Prefácio a

Outsiders não inventou o campo do que hoje se chama “desvio”. Outros estudiosos já haviam publicado idéias semelhantes (em especial Edwin Lemert e Frank Tannenbaum,1 ambos mencionados neste livro). Mas Outsiders diferiu de abordagens anteriores em vários aspectos. Para começar, foi escrito de maneira muito mais clara que o texto acadêmico usual. Não me cabe nenhum mérito nisso. Tive bons professores, e meu mentor, Everett Hughes, que orientou minha dissertação e com quem depois colaborei estreitamente em vários projetos de pesquisa, era fanático pela escrita clara. Ele considerava inteiramente desnecessário usar termos abstratos, vazios, quando havia palavras simples que diriam a mesma coisa. E me lembrava disso com freqüência, de modo que meu reflexo foi sempre procurar a palavra simples, a frase curta, o modo declarativo.

Além de ser mais compreensível que grande parte dos textos sociológicos, metade de Outsiders consistia em estudos empíricos, relatados em detalhe, de tópicos “interessantes” para a geração de estudantes que ingressava então nas universidades norte-americanas, em contraste com teorizações mais abstratas. Escrevi sobre músicos que trabalhavam em bares e outros locais modestos, tocando uma música que tinha uma espécie de aura romântica, e escrevi sobre a maconha que alguns deles fumavam, a mesma maconha que muitos daqueles estudantes experimentavam e de cujos efeitos aprendiam a gostar (exatamente como a análise sugerida nos textos). Esses temas, que penetravam mais ou menos suas próprias vidas, fizeram de Outsiders uma obra que os professores, muitos dos quais partilhavam o interesse dos alunos por drogas e música, gostavam de indicar em seus cursos. O livro assim se tornou uma espécie de texto-padrão em cursos para estudantes jovens.

Mais uma coisa acontecia na época. A sociologia atravessava uma de suas “revoluções” periódicas, em que estruturas teóricas mais antigas eram reavaliadas e criticadas. Naquele tempo, no início dos anos 1960, os sociólogos estudavam tipicamente o crime e outras formas de transgressão perguntando o que levava as pessoas a agirem daquele modo, violando normas comumente aceitas e não levando vidas “normais”, como diziam todas as nossas teorias, em que haviam sido socializados, inclusive para aceitá-las como o modo segundo o qual se deveria viver. As teorias da época variavam naquilo que consideravam as principais causas desse tipo de comportamento anti-social, como consumo excessivo de álcool, crime, uso de drogas, má conduta sexual e uma longa lista de contravenções. Alguns atacavam as psiques das pessoas que se comportavam mal — suas personalidades tinham falhas que as faziam cometer essas coisas (o que quer que fossem “essas coisas”). Outros, mais sociológicos, culpavam as situações em que as pessoas se viam e que criavam disparidades entre o que lhes haviam ensinado a almejar e sua real possibilidade de alcançar esses prêmios. Jovens da classe trabalhadora — a quem haviam ensinado a acreditar no “sonho americano” de mobilidade social ilimitada e depois se viam refreados por empecilhos socialmente estruturados, como a falta de acesso à educação, que tornariam a mobilidade possível — poderiam então “apelar para” métodos desviantes de mobilidade, como o crime.

Essas teorias, porém, não soavam verdadeiras para sociólogos de uma nova geração, menos conformistas e mais críticos com referência às instituições sociais da época, menos dispostos a acreditar que o sistema de justiça criminal jamais cometia erros, que todos os criminosos eram pessoas más que haviam feito as coisas más de que eram acusadas, e assim por diante. Voltaram-se assim para a busca de respaldos teóricos de várias fontes. Muitos descobriram explicações em abordagens marxistas para a análise dos efeitos patológicos do capitalismo. Alguns — e fui um deles — encontraram uma base firme em teorias sociológicas fora de moda, que de certa forma ficaram esquecidas quando os pesquisadores abordaram o campo do crime e do que era então chamado de “desorganização social”.

Em poucas palavras, a pesquisa nessas áreas da vida social fora dominada por pessoas cuja profissão e cujo trabalho diário consistiam em resolver “problemas sociais”, atividades que criavam dificuldade para alguém em condições de fazer alguma coisa a respeito. Assim, o crime se tornava por vezes um problema para alguém resolver. (Nem sempre, porque muitos crimes eram, como sempre foram, tolerados, visto que era muito difícil detê-los ou que muitos lucravam com eles.) Esse “alguém” era em geral uma organização cujos membros cuidavam daquele problema em tempo integral. Assim, o que veio a se chamar de sistema de justiça criminal — a polícia, os tribunais, as prisões — recebeu convencionalmente a tarefa de extirpar o crime ou pelo menos contê-lo. Eles montaram o aparato de combate e contenção do crime.

Como em todos os grupos profissionais, as pessoas nessas organizações de justiça criminal tinham seus próprios interesses e perspectivas a proteger. Parecia-lhes óbvio que a responsabilidade pelo crime pertencia aos criminosos, e não havia dúvida quanto a quem eram eles: as pessoas que suas organizações haviam apanhado e prendido. E sabiam que o problema de pesquisa importante era: “Por que as pessoas que identificamos como criminosos fazem as coisas que identificamos como crimes?” Essa abordagem levou-as — e aos muitos sociólogos que aceitavam esta como a questão de pesquisa importante — a confiar enormemente, para a compreensão do crime, nas estatísticas que essas organizações geravam: a taxa de criminalidade era calculada com base nos crimes denunciados à polícia, não necessariamente uma medida precisa, uma vez que as pessoas freqüentemente não denunciavam os crimes, e a polícia muitas vezes “ajustava” os números para mostrar ao público, às companhias de seguros e aos políticos que estava fazendo um bom trabalho.

Havia na tradição sociológica uma abordagem alternativa cujas raízes remontavam ao famoso dito de W.I. Thomas: “Se os homens definem situações como reais, elas são reais em suas conseqüências.”2 Isto é, as pessoas agem com base em sua compreensão do mundo e do que há nele. Formular os problemas da ciência social dessa maneira torna problemática a questão de como as coisas são definidas, dirige a pesquisa para a descoberta de quem está definindo que tipos de atividade e de que maneira. Nesse caso, quem está definindo que tipos de atividades como criminosas e com quais conseqüências? Pesquisadores que trabalhavam nessa tradição não aceitavam que tudo que a polícia dizia ser crime “realmente” o fosse. Pensavam, e sua pesquisa confirmava, que ser chamado de criminoso e tratado como tal não tinha conexão necessária com qualquer coisa que a pessoa pudesse realmente ter feito. Era possível haver uma conexão, mas ela não era automática ou garantida. Isso significava que a pesquisa que usava as estatísticas oficiais estava cheia de erros, e a correção desses erros podia levar a conclusões muito diferentes.

Outro aspecto dessa tradição insistia em que todos os envolvidos numa situação contribuíam para o que acontecia nela. A atividade de todos devia fazer parte da investigação sociológica. Assim, as atividades das pessoas cujo trabalho era definir o crime e lidar com ele integravam o “problema do crime”, e um pesquisador não podia simplesmente aceitar o que diziam por seu significado manifesto, ou usar isso como base para trabalho posterior. Embora contrariando o senso comum, isso produzia resultados interessantes e originais.

Outsiders seguiu esse caminho. Nunca pensei que fosse uma abordagem nova. Tratava-se antes do que faria um bom sociólogo, seguindo as tradições do ofício. É comum hoje dizer que toda nova abordagem produziu o que o historiador da ciência Thomas Kuhn chamou de “revolução científica”.3 Mas eu diria que essa abordagem do desvio não foi nenhuma revolução. No máximo, diríamos que foi uma contra-revolução que devolveu à pesquisa sociológica nesta área o caminho certo.4

Comecei falando sobre crime. Mas agora, no parágrafo anterior, mencionei esta área de trabalho como focalizada no “desvio”. Essa é uma mudança significativa. Ela redireciona a atenção para um problema mais geral do que a questão de quem comete crime. Em vez disso, leva-nos a olhar para todos os tipos de atividade, observando que em toda parte pessoas envolvidas em ação coletiva definem certas coisas como “erradas”, que não devem ser feitas, e geralmente tomam medidas para impedir que se faça o que foi assim definido. De forma alguma essas atividades serão todas criminosas — em qualquer sentido da palavra. Algumas regras são restritas a grupos específicos: judeus que observam os princípios de sua religião não devem comer alimentos que não sejam kosher, mas os demais são livres para fazê-lo. As regras dos esportes e dos jogos são semelhantes: não importa como você mova uma peça do xadrez, contanto que esteja jogando xadrez com alguém que leva as regras a sério, e qualquer sanção pela violação das regras vigora apenas na comunidade do xadrez. Dentro dessas comunidades, porém, operam os mesmos tipos de processo de fabricação de regras e de detecção dos que as violam.

Numa outra direção, certos comportamentos serão considerados incorretos, mas nenhuma lei se aplica a eles e nem há qualquer sistema organizado para detectar os que infringem a regra informal. Alguns desses comportamentos, em aparência triviais, poderiam ser vistos como infrações de regras de etiqueta (arrotar onde não deveríamos, por exemplo). Falar sozinho na rua (a menos que você esteja segurando um telefone celular) será visto como incomum e levará as pessoas a achá-lo um pouco esquisito, mas, na maioria das vezes, nada será feito com relação a isso. Ocasionalmente, essas ações fora do comum incitam de fato os outros a concluir que você pode ser um “doente mental”, e não apenas “grosseiro” ou “esquisito”. Nesse caso, sanções podem entrar em jogo, e lá vai você para o hospital. Erving Goffman, meu colega na pós-graduação, explorou essas possibilidades minuciosamente, em especial em seu estudo dos hospitais psiquiátricos.5

O termo “desvio” foi usado por Goffman, por mim e por muitos outros para abranger todas essas possibilidades, usando um método comparativo de descobrir um processo básico que assumia muitas formas em diversas situações, sendo que apenas uma delas é criminosa. As várias formulações que propusemos atraíram muita atenção e várias críticas, algumas das quais foram respondidas no último capítulo desta versão revista de Outsiders. Ao longo dos anos, porém, produziu-se ampla bibliografia em torno dos problemas de “rotulação” e “desvio”, e não reexaminei o livro para levá-la em consideração.

Se fizesse essa revisão, daria grande peso a uma idéia que Gilberto Velho, o eminente antropólogo urbano brasileiro, acrescentou à mistura,6 a qual, a meu ver, elucida certas ambigüidades que criaram dificuldade para alguns leitores. Sua sugestão foi reorientar ligeiramente a abordagem, transformando-a num estudo do processo de acusação, de modo que suscitasse essas perguntas: quem acusa quem? Acusam-no de fazer o quê? Em quais circunstâncias essas acusações são bem-sucedidas, no sentido de serem aceitas por outros (pelo menos por alguns outros)?

Não continuei a trabalhar na área do desvio. Mas encontrei uma versão ainda mais geral do mesmo tipo de pensamento que é útil no trabalho que venho realizando há muitos anos na sociologia da arte. Problemas semelhantes surgem ali, porque nunca está claro o que é ou não “arte”, e os mesmos tipos de argumento e processo podem ser observados. No caso da arte, claro, ninguém se incomoda se o que faz é chamado de arte, de modo que temos o mesmo processo visto no espelho. O rótulo não prejudica a pessoa ou a obra a que é aplicado, como acontece em geral com rótulos de desvio. Em vez disso, acrescenta valor.

Com isso quero dizer apenas que o terreno que eu e outros mapeamos no campo do desvio ainda está vivo e é capaz de gerar idéias interessantes a serem pesquisadas.

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a Prefácio à edição dinamarquesa de Outsiders, publicada por Hans Reitzel Publishers em 2005.