatarianismo, a abolição, os direitos da mulher, o agrarianismo e tentativas humanitárias de melhorar o destino dos pobres….
Em seus objetivos secundários, a União Cristã de Mulheres pela temperança (wctu, na sigla em inglês) revelava um grande interesse pela melhoria do bem-estar das classes baixas. Era ativa nas campanhas em prol da reforma penal, pela redução da jornada de trabalho e salários mais altos para os trabalhadores, pela abolição do trabalho infantil e por muitas outras atividades humanitárias e igualitárias. Nos anos 1880 a wctu trabalhou pela introdução de leis para a proteção de moças trabalhadoras contra a exploração por homens.1
Como diz Gusfield,2 “o reformismo moral desse tipo sugere um modo de aproximação de uma classe dominante com relação aos menos favoravelmente situados na estrutura econômica e social”. Cruzados morais querem, de modo típico, ajudar os que estão abaixo deles a alcançar um melhor status. Outra questão é saber se os que estão abaixo deles gostam sempre dos meios propostos para sua salvação. Mas esse fato — que as cruzadas morais são em geral dominadas por aqueles situados nos níveis superiores da estrutura social — significa que eles acrescentam ao poder que extraem da legitimidade de sua posição moral o poder que extraem de sua posição superior na sociedade.
Naturalmente, muitas cruzadas morais obtêm apoio de pessoas cujos motivos são menos puros que os dos cruzados. Assim, alguns industrialistas apoiavam a Lei Seca por pensarem que ela lhes forneceria uma força de trabalho mais manejável.3 De maneira semelhante, corre por vezes o rumor de que os interesses do jogo em Nevada apóiam a oposição à legalização do jogo na Califórnia, porque isso afetaria gravemente seu negócio, que depende, numa medida substancial, da população do sul da Califórnia.4
O cruzado moral, no entanto, está mais preocupado com fins do que com meios. Quando se trata de redigir regras específicas (tipicamente na forma de legislação a ser proposta a uma Assembléia estadual ou ao Congresso Federal), ele com freqüência recorre ao conselho de especialistas. Advogados e juristas muitas vezes desempenham esse papel. Agências governamentais em cuja jurisdição o problema recai podem também ter o conhecimento necessário, como a Agência Federal de Narcóticos, no caso do problema da maconha.
À medida que a ideologia psiquiátrica se torna cada vez mais aceitável, contudo, aparece um novo especialista — o psiquiatra. Sutherland, em sua discussão sobre a história natural das leis a respeito do psicopata sexual, chamou atenção para a influência do psiquiatra.5 Ele sugere o seguinte como condições necessárias para que se adote a lei do psicopata sexual, estipulando que uma pessoa “diagnosticada como psicopata sexual pode ser confinada por um período indefinido num hospital estadual para insanos”:6
Primeiro, essas leis são usualmente promulgadas depois que um estado de medo foi despertado na comunidade por alguns crimes sexuais graves cometidos em rápida sucessão. Isso é ilustrado em Indiana, onde uma lei foi aprovada após três ou quatro ataques sexuais em Indianápolis, com assassinatos em dois. Chefes de família compraram armas e cães de guarda, e o estoque de cadeados e correntes nas lojas de ferragens da cidade foi completamente esgotado….
Um segundo elemento no processo de desenvolvimento de leis sobre o psicopata sexual é a atividade agitada da comunidade em conexão com o medo. A atenção da comunidade está concentrada em crimes sexuais, as pessoas vêem perigo nas mais variadas situações e sentem a necessidade e a possibilidade de controlá-las….
A terceira fase no desenvolvimento dessas leis relativas ao psicopata sexual foi a designação de um comitê. Este reúne as muitas recomendações conflitantes de pessoas e grupos de pessoas, tenta determinar “fatos”, estuda procedimentos em outros estados e faz recomendações, que geralmente incluem projetos de lei. Embora o temor geral de hábito se reduza em alguns dias, o comitê tem o dever formal de perseverar em seus esforços até que se tomem medidas positivas. O terror que não resulta num comitê tem muito menor probabilidade de resultar numa lei.7
No caso das leis sobre o psicopata sexual, em geral não há nenhuma agência governamental encarregada de lidar com desvios sexuais de maneira especializada. Por isso, quando surge a necessidade de conselho especializado na formulação da legislação, as pessoas muitas vezes se voltam para o grupo profissional mais estreitamente associado a esses problemas:
Em alguns estados, quando o desenvolvimento de lei sobre o psicopata sexual está no estágio do comitê, os psiquiatras desempenharam um importante papel. Os psiquiatras, mais que quaisquer outros, foram o grupo de interesse por trás das leis. Um comitê de psiquiatras e neurologistas em Chicago redigiu o projeto que se tornou a lei sobre a psicopatia sexual de Illinois; o projeto foi patrocinado pela Ordem dos Advogados de Chicago e pelo procurador estadual de Cook County, e foi promulgado com pouca oposição na sessão seguinte da Assembléia Legislativa estadual. Em Minnesota, todos os membros do comitê do governador, exceto um, eram psiquiatras. Em Wisconsin, a Milwaukee Neuropsychiatric Society participou da pressão sobre a Milwaukee Crime Commission pela promulgação de uma lei. Em Indiana, o comitê do procurador-geral recebeu da American Psychiatric Association cópias de todas as leis sobre o psicopata sexual promulgadas em outros estados.8
A influência de psiquiatras em outras esferas do direito criminal aumentou nos últimos anos.
De qualquer forma, o importante neste exemplo não é que os psiquiatras estejam se tornando cada vez mais influentes, mas que o cruzado moral, em algum momento do desenvolvimento de sua cruzada, requer muitas vezes os serviços de um profissional capaz de formular as regras apropriadas de forma adequada. O próprio cruzado muitas vezes não está preocupado com esses detalhes. Para ele basta assegurar o ponto principal; e deixa sua implementação para outros.
Ao deixar a redação da regra específica nas mãos de outros, o cruzado abre a porta para muitas influências imprevistas. Pois os que redigem legislação para os cruzados têm seus próprios interesses, que podem afetar a lei que preparam. É provável que as leis sobre o psicopata sexual redigidas por psiquiatras contenham muitos traços nunca pretendidos pelos cidadãos que encabeçaram as campanhas para “fazer alguma coisa com relação aos crimes sexuais”, traços que refletem, contudo, os interesses profissionais da psiquiatria organizada.
Uma cruzada pode alcançar notável sucesso, como aconteceu ao movimento pela Lei Seca com a aprovação da 18ª Emenda. Pode fracassar completamente, como ocorreu na campanha para eliminar o uso do tabaco ou o movimento antivivissecção. Pode alcançar grande sucesso, mas apenas para ver seus ganhos gradualmente reduzidos por mudanças na moralidade pública e crescentes restrições impostas a ele por interpretações judiciais; esse foi o caso da cruzada contra a literatura pornográfica.
Uma conseqüência importante de uma cruzada bem-sucedida, claro, é o estabelecimento de uma nova regra ou conjunto de regras, em geral concomitante à criação do mecanismo apropriado de imposição. Irei considerar essa conseqüência em algum momento adiante. Outro resultado do sucesso de uma cruzada, porém, merece atenção.
Quando um indivíduo obtém sucesso na empreitada de promover o estabelecimento de uma nova regra — ao encontrar, por assim dizer, seu Graal —, ele perde uma ocupação. A cruzada que absorveu tanto de seu tempo, energia e paixão está encerrada. É provável que, ao iniciar sua cruzada, fosse um amador, alguém que se envolveu nela pelo seu interesse na questão, pelo conteúdo da regra que queria ver estabelecida. Kenneth Burke observou certa vez que a ocupação de um homem pode se tornar sua preocupação. A equação funciona também ao contrário. A preocupação de um homem pode se tornar sua ocupação. O que começou como um interesse amador por uma questão moral pode se tornar um trabalho de tempo integral; de fato, para muitos reformadores, torna-se exatamente isso. O sucesso da cruzada, portanto, deixa o cruzado sem uma vocação. Esse homem, confuso, pode generalizar seu interesse e descobrir algo novo para encarar com alarme, um novo mal acerca do qual algo deve ser feito. Torna-se um descobridor profissional de erros a serem corrigidos, de situações que demandam novas regras.
Quando a cruzada produziu uma grande organização dedicada à sua causa, funcionários da organização têm maior probabilidade que o cruzado individual de procurar novas causas para esposar. Esse processo ocorreu de maneira dramática no campo dos problemas de saúde, quando a Fundação Nacional para a Paralisia Infantil pôs fim à sua própria missão ao descobrir uma vacina que eliminava a poliomielite epidêmica. Adotando o nome menos restritivo de A Fundação Nacional, os funcionários rapidamente descobriram novos problemas de saúde aos quais a organização podia dedicar energias e recursos.
A cruzada malsucedida, seja aquela que descobre que sua missão não atrai mais adeptos, seja a que alcança sua meta somente para perdê-la de novo, pode seguir dois cursos. Por um lado, pode simplesmente desistir de sua missão original e concentrar-se na preservação do que resta da organização construída. Esse, de acordo com um estudo, foi o destino do Movimento Townsend.9 Por outro, o movimento malogrado pode aderir rigidamente a uma missão cada vez menos popular, como fez o movimento pela Lei Seca. Gusfield descreveu atuais integrantes da wctu como “moralizadoras derrotadas”.10 À medida que a opinião dominante dos Estados Unidos volta-se cada vez mais contra a temperança, essas mulheres não abrandaram sua atitude em relação à bebida. Ao contrário, tornaram-se ressentidas com as pessoas antes “respeitáveis” que deixaram de apoiar o movimento pró-temperança. A classe social de que os membros da wctu provêm mudou da classe média alta para a classe média baixa. Atualmente, a wctu passou a atacar a classe média, de que antes obtinha apoio, vendo esse grupo como um foco de aceitação do consumo moderado de álcool. As seguintes citações de entrevistas feitas por Gusfield com líderes da wctu dão uma idéia da “moralizadora derrotada”:
Assim que esta união foi organizada, tínhamos muitas das senhoras mais influentes da cidade. Mas agora elas passaram a achar que nós, senhoras contrárias a se tomar um coquetel, somos um pouco esquisitas. Temos a mulher de um empresário e a mulher de um ministro, mas as mulheres do advogado e do médico nos evitam. Não querem ser consideradas esquisitas.
Tememos a moderação mais que qualquer outra coisa. Beber tornou-se em tal grau uma parte de tudo — até em nossa vida na igreja e em nossas faculdades.
A moderação se insinua nos boletins oficiais da igreja. Eles a guardam em suas geladeiras…. O pastor aqui acha que a igreja foi muito longe, que eles estão fazendo demais para ajudar a causa da temperança. Ele tem medo de pisar em calos de pessoas influentes.11
Apenas alguns cruzados, portanto, alcançam sucesso em sua missão e criam, ao gerar uma nova regra, um novo grupo de outsiders. Entre os bem-sucedidos, alguns descobrem que têm um gosto por cruzadas e procuram novos problemas para atacar. Outros cruzados fracassam em sua tentativa e sustentam a organização que criaram, abandonando sua missão característica e concentrando-se no problema da própria manutenção organizacional, ou se tornam eles mesmos outsiders, continuando a esposar e pregar uma doutrina que soa cada vez mais esquisita com o passar do tempo.
As conseqüências mais óbvias de uma cruzada bem-sucedida é a criação de um novo conjunto de regras. Com isto, descobrimos muitas vezes que é gerado um novo conjunto de agências de imposição e de funcionários. Por vezes, claro, agências existentes assumem a administração da nova regra, mas na maior parte das vezes se produz um novo conjunto de impositores de regras. A imposição da Lei Harrison pressagiou a criação da Agência Federal de Narcóticos, assim como a aprovação da 18ª Emenda levou à formação de agências policiais encarregadas de aplicar a Lei Seca.
Com o estabelecimento de organizações de impositores de regras, a cruzada torna-se institucionalizada. O que começou como uma campanha para convencer o mundo da necessidade moral de uma regra torna-se finalmente uma organização dedicada à sua imposição. Assim como movimentos políticos radicais se transformam em partidos políticos organizados, e seitas evangélicas vigorosas se tornam denominações religiosas moderadas, o resultado final da cruzada moral é uma força policial. Desse modo, para compreender como as regras que criam uma nova classe de outsiders são aplicadas a pessoas particulares, precisamos compreender os motivos e interesses da polícia, os impositores das regras.
Embora alguns policiais tenham sem dúvida uma espécie de interesse missionário em reprimir o mal, é provavelmente muito mais típico que o policial disponha de certa visão neutra e objetiva de seu trabalho. Ele está menos preocupado com o conteúdo de qualquer regra particular que com o fato de que é seu trabalho impor a regra. Quando as regras são alteradas, ele pune o que antes era comportamento aceitável, assim como deixa de punir o comportamento que foi legitimado por uma mudança nas regras. O impositor, portanto, pode não estar interessado no conteúdo da regra como tal, mas somente no fato de que a existência da regra lhe fornece um emprego, uma profissão e uma raison d’être.
Como a imposição de certas regras fornece uma justificativa para seu modo de vida, o impositor tem dois interesses que condicionam sua atividade de imposição: primeiro, ele deve justificar a existência de sua posição; segundo, deve ganhar o respeito daqueles com quem lida.
Esses interesses não são peculiares de impositores de regras. Membros de todas as ocupações sentem necessidade de justificar seu trabalho e ganhar o respeito de outros. Os músicos, como vimos, gostariam de fazer isso, mas têm dificuldade em encontrar maneiras de convencer os clientes de seu valor. Zeladores malogram em ganhar o respeito dos moradores de um prédio, mas desenvolvem uma ideologia que enfatiza sua responsabilidade quase profissional de manter em sigilo o conhecimento íntimo dos moradores que adquirem no curso de seu trabalho.12 Médicos, advogados e outros profissionais que são mais bem-sucedidos em ganhar o respeito de clientes desenvolvem mecanismos elaborados para manter uma relação propriamente respeitosa.
Ao justificar a existência de sua posição, o impositor de regras enfrenta um duplo problema. Por um lado, deve demonstrar para os outros que o problema ainda existe; as regras que supostamente deve impor têm algum sentido, porque as infrações ocorrem. Por outro lado, deve mostrar que suas tentativas de imposição são eficazes e valem a pena, que o mal com que ele supostamente deve lidar está sendo de fato enfrentado adequadamente. Portanto, organizações de imposição, em particular quando estão em busca de recursos, oscilam em geral entre dois tipos de afirmação. Primeiro, dizem que, em decorrência de seus esforços, o problema a que se dedicam se aproxima de uma solução. Mas, ao mesmo tempo, dizem que o problema está talvez mais grave que nunca (embora não por culpa delas próprias) e requer um esforço renovado e intensificado para mantê-lo sob controle. Encarregados da imposição podem ser mais veementes que qualquer pessoa em sua insistência de que o problema com que devem lidar continua presente, de fato mais que nunca. Ao fazer essas afirmações, esses encarregados da imposição fornecem boa razão para que a posição que ocupam continue a existir.
Podemos também notar que encarregados e agências de imposição tendem a formar uma visão pessimista da natureza humana. Se não acreditam realmente no pecado original, pelo menos gostam de enfatizar as dificuldades que têm para levar as pessoas a cumprir regras: as características da natureza humana que levam as pessoas para o mal. São céticos em relação a tentativas de reformar os infratores.
A visão cética e pessimista do impositor de regras é reforçada, claro, por sua experiência diária. Ele vê, à medida que realiza seu trabalho, a evidência de que o problema continua presente. Vê as pessoas que repetem continuamente as transgressões identificando-se claramente a seus olhos como outsiders. Não é, contudo, um vôo excessivamente grande da imaginação supor que uma das razões subjacentes para o pessimismo do impositor com relação à natureza humana e as possibilidades de reforma é o fato de que, fosse a natureza humana perfeita, e pudessem as pessoas ser reformadas de modo permanente, seu trabalho deixaria de existir.
Da mesma maneira, um impositor de regras provavelmente acreditará ser necessário que as pessoas com quem lida o respeitem. Se não o fizerem, será muito difícil realizar seu trabalho; seu sentimento de segurança no trabalho será perdido. Portanto, boa parte da atividade de imposição é dedicada não à imposição efetiva de regras, mas à imposição de respeito às pessoas com quem o impositor lida. Isso significa que uma pessoa pode ser rotulada de desviante não porque realmente infringiu uma regra, mas porque mostrou desrespeito pelo impositor da regra.
O estudo de policiais numa pequena cidade industrial realizado por Westley, fornece um bom exemplo desse fenômeno. Em sua entrevista, ele perguntou ao policial: “Quando acha que um policial tem razão para bater num sujeito?” Constatou que “pelo menos 37% dos homens acreditavam que era legítimo usar violência para impor respeito”.13 Ele faz algumas citações reveladoras nas suas entrevistas:
Bom, há casos. Por exemplo, quando você detém um sujeito para um interrogatório de rotina, digamos um “espertinho”, e ele começa a responder e a lhe dizer que você não vale nada e esse tipo de coisa. Você sabe que pode prender um homem sob acusação de perturbação da ordem, mas essa acusação quase nunca se sustenta. Então o que você faz num caso desses é provocar o cara até que ele lance um comentário que lhe permita esbofeteá-lo justificadamente. Depois, se ele reagir, você pode dizer que resistiu à prisão.
Bom, um prisioneiro merece apanhar quando chega ao ponto de tentar ficar por cima.
Você tem de ser rude quando a linguagem de um homem fica muito ruim, quando ele está tentando te fazer de bobo diante de todo mundo. Acho que a maioria dos policiais tenta tratar bem as pessoas, mas em geral você tem de ser bastante rude. É a única maneira de pôr um sujeito no seu lugar, de fazê-lo mostrar um pouco de respeito.14
O que Westley descreve é o uso de um meio ilegal para impor respeito aos outros. Claramente, quando um impositor de regras tem a opção de impor uma regra ou não, a diferença no que faz pode ser causada pela atitude do infrator em relação a ele. Se o infrator for respeitoso, o impositor pode suavizar a situação. Se for desrespeitoso, as sanções poderão lhe ser aplicadas. Westley mostrou que esse diferencial tende a operar no caso de infratores de regras de trânsito, quando a liberdade de ação do policial é quase máxima.15 Mas provavelmente opera em outras áreas também.
Em geral, o impositor de regras tem grande poder de ponderação em muitas áreas, ainda que apenas porque seus recursos não são suficientes para fazer face ao volume de transgressões com que deveria lidar. Isso significa que não pode atacar tudo ao mesmo tempo, e nessa medida tem de contemporizar com o mal. Não pode fazer todo o serviço e sabe disso. Age com calma, na suposição de que os problemas com que lida estarão presentes por muito tempo. Estabelece prioridades, lidando com uma coisa de cada vez, enfrentando os problemas mais urgentes de imediato e deixando outros para mais tarde. Sua atitude em relação a seu trabalho, em suma, é profissional. Falta-lhe o fervor moral ingênuo característico do criador da regra.
Se o impositor não vai atacar todos os casos de que tem conhecimento ao mesmo tempo, ele precisa ter uma base para decidir quando impor a regra, que pessoas cometendo quais atos devem ser rotuladas como desviantes. Um critério para selecionar pessoas é o “intermediário”a entre a polícia e os criminosos. Algumas pessoas têm influência política ou know-how suficiente para serem capazes de evitar tentativas de imposição, se não no momento da detenção, pelo menos num estágio posterior do processo. Muitas vezes essa função é profissionalizada; alguém exerce a tarefa em tempo integral, estando disponível para qualquer um que queira contratá-lo. Um ladrão profissional descreveu esses intermediários assim:
Em toda cidade grande há um intermediário habitual para ladrões profissionais. Ele não tem agentes, não se oferece e raramente aceita algum caso exceto o de um ladrão profissional, assim como estes raramente procuram alguém exceto ele. Esse sistema centralizado e monopolista de livrar ladrões profissionais é encontrado em praticamente todas as cidades grandes e em muitas das pequenas.16
São principalmente os ladrões profissionais que sabem sobre o intermediário e suas operações; a conseqüência desse critério de selecionar pessoas a quem aplicar as regras é que os amadores tendem a ser apanhados, condenados e rotulados como desviantes com muito maior freqüência que os profissionais. Como observa o ladrão profissional:
Pelo modo como o caso é tratado no tribunal, dá para saber se há um intermediário envolvido. Quando o guarda não tem muita certeza de que apanhou o homem certo, ou o testemunho do guarda e do queixoso não coincidem, ou o promotor não endurece com o réu, ou o juiz é arrogante em sua decisão, você pode sempre ter certeza de que alguém fez o trabalho. Isso não acontece em muitos casos de furto, porque há um caso de profissional para 25 ou 30 de amadores que não sabem nada sobre o intermediário. Esses amadores levam a pior todas as vezes. Os guardas espinafram o ladrão, ninguém contraria seu testemunho, o juiz faz um discurso e todos ficam com o mérito de deter uma onda de crimes. Quando o profissional ouve o caso que precede imediatamente o seu, ele pensa: “Ele deveria ter pego 90 anos. São os malditos amadores que causam toda essa vigilância nas lojas.” Ou então pensa: “Não é uma vergonha para esse guarda prender esse garoto por um par de meias, quando daqui a alguns minutos vai concordar com uma pequena multa para mim por furtar um casaco de pele?” Mas se os guardas não prendessem os amadores para reforçar seus registros de condenação, não poderiam encaixar neles o relaxamento com os profissionais.17
Como não têm interesse no conteúdo de regras particulares propriamente ditas, os impositores de regras muitas vezes desenvolvem sua própria avaliação privada da importância dos vários tipos de regras e infrações. Esse conjunto de prioridades pode diferir consideravelmente daquelas esposadas pelo público geral. Por exemplo, usuários de drogas acreditam, de modo típico (e alguns policiais me confirmaram isso pessoalmente) que a polícia não considera o uso de maconha um problema tão importante ou uma prática tão perigosa quanto o uso de drogas opiáceas. A polícia baseia essa conclusão no fato de que, em sua experiência, usuários de drogas opiáceas cometem outros crimes (como furto ou prostituição) no intuito de obter drogas, ao passo que usuários de maconha não fazem isso.
Os impositores, portanto, respondendo às pressões de sua própria situação de trabalho, aplicam as regras e criam outsiders de uma maneira seletiva. Se uma pessoa que comete um ato desviante será de fato rotulada de desviante depende de muitas coisas alheias a seu comportamento efetivo: depende de o agente da lei sentir que dessa vez deve dar alguma demonstração de que está fazendo seu trabalho a fim de justificar sua posição; de o infrator mostrar a devida deferência ao impositor; de o “intermediário” entrar em ação ou não; e de o tipo de ato cometido estar incluído na lista de prioridades do impositor.
O impositor profissional carece de fervor, e uma abordagem rotineira no trato com o mal pode pô-lo em dificuldade com o criador da regra. Este, como dissemos, está preocupado com o conteúdo das regras. Ele as vê como os meios pelos quais o mal pode ser reprimido. Não compreende a abordagem de longo alcance que o impositor tem dos mesmos problemas e não consegue entender por que todo o mal que se manifesta não pode ser reprimido ao mesmo tempo.
Quando a pessoa interessada no conteúdo de uma regra compreende ou tem sua atenção despertada para o fato de que os impositores estão lidando seletivamente com o mal que o preocupa, sua santa ira pode despertar. O profissional é censurado por ver o mal de maneira leviana demais, por não cumprir seu dever. O empreendedor moral, a cujo pedido a regra foi feita, surge novamente para dizer que o resultado da última cruzada não foi satisfatório, ou que os ganhos antes obtidos foram pouco a pouco reduzidos e perderam-se.
Desvio e empreendimento: um resumo
Desvio — no sentido em que venho usando o termo, de erro publicamente rotulado — é sempre o resultado de empreendimento. Antes que qualquer ato possa ser visto como desviante, e antes que os membros de qualquer classe de pessoas possam ser rotulados e tratados como outsiders por cometer o ato, alguém precisa ter feito a regra que define o ato como desviante. Regras não são feitas automaticamente. Ainda que uma prática possa ser prejudicial num sentido objetivo para o grupo em que ocorre, o dano precisa ser descoberto e mostrado. Cabe que as pessoas sejam levadas a sentir que algo deve ser feito acerca dela. Para que uma regra seja criada, alguém deve chamar a atenção do público para esse assunto, dar o impulso necessário para que as coisas sejam realizadas e dirigir as energias suscitadas na direção certa. O desvio é produto de empreendimento no sentido mais amplo; sem o empreendimento necessário para que as regras sejam feitas, o desvio que consiste na infração da regra não poderia existir.
O desvio é também produto de empreendimento no mais estreito e particular sentido. Depois que passou a existir, uma regra deve ser aplicada a pessoas particulares antes que a classe abstrata dos outsiders criada pela regra se veja povoada. Infratores devem ser descobertos, identificados, presos e condenados (ou notados como “diferentes” e estigmatizados por sua não-conformidade, como no caso de grupos desviantes legais como os músicos de casa noturna). Essa tarefa em geral é atribuição dos impositores profissionais, os quais, ao impor regras já existentes, criam desviantes particulares que a sociedade vê como outsiders.
É um fato interessante que a maior parte da pesquisa e da especulação científica sobre o desvio diga respeito às pessoas que infringem regras, não àquelas que as criam e impõem. Se quisermos alcançar uma compreensão plena do comportamento desviante, precisamos levar em conta esses dois focos possíveis de investigação. Cumpre ver o desvio, e os outsiders que personificam a concepção abstrata, como uma conseqüência de um processo de interação entre pessoas, algumas das quais, a serviço de seus próprios interesses, fazem e impõem regras que apanham outras — que, a serviço de seus próprios interesses, cometeram atos rotulados de desviantes.
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a No original, fixer, intermediário entre a polícia e os criminosos, habitualmente usando métodos escusos ou ilegais, mediante remuneração. (N.E.T.)