CAPÍTULO 12    

A IDEOLOGIA RELIGIOSA

Deem-me um povo em que as paixões em ebulição e a ganância terrena sejam acalmadas pela fé, a esperança e a caridade; um povo que veja esta terra como uma peregrinação e a outra vida como sua verdadeira pátria: um povo ensinado a admirar e a acatar no heroísmo cristão sua própria pobreza e seu próprio sofrimento: um povo que ame e adore em Jesus Cristo o primogênito de todos os oprimidos, e em sua cruz adore o instrumento da salvação universal. Deem-me, digo eu, um povo assim moldado, e o socialismo não será somente derrotado com facilidade, mas será impossível mesmo que se pense nele (...).

Cilviltà Cattolica1

Mas, quando Napoleão começou seu avanço, eles (os heréticos camponeses) acreditavam que era o leão do vale de Josafá, que, como diziam seus velhos hinos, estava destinado a destronar o falso czar e a restaurar o trono do verdadeiro czar Branco. E assim os camponeses da província de Tambov escolheram uma delegação entre eles, que deveria ir ao encontro de Napoleão e saudá-lo, vestidos de branco.

Haxthausen, Studien ueber... Russland2

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O que os homens pensam a respeito do mundo é uma coisa, e outra muito distinta são os termos em que o fazem. Durante grande parte da História e na maior parte do mundo (sendo a China talvez a principal exceção), os termos em que todos os homens, exceto um punhado de pessoas emancipadas e instruídas, pensavam o mundo eram os termos da religião tradicional, e tanto isto é verdade que há países nos quais a palavra “cristão” é simplesmente sinônimo de “camponês” ou mesmo de “homem”. Em alguma época anterior a 1848, isto deixou de ser verdade em certas partes da Europa, mas ainda dentro da área transformada pelas duas revoluções. A religião, uma coisa semelhante ao céu, da qual ninguém escapa e que abarca tudo o que está sobre a terra, tornou-se algo parecido com um acúmulo de nuvens, uma grande característica do firmamento humano, embora limitado e variável. De todas as mudanças ideológicas, esta é de longe a mais profunda, embora suas consequências práticas não fossem mais ambíguas e indeterminadas do que então se supunha. Em todo caso, é a transformação mais inaudita e sem precedentes.

Naturalmente, o que não tinha precedentes era a secularização das massas. A indiferença religiosa dos senhores, combinada com o escrupuloso cumprimento dos deveres rituais (para dar um exemplo às classes mais baixas) era de há muito tempo familiar entre os nobres emancipados,3 embora as damas, como é frequente neste sexo, continuassem a ser muito devotas. Os homens polidos e instruídos poderiam tecnicamente acreditar no ser supremo, embora esse ser não tivesse qualquer função exceto a de existir, e certamente sem interferir nas atividades humanas nem exigir outra forma de veneração do que o reconhecimento benevolente. Mas seus pontos de vista em relação à religião tradicional eram de desprezo e frequentemente hostis, como se estivessem prontos a se declararem francamente ateus. “Senhor”, teria dito a Napoleão o grande matemático Laplace, quando lhe foi perguntado em que parte de sua mecânica celeste se encaixava Deus, “não tenho necessidade de tal hipótese”. O ateísmo declarado ainda era relativamente raro, mas entre os eruditos, escritores e cavalheiros que ditavam as modas intelectuais do final do século XVIII, o cristianismo franco era ainda mais raro. Se havia uma religião florescente entre a elite do final do século XVIII, esta era a maçonaria racionalista, Iluminista e anticlerical.

Esta difundida descristianização dos homens nas classes instruídas data do final do século XVII ou do início do século XVIII, e seus efeitos públicos tinham sido surpreendentes e benéficos. O simples fato de que aos julgamentos por bruxaria, que tinham sido a praga da Europa central e ocidental durante vários séculos, agora se seguiam processos por heresia e autos de fé no limbo seria suficiente para justificá-lo. Entretanto, no início do século XVIII, esta mudança mal afetava os escalões mais baixos ou mesmo os escalões médios. O campesinato permanecia totalmente fora do alcance de qualquer linguagem ideológica que não se expressasse em termos da Virgem, dos Santos e da Sagrada Escritura, para não mencionarmos os deuses e os espíritos mais antigos que ainda se escondiam debaixo de uma fachada levemente cristã. Havia agitações de pensamento não religioso entre os artesãos que anteriormente haviam sido levados à heresia. Os sapateiros-remendões, os mais persistentes dos intelectuais da classe trabalhadora, que haviam criado mitos como Jacó Boehme, pareciam ter começado a duvidar de qualquer divindade. Em todo caso, em Viena, era o único grupo de artesãos a simpatizar com os jacobinos, pois se dizia que antes não acreditavam em Deus. Entretanto, não passavam de ligeiras agitações. A grande massa da pobreza desqualificada das cidades continuava (com exceção talvez de algumas cidades do norte da Europa, como Paris e Londres) profundamente devota e supersticiosa.

Mas, mesmo entre os escalões médios, a aberta hostilidade à religião não era popular, embora a ideologia de um Iluminismo antitradicional, progressista e racionalista se encaixasse perfeitamente no esquema da ascendente classe média. Suas associações eram feitas com a aristocracia e a imoralidade, que pertenciam à sociedade dos nobres. E, de fato, os primeiros pensadores realmente livres, os libertins da metade do século XVII, viviam de acordo com a conotação popular deste nome: o Dom Juan, de Molière, retrata não somente sua combinação de ateísmo e liberdade sexual, mas também o respeitável horror burguês em relação a ela. Havia boas razões para o paradoxo (particularmente óbvio no século XVII) de que os pensadores intelectualmente mais ousados, que anteciparam muito do que seria mais tarde a ideologia da classe média — por exemplo, Bacon e Hobbes — estiveram associados como indivíduos à velha e corrupta sociedade. Os exércitos da classe média ascendente necessitavam da disciplina e da organização de uma moralidade forte e ingênua para suas batalhas. Teoricamente, o agnosticismo e o ateísmo são perfeitamente compatíveis com ambas, e certamente o cristianismo era desnecessário, e os filósofos do século XVIII não se cansavam de demonstrar que uma moralidade “natural” (da qual eles encontravam ilustrações entre os nobres selvagens) e os altos padrões pessoais do livre-pensador individual eram melhores do que o cristianismo. Mas, na prática, as comprovadas vantagens do velho tipo de religião e os terríveis riscos de abandonar qualquer sanção sobrenatural da moralidade eram imensos, não só para os trabalhadores pobres, que eram geralmente tidos como muito ignorantes e tolos para passarem sem algum tipo de superstição socialmente útil, mas também para a própria classe média.

Na França, as gerações pós-revolucionárias estão cheias de tentativas para criar uma moralidade burguesa anticristã equivalente à cristã: o “culto do ser supremo”, inspirado em Rousseau (Robespierre em 1794), as várias pseudorreligiões construídas sobre bases racionalistas não cristãs, embora mantendo o mecanismo do ritual e do culto (os saint-simonianos e a “religião da humanidade” de Comte). Finalmente, a tentativa de manter as aparências dos velhos cultos religiosos foi abandonada, mas não a de estabelecer uma moralidade leiga oficial (baseada em vários conceitos morais tais como a “solidariedade”) e, acima de tudo, uma leiga contrapartida do sacerdócio os professores. O instituteur francês, pobre, abnegado, ensinando a seus alunos em cada aldeia a moralidade romana da Revolução e da República, antagonista oficial do vigário da aldeia, não triunfou até a Terceira República, que também resolveria os problemas políticos de instaurar uma estabilidade burguesa sobre os princípios da revolução social, pelo menos durante 70 anos. Mas ele já estava prefigurado na lei de Condorcet de 1792, que estabelecia que “as pessoas encarregadas da Instrução nas classes primárias serão chamadas de instituteurs”, fazendo eco com Cícero e Salústio, que falavam na “instituição do Estado” (instituere civitatem) e na “instituição da moralidade do Estado” (instituere civitatum mores).4

A burguesia permanecia, assim, dividida ideologicamente entre uma minoria cada vez maior de livres-pensadores e uma maioria de católicos, protestantes e judeus devotos. Entretanto, o novo fato histórico era de que dos dois setores, o de livres-pensadores era imensuravelmente mais dinâmico e efetivo. Embora, em termos puramente quantitativos a religião continuasse muito forte e, como veremos, ficaria ainda mais forte, ela não mais era dominante (para usarmos uma analogia biológica) mas recessiva, e assim permaneceria até os dias atuais dentro do mundo transformado pela revolução dupla. Não há dúvida de que a grande massa de cidadãos dos novos Estados Unidos acreditava em alguma forma de religião (principalmente na protestante), mas a Constituição da República foi e continuou sendo agnóstica, apesar de todos os esforços para mudá-la. Também não há qualquer dúvida de que entre as classes médias britânicas de nosso período os devotos protestantes superavam numericamente a minoria de radicais agnósticos. Mas um Bentham moldou as verdadeiras instituições de sua época bem mais do que um Wilberforce.

A prova mais evidente desta decisiva vitória da ideologia secular sobre a religiosa é também seu mais importante resultado. Com as revoluções americana e francesa as principais transformações políticas e sociais foram secularizadas. Os problemas das revoluções holandesa e inglesa dos séculos XVI e XVII ainda foram discutidos na linguagem tradicional do cristianismo, ortodoxa, cismática e herege. Nas ideologias dos americanos e franceses, pela primeira vez na história da Europa, o cristianismo foi deixado de lado. A linguagem, o simbolismo e o costume de 1789 são puramente não cristãos, se deixarmos de considerar alguns esforços arcaicopopulares para a criação de cultos a santos e mártires, análogos aos antigos cultos, em honra dos heróis “sansculottes” mortos. Isto era, de fato, romano. Ao mesmo tempo este secularismo da revolução demonstra a impressionante hegemonia política da classe média liberal, que impunha suas formas ideológicas particulares a um movimento de massas bem vasto. Mesmo admitindo que a liderança intelectual da Revolução Francesa tenha surgido apenas levemente das massas que na realidade a fizeram, não se pode explicar de outra maneira porque sua ideologia mostrou tão poucos sinais de tradicionalismo como fez.a

Assim, o triunfo burguês imbuiu a Revolução Francesa da ideologia moral-secular ou agnóstica do Iluminismo do século XVIII, e desde que o idioma daquela revolução se transformou na linguagem geral de todos os movimentos sociais revolucionários subsequentes, também lhes transmitiu este secularismo. Com algumas exceções sem importância, notadamente entre intelectuais como os saint-simonianos e entre alguns sectários comunistas-cristãos como o alfaiate Weitling (1808-1871), a ideologia da nova classe trabalhadora e dos movimentos socialistas do século XIX foi secular desde o princípio. Thomas Paine, cujas ideias expressavam as aspirações radical-democráticas dos pequenos artesãos e artífices empobrecidos, é tão popular por ter escrito o primeiro livro para provar através de uma linguagem popular que a Bíblia não é a palavra de Deus (A idade da razão, 1794) quanto por sua obra Os direitos do homem (1791). Os mecânicos da década de 1820 seguiam Robert Owen não só por sua análise do capitalismo, mas por sua descrença e, muito depois do fracasso do owenismo, por sua obra Corredores da ciência, que continuou a disseminar a propaganda racionalista através das cidades. Havia e há socialistas religiosos, e um grande número de homens que, enquanto religiosos, são também socialistas. Mas a ideologia predominante dos modernos movimentos socialista e trabalhista se baseia no racionalismo do século XVIII.

Isto é ainda mais surpreendente pelo fato, como já vimos, de que as massas permaneceram predominantemente religiosas e de que natural idioma revolucionário das massas criadas em uma tradicional sociedade cristã é um idioma de rebelião (heresia social, milenarismo etc.), sendo a Bíblia um documento altamente incendiário. Entretanto, o secularismo dos novos movimentos socialista e trabalhista se baseava no fato, igualmente novo e mais fundamental, da indiferença religiosa do novo proletariado. Pelos padrões modernos, as classes trabalhadoras e as massas urbanas, que aumentaram no período da revolução industrial, estavam sem dúvida muito influenciadas pela religião; mas pelos padrões da primeira metade do século XIX, não havia precedente para seu distanciamento, ignorância e indiferença em relação à religião organizada. Os observadores de todas as tendências políticas concordam com isto. O Censo Religioso Britânico de 1851 o demonstrou para horror dos contemporâneos. Grande parte deste alijamento se devia ao absoluto fracasso das tradicionais igrejas estabelecidas em lutar com as aglomerações — as grandes cidades e os novos estabelecimentos industriais — e com as classes sociais — o proletariado — estranhos a seus costumes e experiência. Por volta de 1851, havia lugares nas igrejas para somente 34% dos habitantes de Sheffield, somente 31,2% para os de Liverpool e Manchester, e 29% para os de Birmingham. Os problemas do pregador de uma aldeia agrícola não serviam como guia para a cura das almas em uma cidade industrial ou em um cortiço urbano.

As igrejas estabelecidas, portanto, negligenciavam estas novas comunidades e classes, abandonando-as (especialmente nos países católicos e luteranos) quase que inteiramente à fé secular dos novos movimentos trabalhistas, que mais tarde iria capturá-las, já no fim do século XIX. (Como em 1848 não fizeram muito para conservá-las, o esforço para reconquistá-las também não foi muito grande.) As seitas protestantes obtiveram maior sucesso, pelo menos em países como a Grã-Bretanha, em que tais religiões eram um fenômeno político-religioso bem estabelecido. Contudo, há provas de que estas seitas obtiveram maior sucesso em locais onde o meio ambiente social se aproximava mais do tradicionalismo das comunidades aldeãs e pequenas cidades, como por exemplo entre os trabalhadores agrícolas, os mineiros e os pescadores. Além disso, entre as classes trabalhadoras industriais estas seitas nunca eram mais do que uma minoria. A classe trabalhadora como grupo era indubitavelmente menos atingida pela religião organizada do que qualquer outro núcleo de pobres na história mundial.

A tendência geral do período desde 1789 até 1848 foi, portanto, de uma enfática secularização. A ciência se achava em crescente conflito com as Escrituras, à medida que se aventurava pelos caminhos da evolução (veja o Capítulo 15). A erudição histórica, aplicada à Bíblia em doses sem precedentes — em particular a partir da década de 1830 pelos professores de Tuebingen —, dissolvia o único texto inspirado, senão escrito, pelo Senhor em uma coleção de documentos históricos de vários períodos, com todos os defeitos da documentação humana, O Novum Testamentum (1842-1852) de Lachmann negava que os Evangelhos fossem relatos de testemunhas oculares e duvidava que Jesus Cristo tivesse tido a intenção de fundar uma nova religião. A controvertida obra de David Strauss, A Vida de Jesus (1835), eliminava o elemento sobrenatural de seu biografado. Por volta de 1848, a Europa instruída estava quase madura para o choque de Charles Darwin. A tendência foi reforçada pelo ataque direto de numerosos regimes políticos contra a propriedade e os privilégios legais das igrejas estabelecidas e de seu clero, e pela crescente tendência dos governos ou de outras agências seculares para assumir as funções até então atribuídas em grande parte às ordens religiosas, especialmente — nos países católicos romanos — a educação e a beneficência social. Entre 1789 e 1848, muitos monastérios foram dissolvidos, e suas propriedades, vendidas de Nápoles à Nicarágua. Fora da Europa, é claro, os conquistadores brancos lançavam ataques diretos contra a religião de seus súditos e vítimas, ou como paladinos do Iluminismo contra a superstição — como foi o caso dos administradores britânicos da Índia ao proibir que as viúvas se lançassem à fogueira onde eram queimados os corpos de seus esposos e ao abolir a seita ritualista assassina do Thugs hindus na década de 1830 — ou porque mal sabiam que efeitos suas medidas teriam sobre suas vítimas.

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Em termos puramente numéricos, é evidente que todas as religiões, a menos que estivessem em decadência, tinham a possibilidade de se expandir com o aumento da população. Ainda assim, duas delas demonstraram uma particular aptidão para o expansionismo em nosso período: o islamismo e as seitas protestantes. Este expansionismo foi ainda mais surpreendente se contrastado com o marcante fracasso de outras religiões cristãs — a católica e algumas modalidades protestantes — para se expandirem, a despeito do violento aumento das atividades missionárias fora da Europa, crescentemente respaldadas pela força econômica, política e militar da penetração europeia. De fato, as décadas napoleônicas e revolucionárias viram o início da sistemática atividade missionária protestante executada em sua maior parte pelos anglo-saxônicos. A Sociedade Missionária Batista (1792), a Sociedade Missionária de Londres (1795), a evangélica Sociedade Missionária das Igrejas (1799), e a Sociedade Bíblica Estrangeira e Britânica (1864) foram seguidas pela Associação Americana de Encarregados para Missões Estrangeiras (1810), pelos Batistas Americanos (1814), pelos Wesleyans (1813-1818), pela Sociedade Bíblica Americana (1816), pela Igreja Escocesa (1824), pelos Presbiterianos Unidos (1835), pelos Metodistas Americanos (1819) e por outros tipos de organizações. Na Europa continental, apesar de um certo pioneirismo iniciado pela Sociedade Missionária dos Países Baixos (1797) e pelos Missionários da Basileia (1815), a atividade dos protestantes se desenvolveu um pouco mais tarde: as sociedades de Berlim e da região do Reno, na década de 1820, as sociedades suecas de Leipzig e de Bremen, na década de 1830, e a norueguesa, em 1842. As missões do catolicismo, cujas atividades estavam estagnadas e desprezadas, renasceram mais tarde ainda. As razões para esta enxurrada de bíblias e de comércio com os pagãos pertencem tanto à história religiosa como social e econômica da Europa e da América. Aqui basta simplesmente notarmos que, por volta de 1848, o resultado destes movimentos ainda era desprezível, exceto em algumas ilhas do Pacífico, como o Havaí. Algumas fortalezas tinham sido conquistadas na costa, em Serra Leoa (para onde a agitação antiescravagista atraía a atenção durante a década de 1790) e na Libéria, constituída em Estado independente pelos escravos americanos libertados na década de 1820. Em torno das áreas de colonização europeia na África do Sul, os missionários estrangeiros (mas não a estabelecida Igreja da Inglaterra local ou a Igreja Holandesa Reformada) tinham começado a converter os africanos. Mas quando David Livingstone, o famoso missionário e explorador, navegou para a África em 1840, os habitantes nativos daquele continente ainda se achavam totalmente inatingidos por qualquer espécie de cristianismo.

Em contrapartida, o islamismo continuava sua expansão silenciosa, gradativa e irreversível, sem o apoio do esforço missionário organizado ou da conversão forçada, o que é uma característica desta religião. Ele se expandiu tanto para o Oriente (na Indonésia e no noroeste da China) quanto para o Ocidente (do Sudão ao Senegal) e em menor proporção das costas do oceano Índico para o interior do continente. Quando sociedades tradicionais mudam algo tão fundamental como sua religião, é claro que elas devem estar enfrentando novos e maiores problemas. Sem dúvida os comerciantes muçulmanos, que realmente monopolizavam o comércio do interior da África com o mundo, e com isto se multiplicavam, ajudaram a chamar a atenção dos novos povos para o islamismo. O comércio de escravos, que arruinava a vida comunitária, tornava-o atraente, pois o islamismo é um poderoso meio de reintegração das estruturas sociais.4a Ao mesmo tempo, a religião maometana atraía as sociedades militares e semifeudais do Sudão, e seu sentido de independência, militância e superioridade supunha um útil contrapeso para a escravidão. Os negros muçulmanos eram maus escravos: os haussas (e outros sudaneses) que foram importados para a Bahia se rebelaram nove vezes entre 1807 e o grande levante de 1835 até que, de fato, foram mortos, em sua maioria, ou deportados de volta para a África. Os comerciantes de escravos aprenderam a evitar importações destas regiões, que tinham sido abertas ao comércio muito recentemente.5

Enquanto o elemento de resistência aos brancos era muito pequeno no islamismo africano (onde ainda quase não existia nenhuma resistência), era, por tradição, muito forte no sudoeste da Ásia, onde o islamismo — também precedido pelos comerciantes — tinha, de há muito, avançado sobre os cultos locais e o declinante hinduísmo, em grande parte como um meio de resistência mais efetiva contra os portugueses e os holandeses, e como uma espécie de pré-nacionalismo, embora também como um contrapeso popular ante os príncipes que se tinham convertido ao hinduísmo.6 À medida que estes príncipes se tornavam cada vez mais dependentes dos holandeses, o islamismo fincava suas raízes mais profundamente na população. Por seu turno, os holandeses aprenderam que os príncipes indonésios podiam, aliando-se aos professores religiosos, provocar um levante popular geral, como na Guerra de Java do Príncipe de Djogjakarta (1825-1830). Consequentemente, eles foram repetidas vezes conduzidos de volta à política de íntima aliança com os governantes locais, governando indiretamente através deles. Enquanto isso, o crescimento do comércio e da navegação que forjava elos mais estreitos entre os muçulmanos do sudoeste da Ásia e de Meca servia para aumentar o número de peregrinos, para tornar mais ortodoxo o islamismo indonésio e, até mesmo, para abri-lo à influência militante e restauradora do wahabismo árabe.b

Dentro do islamismo, os movimentos de reforma e de renovação, que neste período deram à religião muito de seu poder de penetração, também podem ser vistos como um reflexo do impacto da expansão europeia e da crise das antigas sociedades maometanas (notadamente dos Impérios Turco e Persa) e talvez também da crescente crise do Império Chinês. Os puritanos wahabistas tinham surgido na Arábia na metade do século XVIII. Por volta de 1814 tinham conquistado a Arábia e estavam dispostos a conquistar a Síria, até que foram detidos pelas forças combinadas do ocidentalizador Mohammed Ali, do Egito, e das armas ocidentais, mas seus ensinamentos já se estendiam para o leste, invadindo a Pérsia, o Meganistão e a Índia. Inspirado pelo wahabismo, o santo argelino Sidi Mohammed ben Ali el Senussi desenvolveu um movimento semelhante que, a partir da década de 1840, se espalhou desde Trípoli até o deserto do Saara. Na Argélia, Abd-el-Kader, e Shamyl, no Cáucaso, desenvolveram movimentos político-religiosos de resistência aos franceses e russos, respectivamente (veja o Capítulo 7) e anteciparam um pan-islamismo que buscava não só um retorno à pureza original do Profeta, mas também buscava absorver as inovações ocidentais. Na Pérsia, uma heterodoxia ainda mais obviamente revolucionária e nacionalista, o movimento bab de Ali Mohammed, surgiu na década de 1840. Tendia, entre outras coisas, a retomar certas práticas antigas do zoroastrismo persa e exigia que as mulheres retirassem os seus véus.

O fermento e a expansão do islamismo eram tais que, em termos de história puramente religiosa, podemos, talvez, melhor descrever o período que vai de 1789 a 1848 como o período de renascimento do islamismo mundial. Nenhum outro movimento de massa equivalente se desenvolveu em qualquer outra religião não cristã, embora no final do período estivéssemos à beira da grande Rebelião Taiping, que possuía muitas características de um movimento semelhante. Pequenos movimentos de reforma religiosa foram fundados na Índia britânica, notadamente o movimento Brahmo Samaj, de Ram Mohan Roy (1772-1833). Nos Estados Unidos, as derrotadas tribos indígenas começaram a desenvolver movimentos proféticos religiosos e sociais de resistência aos brancos, como o movimento que inspiraria a guerra da maior confederação jamais conhecida dos índios das planícies, sob a liderança de Tecumseh, na primeira década do século, e a religião do Lago Simpático (1799), projetada para preservar o modo de vida dos índios iroqueses contra a destruição causada pela sociedade branca americana. Thomas Jefferson, homem de rara erudição, foi quem deu sua bênção oficial a este profeta, que adotou alguns elementos cristãos e especialmente quakers. Entretanto, o contato direto entre uma civilização capitalista adiantada e povos animistas ainda era muito raro para produzir muitos dos movimentos proféticos e milenares tão típicos do século XX.

O movimento expansionista do sectarismo protestante difere dos islamistas, na medida em que era quase que inteiramente limitado aos países de civilização capitalista desenvolvida. Seu alcance não pode ser medido, pois alguns movimentos deste tipo (por exemplo, o beatismo alemão ou o evangelismo inglês) permaneceram dentro da estrutura de suas respectivas igrejas estatais estabelecidas. Entretanto, não se tem dúvida quanto ao seu alcance. Em 1851, aproximadamente metade dos devotos protestantes na Inglaterra e no País de Gales frequentava outros serviços religiosos diversos da Igreja estabelecida. Este extraordinário triunfo das seitas foi o principal resultado do desenvolvimento religioso desde 1790, ou mais precisamente desde os últimos anos das guerras napoleônicas. Assim, em 1790, os metodistas wesleyanos tinham somente 59.000 membros comungantes no Reino Unido, em 1850, eles e suas várias ramificações tinham cerca de dez vezes mais este número.7 Nos Estados Unidos, um processo muito semelhante de conversão em massa multiplicou o número de batistas, metodistas e presbiterianos (estes últimos um pouco menos) sob as relativas expensas das antigas igrejas dominantes; por volta de 1850, quase três quartos de todas as igrejas nos Estados Unidos pertenciam a estas três denominações.8 O rompimento das igrejas estabelecidas, a secessão e a ascensão das seitas também marcam a história religiosa deste período na Escócia (o “Grande Rompimento” de 1843), na Holanda, na Noruega e em outros países.

As razões para os limites sociais e geográficos do sectarismo protestante são evidentes. Os países católicos romanos não aceitavam o estabelecimento público de seitas. Neles, o equivalente rompimento com a igreja estabelecida ou com a religião dominante tomava melhor a forma de uma descristianização em massa (especialmente entre os homens) do que um cisma.c (Reciprocamente, o anticlericalismo protestante dos países anglo-saxônicos era, constantemente, a contrapartida do anticlericalismo ateu dos países do continente europeu.) O renascimento religioso tendia a tomar a forma de algum novo culto emocional, de algum santo milagreiro ou de uma peregrinação dentro da estrutura aceita pela religião católica romana. Um ou dois destes santos de nosso período chegaram a ter maior importância, como o Curé d’Ars (1786-1859) na França. O cristianismo ortodoxo da Europa oriental se prestava com mais facilidade ao sectarismo, e na Rússia, o crescente rompimento da sociedade retrógrada vinha, desde o final do século XVII, produzindo uma safra de seitas. Várias delas, em particular a autocastradora seita dos Skoptsi, a dos Doukhobors da Ucrânia e a dos Molokanos, foram produtos do fim do século XVIII e do período napoleônico; a seita dos “Velhos Crentes” data do século XVII. Entretanto, geralmente as classes às quais este sectarismo fazia o maior apelo — pequenos artesãos, comerciantes, fazendeiros e outros precursores da burguesia, ou conscientes revolucionários camponeses — ainda não eram numerosas o bastante para produzir um movimento de seitas de grandes proporções.

Nos países protestantes, a situação era diferente. Neles, o impacto da sociedade individualista e comercial era mais forte (pelo menos na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos), e a tradição sectarista já estava bem estabelecida. Sua exclusividade e insistência na comunicação individual entre o homem e Deus, bem como sua austeridade moral, tornavam-na atraente para os empresários e pequenos comerciantes em ascensão. Sua sombria e implacável teologia do inferno e da maldição e de uma austera salvação pessoal tornavam-na atraente também para homens que levavam vidas difíceis em um meio ambiente muito duro: para o homem das fronteiras e o pescador, para os pequenos cultivadores e os mineiros e para os explorados artesãos. A seita podia facilmente se transformar em uma assembleia igualitária e democrática de fiéis sem hierarquia religiosa ou social, e assim atraía o homem comum. Sua hostilidade ao elaborado ritual e à doutrinação erudita encorajava a profecia e a pregação de caráter amadorista. A persistente tradição do milenarismo se prestava a uma expressão primitiva de rebeldia social. Finalmente, sua associação com a emocionante e subjugadora “conversão” pessoal abriu caminho para uma “restauração” religiosa massiva de intensidade histórica, na qual os homens e as mulheres poderiam encontrar um bem-vindo relaxamento das tensões de uma sociedade que não proporcionava outras saídas equivalentes para as emoções das massas, e destruía as que tinham existido no passado.

O “despertar religioso” fez muito em prol da propagação das seitas. Assim, o salvacionismo pessoal de John Wesley (1703-1791) e de seus metodistas intensamente irracionalista e emotivo deu ímpeto para o renascimento e a expansão da dissidência protestante, pelo menos na Grã-Bretanha. Por esta razão, as novas seitas e tendências foram inicialmente apolíticas ou, até mesmo (como no caso das seitas wesleyanas metodistas) fortemente conservadoras, pois se afastavam do maléfico mundo exterior em busca da salvação pessoal ou da existência de grupos autocontidos, que constantemente significava que rejeitavam a possibilidade de qualquer alteração coletiva de suas condições seculares. Suas energias “políticas”, em geral, eram dirigidas para as campanhas morais e religiosas, como as que multiplicaram as missões estrangeiras, o antiescravagismo e as agitações em prol da moderação dos costumes. Os seguidores de seitas politicamente ativas e radicais no período das revoluções francesa e americana pertenciam antes às mais antigas, rígidas e tranquilas comunidades puritanas que tinham sobrevivido desde o século XVII, estagnadas ou, até mesmo, evoluindo em direção a um deísmo intelectualista sob a influência do racionalismo do século XVIII: os presbiterianos, os congregacionistas, os unitaristas e os quakers. O novo tipo metodista de seita era antirrevolucionário, e a imunidade da Grã-Bretanha à revolução em nosso período tem sido mesmo atribuída — erroneamente — a sua crescente influência.

Entretanto, o caráter social das novas seitas combatia sua retirada teológica do mundo. Elas se disseminavam mais prontamente entre os que ficavam entre os ricos e os poderosos de um lado e as massas da tradicional sociedade do outro: isto é, entre os que estavam a ponto de galgar os escalões da classe média ou de cair em um novo proletariado, e entre a massa indiscriminada de homens independentes e modestos. A orientação política fundamental de todas estas seitas inclinava-se em direção ao radicalismo jeffersoniano ou jacobino ou, pelo menos, em direção a um liberalismo moderado de classe média. O “não conformismo” na Grã-Bretanha, as igrejas protestantes que predominavam nos Estados Unidos tendiam, portanto, a ocupar um lugar entre as forças políticas de esquerda, embora entre os metodistas britânicos o “torysmo” de seu fundador só fosse ultrapassado no curso de 50 anos de secessões e crises internas que terminaria em 1848.

Somente entre os muito pobres, ou entre os muito abalados, é que a rejeição original ao mundo existente continuou. Mas era muitas vezes uma primitiva rejeição revolucionária, que tomava a forma de uma predição milenar do fim do mundo, e que as aflições do período pós-napoleônico pareciam (em linha com o Apocalipse) antecipar. William Miller, fundador dos adventistas do sétimo dia nos Estados Unidos, predisse-o para 1843 e 1844, época em que já contava com 50 mil seguidores e com o respaldo de 3 mil pregadores. Nas áreas em que o pequeno comércio e o pequeno trabalho camponês individual se achavam sob o impacto imediato do crescimento de uma dinâmica economia capitalista, como no estado de Nova York, este fermento milenar era particularmente poderoso. Seu mais dramático produto foi a seita dos santos dos últimos dias (os mórmons), fundada pelo profeta Joseph Smith, que recebeu sua revelação próxima a Palmyra, Nova York, na década de 1820, e conduziu seu povo em êxodo para algum Sião remoto e que eventualmente o levou aos desertos de Utah.

Também havia grupos entre os quais a histeria coletiva das massas nas reuniões de despertar religioso fazia o maior apelo, tanto porque aliviava a dureza e monotonia de suas vidas (“quando não se oferece nenhuma outra diversão, o despertar religioso por vezes assumirá este papel”, observou uma senhora a respeito das moças nas fábricas de Essex)9 como porque sua união religiosa coletiva criava uma comunidade temporária de indivíduos desesperados. Em sua forma moderna, esse despertar religioso foi o produto da fronteira americana. “O Grande-Alvorecer” começou em torno de 1800 nas montanhas Apalaches com gigantescas “reuniões campais” — a de Kane Ridge, Kentucky (1801) reuniu cerca de 10 ou 20.000 pessoas sob o comando de 40 pregadores — e um grau de histeria orgiástica difícil de ser concebida: homens e mulheres “sacudiam-se”, dançavam até a exaustão, milhares entravam em transe, “falavam ‘com espíritos’” “ou então latiam como cães. Um local remoto, um ambiente social e natural áspero, ou uma combinação de tudo isso, encorajavam aquele despertar que pregadores ambulantes importaram para a Europa, produzindo, assim, uma secessão democrático-proletária nos wesleyanos (os chamados metodistas primitivos) depois de 1808, que se estendeu e se disseminou particularmente entre os mineiros do norte da Inglaterra e entre os pequenos fazendeiros das montanhas, entre os pescadores do Mar do Norte, os empregados agrícolas e os oprimidos trabalhadores domésticos das suarentas indústrias da Inglaterra central. Estes ataques de histeria religiosa ocorreram periodicamente durante todo o nosso período — no sul do País de Gales, eclodiram em 1807-1809, 1828-1830, 1839-1842, 1849 e 185910 e representaram o maior aumento nas forças numéricas das seitas. Eles não podem ser atribuídos a qualquer simples causa precipitadora. Alguns coincidiram com períodos de violenta tensão e intranquilidade (todas as épocas de ultrarrápida expansão wesleyana em nosso período coincidiram com estas violentas tensões e agitações, exceto uma), outros, com a rápida recuperação que se seguia a uma depressão, e, ocasionalmente, foram precipitados por calamidades sociais como a epidemia de cólera, que ocasionou fenômenos religiosos análogos em outros países cristãos.

3

Em termos puramente religiosos, portanto, nosso período foi de uma crescente secularização e de indiferença religiosa (na Europa), combatidas pelo despertar da religião em suas formas mais intransigentes, irracionais e emocionalmente compulsivas. Se Tom Paine está em um dos extremos, no outro se encontra o adventista William Miller. O materialismo mecânico francamente ateu do filósofo alemão Feuerbach (1804-1872), na década 1830 se confrontava com os jovens anti-intelectualistas do “Movimento de Oxford”, que defendiam a literal exatidão das vidas dos santos medievais.

Mas este retorno à religião militante, literal e ultrapassada tinha três aspectos. Para as massas, era, principalmente, um método de luta contra a sociedade cada vez mais fria, desumana e tirânica do liberalismo da classe média: segundo Marx (mas ele não foi o único a usar tais palavras), era “o coração de um mundo sem coração, como é o espírito de um mundo sem espírito... o ópio do povo”.11 Mais do que isto: era uma tentativa de criar instituições políticas, sociais e educacionais em um ambiente que não proporcionava nenhuma delas, e um meio de dar às pessoas pouco desenvolvidas politicamente uma expressão primitiva de seus descontentamentos e aspirações. Seu literalismo, emocionalismo e superstição tanto protestavam contra toda uma sociedade em que dominava o cálculo racional, como contra as classes superiores que deformavam a religião em sua própria imagem.

Para as classes médias vindas das massas, a religião podia ser um amparo moral poderoso, uma justificativa para sua existência social contra o desprezo e o ódio da sociedade tradicional, e um mecanismo de sua expansão. Quando sectaristas, a religião os libertava dos grilhões daquela sociedade. Dava a seus lucros um título moral maior do que o do mero interesse próprio racional; legitimava sua aspereza em relação aos oprimidos; unia-os ao comércio que proporcionava civilização aos pagãos, e vendas a seus produtos.

A religião fornecia estabilidade social para as monarquias e aristocracias, e de fato para todos os que se encontravam no alto da pirâmide. Tinham aprendido com a Revolução Francesa que a Igreja era o mais forte amparo do trono. Os povos analfabetos e devotos, como os do sul da Itália, os espanhóis, os tiroleses e os russos tinham-se lançado às armas para defender sua Igreja e seu governante contra os estrangeiros, os infiéis e os revolucionários, abençoados e, em alguns casos, liderados por seus sacerdotes. Os povos analfabetos e religiosos viveriam contentes na pobreza para a qual Deus os havia conclamado, sob a liderança de governantes que lhes foram dados pela Divina Providência, de maneira simples, digna e ordenadamente e imunes aos efeitos subversivos da razão. Para os governos conservadores depois de 1815 — e que governos da Europa continental não o eram? — o encorajamento dos sentimentos religiosos e das Igrejas era uma parte tão indispensável da política quanto a organização da política e da censura: o sacerdote, o policial e o censor eram agora os três principais apoios da reação contra a revolução.

Para a maioria dos governos estabelecidos, bastava que o jacobinismo ameaçasse os tronos e as Igrejas os preservassem. Entretanto, para um grupo de intelectuais e ideólogos românticos, a aliança entre o trono e o altar tinha um significado mais profundo: o de preservar uma velha sociedade viva e orgânica contra a corrosão da razão e o liberalismo; o indivíduo encontrava nesta aliança uma expressão mais adequada de sua trágica condição do que em qualquer solução formulada pelos racionalistas. Na França e na Inglaterra, estas justificativas da aliança entre o trono e o altar não tiveram grande importância política, nem tampouco a busca romântica de uma religião pessoal e trágica. (O mais importante explorador destas profundezas do coração humano, o dinamarquês Sören Kierkegaard, 1813-1855, era oriundo de um pequeno país e atraiu muito pouca atenção de seus contemporâneos: sua fama é totalmente póstuma.) Entretanto, nos Estados alemães e na Rússia, os intelectuais romântico-reacionários, bastiões da reação monarquista, tiveram seu papel na política como servidores civis, redatores de manifestos e de programas, e inclusive como conselheiros pessoais onde os monarcas tendiam ao desequilíbrio mental (como Alexandre I, da Rússia, e Frederico Guilherme IV, da Prússia). Em conjunto, entretanto, os Friedrich Gentz e os Adam Mueller eram figuras de menor vulto, e seu medievalismo religioso (do qual o próprio Metternich desconfiava) era simplesmente uma fachada tradicionalista para dissimular os policiais e os censores em quem os reis confiavam. A força da Santa Aliança da Rússia, Áustria e Prússia, destinada a manter a ordem na Europa depois de 1815, baseava-se não em sua aparência de cruzada mística, mas na sua decisão de abolir todo e qualquer movimento subversivo pelas armas russas, prussianas e austríacas. Além do mais, os governos genuinamente conservadores se inclinavam a desconfiar de todos os intelectuais e ideólogos, até dos que eram reacionários, pois, uma vez aceito o princípio do raciocínio em vez da obediência, o fim estaria próximo. Conforme escreveu Friedrich Gentz (secretário de Metternich) a Adam Mueller, em 1819:

Continuo a defender esta proposição: “ fim de que a imprensa não possa abusar, nada será impresso nos próximos anos.” Se este princípio viesse a ser aplicado como uma regra obrigatória, sendo as raríssimas exceções autorizadas por um Tribunal claramente superior, dentro em breve estaríamos voltando a Deus e à Verdade.12

E ainda assim, se os ideólogos antiliberais tiveram pequena importância política, sua fuga dos horrores do liberalismo em direção a um passado orgânico e verdadeiramente religioso teve considerável interesse para a religião, já que produziu um marcante despertar do catolicismo romano entre os jovens sensíveis das classes superiores. Pois não havia sido o próprio protestantismo o precursor direto do individualismo, do racionalismo e do liberalismo? Se uma sociedade verdadeiramente religiosa viesse curar sozinha a doença do século XIX, não seria ela a única sociedade verdadeiramente cristã da Idade Média católica?d Como de costume, Gentz expressou a atração do catolicismo com uma clareza inadequada ao assunto:

O protestantismo é a primeira, a verdadeira e a única fonte de todos os grandes males que nos fazem gemer hoje em dia. Se tivesse simplesmente se limitado ao raciocínio, poderíamos ter sido capazes e obrigados a tolerá-lo, pois há na natureza humana uma tendência enraizada à discussão. Entretanto, já que os governos concordam em aceitar o protestantismo como uma forma permitida de religião, como uma expressão do cristianismo, como um direito do homem; já que eles (...) garantiram-lhe um lugar ao lado do Estado, ou mesmo sobre suas ruínas, a única igreja verdadeira, a ordem política, moral e religiosa do mundo foi imediatamente dissolvida. (...) Toda a Revolução Francesa, e a ainda pior revolução que está para eclodir na Alemanha, nasceram desta mesma fonte.13

Assim, grupos de jovens exaltados fugiam dos horrores do intelecto em direção aos hospitaleiros braços de Roma, e abraçavam o celibato, as torturas do ascetismo, os escritos dos padres, ou simplesmente o ritual caloroso e esteticamente satisfatório da Igreja com uma apaixonada entrega. Em sua maioria, eram provenientes, como era de se esperar, de países protestantes: os românticos alemães eram em geral prussianos. O “Movimento de Oxford” da década de 1830 é o fenômeno mais conhecido deste tipo para o leitor anglo-saxônico, embora seja caracteristicamente britânico, visto que só alguns dos jovens fanáticos que assim expressavam o espírito da mais obscurantista e reacionária das universidades, de fato, se uniram à Igreja Romana, notadamente o talentoso J. H. Newman (1801-1890). Os demais encontraram uma posição intermediária na qualidade de “ritualistas” dentro da Igreja Anglicana, que eles diziam ser a verdadeira Igreja Católica, e tentaram, para o horror dos eclesiásticos, adorná-la com paramentos, incenso e outras abominações papais. Os convertidos eram um enigma para as famílias nobres tradicionalmente católicas, que encaravam sua religião como um distintivo familiar, e para a massa de trabalhadores irlandeses imigrantes que formavam a maior parte do catolicismo britânico; o nobre zelo destes convertidos também não era totalmente apreciado pelos funcionários eclesiásticos do Vaticano, realistas e cautelosos. Mas já que eram de excelentes famílias, e a conversão das classes superiores bem poderia anunciar a conversão das classes inferiores, foram bem recebidos como um sinal estimulante do poder de conquista da Igreja.

Ainda assim, mesmo dentro da religião organizada — ao menos dentro da católica romana, da protestante e da judaica — agiam os sapadores e minadores do liberalismo. Na Igreja Romana, seu principal campo de ação era a França, e sua figura mais importante, Hugues-Felicité-Robert de Lamennais (1782-1854), que caminhou sucessivamente desde o conservadorismo romântico até uma idealização revolucionária do povo, o que o conduziu para perto do socialismo. Sua obra Paroles d’un Croyant (1834) criou tumulto no seio dos governos, que não esperavam uma punhalada pelas costas com uma arma tão digna de confiança para a preservação do status quo, quanto o catolicismo. Seu autor não demorou a ser condenado por Roma. O catolicismo liberal, entretanto, sobreviveu na França, um país sempre receptivo às tendências eclesiásticas que estivessem em pequeno desacordo com a Igreja de Roma. Também na Itália, a poderosa corrente revolucionária das décadas de 1830 e 1840 arrebanhou para suas fileiras alguns pensadores católicos, como Rosmini e Gioberti (1801-1852), paladino de uma Itália liberal unificada pelo papa. Entretanto, o corpo principal da Igreja era cada vez mais militantemente antiliberal.

As minorias e seitas protestantes estavam naturalmente mais próximas do liberalismo, sobretudo em termos políticos: ser huguenote francês equivalia a ser um liberal moderno. (Guizot, o primeiro-ministro de Luís Felipe, foi um deles.) As igrejas estatais protestantes, como a anglicana e a luterana, eram politicamente mais conservadoras, mas suas teologias eram talvez menos resistentes à corrosão da erudição bíblica e da investigação racionalista. Os judeus, naturalmente, estavam expostos a toda a força da corrente liberal. Afinal de contas, eles deviam sua emancipação política e social inteiramente a ela. A assimilação cultural era o objetivo de todos os judeus emancipados. Os mais extremistas dentre os emancipados abandonaram sua antiga religião em favor do cristianismo ou do agnosticismo, como o pai de Karl Marx ou o poeta Heinrich Heine (que, entretanto, descobriu que os judeus nunca deixam de ser judeus; ao menos para o mundo exterior, embora deixem de frequentar a sinagoga). Os menos extremistas desenvolveram uma atenuada forma liberal de judaísmo. Somente nos obscuros guetos orientais o Tora e o Talmude continuaram dominando a vida virtualmente inalterada das pequenas cidades.