O estudo do desvio:
problemas e simpatias
A dificuldade mais persistente no estudo científico do comportamento desviante é a falta de dados sólidos, a escassez de fatos e informações em que basear nossas teorias. É um truísmo dizer que uma teoria que não esteja estreitamente vinculada a uma abundância de fatos sobre o assunto que se propõe a explicar provavelmente não será muito útil. Uma inspeção na bibliografia científica sobre o comportamento desviante mostrará, no entanto, que ela analisa uma grande proporção de teoria com relação aos fatos. Um crítico de estudos sobre delinqüência juvenil mostrou que a melhor fonte disponível de fatos sobre gangues de jovens ainda é The Gang, de Frederick Thrasher, publicado pela primeira vez em 1927.1
Isso não quer dizer que não haja estudos de comportamento desviante. Há, mas eles são, em geral e com poucas exceções notáveis, inadequados para o trabalho de teorização que devemos realizar, e isso de duas maneiras. Primeiro, não há simplesmente estudos suficientes para nos fornecer fatos sobre as existências de desviantes tal como eles as vivem. Embora haja um grande número de estudos sobre delinqüência juvenil, é mais provável que se baseiem em registros de tribunais que em observação direta. Muitos estudos correlacionam a incidência de delinqüência com fatores como tipo de bairro, tipo de vida familiar ou de personalidade. Muito poucos nos dizem em detalhe o que um delinqüente juvenil faz em sua rotina diária de atividade e o que ele pensa sobre si mesmo, a sociedade e suas atividades. Quando teorizamos sobre delinqüência juvenil, somos portanto obrigados a inferir o modo de vida do jovem delinqüente de estudos fragmentários e de relatos jornalísticos,2 em lugar de basear nossas teorias em conhecimento adequado dos fenômenos que tentamos explicar. É como se buscássemos, como os antropólogos outrora tinham de fazer, construir uma descrição dos ritos de iniciação de uma tribo africana distante a partir dos relatos dispersos e incompletos de alguns missionários. (Temos menos razão do que tinham os antropólogos para nos valermos de descrições amadoras fragmentárias. Seus objetos de estudo estavam a milhares de quilômetros de distância, em selvas inacessíveis; os nossos estão mais perto de casa.)
Estudos de comportamento desviante são inadequados para a teorização de uma segunda maneira, mais simples. Não existem em número suficiente. Muitos tipos de desvio jamais foram cientificamente descritos, ou os estudos são tão pouco numerosos que constituem um mero começo. Por exemplo, quantas descrições sociológicas existem do modo de vida de homossexuais de vários tipos? Conheço apenas algumas, e estas apenas deixam claro que há uma vasta variedade de culturas e tipos sociais a serem descritos.3 Para tomar um caso ainda mais extremo, uma área de desvio da maior importância para teóricos da sociologia praticamente não foi estudada. Trata-se daquela do desvio de conduta profissional. É bem sabido, por exemplo, que os comitês éticos das associações profissionais de advogados e médicos têm muito trabalho. No entanto, apesar da abundância de descrições sociológicas do comportamento e da cultura profissionais, praticamente não temos estudos do comportamento antiético de profissionais.
Quais são as conseqüências dessa insuficiência de dados para os estudos do desvio? Um efeito, como indiquei, é a construção de teorias falhas ou inadequadas. Assim como precisamos de descrições anatômicas precisas de animais antes de começar a teorizar sobre funcionamento fisiológico e bioquímico, e a fazer experimentos com eles, também precisamos de descrições precisas e detalhadas da anatomia social antes de saber exatamente sobre que fenômenos deveríamos construir teorias. Para recorrer ao exemplo do homossexualismo, nossas teorias são provavelmente muito inadequadas caso acreditemos que todos os homossexuais são membros mais ou menos confirmados de subculturas homossexuais. Um estudo recente revela um importante grupo de participantes de relações homossexuais que nem são homossexuais confirmados. Reiss mostrou que, para muitos delinqüentes juvenis, a prostituição masculina é uma maneira relativamente segura de ganhar dinheiro. Eles não se consideram homossexuais e, quando atingem uma idade em que podem participar de tipos de delinqüência mais agressivos e lucrativos, abandonam a prática.4 Quantas outras variedades de comportamento homossexual aguardam descoberta e descrição? E que efeito exerceria sua descoberta e descrição sobre nossas teorias?
Não temos, portanto, estudos suficientes do comportamento desviante. Não dispomos de estudos de tipos suficientes deste comportamento. Acima de tudo, não contamos com muitos trabalhos em que o pesquisador tenha conseguido estabelecer um contato estreito com aqueles a quem estuda, de modo a se inteirar do caráter complexo e múltiplo da atividade desviante.
Algumas das razões para essa deficiência são técnicas. Não é fácil estudar desviantes. Como são considerados outsiders pelos demais membros da sociedade, e como eles próprios tendem a considerar os demais integrantes da sociedade outsiders, o estudioso que deseja descobrir os fatos acerca do desvio tem uma substancial barreira a transpor antes que lhe seja permitido ver o que precisa. Como será provavelmente punida se vier à luz, a atividade desviante tende a ser mantida oculta, não exibida ou alardeada para outsiders. O estudioso do desvio precisa convencer aqueles a quem estuda de que não haverá perigo para eles, de que não sofrerão em conseqüência do que lhe revelarem. O pesquisador, portanto, deve interagir intensa e continuamente com os desviantes que quer estudar, de modo que estes possam conhecê-lo bem o suficiente para avaliar de algum modo se as atividades dele afetarão adversamente as suas.
Aqueles que cometem atos desviantes se protegem de várias maneiras contra outsiders intrometidos. O desvio dentro de instituições convencionais organizadas é muitas vezes protegido por uma espécie de acobertamento. Assim, membros das profissões liberais em geral não falam sobre casos de prática antiética em público. Associações profissionais lidam com esses assuntos privadamente, punindo culpados a seu próprio modo, sem publicidade. Assim, médicos viciados em narcóticos recebem punições relativamente leves quando o caso chega ao conhecimento de autoridades encarregadas de impor a lei.5 Um médico que é pego furtando dos estoques de narcóticos de um hospital é em geral simplesmente instado a deixar o estabelecimento; não é entregue à polícia. Para fazer pesquisa em grandes organizações industriais, educacionais e de outros tipos, é preciso obter a permissão dos que as dirigem. Se puderem, os administradores da organização limitam a área de investigação de maneira que oculte o desvio que não querem divulgar. Melville Dalton, ao descrever sua própria abordagem ao estudo da indústria, diz:
Em nenhum caso fiz um contato oficial com a cúpula administrativa de qualquer das firmas para obter aprovação ou apoio para a pesquisa. Várias vezes vi outros pesquisadores fazerem isso e observei que os administradores de nível mais alto montavam o cenário e limitavam a investigação a áreas específicas — fora da administração propriamente dita —, como se o problema existisse num vácuo. Os resultados em alguns casos eram então vistos como “experimentos controlados”, que em forma final pareciam um material impressionante. Mas os sorrisos maliciosos de um pessoal comedido que se divertia em manipular os pesquisadores, as avaliações feitas sobre estes e suas descobertas, e as áreas freqüentemente triviais para as quais funcionários alertas e temerosos guiavam a investigação — tudo suscitava questões acerca de quem controlava os experimentos.6
Membros de grupos desviantes que não têm o apoio dissimulado de profissões organizadas ou estabelecimentos usam outros métodos para esconder o que estão fazendo da visão externa. Como suas atividades ocorrem sem o benefício de portas institucionalmente trancadas ou portões vigiados, homossexuais, viciados em drogas e criminosos precisam maquinar outros meios para mantê-las escondidas. De modo típico, fazem grandes esforços para conduzir suas atividades em segredo, e as atividades públicas em que se envolvem têm lugar em áreas relativamente controladas. Por exemplo, pode haver um bar que sirva de ponto de reunião para ladrões. Embora muitos dos ladrões da cidade possam estar disponíveis num só lugar para um pesquisador que queira estudá-los, se calarão quando ele entra no recinto, recusando-se a estabelecer qualquer relação com ele ou fingindo ignorância das coisas em que está interessado.
Esses tipos de sigilo criam dois problemas para a pesquisa. Por um lado, o pesquisador tem o problema de encontrar as pessoas em que está interessado. Como encontrar um médico viciado em drogas? Como localizar homossexuais de vários tipos? Se quiséssemos estudar a divisão de honorários entre cirurgiões e clínicos gerais, como procederíamos para encontrar as pessoas que participam desses arranjos e ter acesso a elas? Uma vez encontradas, há o problema de convencê-las de que podem discutir conosco o problema do desvio em segurança.
Outros problemas se apresentam para o estudioso do desvio. A fim de obter um relato preciso e completo do que os desviantes fazem, de quais são seus padrões de associação, e assim por diante, o estudioso deve passar pelo menos algum tempo observando-os em seu hábitat, enquanto desempenham suas atividades comuns. Mas isso significa que deve, por algum tempo, adotar horários inusitados e penetrar no que são para ele áreas desconhecidas e possivelmente perigosas da sociedade. Pode ter de passar a noite acordado e dormir durante o dia, porque assim fazem as pessoas que estuda, e isso pode ser difícil em razão de seus compromissos com a família e o trabalho. Além do mais, o processo de conquistar a confiança daqueles que estudamos pode consumir muito tempo, de modo que talvez seja preciso dedicar meses a tentativas relativamente infrutíferas de aproximação. Isso quer dizer que essa variedade de pesquisa demanda mais tempo que tipos correlatos de estudo em instituições respeitáveis.
Estes são problemas técnicos, e é possível encontrar meios de superá-los. É mais difícil lidar com os problemas morais envolvidos no estudo do desvio.
Isso é parte do problema geral do ponto de vista que deveríamos assumir em relação ao nosso objeto de estudo, de como deveríamos avaliar coisas convencionalmente consideradas más, de onde depositamos nossas simpatias. Esses problemas surgem, claro, na análise de qualquer fenômeno social. Podem ser agravados quando estudamos o desvio porque as práticas e as pessoas que pesquisamos são convencionalmente condenadas.7
Ao descrever a organização social e o processo social — em particular, ao descrever as organizações e os processos relativos aos desvios —, que ponto de vista devemos adotar? Como há em geral várias categorias de participantes em qualquer organização ou processo social, devemos optar entre adotar o ponto de vista de um ou outro desses grupos ou o de um observador externo. Herbert Blumer afirmou que as pessoas agem fazendo interpretações da situação em que se encontram e depois ajustando seu comportamento de maneira a lidar com a situação. Portanto, prossegue ele, devemos adotar o ponto de vista da pessoa ou do grupo (a “unidade atuante”) em cujo comportamento estamos interessados e:
Apreender o processo de interpretação pelo qual eles constroem suas ações…. Para apreender o processo, o estudioso deve assumir o papel da unidade atuante cujo comportamento está investigando. Como a interpretação está sendo feita pela unidade atuante em termos de objetos designados e avaliados, significados adquiridos e decisões tomadas, o processo deve ser encarado do ponto de vista dela…. Tentar apreender o processo interpretativo permanecendo distante como um pretenso observador “objetivo”, e recusar-se a assumir o papel da unidade atuante, é arriscar-se ao pior tipo de subjetivismo — o observador objetivo provavelmente preencherá o processo de interpretação com suas próprias conjecturas, em vez de apreender o processo tal como ocorre na experiência da unidade atuante que o emprega.8
Quando estudamos os processos envolvidos no desvio, portanto, devemos adotar o ponto de vista de pelo menos um dos grupos envolvidos, seja o daqueles que são tratados como desviantes, seja o daqueles que rotulam os outros como tais.
É possível, claro, ver a situação de ambos os lados. Mas isso não pode ser feito simultaneamente. Não podemos construir uma descrição de uma situação ou processo que de alguma maneira unifique as percepções e interpretações dos dois grupos envolvidos num processo de desvio. Não podemos descrever uma “realidade superior” que dê sentido a ambos os conjuntos de concepções. É possível descrever as perspectivas de um grupo e ver como elas se enredam ou deixam de se enredar com as do outro grupo: as perspectivas de infratores de regras à medida que coincidem e conflitam com as perspectivas daqueles que as impõem, e vice-versa. Mas não podemos compreender a situação ou processo sem dar peso pleno às diferenças entre as perspectivas dos dois grupos envolvidos.
É da natureza do fenômeno do desvio que a dificuldade que qualquer pessoa encontra para estudar os dois lados do processo e captar precisamente as perspectivas de ambas as classes de participantes, infratores e impositores de regras. Não que isso seja impossível, mas a necessidade de ganhar acesso a situações e à confiança dos envolvidos num período razoável de tempo significa que provavelmente vamos estudar o quadro a partir de um lado ou de outro. Seja qual for a classe de participantes que escolhemos estudar, e cujo ponto de vista escolhemos portanto adotar, seremos provavelmente acusados de “tendenciosidade”. Será dito que não estamos fazendo justiça ao ponto de vista do grupo oposto. Ao apresentar as racionalizações e justificativas que um grupo oferece para fazer as coisas como faz, daremos a impressão de aceitar essas racionalizações e justificativas e de acusar os outros participantes da transação com as palavras de seus oponentes. Se estudamos viciados em drogas, eles certamente nos dirão, e seremos obrigados a relatar, que acreditam que os outsiders que os julgam estão errados e são inspirados por motivos vis. Se chamarmos a atenção para aqueles aspectos das experiências do drogado que parecem, aos olhos dele, confirmar suas crenças, daremos a impressão de o estar desculpando. Por outro lado, se vemos o fenômeno do vício do ponto de vista dos agentes da lei, eles nos dirão — e seremos obrigados a relatar — que acreditam que os viciados são tipos criminosos, têm personalidades perturbadas, não têm moral nem são dignos de confiança. Seremos capazes de mostrar os aspectos das experiências do agente que justificam essa concepção. Ao fazê-lo, parecerá que estamos concordando com essa perspectiva. Em ambos os casos, seremos acusados de apresentar uma visão unilateral e distorcida.
Mas este não é realmente o caso. O que estamos apresentando não é uma visão distorcida da “realidade”, mas aquela que se apresenta às pessoas que estudamos, a realidade que elas criam por meio de suas interpretações de sua experiência e em termos da qual agem. Se não conseguirmos apresentar essa realidade, não teremos alcançado plena compreensão sociológica do fenômeno que buscamos explicar.
Que ponto de vista devemos apresentar? Há duas considerações aqui, uma estratégica e outra ligada à índole ou à moral do pesquisador. A consideração estratégica é que o ponto de vista da sociedade convencional em relação ao desvio é em geral bem conhecido. Portanto, devemos estudar as concepções daqueles que participam de atividades desviantes, porque dessa maneira elucidamos a parte mais obscura do quadro. Esta, contudo, é uma resposta simples demais. Suspeito que, na verdade, conhecemos muito pouco sobre os pontos de vista de qualquer das duas partes envolvidas no fenômeno do desvio. Embora seja verdade que não sabemos muito sobre como os próprios desviantes vêem suas situações, também é verdade que não estamos inteiramente a par, porque não os estudamos o suficiente, de outros pontos de vista envolvidos. Não temos conhecimento de quais são todos os interesses dos impositores de regras. Tampouco sabemos em que medida membros comuns da sociedade convencional realmente partilham, em algum grau, as perspectivas de grupos desviantes. David Matza sugeriu recentemente que as formas características do desvio juvenil — delinqüência, política radical e boêmia — são de fato extensões ocultas de perspectivas adotadas de forma menos extrema por membros convencionais da sociedade. Assim, a delinqüência é uma versão despojada da cultura adolescente; a política radical é uma versão extrema do vago liberalismo contido no pendor norte-americano para “fazer o bem”; e a boêmia pode ser simplesmente uma versão extrema da vida frívola das fraternidades universitárias, por um lado, e do tema do intelectual sério na vida universitária, por outro.9 Considerações estratégicas, portanto, não nos dizem que ponto de vista deveríamos descrever.
Mas considerações ligadas à índole ou à moral do pesquisador tampouco nos dão uma resposta. Podemos, contudo, estar cientes de alguns dos perigos envolvidos. O principal reside no fato de que o desvio tem fortes conexões com sentimentos de rebeldia juvenil. Não é um assunto sobre o qual as pessoas pensem com tranqüilidade. Elas sentem que o desvio é inteiramente errado e deve ser abolido, ou, ao contrário, que é algo a ser estimulado — um corretivo importante para a conformidade produzida pela sociedade moderna. As personagens do drama sociológico do desvio, mais ainda que as de outros processos sociológicos, parecem ser heroínas ou vilãs. Expomos a depravação de desviantes ou expomos a depravação daqueles que lhes impõem as regras.
Devemos nos precaver contra essas posições. É uma situação muito parecida com a das palavras obscenas. Alguns pensam que elas nunca deveriam ser usadas. Outras gostam de escrevê-las nas calçadas. Em ambos os casos, essas palavras são vistas como algo especial, dotadas de um manaa particular. Mas certamente é melhor vê-las simplesmente como palavras que chocam algumas pessoas e deliciam outras. Passa-se o mesmo com o comportamento desviante. Não devemos vê-lo como algo especial, depravado ou, de alguma maneira mágica, melhor que outros tipos de comportamento. Cumpre vê-lo simplesmente como um tipo de comportamento que alguns reprovam e outros valorizam, estudando os processos pelos quais cada uma das perspectivas, ou ambas, é construída e conservada. Talvez a melhor garantia contra qualquer dos dois extremos seja o contato estreito com as pessoas que estudamos.
_______________
a Força ou qualidade de origem mágica ou sobrenatural que povos do Pacífico Sul acreditavam manisfestar sua eficácia em determinadas situações. (N.R.T.)