Sumário: 3.1. Introdução. 3.2. Aspecto legal. 3.3. Sindicalismo médico. 3.4. Medicina-empresa. 3.5. Especialismo médico. 3.6. Socialização da Medicina. 3.7. Valorização do Sistema Unificado de Saúde (SUS). 3.8. Medicina de fábrica. 3.9. Medicina de grupo. 3.10. A greve e a ética. 3.11. Auditoria médica. 3.12. Junta médica. 3.13. Direito de internar e atender. 3.14. O Código do Consumidor e o exercício da Medicina: 3.14.1. A responsabilidade civil do médico; 3.14.2. O ato médico como prática abusiva; 3.14.3. Os planos de saúde e as cláusulas abusivas. 3.15. O médico e o Estatuto da Criança e do Adolescente. 3.16. O médico e o meio ambiente: 3.16.1. O direito à sanidade; 3.16.2. O direito ao meio ambiente saudável. 3.17. As cooperativas médicas e a dupla militância. 3.18. Managed care. 3.19. Medicina baseada em evidências. 3.20. Os riscos da medicina preditiva: 3.21.1. Intimidade genética. 3.22. Saúde e liberdade. 3.22. Segunda opinião. 3.23. Por uma medicina política. 3.24. Violação do direito à saúde. 3.25. Programa Saúde da Família. 3.26. A evolução social do médico no Brasil. 3.27. Serviço médico obrigatório. 3.28. Referências bibliográficas.
Constituição Federal
Art. 5.º Todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: “(...) XIII – É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
Código Penal
Art. 146. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa. (...).
§ 3º Não se compreende na disposição deste artigo:
– a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida; (...).
Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...); VI – executar serviços sem a prévia elaboração e autorização expressa do consumidor, ressalvadas as decorrentes de práticas anteriores entre as partes; (...).
Capítulo II
DIREITOS DOS MÉDICOS
É direito do médico:
I – Exercer a Medicina sem ser discriminado por questões de religião, etnia, sexo, nacionalidade, cor, orientação sexual, idade, condição social, opinião política ou de qualquer outra natureza.
II – Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente.
III – Apontar falhas em normas, contratos e práticas internas das instituições em que trabalhe quando as julgar indignas do exercício da profissão ou prejudiciais a si mesmo, ao paciente ou a terceiros, devendo dirigir-se, nesses casos, aos órgãos competentes e, obrigatoriamente, à comissão de ética e ao Conselho Regional de Medicina de sua jurisdição.
IV – Recusar-se a exercer sua profissão em instituição pública ou privada onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar a própria saúde ou a do paciente, bem como a dos demais profissionais. Nesse caso, comunicará imediatamente sua decisão à comissão de ética e ao Conselho Regional de Medicina.
V – Suspender suas atividades, individualmente ou coletivamente, quando a instituição pública ou privada para a qual trabalhe não oferecer condições adequadas para o exercício profissional ou não o remunerar digna e justamente, ressalvadas as situações de urgência e emergência, devendo comunicar imediatamente sua decisão ao Conselho Regional de Medicina.
VI – Internar e assistir seus pacientes em hospitais privados e públicos com caráter filantrópico ou não, ainda que não faça parte do seu corpo clínico, respeitadas as normas técnicas aprovadas pelo Conselho Regional de Medicina da pertinente jurisdição.
VII – Requerer desagravo público ao Conselho Regional de Medicina quando atingido no exercício de sua profissão.
VIII – Decidir, em qualquer circunstância, levando em consideração sua experiência e capacidade profissionais, o tempo a ser dedicado ao paciente, evitando que o acúmulo de encargos ou de consultas venha a prejudicá-lo.
IX – Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.
X– Estabelecer seus honorários de forma justa e digna.
Entende-se por liberalismo médico um conjunto de ideias e princípios professados pelos profissionais liberais da Medicina. As profissões, em geral, têm como fundamento maior a liberdade no exercício de suas atividades, como forma de valorização da personalidade e da cidadania, dentro de uma compatibilidade com a ordem jurídico-social. Assim, a lei outorga o pleno exercício profissional em tudo aquilo que ela admite como lícito e necessário.
Não se pode negar que o sistema vigente, entre outras coisas, além de contar com um número maior de especialistas, criou as instituições oficiais que ameaçam os velhos padrões do exercício liberal médico.
O desaparecimento progressivo da medicina privada e a criação do modelo médico de caráter mutualista vêm modificando o aspecto liberal da profissão. O médico de família vai sendo substituído pelo técnico altamente especializado que trabalha para as instituições do governo ou em sistema de cooperativismo. Mesmo assim, dentro da estrutura estatal, o médico continua sendo o elemento fundamental desse sistema; pois, qualquer que seja a modalidade de trabalho ou tipo de empregador, a exigência é sempre a mesma: boas qualidades técnicas, morais e científicas.
Há quem afirme que a próxima geração de médicos estaria totalmente comprometida com uma organização tão complexa, que a única forma de proteção seria a sindicalização maciça, como maneira de unir todos os interesses no sentido de reivindicar seus direitos mais justos e inalienáveis.
Mesmo que a profissão médica seja modificada pelas mudanças socioeconômicas da hora atual, e o médico transformado em funcionário assalariado, teoricamente a medicina jamais perderá seu enfoque liberal. Seja qual for o caminho que vá percorrer a ciência hipocrática no futuro, nunca se deverá deixar que ela se equipare a uma empresa, mas numa profissão nobilíssima e de fundamental interesse.
Por outro lado, achamos que a medicina voltará a ter, mesmo em menor proporção, as antigas características liberais, pois a pseudossocialização, uniformizando no pior sentido os atendimentos, faz com que haja uma fuga dos serviços estatais para os consultórios particulares ou para a assistência de convênio. Antes era apenas uma pequena fração da comunidade que desfrutava dos benefícios da Previdência Social, mas hoje, ainda que de forma desorganizada e aleatória, gozam dessa assistência todos os brasileiros, através do Sistema Unificado de Saúde.
Por isso, repetimos, a medicina liberal continuará não por ser melhor, mas devido à falta de estrutura da medicina estatal, a qual se propõe, tão somente, alcançar as camadas mais desassistidas da classe proletária e os procedimentos primários.
O artigo 5.º, item XIII, da Constituição Federal, diz que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer”. É claro que essa liberdade não pode atentar contra os interesses da comunidade.
Nenhuma lei é específica no sentido de obrigar o médico ao atendimento de um paciente, a não ser que ele esteja preso por um contrato, expresso ou tácito, iniciado por uma prestação de serviços, o que torna esse vínculo uma verdadeira obrigação, que poderá, no entanto, ser extinta pela vontade das partes ou por motivo de força maior. Ou nos casos de urgência.
Afirmava Lacassagne: “Em princípio, é inteiramente livre o exercício da medicina. O médico pode recusar seu ministério, e sua recusa peremptória não tem necessidade de ser justificada por motivos graves e legítimos. O exercício da medicina é, em geral, puramente voluntário” (Précis de Médecine Légale. Trad. do A., Paris: Librairie J. B. Baillière et fils, 1908).
Hoje, todos são unânimes em aceitar o princípio da liberdade relativa, pois a profissão médica, entre outras, traz em si elevados interesses individuais e coletivos, ligados à pessoa humana. Deste modo, nem sempre é absolutamente livre o exercício da profissão médica, pois, além de ser do interesse público essa forma de mister, em face de existir em si o bem-estar de todos e de cada um, ainda é do próprio interesse coletivo que se possam, em certas ocasiões, impor algumas restrições a uma liberdade que se contrapõe à ordem pública e à paz social.
Mesmo assim, o exercício profissional da medicina constitui-se numa prática livre, e ainda que o médico não atenda um paciente em estado grave, com perigo de vida, não será ele punido em virtude da alegação do não atendimento como profissional. O que a lei pune, nessas circunstâncias, é a omissão de socorro, pois o texto penal, afastando-se da repressão ao crime, passa a disciplinar coativamente a solidariedade que deve existir entre os homens, numa maneira de assegurar os valores individuais e sociais. Impõe-se essa norma de solidariedade humana não apenas aos médicos, mas a todas as pessoas que possam prestar uma assistência a alguém que se encontre na iminência de sofrer qualquer dano grave.
De uma forma geral, define-se sindicato como uma associação formada por profissionais de uma mesma categoria, tendo como finalidade a defesa dos interesses econômicos e políticos comuns a todos os seus filiados.
Os que defendem o sindicalismo apontam como exemplo a União dos Sindicatos da França que, entre outras coisas, já conseguiu: a) a livre escolha do médico para o acidente de trabalho; b) que o sindicato seja o árbitro nas discussões de honorários; c) proposta e tabelas de aumento de honorários e vencimentos; d) árbitro em causas difíceis de responsabilidade e deontologia médica; e) lutar contra o exercício ilegal da medicina; f) assistência jurídica; g) a sociedade de previsão e seguros mútuos – veículo de fomentação do espírito de solidariedade e assistência recíproca entre os médicos; h) o estímulo à produção científica.
Nem sempre, no entanto, são unânimes as opiniões quanto ao sindicalismo médico. Os que se manifestam contrários a essa ideia afirmam que a sindicalização é uma autorrenúncia à posição social e individual de que desfruta o médico na sociedade. Além disso, há o perigo de se criar um ambiente propício às pugnas de uma política classista, pois o fundamento de todas essas agremiações é justamente o de adquirir certas vantagens materiais e sociais através da influência que possam exercer.
Os que são favoráveis argumentam que essa faculdade é um direito líquido e certo a que fazem jus todos os profissionais, liberais ou obreiros. Constitui uma maneira de manter a unidade da classe em torno de suas mais justas reivindicações. É um dispositivo legal que ampara todos os grupos humanos que atuam numa atividade similar.
E, finalmente, há aqueles que apontam vantagens e desvantagens no sistema da sindicalização.
Nossa opinião é que as Sociedades de Medicina deveriam se voltar mais para os interesses imediatos do médico como profissional, velando pela sua defesa e decoro.
É certo que as Sociedades existem, mas têm se preocupado somente com o aspecto cultural, científico e ético da classe médica, desinteressando-se pelo problema econômico de seus associados, deixando-os à mercê da própria sorte.
Hoje, os Sindicatos Médicos representam um marco indiscutível na vida política e social do médico brasileiro, e muitas de suas reivindicações já se apresentam como conquistas da categoria, no momento em que outras entidades médicas tornam-se cada vez mais omissas e inoperantes.
As mudanças foram tão rápidas, e tantas são as inovações de ordem científica e tecnológica, que o médico ainda não pôde se aperceber da realidade em que vive.
A Medicina, de uma atividade quase meramente liberal, exercida de forma íntima e solitária, passou a se organizar de acordo com as necessidades impostas pelas exigências de uma época, sacudida e atordoada pelo vertiginoso desenvolvimento dos dias atuais.
Mesmo que o médico tenha diante de si grandes recursos materiais e uma tecnologia sofisticada, sente ele que a relação médico-paciente, a par de tudo, está cada vez mais desgastada.
Por que o médico de antigamente, quase sem nenhum recurso, era menos contestado que o médico atual? Muitas são as razões apontadas: a morte do médico de família, transferindo seus pacientes a técnicos impessoais e desconhecidos; o homem em si, mesmo dispondo das formidáveis conquistas materiais, é mais contestador e menos feliz, mais ambicioso e menos fraterno; o descompasso entre a Técnica e a Ética; o despreparo de alguns, tão óbvio que o mais desavisado não deixa passar sem reparo; o mercantilismo, entendido por alguém como uma maneira de sobreviver, ante uma situação econômico-financeira cada vez mais grave e mais constrangedora; a socialização médica que, exercida como vem sendo, por uma minoria, despersonaliza o médico e o paciente, colocando a Instituição contra um e contra outro; o desaparecimento paulatino da medicina liberal, entre outras.
Nem a Medicina Socializada é sinônimo de burocratização médica, nem a Medicina Liberal é o mesmo que Medicina Humanística. A boa medicina está no homem que é o médico, nos meios de que ele dispõe e na organização dos serviços de saúde.
O certo é que o médico dificilmente pode sobreviver isolado, a não ser o médico “de roça”, despreparado, pobre, sem ambição, confidente e confessor, pai e amigo. Esse médico agoniza como muitos dos seus doentes, à luz trêmula e mortiça de uma vela, como a iluminar um caminho desconhecido e obscuro.
O médico das cidades de grande e médio portes já não pode sobreviver liberalmente. Ou se agrega às instituições estatais ou paraestatais, ou serve de “bagrinho” às empresas médicas privadas, cada dia mais proliferantes, cada dia mais opulentas. E já surgem as multinacionais de serviços médicos, segurando a saúde em qualquer canto do mundo em que alguém possa estar.
Tem o médico total responsabilidade por tudo isso? Não. A Medicina empresarial não foi criada por ele. Criou-a o próprio sistema.
O limite do ter é inesgotável. Tudo pode ser fonte de riqueza e essa riqueza pode ser multiplicada muitas vezes. A própria doença passou a ser uma dessas fontes e, assim, surgem os empresários médicos, cuja matéria-prima é simplesmente a doença.
O paciente e as próprias instituições locadoras de serviços passaram a ver nesses complexos empresariais, de equipamentos sofisticados e de tecnologia avançada, uma forma melhor de atendimento, incapaz, segundo eles, de ser executada pelo médico de consultório.
Antigamente bastava o médico colocar a mão sobre o peito do paciente e dizer-lhe que tudo ia bem. Hoje, no entanto, sua afirmação é objeto de prova.
A medicina sanitária foi esquecida. Ampliou-se exageradamente a medicina curativa a toda a população, sem um esquema, sem uma planificação. Essa forma de medicina não conhece os limites da medicalização da vida.
Não se pode omitir que muito dos grandes male começam a desaparecer, como a malária, a peste e a febre tifoide. Mesmo que proliferem, dia a dia, os meios tecnológicos e farmacêuticos, não se conseguirá reduzir a morbidade global nem controlar a epidemia iatrogênica, ambas ameaçadoras e graves. Por mais paradoxal que possa parecer, a Medicina é exercida, cada vez mais, em piores condições e o relacionamento médico-paciente é cada vez mais dificultoso e trágico.
Esse fenômeno não é local, mas universal. Em qualquer sistema econômico ou político o problema é o mesmo. E não se diga que o médico é culpado por esse estado de coisas, nem a Medicina pode ser vista como responsável, mas, lamentavelmente, como instrumento e vítima de uma realidade que, mesmo não aceitando, todos estão impelidos a acatar.
Já se disse com muita propriedade que, assim como o humilde farmacêutico que manipulava as fórmulas médicas, o simpático guarda-livros e o lírico comerciante de bairro foram substituídos, respectivamente, pelos poderosos complexos industriais farmacêuticos, pelos requintados escritórios de auditoria e planejamento e pelos majestosos supermercados – numa luta impiedosa e desigual, na tentativa da conquista dos mercados –, a Medicina também não está conseguindo livrar-se desse fatalismo.
Por incrível que pareça, no momento atual, é a Medicina a instituição mais visada. O monstro das demandas judiciais ameaça o exercício médico, e os tribunais não se cansam de adotar atitudes cada vez mais severas contra o médico. Em certos climas, muitos foram os profissionais que abandonaram a atividade médica, fugindo das extorsivas taxas de seguros.
Por outro lado, os notáveis êxitos médicos são diluídos no esquecimento. Uma suposta omissão de socorro ou uma pretensa negligência médica são motivos de alarde para que uma determinada forma de imprensa, sensacionalista e sem escrúpulos, procure atingir fundamente a respeitabilidade profissional, desgastando o tabu da reverência e destruindo o frêmito da sensibilidade hipocrática, da maneira mais lamentável e cruel.
O médico, por sua vez, o pobre médico isolado e esquecido, de dois empregos e automóvel à prestação, não pode ser responsável por um estado de coisas que ele não criou, para o qual não foi consultado, e para o qual não concorreu. Esse médico não vai poder sobreviver com dignidade ou com as mínimas condições de subsistência. Terá de ser fatalmente atraído e esmagado pelas engrenagens das grandes Empresas Médicas, gananciosas e desumanas, ávidas de mão de obra barata e de lucros formidáveis.
É claro que o espírito empresarial não resiste à sedução de um maior lucro, indo refletir sobre a remuneração do profissional, e, inevitavelmente, os resultados seriam uma crise na qualidade e na produtividade do trabalho médico.
Todo médico consciente sabe que o ideal seria exercer sua profissão dentro do melhor nível técnico possível, embasada nos mais elementares princípios éticos que a tradição consagrou como úteis e imprescindíveis, e de uma forma em que a relação médico-paciente se processe da maneira mais pessoal e humana.
Não podemos negar que fomos surpreendidos e atordoados por uma série de acontecimentos e situações que nos chegaram demasiadamente rápidos. O futuro bateu inesperadamente em nossa porta.
Mesmo assim, acreditamos que a inteligência e o bom senso do homem abrirão caminhos para uma solução mais viável e mais equitativa.
Trabalhe-se junto às populações médicas, no sentido de conscientizá-las de seu real valor, resistindo a certos acenos, a fim de resguardarem sua dignidade e a real necessidade do paciente.
Corrijam-se as injustiças da distribuição desigual, através da institucionalização do sistema médico-assistencial, da melhor assistência ambulatorial e do credenciamento pessoal. Prove-se que a livre escolha, tal qual vem sendo defendida por alguns, outra coisa não reflete senão os interesses de prestadores de serviços médicos, a facilidade dos desvios éticos e o aviltamento pelo regime de pagamento por unidade de serviço ou por procedimentos médicos.
Desestimulem-se os contratos globais com as grandes Empresas Médicas, captadoras da grande clientela, por meio do internamento justo e necessário, e pela enfatização do tratamento ambulatorial – saneador e selecionador dos internamentos injustificáveis.
Crie-se uma classe médica de fato, sustentada nos princípios do liberalismo e amparada na solidariedade, e não “grupos” isolados de profissionais da medicina que só se reúnem quando o interesse de cada um está em jogo.
Defendam-se, por todos os meios, as instituições públicas, cujo espírito é o mais nobre e o mais puro, mas, desgraçadamente, desacreditadas e insultadas por uma minoria que, mesmo sendo a mais beneficiada, não se furta a criticar e denegrir. Nossa infidelidade à Instituição à qual servimos foi o primeiro passo para comprometer a imagem do médico. Muitas das Unidades Estatais brasileiras ainda se mostram como exemplo de bom padrão médico-assistencial e científico.
Humanize-se a Medicina, fazendo dela um sacerdócio e não um comércio desacreditado. Somente uma consciência humanística e solidária poderá conduzir a Medicina e o médico pelos caminhos que encontrem o homem, não como unidade demográfica ou biológica, ou como objeto de reparos e manutenção, mas como a maior de todas as realidades sociais.
Não se pode, nos dias que correm, prescindir das especialidades médicas e dos especialistas. A partir de cinquenta anos atrás, verificou-se uma profunda modificação na ciência médica, determinando, entre outras coisas, a inclinação dos profissionais para uma especificada área de maior habilidade e vocação. E isso fez com que a medicina ganhasse maior prestígio, passando a sociedade a ver nesse fato uma atitude honesta e conveniente – a de uma pessoa procurar aperfeiçoar-se num certo ramo de sua profissão.
Por outro lado, não se pode negar que a especialização médica trouxe alguns inconvenientes, o que é perfeitamente natural em tudo que se transforma. Como exemplos, temos a concentração excessiva numa “parte”, quando o indivíduo em si é um todo; e em relação ao médico, tirou a especialização um pouco de sua condição de senhor, passando-o para a posição de subordinado, que recebe o paciente orientado e, muitas vezes, com a indicação daquilo que deve fazer. Todavia, o bom especialista é aquele que conhece profundamente a parte, mas não perde de vista o homem em sua totalidade. O paciente não pode ser transformado em “um caso”, como, por exemplo, de “um rim” ou de um “fígado”, pois é conceito universal e antigo que não se tem doenças, mas doentes. Portanto, um dos princípios fundamentais da medicina curativa é conhecer o doente.
Assim, o especialista autêntico não deve apenas conhecer profundamente determinados e restritos campos da atividade médica, mas ter o conhecimento mais amplo da ciência-mãe. Alguém poderia dizer que é se aprofundando que se chega ao saber. Entretanto, isso também significaria, na verdade, a restrição do conhecimento pleno. O velho Augusto Comte dizia que não existem departamentos estanques entre as ciências. E com muito mais razão podemos afirmá-lo em relação à Medicina.
Não se entenda que estamos criticando o especialista; pois, além de necessário, é ele decorrente de uma transformação evolutiva da ciência, pelo vertiginoso e crescente acervo de conhecimentos que surgem nos dias atuais. Mas não podemos esquecer que profundidade é sempre sinônimo de restrição. É indiscutível que a especialização traz em si uma grande força expansiva; no entanto, em seu interior, pode existir o gérmen da materialização e da insensibilidade. O fracasso de muitos especialistas é, exatamente, esquecer o indivíduo, pensando que podem solucionar os problemas de um órgão sem tomar conhecimento do homem que é portador desse órgão.
Geralmente, o que se chama de especialismo não é aprofundar-se em conhecimentos, nem tampouco escolher uma especialização, mas tão somente o descuido da cultura médica e humanística. Todas as profissões têm sua nobreza. Não existe melhor nem pior. Existem, sim, bons e maus profissionais. A Medicina, no entanto, é diferente, pois seu material de trabalho é o homem. Outras profissões trabalham com o homem, mas a nossa o faz no momento de maior perigo, de maior aflição e de maior desgraça.
Sendo assim, se o nosso material de trabalho é o homem, há necessidade de uma maior informação cultural, pois é isso que nos dará maior sensibilidade para entender a criatura humana, que não é apenas uma unidade biológica, mas uma realidade afetiva e sentimental.
Jamais poderíamos negar o valor da especialidade, pois é a ela que se devem, na atualidade, os maiores momentos e os rasgos mais espetaculares da Medicina. Porém, uma visão parcial, fragmentária e limitada, leva, inevitavelmente, a uma regressão de ordem espiritual e intelectual. Há certa forma de Medicina que, voltada metodicamente e por padrões a determinados males, dá ao paciente uma sensação de clichê.
O especialismo sem calor desumaniza a Medicina e o médico, e despersonaliza o paciente. O humanismo será sempre o corretivo das distorções da ciência médica, tornando-a menos material e consagrando-a na tradição de que sempre se revestiu.
A especialização é necessária, contudo não impede o conhecimento das humanidades clássicas, nem tampouco o conhecimento mais amplo da Medicina.
Ninguém pode negar, mesmo os mais radicais, que a Medicina Liberal está cedendo terreno à Medicina Socializada – consequência inevitável das necessidades dos Estados modernos, que colocam a vida e a saúde das pessoas como bens fundamentais, na tentativa de manter o equilíbrio social e a ordem pública.
É difícil, atualmente, o médico permanecer isolado num mundo cuja tendência é se organizar no plano coletivo. A solidariedade profissional e a soma dos recursos tecnológicos provam que essa integração de bens e valores ampara e protege, em sentido mais amplo, o paciente, sobretudo quando se procura estender essa assistência ao maior número possível de indivíduos, no objetivo de acudi-los nas necessidades mais prementes.
A inclinação socializante da Medicina é irreversível. Portanto, só nos resta tudo fazer em defesa da profissão, sob a égide do sistema que nos é apresentado, a fim de mantê-lo no mesmo respeito que sempre mereceu.
Nem Medicina Socializada é sinônimo de burocratização médica, nem Medicina Particular quer dizer Medicina humanista. A boa medicina está no homem, que é o médico, e nos meios de que ele pode dispor. Assim, a diferença capital entre uma e outra forma de exercício parece estar no facultativo, que tanto pode mercantilizar sua atividade no sistema privado como humanizar seu mister no sistema médico-social, ou vice-versa. É muito mais fácil, a nosso ver, praticar o mercenarismo no setor privado.
O ideal será adaptar a Medicina Socializada aos princípios liberais, evitando algumas distorções que a rigidez burocrática venha a impor-lhe.
O imperativo de se velar pela seguridade social não tem nenhuma inspiração político-ideológica. Muito pelo contrário, a seguridade social é utilizada em todos os regimes do mundo, inclusive nos países capitalistas. Socialismo e socialização são coisas distintas, sumamente distintas.
Não se pode dizer que o liberalismo clássico, pelo menos, venha a desaparecer da Medicina, no momento. Tornar-se-á ele, na verdade, mais raro. O desenvolvimento da produção e do consumo e a organização de cunho mais comunitário darão mais ênfase às aberturas sociais.
Nos Estados Unidos, sete de cada dez pessoas estão protegidas por seguros médico-cirúrgicos, cujo sistema requer mais reparo que o sistema previdenciário estatal, que não visa a lucros nem se coloca na posição de empresa. Se acreditamos na honestidade dos bens e serviços prestados por aquelas organizações particulares, mais forçados somos a acreditar na organização estatal, não só pelo seu desinteresse lucrativo, mas, e principalmente, pelas maiores condições e disponibilidades.
A Medicina Socializada tem um destino mais solidário, mais técnico e mais humanista, afastando a competição escusa e o egoísmo censurável.
Se a Medicina Liberal no Brasil está morrendo, não tem cabimento denunciar a existência de algo comprometedor, mas, simplesmente, uma premência de o paciente necessitar de novos exames complementares, utilização de aparelhagem sofisticada e técnicas sempre mais complicadas. Para o médico é difícil dispor de tudo isso isoladamente, e o paciente não tem condições de, por si próprio, responder a todas essas exigências.
Muitos creem existir apenas dois caminhos no futuro: a Medicina Socializada estatal e a Medicina Socializada privada. Analisando os prós e os contras das duas correntes, e admitindo as falhas e as virtudes de ambos os sistemas, haveremos de convir que é viável uma boa assistência através de uma aliança solidária dos dois métodos, sob a supervisão do Estado.
Bater-se pela Medicina Socializada ou Previdenciária, embora alguns achem que não tem a mesma significação, e afirmar que a Medicina Liberal está se esvaziando, não pode ser concebido como uma frustração, nem como uma ofensa à profissão, e muito menos como um desfavor ao médico.
Considerando-se que 90 por cento do custeio da assistência médica no país são realizados pelos órgãos estatais, é um argumento incontestável que essa foi a melhor fórmula de atender às nossas próprias necessidades.
É bem verdade que a Socialização da Medicina não é uma vara de condão capaz de resolver todos os problemas de saúde no Brasil; não obstante, é pelo menos o sistema mais exequível para uma situação para a qual não há qualquer outra receita, já que o sistema médico não deve ser diferente do sistema econômico em que ele está plantado.
Os defensores da iniciativa privada não podem combater tal sistema, visto que 80 por cento dos casos de maior urgência ou necessidade foram colocados nos leitos dos hospitais particulares credenciados como locadores de serviços médicos.
Que medicina estatizada é essa em que 80 por cento de seus serviços hospitalares são prestados pela rede nosocomial privada?
A Previdência Social sempre respeitou e incentivou a livre iniciativa, por isso seria uma injustiça dizer que o INAMPS tinha uma filosofia eminentemente estatizante. Cerca de 85% do orçamento da assistência médica era gasto todo ano com a assistência de unidades particulares mediante convênios.
Infelizmente, a socialização da Medicina ainda não alcançou um ideal preconizado, devido a três fatores que achamos basilares: a infidelidade de alguns de nós à Instituição, a falta de controle do órgão previdenciário na prestação de serviços por terceiros e a criação de uma elite burocrática.
Criticam-se as filas chamadas “desumanas” do SUS, que são filas de duas horas. Porém, não se criticam as filas dos consultórios dos grandes especialistas que são filas de seis meses.
Sabemos que os níveis de remuneração fixos do médico do setor público e o consequente achatamento salarial fazem-no um assalariado, cuja renda não é ainda compatível com as suas necessidades elementares. Sabemos, também, que a capacitação profissional é crescentemente dificultada pela burocracia tecnocrata imposta por outros órgãos do serviço público. Estamos cientes, outrossim, que, mesmo sendo o espírito da medicina estatal o mais meritório, a execução de alguns dos seus planos mostra-se, vez por outra, com limitações e defeitos, os quais não têm fugido da consciência dos administradores.
Todavia, não podemos esquecer que a socialização da Medicina é uma marcha irreversível. Destarte, cumpre-nos apenas criar condições dentro deste sistema, onde muitos dos princípios liberais da profissão possam influenciar um melhor rendimento, e encontrar razões de estímulo no importante mister que estamos destinados a exercer.
Não se pode negar o esforço da administração pública séria para modificar a imagem do seu serviço médico, procurando analisar os mais diversos fatores que vêm concorrendo para desprestigiá-lo e desacreditá-lo.
O aumento considerável da procura dos serviços médicos, devido ao vertiginoso e impressionante crescimento da demanda, trouxe, como é natural, múltiplas deficiências no atendimento. As provas mais evidentes são, sem dúvida, a constante preocupação em absorver cada vez mais a mão de obra médica; o interesse em implantar, com a maior brevidade, o Plano de Modernização da Assistência Médica do SUS; a liberação de grandes somas para melhorar seus serviços; o programa de aprimoramento e treinamento de pessoal, entre outras.
É claro que apenas um esforço isolado seria incapaz de, por si só, resolver, a curto ou médio prazo, todos os impasses, e amenizar as deficiências que existem. É preciso, e isso é fundamental, que cada médico crie uma consciência do valor do seu trabalho e do muito que ele pode oferecer do seu rendimento pessoal. À medida que a imagem do SUS começa a desgastar-se, começa a comprometer-se a imagem do próprio médico que a ele presta seus serviços. Se não modificarmos urgentemente a impressão negativa que se possa ter do Sistema, jamais poderemos corrigir as graves distorções infelizmente existentes na figura do médico brasileiro, impiedosa e injustamente aviltada, humilhada e desacreditada.
Sabemos que os níveis de remuneração do médico ainda são incompatíveis com a realidade atual, não correspondendo ao trabalho exercido nem ao valor que ele representa.
Tão importante quanto a situação econômico-financeira do médico é a sua capacitação profissional. Sendo o SUS o maior mercado de trabalho médico do país e aquele que ainda precisa mais dessa atividade, deve ser essa Instituição a mais interessada no aprimoramento permanente do seu pessoal especializado. Quanto mais conhecimentos vier ele a adquirir, melhor será o trabalho realizado por esses profissionais.
Precisamos ter a coragem de confessar que um dos fatores que vêm influenciando a má feição do serviço médico estatal é, indubitavelmente, nossa infidelidade à Instituição. Opostamente, seríamos injustos com nós próprios se não admitíssemos que já surgem aplausos e receptividade ao que se tem feito ultimamente. Muitas das Unidades Hospitalares Públicas já são apontadas como exemplo de bom padrão médico-assistencial.
O espírito do Sistema Unificado de Saúde é o mais puro e humanitário. Suas normas são plenamente exequíveis à nossa realidade social. Padece apenas de uma conscientização pessoal para colocar em perfeito andamento toda essa estrutura, e de uma administração capaz.
Não há trabalho humano que não apresente defeitos. A ninguém mais do que nós é dado o direito de conhecer nossas limitações e imperfeições. As críticas devem ser feitas entre nós, evitando assim que uma classe inteira, ou mesmo uma organização, venha a sofrer desgastes, pelo erro de um indivíduo que falhe isoladamente. E que essas críticas sejam feitas na busca de soluções que cada caso mereça.
Para tanto, é mister que cada um, consciente de sua missão, acorde para o bem que representa seu trabalho e o que dele espera a comunidade brasileira. Conscientizar as Chefias Médicas no sentido de oferecer soluções aos mais diversos problemas, junto às Chefias imediatas, a fim de elevar o bom nome da Instituição e dar-lhe condições para que o médico passe a ter o devido destaque na problemática social do país.
Estimular o aperfeiçoamento do médico, incentivando sua presença em Cursos, Jornadas, Simpósios e Congressos, dentro ou fora do país, para que ele jamais se distancie do progresso da Medicina.
Instituir Congressos Regionais e Nacionais do SUS, atraindo, destarte, as populações médicas para a arena das discussões e debates, numa análise e avaliação dos feitos científicos sociais e econômicos.
Publicar Revistas Médicas do SUS estaduais e nacional, com intercâmbio com os mais diversos organismos médicos e científicos do Brasil e do exterior, difundindo, por conseguinte, o conhecimento médico de âmbito estatal.
Levar às Universidades, e mais especificamente às Faculdades de Medicina, a informação da problemática brasileira no que se refere à assistência médica e aos objetivos da Medicina Social, motivando, desta forma, os futuros médicos nos propósitos e nos ideais da Medicina Pública brasileira, fazendo-os tomar conhecimento da nobre missão de assistir seus irmãos.
Criar os Centros de Estudos do SUS, nas cidades de maior população, para que os médicos estabeleçam entre si interações de ordem científica, ética e cultural, numa tentativa de melhorar o padrão técnico e humanizar – mais acentuadamente – o trabalho médico.
Enfim, procurar a todo o custo criar uma estrutura que permita a cada um de nós encontrar razões de orgulho no transcendente papel que estamos desempenhando, fazendo com que o Estado se sinta obrigado a aperfeiçoar, cada dia que passa, seu plano social na esfera médico-assistencial.
A Previdência Social brasileira, a partir de maio de 1964, passou a estimular e financiar a assistência médica nas empresas, através de um convênio celebrado entre o ex-IAPI e a Volkswagen. Assim, a Previdência deixava de prestar a assistência médica aos empregados daquela fábrica, os quais seriam amparados pela própria companhia, ficando esta dispensada da contribuição devida ao Instituto. Atualmente, os convênios firmados nestes moldes fazem com que a Previdência devolva mensalmente às Empresas conveniantes cerca de 5% do maior salário mínimo regional do país por empregado assistido.
Aliás, essa filosofia não é recente. Henry Ford sentenciava: “O corpo médico é a seção da minha fábrica que me dá mais lucro”.
Um Departamento Médico de uma Empresa, entre outras finalidades, serve para: seleção de pessoal capaz de criar menor número de “problemas” no que diz respeito à saúde e à produção; evitar o prejuízo na força de trabalho pelo absenteísmo, podando as consultas ditas “desnecessárias”, analisando as faltas e licenças, policiando a doença e obtendo uma volta mais rápida ao trabalho; oferecer um tratamento “mais adequado” ao trabalhador, evitado alguns empecilhos que a burocracia estatal ou seu paternalismo possam oferecer.
Mesmo que a Previdência financie tais investimentos, as atividades médicas mais complexas e mais onerosas sempre ficam sob sua responsabilidade, cabendo aos Departamentos Médicos das Empresas uma responsabilidade apenas do seu interesse, como controlar a rentabilidade laboral, e secundariamente uma preocupação com o trabalhador doente.
Seu grande interesse passou a ser a produtividade. Além do mais, a critério do Instituto, a Empresa que conta com tais convênios poderá ser reembolsada de despesas realizadas com certos eventos médicos de custo mais elevado. E, finalmente, esses Departamentos estariam desobrigados dos tratamentos com a tisiologia e com as doenças mentais.
Com honrosas exceções, esses Departamentos Médicos nada mais fazem do que a prescrição de analgésicos e antigripais, retirando do empregado o direito de procurar seu ambulatório. Ou assumindo um papel eminentemente fiscalizador, a critério de interesses ditados pela Empresa.
O médico e o trabalhador passam a ser controlados pela fábrica.
Com a alegação de que as grandes empresas necessitam desburocratizar e modernizar suas atividades, passou-se a comprar de outras empresas especializadas certos serviços complementares. O mais comum desses serviços acessórios é a assistência médica aos trabalhadores, através de prestadores de serviços conhecidos por Grupos Médicos, Empresa Médica ou simplesmente Medicina de Grupo, mediante remuneração por procedimento. Uma alternativa do setor empresarial, financiada pelo Estado comprador de serviços, com o direito de fiscalizar o padrão de atendimento e selecionar os Grupos Médicos, embora ele jamais tenha assumido esse papel de controlador e disciplinador. Esse sistema é, pois, diferente dos departamentos médicos das fábricas, mesmo que tenham eles pontos comuns, como manter e aumentar a produtividade lucrativa da empresa com a rápida recuperação da força de trabalho, o policiamento do absenteísmo e a volta mais rápida do empregado doente. Ainda que as Empresas Médicas tenham autonomia na escolha do seu pessoal, dificilmente esses grupos se mostram com bastante independência no que diz respeito à proteção da massa assistida.
A Medicina de Grupo é movida basicamente pela lógica do lucro, respaldada no barateamento dos custos de serviços prestados, o que, por seu turno, fere fundamente o nível da assistência oferecida, golpeia a consciência do médico e compromete sua ética. São sociedades de responsabilidade limitada, sociedades beneficentes, tendo elas a participação ou a propriedade de médicos ou leigos, de finalidades lucrativas, mantidas por quantias repassadas principalmente do SUS. E não é sem razão que são orientadas por medidas racionalizadoras de despesas, a começar pela escolha dos médicos inexperientes e desempregados, pela seletividade do pessoal assistido, pela restrição dos exames complementares, pela não aceitação de tratamentos onerosos, pelo não atendimento dos pensionistas e aposentados, os quais ficam aos cuidados do SUS. Assim, ficam à margem da obrigação da empresa médica os portadores de doenças crônicas que após 180 dias não têm condições de voltar ao trabalho; os que necessitam de reabilitação profissional; os casos de tuberculose; os portadores de doenças mentais; as hemodiálises, os transplantes e as cirurgias cardíacas; as situações consideradas de “risco catastrófico”; e finalmente, a critério da Previdência Social, o reembolso de despesas de custos excessivamente elevados. Deste modo, os tratamentos mais demorados e os custos mais altos com a assistência médica voltam à responsabilidade do SUS, como o caso da AIDS.
Em geral, esses contratos firmados entre as empresas e os Grupos Médicos são instituídos no sistema de pré-pagamento, fixado pelo número de operários, sem levar em conta o nível e o tipo assistencial. Na celebração do contrato com a Medicina de Grupo, as empresas autorizadas pelo poder público retêm 5% do maior salário mínimo vigente no país por empregado, percentual esse repassado com adicionais que, por sua vez, também são descontados no Imposto de Renda como despesas do empresário. Desta forma, afirma Jayme Landmann, “a assistência médica prestada pela Empresa Médica é quase totalmente financiada pelo Governo: pela importância que deixa de ser recolhida ao INAMPS e pelo adicional abatido no Imposto de Renda”.
A classe trabalhadora brasileira não tem poupado críticas à Medicina de Grupo pela qualidade dos serviços prestados, e é favorável ao aprimoramento dos setores próprios da Previdência e dos seus Sindicatos, mesmo sabendo que essa assistência ainda não é a ideal. Entendem eles que a Medicina de Grupo é uma entidade controlada pelo patrão, cujos interesses são traçados em benefício da empresa, que desaconselha a readmissão das convalescenças prolongadas e das doenças cíclicas. O mesmo acontece com as licenças para tratamento de saúde e para os abonos das faltas. O controle é tão severo que algumas dessas Empresas Médicas, em perfeito acordo com as firmas contratantes, admitem apenas as trabalhadoras solteiras ou com “planotest” negativo, e de preferência as esterilizadas, o que contraria os mais modestos princípios de respeito à dignidade humana. Os trabalhadores cedo observam também que a qualidade e a maneira do atendimento médico entre eles e os funcionários mais qualificados são bem distintas.
Não se diga, ainda, em favor da Medicina de Grupo, ser ela um estímulo à livre escolha. Uma opção restrita a um pequeno grupo de médicos não pode ser entendida como livre escolha. Esse modelo sempre foi patrocinado e defendido por uma fração médica, e jamais reclamado pelos que se utilizam da assistência médica. O que eles reivindicam é uma assistência ampla e de boa qualidade.
Os médicos assalariados pela Medicina de Grupo, geralmente contratados para atendimentos primários, mesmo ganhando salários iguais aos que percebem os da função pública, são obrigados a atender um número exagerado de pacientes, com recomendação de restringir exames e, muitas vezes, trabalhando em ambientes sem a mínima condição técnica. Em geral são colegas recém-formados, desempregados, vivendo nas grandes cidades, premidos, portanto, a aceitarem estas formas de tarefa como tábua de salvação. Os médicos credenciados para alguns serviços especializados, ganhando por tarefa e remunerados por tabelas de Medicina de Grupo, são ainda mais vítimas. E quando eles passam a contestar, fazendo comparação com o Serviço Público, começam a sentir que na Empresa Médica o tão exaltado liberalismo está profundamente comprometido e sua ética mais e mais aviltada.
Da maneira como caminham as coisas, com a proliferação e a abrangência da Medicina de Grupo, não tardará o tempo em que a categoria médica, pela retração do mercado e o não aproveitamento deliberado pelo setor público, terá de submeter-se aos caprichos e à tutela das Empresas Médicas.
Por incrível que pareça, a Previdência Social dava a entender que esses convênios com a Medicina do Grupo eram viáveis sob o ponto de vista político e econômico, por admitir o crescimento acelerado do número de segurados, pela criação de um mercado de trabalho junto aos empresários da saúde e pela impossibilidade de fiscalizar os atos médicos oriundos de serviços prestados pelo setor credenciado. Aparentemente o SUS levava vantagem. Descongestionava o atendimento, diminuía os gastos com assistência, evitava a pressão da comunidade sobre a burocracia e as filas, diminuía o número de licenças, internamentos desnecessários e cirurgias sem indicação, afastava o superfaturamento, os doentes-fantasmas e o exagero dos exames complementares. Todavia, como se viu, essas vantagens só existem até um certo ponto. Depois, tudo é da responsabilidade do SUS: dos grandes queimados até a assistência aos aposentados, licenciados e despedidos.
Depois dos trabalhadores, os mais sacrificados pela Medicina de Grupo são os médicos por ela assalariados: pelo furor do lucro empresarial, pelo cerceamento da sua liberdade, impossibilitando um trabalho sério e comprometendo gravemente sua ética. Em suma: o processo avilta o médico, compromete a medicina e transforma o trabalhador em mero objeto de mercancia.
Toda atividade médica deve ter como base a independência científica – exclusiva da pessoa física do médico, cabendo-lhe todos os direitos e responsabilidades, que vão desde a guarda do sigilo profissional até a autonomia de prescrever. Se isso não é possível, surge a quebra da qualidade e da produtividade do trabalho assistencial, e uma forma de colonizar o paciente em favor daqueles grupos minoritários.
Além do mais, a assistência prestada pela Medicina de Grupo é, em parte, elitista, não só pela distribuição geográfica que beneficia as áreas economicamente mais fortes, senão, também, por distinguir acintosamente a assistência médica por categorias diferenciadas entre executivos e as diferentes faixas de trabalhadores, que vão do tipo standard ao tipo “especial”, numa forma manifesta de discriminação que atenta contra o primeiro de todos os postulados éticos, que diz ser “a medicina uma profissão que tem por fim cuidar da saúde do homem, sem preocupação de ordem religiosa, racial, política e social”, e contraria ainda o espírito do sistema médico estatal, que propõe a distribuição geográfica e social dos seus recursos, comprometendo, assim, os princípios mais elementares da seguridade social.
Outro fato grave é o de algumas Empresas Médicas de sistema cooperativista, que aparentemente não demonstram nenhum interesse lucrativo, guiarem-se pelo processo condenável da remuneração da unidade de serviço, numa filosofia de conflitos; pois, enquanto a cooperativa se empenha em diminuir as despesas, inclusive com a retenção dos honorários, os cooperativistas buscam produzir mais em face do estímulo do pagamento por tarefa.
Em suma, a prestação de serviços médicos pela Medicina de Grupo, ou qualquer outra modalidade assistencial que explore os serviços médicos e que se distancie do interesse de proteger e recuperar a saúde dos trabalhadores, como se tem verificado até então, deve ser condenada pelas seguintes razões:
1. discrimina a forma assistencial entre categorias de empregados, mesmo que a manutenção desses Grupos Médicos seja através da contribuição dos trabalhadores;
2. coloca-se como intermediária da assistência médica, passando os médicos a depender dessas empresas e sujeitarem-se ao tipo de serviço e ao preço imposto, quando se sabe que o trabalho médico não deve ser explorado por terceiros;
3. explora uma forma de medicina e um tipo de trabalho médico cujo fim é o lucro, propenso, inclusive, a subordinar todas as ações ao interesse do ganho, no mais puro impulso mercantilista;
4. pratica publicidade imoderada quando insinua em seus anúncios, entre outras coisas, a redução do absenteísmo;
5. colabora em planos de serviços com entidades em que não existe independência profissional ou para que não haja respeito aos princípios éticos estabelecidos;
6. quando regida pelo sistema de unidade de serviço, constitui-se em fator de dispersão de recursos e serve como estímulo à execução de atos médicos desnecessários;
7. atende, sem motivos justificáveis, aquelas pessoas possuidoras de recursos, através de honorários inferiores à praxe do lugar, numa manifesta modalidade de concorrência desleal;
8. interfere na relação entre o médico e o paciente, quando coloca entre um e outro o lucro, pois o alvo de toda atenção do médico é o doente, em favor de quem devem ser utilizados o melhor empenho e a maior capacidade profissional;
9. impõe restrição no atendimento de certas doenças e estabelece critérios de tempo de carência, como se as pessoas tivessem data certa de adoecer;
10. finalmente, pela intimidade com os agenciadores da saúde, não deixa de ser a Medicina de Grupo uma forma desleal de concorrência para com os outros colegas.
Nenhuma profissão experimentou, nestes trinta últimos anos, maiores transformações que a medicina. De uma atividade elitista e quase exclusivamente liberal, passou ela a ser exercida em instituições públicas ou empresariais, e o médico um mero assalariado. Assim, ao se colocar na condição de empregado, inevitavelmente teria ele de usar os mesmos meios utilizados pelos demais obreiros, no sentido de conquistar melhores condições de trabalho, forma mais adequada na prestação de serviços e, também, não há como negar, de conseguir remuneração justa e capaz de assegurar-lhe, juntamente com a família, uma existência compatível com a dignidade humana e com as necessidades vigentes de sua categoria.
Por isso, ninguém discute mais o fato de os médicos exercerem o direito de greve como recurso extremo de pressão social, de forma consensual e temporária, quando defendem interesses públicos ou de sua categoria, e desde que respeitadas as necessidades inadiáveis e essenciais da população.
Por outro lado, não há como deixar de reconhecer que toda greve médica fere interesses vitais e traz prejuízos indiscutíveis, e que não deixa de apresentar, para alguns, aspectos antipáticos e contraditórios. Mas todos passaram a entender que, em certos momentos, é a greve o único caminho para alcançar melhores condições de vida, utilizada como ultima ratio, em face da intransigência do patronato avaro ou do poder público insensível, ante a população assalariada. Não há como aceitar mais a velha e surrada ideia de que servir à comunidade está acima do direito de fazer greve, como se os grevistas não fossem pessoas iguais às outras, omitidas e aviltadas, nas suas humanas e desesperadas tragédias. Excluir o médico do direito de greve é uma discriminação imperdoável e um desprezo às suas prerrogativas de cidadania, porque a garantia constitucional desse direito está fundada nos princípios mais elementares da liberdade do trabalho. Seria injusto exigir dele apenas a condição de sacerdote e negar-lhe o que todo ser humano necessita para sobreviver.
Assim, a greve médica, para constituir-se num ato eticamente protegido e politicamente justificado, tem de acatar certos fundamentos que demonstrem a justeza dos seus fins: ser um embate simétrico e paralelo entre duas forças sociais, expressar uma resposta de autodefesa socialmente legítima, representar a última razão depois de esgotadas todas as tentativas de negociação e manifestar o respeito às atividades exercidas nos serviços considerados essenciais.
Não há também como censurar o médico que participa dos movimentos organizados da categoria e das lutas coletivas, na busca de garantir vantagens como forma de proteção social. Isso está assegurado em seu Código de Ética, quando se lê: “O médico será solidário com os movimentos de defesa da dignidade profissional, seja por remuneração digna e justa, seja por condições de trabalho compatíveis com o exercício ético-profissional da Medicina e seu aprimoramento técnico-científico”. Mais adiante, enfatiza que é proibido “Assumir condutas contrárias a movimentos legítimos da categoria médica com a finalidade de obter vantagens”. Em suma, resta evidente que, também sob o ponto de vista ético, o profissional da medicina tem o direito de fazer greve, como meio extremo de conseguir benefícios pessoais e de prover as condições éticas de trabalho em favor da comunidade.
Este mesmo Código, no entanto, de forma peremptória, diz que é vedado ao médico “deixar de atender em setores de urgência e emergência, quando for sua atribuição fazê-lo, colocando em risco a vida dos pacientes, mesmo respaldado por decisão majoritária da categoria”. Nada mais claro para se entender que o direito de greve não é absoluto e que o médico não pode nunca, nem de forma alguma, paralisar suas atividades em serviços de pronto atendimento.
Outra coisa: os movimentos reivindicatórios dos médicos são diferentes de algumas categorias profissionais. Primeiro, não têm o radicalismo persistente do paredismo. Depois, os pacientes não são abandonados nem fica a comunidade desprotegida, pois há critérios muito honestos na seleção de casos, pelas comissões de triagem, e até hoje não se registrou nenhum ato de omissão de socorro nem de dano em que o não atendimento fosse responsável. Também é justo que se diga não serem as reivindicações dirigidas apenas no sentido de corrigir o aviltamento salarial, mas ainda na melhoria das condições do atendimento médico em graus compatíveis com a dignidade humana, da luta permanente pela conquista de meios materiais para uma assistência mais efetiva e da absorção de uma política de capacitação de recursos humanos. Desta forma, dizer que a greve fere a ética médica no âmago de sua filosofia é, senão ressuscitar um lirismo nostálgico que não se admite mais em nenhuma atividade laborativa, mas, simplesmente, querer escamotear a verdade.
Por uma questão de justiça, não se pode omitir o fato de ser o paciente hoje em dia bastante conscientizado para movimentos dessa natureza, a ponto de não apenas entender o processo, mas, ainda, de apoiar e incentivar, mesmo com o seu sacrifício, pois ele entendeu que esse é o único caminho para conquistar uma melhor assistência.
Mas será que na atividade médica apenas as urgências e emergências devem merecer medidas de proteção, como meios indispensáveis e imperativos de funcionamento? E como ficam, por exemplo, as atividades inadiáveis e intransferíveis dos IMLs?
Acreditamos que no exercício da medicina devem ser consideradas atividades essenciais não só a prestação de assistência médica nos setores de urgência e emergência, mas, também, outros instantes de atendimento indispensável, capazes de evitar danos irreparáveis e males irreversíveis ao paciente.
Em princípio, não somos contra a greve nos serviços médico-legais, principalmente quando tal fato venha a constituir-se no derradeiro instrumento de reivindicação, depois de exauridos todos os meios de diálogo e de negociação. Todavia, não se pode deixar de levar em conta certos cuidados, a fim de evitar danos ou situações incontornáveis, notadamente em casos de avaliação imediata ou em acontecimentos que possam criar sérios mal-estares às vítimas, aos seus familiares e à sociedade.
Não há como justificar, verbi gratia, a omissão de um legista, mesmo em greve, diante de uma lesão ou de uma perturbação de caráter transeunte, cuja falta de registro redundasse em insanável prejuízo para a vítima. Não há justificativa para deixar-se de proceder a uma necropsia de morte violenta, concorrendo para que o cadáver seja inumado sem a causa da morte, usando-se os indefectíveis diagnósticos de “causa indeterminada”, vindo a ser exumado posteriormente, sujeito às restrições e aos enganos que permitem os fenômenos post mortem e às inconveniências da mais repulsiva de todas as perícias.
Recomenda-se, por isso, a liberação dos cadáveres e a expedição dos atestados de óbito, com seus respectivos diagnósticos de causa mortis. Ninguém pode tolerar uma greve alimentada na insensibilidade e na indiferença, intransigentemente refratária aos princípios da adequação social. Nesse momento tão pungente na vida de uma família – quando tudo é desespero e desalento –, o respeito à dor alheia é de tal magnitude que a intuição humana criou regras de conduta que impedem crueldades inúteis, permitindo que se ocultem seus mortos nas cavas silenciosas da inércia. E mais: o abandono de um cadáver é injusto e indefensável, em razão de gerar outros muitos e infindos abandonos que pedem rever e desfazer. O da criança, por exemplo, é o mais medonho e o mais triste porque tem clamores que atingem o mais distante dos distantes e o mais indiferente dos indiferentes, ofendendo a razão e o sentimento.
Os laboratórios dos serviços médico-legais, por sua vez, devem acatar o material de exame que recolherem ou lhes for encaminhado e, nos casos que possa ser conservado, que se o faça. Quando não for possível preservá-lo, o exame deve ser realizado, mesmo que não se venha a expedir o competente relatório, pois esse material, na maioria das vezes de valor probante incalculável, não pode ser substituído, pela sua restrita e imperiosa exclusividade. Embora com atividades de características não tanto semelhantes aos laboratórios, o pessoal do setor de radiologia desses serviços pode haver-se pelo mesmo raciocínio.
Tais procedimentos estão fundados no fato de considerarmos parte das tarefas dos IMLs como atividades essenciais no atendimento das necessidades inadiáveis da população. E a sua paralisação radical, um abuso do direito de greve.
Nada mais complexo que determinar a qualidade do atendimento médico, principalmente quando não há idoneidade de interesses ou critérios. Racionalizar a assistência médico-hospitalar, através de Auditorias criadas dentro de um amontoado de distorções como no antigo Plano CONASP, notadamente no que diz respeito à implantação do sistema AIH, desvirtua qualquer que seja seu sentido. No fundo, essa auditagem tem como propósito o barateamento dos custos médicos e a institucionalização de uma medicina de péssimo padrão, para justificar a solução de uma crise, em que a assistência médica não contribui para a desastrada falência previdenciária.
A Auditoria, tal qual foi instituída, não traz o caráter de subsidiar um melhor rendimento assistencial nem apoiar pedagogicamente as equipes de saúde. É uma disfarçada coação, um policiamento ostensivo e um desrespeito ao trabalho médico.
A própria expressão “auditoria”, incluída num contexto médico-profissional, que se apresenta em grande parte, pela abnegação e pelo desprendimento ao paciente, já é um insulto. Sem mencionar a discutível capacidade dos auditores, cujos critérios de seleção nem sempre passam pela qualidade, mas por valores estabelecidos pelos simpatizantes do partido oficial ou pelos ditames proclamados pela decantada tecnoburocracia estatal.
A análise do auditor sobre o prontuário, o descumprimento da prescrição, as anotações sobre exames solicitados, as críticas às técnicas cirúrgicas realizadas, às dietas especiais, ao internamento e à alta, e a alteração do tratamento e do atendimento ao doente são interferências descabidas e afrontosas à dignidade profissional e à autonomia técnica e científica de cada médico, que a tradição consagrou de forma irretrucável. Ainda mais quando se sabe que o auditor nem sempre é o profissional adequado à especialidade aferida.
Para que um serviço alcance um bom padrão técnico necessita, antes de tudo, da consciência que representa o trabalho de cada um e o seu sentido na exaltação cada vez maior do nível assistencial em favor da saúde do povo, de uma estrutura que permita a honesta execução do ato médico e do adequado número de exames complementares. Tudo isso analisado à luz da discussão de casos, em que cada situação é estudada no seu mais elevado sentido. Não passa, pois, necessariamente, pelo crivo da fiscalização ostensiva e do barateamento de custos, tentando projetar o bom padrão assistencial apenas em tempo de permanência, taxa de ocupação hospitalar, número de internações, movimentos estatísticos de cirurgias e relação exame complementar/paciente assistido, como quem simplesmente manipula uma empresa geradora de lucros, imbuída da pior mentalidade empresarial.
A Junta Médica, quando no interesse da administração pública, prende-se a avaliar as condições físicas e psíquicas dos funcionários na sua admissão, retorno ao trabalho, afastamento para tratamento ou aposentadoria. No Serviço Público Federal sua composição, atribuição e características são definidas em lei, decreto, regulamento, resolução ou orientação normativa. A Orientação Normativa n.º 41 do Departamento de Recursos Humanos/SAF (Secretaria de Administração Federal) estabelece: “Compete aos dirigentes de pessoal dos órgãos da administração direta, das autarquias e das fundações federais a designação de juntas médicas oficiais, compostas de 3 (três) membros”. Para alguns pode a Junta ser constituída por dois membros, mas corre-se o risco de haver a necessidade de desempate.
O ideal seria que elas fossem constituídas por especialistas caso a caso. Contudo, como isso é impossível, tendo o médico competência legal para exercer a medicina em sua amplitude, pode ele ser de uma especialidade mais próxima possível do que avalia, e, quando for necessário, pode se socorrer de atestados ou laudos de especialistas para esclarecer diagnóstico ou fundamentar suas conclusões. Assim estabelece a Lei n.º 3.268, de 30 de setembro de 1957: “Art. 17. Os médicos só poderão exercer legalmente a Medicina, em qualquer de seus ramos ou especialidades, após o prévio registro de seus títulos, diploma, certificados ou cartas no Ministério da Educação, e de sua inscrição no Conselho Regional de Medicina sob cuja jurisdição se achar o local de sua atividade”.
Por analogia, pode-se dizer que o médico não pode participar de uma Junta que examine seu próprio paciente, pessoas da família ou de alguém com o qual tenha relações capazes de influir em seu trabalho (CEM, artigo 93).
No que diz respeito aos atestados às Juntas Médicas, o Parecer-Consulta CFM n.º 01/2002 diz: “A Junta Médica pode e deve, quando em situações de conflito entre o atestado médico emitido pelo médico assistente e o observado pela própria Junta, no exame físico e na análise dos exames complementares do periciado, recusar ou homologar o entendimento semelhante ou diverso do médico assistente, atendendo ao previsto nas diretrizes recomendadas em consenso das Sociedades de Especialidades”.
Dentistas ou outros profissionais de saúde não podem fazer parte de junta médica, exceto quando convidados ou designados para opinar em assuntos de sua competência, diz o Parecer Consulta CFM n.º 34, de 12.07.2002.
Tem o médico o direito de internar e atender seus pacientes em hospitais da rede pública ou privada, quando não pertença ao seu Corpo Clínico?
Acima da discussão se tem ou não o médico tal direito, um fato é indiscutível: o hospital existe, antes de mais nada, para servir aos pacientes e à comunidade, por necessidade pública e por interesse social.
Ao se negar tal direito, além de se efetivar uma prática de concorrência desleal por inspiração de um monopólio de trabalho nas mãos de poucos profissionais, deixa-se a comunidade sem outras opções. Com mais razão se na localidade existe apenas um único hospital, ou um hospital que, para determinadas situações, oferece melhores condições de atendimento.
É ainda princípio constitucional que o uso da propriedade deve propiciar o bem comum, admitindo-se até a desapropriação “por interesse social” como forma de colocar os bens e serviços à disposição de todos.
Assim, o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução CFM n.º 1.231/1986, assegura a todo médico, no correto e efetivo exercício da profissão, a prerrogativa de internar e assistir seus pacientes em hospital público ou privado, ainda que não faça parte do seu Corpo Clínico, ficando, no entanto, o médico e o paciente sujeitos às normas administrativas e técnicas do hospital. O mesmo assegura o Código de Ética Médica, no item VI do Capítulo “Direitos do Médico”: Internar e assistir seus pacientes em hospitais privados e públicos com caráter filantrópico ou não, ainda que não faça parte do seu corpo clínico, respeitadas as normas técnicas aprovadas pelo Conselho Regional de Medicina da pertinente jurisdição.
Isso se justifica porque o médico, para desempenhar suas atividades, necessita de certos meios que só o hospital pode oferecer, sendo que a alegação de não pertencer ao Corpo Clínico representa uma afronta aos ditames da lei e da moral médica. Principalmente quando na localidade só existe um único hospital.
Qualquer propriedade, seja pública ou privada, deve atender às suas finalidades, pois pesa sobre ela uma hipoteca social.
É muito difícil hoje falar-se de direito exclusivo de posse, abstraído dos interesses de ordem pública e social. Isto não subverte o sentido de propriedade privada, não desmoraliza os critérios do Corpo Clínico, não privilegia o corporativismo médico, não fustiga os postulados éticos da profissão e muito menos humilha quem quer que seja.
Se aplicado nos limites da justeza e do equilíbrio, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990) será a maior contribuição jurídica dos últimos 50 anos em nosso país, principalmente no que esse diploma traz sobre a assistência médica, com destaque na relação entre o profissional e o consumidor desta área. Primeiro, pelo cuidado de não tratar a saúde como uma atividade estritamente comercial. Depois, pela importância que o Código representa como instrumento de moderação e disciplina nas relações de consumo entre o prestador de serviços e o usuário. E, ainda, por revelar-se como uma garantia e um complemento de ordem constitucional (“O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” – Artigo 5.º, XXXII, da Constituição Federal), diante da vulnerabilidade da população no mercado de consumo.
Na linguagem deste Código, o paciente é o consumidor para quem se presta um serviço; o médico, o fornecedor que desenvolve atividades de prestação de serviços; e o ato médico, uma atividade mediante remuneração a pessoas físicas ou jurídicas sem vínculo empregatício.
Dizer que este Código do Consumidor é uma intervenção indevida do poder público nas relações de consumo, notadamente no que se refere às ações de saúde, é um equívoco, porque o dever do Estado na garantia dos direitos sociais implica necessariamente a ruptura com a política social restritiva, em busca da universalização da cidadania. Se o Estado fica apenas exercendo a simples função bancária de compra de serviços, dificilmente teremos o controle da estrutura de proteção dos bens públicos. O entendimento atual é que a saúde é uma função pública, de caráter social, que se exerce para garantir o direito universal e equitativo de acesso aos serviços em seus diversos níveis. E mais: é preciso rever o conceito de cidadania. Ele não pode ser entendido apenas no seu aspecto jurídico-civil, senão, ainda, nas garantias sociais, corolário de uma efetiva prática democrática. E o setor saúde ganha uma certa magnitude em face de sua abrangência social, a partir do pacto entre o Governo e a Sociedade, com vistas às melhores condições de vida da população.
A maior inovação, no nosso entender, está no artigo 6.º, VIII, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CPDC), quando estatui que são direitos básicos do consumidor “a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência”.
Como se sabe, era princípio consagrado do Direito pertencer o ônus da prova a quem alegasse, inclusive respaldado no Código de Processo Civil, que reza claramente caber o ônus probatório ao autor. Assim, tal regra garantia que, sendo negado pelo autor e não provados os fatos, fosse a ação julgada improcedente. Hoje, se um paciente alega um erro médico, a responsabilidade da prova para defender-se pode ser do facultativo, se for considerado difícil o usuário pré-constituir prova sobre seus direitos, até porque ele, no momento da relação, está em sua boa-fé, além dos imagináveis obstáculos para obter material probante.
A possibilidade da inversão do ônus da prova, diante de fatos verossímeis ou quando o consumidor for hipossuficiente, facilita a defesa dos seus direitos, cabendo ao prestador-réu provar que a alegação não é verdadeira. O sentido dessa inversão é equilibrar as partes na demanda judicial, sempre que o consumidor for economicamente insuficiente ou quando a alegação for verdadeira ou cuja presunção permitir ao juiz formar sua livre convicção.
A responsabilidade civil do médico (Código Civil, artigo 951), na qualidade de profissional liberal, consoante o que dispõe o artigo 14, § 4.º, do CPDC, será apurada mediante verificação da culpa. Isto é, será avaliada de acordo com o maior ou menor grau de previsibilidade de dano. Ainda: o médico, nas relações de consumo com seus clientes, não está obrigado a um resultado, pois entre eles existe um contrato de meios e não de fins. Seu compromisso é utilizar todos os meios e esgotar as diligências ordinariamente exercidas. Em suma: usar de prudência e diligenciar normalmente a prestação do serviço. Haverá inadimplência se a atividade for exercida de forma irregular, atípica ou imprudente, e, se na prestação do serviço venha ocorrer um acidente de consumo, o médico terá sua responsabilidade civil apurada dentro dos limites da má prática. Discute tal conceito, no que se refere aos contratos de meios ou de resultados, na anestesiologia, na cirurgia plástica, na radiologia e na patologia clínica.
Quando se tratar de assistência médica prestada pelo hospital, como fornecedor de serviços, a apuração da responsabilidade independe da existência de culpa (princípio da responsabilidade sem culpa). Basta o nexo causal e o dano sofrido. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência da culpa, pela reparação do dano causado aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre a fruição e riscos (artigo 14, caput, do CPDC). A não ser que exista culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros não prepostos, representantes ou empregados do fornecedor ou prestador de serviços. Nesse particular, só há culpa in eligendo ou in vigilando. O terceiro de que trata a presente lei é aquele sem qualquer relação jurídica com o fornecedor. No que diz respeito aos médicos que tenham vínculo empregatício com pessoas jurídicas de direito público ou privado, a exemplo das clínicas e hospitais, a reparação civil por dano culposo será arguida dos respectivos estabelecimentos de saúde (CC, artigo 1.521, III), combinado com os artigos 3.º e 14 do CPDC. Ainda assim, terão as empresas médicas direito de regresso, conforme estabelecem as Súmulas 187 e 188 do STF. Sobre o assunto, reporta-se Antonio Herman de Vasconcelos Benjamin: “O Código é claro ao asseverar que só para a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais é que se utiliza o sistema alicerçado em culpa. Logo, se o médico trabalha em hospital, responderá apenas por culpa, enquanto a responsabilidade do hospital será apreciada objetivamente” (Comentários ao Código do Consumidor, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 80).
Destarte, fica bem claro que só para a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais é que se utiliza o sistema fundado na culpa, enquanto a responsabilidade civil das empresas seria avaliada pela teoria objetiva do risco, tendo no montante do dano o seu elemento de arbitragem.
Ao contrário do Código de Processo Civil, a ação pode ser proposta no domicílio do autor (artigo 101, I, do CPDC). A responsabilidade pelo serviço defeituoso está submetida ao prazo de prescrição de cinco anos, contado da data do conhecimento do dano e de sua autoria (artigo 27 do CPDC). Passado esse prazo, perde-se o direito de acionamento judicial.
Outra coisa: o dano sofrido pelo consumidor pode também levar o profissional médico a responder por uma reparação por dano moral. O artigo 6.º, VI, do Código do Consumidor, diz que é direito básico do consumidor “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”.
Considera-se prática abusiva na relação de consumo aquela que extrapola a normalidade no exercício da prestação de serviço entre o fornecedor e o consumidor. É princípio constitucional que “as normas legais sejam formuladas de forma clara e precisa, permitindo que seus destinatários possam prever e avaliar as consequências jurídicas de seus atos”, e que “ninguém será obrigado a fazer alguma coisa senão em virtude da lei”.
O Código de Proteção e Defesa do Consumidor, em seu artigo 39, VI, veda ao prestador de serviços “executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização expressa do consumidor, ressalvados os decorrentes de práticas anteriores entre as partes”, e o artigo 40 afirma que “o fornecedor de serviços será obrigado a entregar ao consumidor orçamento prévio discriminando o valor da mão de obra, dos materiais e equipamentos a serem empregados, as condições de pagamento, bem como as datas de início e término dos serviços”.
É evidente que o início e o término da prestação de serviços não podem ser cogitados numa atividade tão imprevisível como a medicina. Todavia, no que se refere aos outros aspectos, alguns profissionais começam a manifestar preocupação por determinadas características eminentemente mercantis e que não podem existir na relação entre o médico e o paciente. No tocante à prévia elaboração de orçamento, não há o que estranhar, pois o próprio Código de Ética Médica, em seu artigo 90, diz textualmente que é vedado ao médico “deixar de ajustar previamente com o paciente o custo provável dos procedimentos propostos, quando solicitados”. Caso venha o profissional executar serviços sem a elaboração orçamentária e autorização expressa ou tácita do usuário, em casos de não urgência ou emergência, tal descumprimento infringe o disposto nos artigos 56, I, e 57 do Código do Consumidor, cuja pena é de multa, nunca inferior a trezentos e não superior a três milhões de vezes o valor do Bônus do Tesouro Nacional (BTN), ou índice equivalente que venha substituir, variando de acordo com a maior ou menor gravidade da infração, com a vantagem auferida pelo prestador de serviços e com a sua condição econômica. Tudo isso mediante procedimento administrativo nos termos da lei, revertendo para o Fundo que trata a Lei n.º 7.347, de 24 de julho de 1985.
Além de multa, estão previstas nos artigos 56 e 59 do Código do Consumidor: cassação da licença do estabelecimento ou das atividades de pessoas físicas ou jurídicas que necessitem de licença através de alvará de localização ou licença da Secretaria de Saúde; intervenção administrativa com nomeação de interventores ou através de ordem da administração pública; suspensão temporária da atividade de fornecedor ou prestador de serviços; imposição de contrapropaganda; suspensão de permissão de concessionário do serviço público; interdição total ou parcial de estabelecimento ou de atividade, quando houver maior gravidade e reincidência do prestador de serviços. As sanções relacionadas serão aplicadas pela autoridade administrativa, no âmbito de sua atribuição, assegurada ampla defesa.
Pode também o prestador de serviços ser alcançado por responsabilidade penal em infrações previstas e tipificadas no CPDC. A lei que criou este Código arrola pelo menos oito formas de delitos de conduta, até então sem referência nos diplomas jurídicos brasileiros, e que eles podem relacionar o exercício da medicina. Estão descritos como crime, nos artigos 63 e 74, entre outros: a) empregar produtos ou componentes de reposição usados, sem autorização do usuário; b) fazer publicidade enganosa e abusiva, afirmação falsa, ou omitir informações relevantes sobre a natureza, gravidade e segurança dos serviços prestados; c) fazer ou promover publicidade capaz de induzir o usuário a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança; d) deixar de organizar dados fáticos, técnicos, científicos que dão base à publicidade para melhorar informação dos interessados; e) usar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor ao ridículo ou ao vexame; f) impedir ou dificultar ao usuário o acesso às informações que sobre ele existam nas fichas e registros; g) deixar de corrigir tais informações por serem inexatas; h) executar serviços de alta periculosidade, contrariando determinação de autoridade competente. As penas por tais infrações são aplicadas sem prejuízo das correspondentes às lesões corporais e à morte, sem o impedimento das ações civis e administrativas e das consequências delas decorrentes.
Levando-se em conta o que dispõe o artigo 106, IX, que faculta a criação e fomentação de entidades de defesa do consumidor pela população e pelos órgãos públicos estaduais e municipais, obviamente maiores serão as reclamações e as demandas de pleitos judiciais e extrajudiciais quanto a possíveis maus resultados atribuídos como erros médicos.
Com certeza, a grande batalha a ser travada pelos consumidores no campo da prestação de serviços médicos será no sentido de controlar de vez os planos de saúde, cujas cláusulas contidas nos contratos, em letras microscópicas, são inaceitáveis, não só no que diz respeito às carências, mas, principalmente, as de não obrigação de tratamento de determinadas doenças, como se o paciente pudesse escolher quando e de que viesse adoecer. Até porque o artigo 51 do CPDC assim se expressa: “São nulos de pleno direito, entre outros, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I – impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos ou serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos”. A expressão “nulos de pleno direito” deixa bem claro que a cláusula do não atendimento a certas enfermidades jamais teve eficácia e sua nulidade retroage ao início do contrato, pois o que é contrário à lei não tem eficácia.
O Conselho Federal de Medicina, preocupado com tal problema, editou a Resolução CFM n.º 1.401, de 11 de novembro de 1993, em que as empresas de seguro de saúde, empresas de medicina de grupo, cooperativas de trabalho médico, ou outras que atuem sob a forma de prestação direta ou intermediação dos serviços médico-hospitalares, estão obrigadas a garantir o atendimento a todas as enfermidades relacionadas no Código Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde, sem qualquer tipo de restrição quantitativa ou de qualquer natureza.
Enfatiza ainda aquela resolução que deve ser dada ampla e total liberdade de escolha dos meios de diagnóstico e terapêutico pelo médico, justa e digna remuneração profissional e total e absoluta liberdade de escolha do médico pelo paciente, assim como a sua liberdade de escolher o hospital, o laboratório e os demais serviços complementares pelo médico e pelo paciente.
O Decreto proposto pelo Ministério da Saúde segue o mesmo raciocínio da resolução baixada pelo Conselho Federal de Medicina, quando num dos seus dispositivos diz textualmente: “São vedadas cláusulas de exclusão de doenças relacionadas no Código Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde ou de outra que, embora ainda não constante desse mesmo Código, estejam cientificamente descritas e reconhecidas como tal”.
Por fim, é preciso que se entenda ser a saúde um bem público, inalienável e indivisível. Não pode ser fragmentada, dividida, tratada ocasionalmente ou com restrições, como quem trata de atividades meramente mercantis. É lamentável, sob todos os aspectos, que se configurem, numa relação entre paciente e prestador de serviços, doenças ou perturbações pouco lucrativas ou de atenção demorada e, por isso, fiquem fora da responsabilidade dos planos de saúde. É princípio constitucional “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. As entidades particulares, nesse aspecto, não podem fugir à regra. Têm de submeter-se à universalidade e à equidade do atendimento médico.
As propagandas desses planos de mídia, que não são raras nem módicas, mostram-se generosas e nunca se reportam claramente quanto às suas limitações. Entretanto, basta que se precise deles, para se ter a impressão que não se obrigam a nada. E não se enxerga que nessa espécie de contrato estão inseridos direitos personalíssimos e irrenunciáveis, como o direito à vida, à saúde e à integridade corporal do usuário.
Ao contrário; as cláusulas limitativas e impeditivas do contrato devem ser expressas de forma clara e precisa, em letras garrafais e não microscópicas, evitando termos genéricos, técnicos ou ambíguos, entre eles as chamadas moléstias degenerativas ou crônicas, pois só assim os destinatários podem prever e avaliar as consequências jurídicas dos seus atos.
Por outro lado, deveria existir mais rigor contra a propaganda enganosa e as falsas promessas, principalmente quando isto tem a finalidade de angariar clientela. Deveria haver também na lei do consumidor uma multa em casos de descumprimento do contrato.
Dentro do contexto analisado, essa é a única forma de ajustamento aos princípios constitucionais de um Estado Democrático de Direito, onde a saúde seja um patrimônio público e um bem social e onde certas práticas empresariais não transformem pessoas doentes ou agonizantes em objetos de mercancia, tão ao gosto do apetite do lucro fácil e injusto.
A verdade é que muitas são as empresas de seguro de saúde ou de seguro de vida que escancaram suas portas indistintamente a todas as pessoas, sem nenhuma preocupação com a avaliação prévia, e, depois, quando o aderente vence o prazo da carência e cumpre pontualmente seus pagamentos, e procura o justo benefício, isto lhe é negado, alegando impedimentos, dentre outros, o do chamado “doença preexistente”.
Nem sempre é fácil, mesmo para um paciente de certo grau de instrução, ter consciência exata de uma doença preexistente que lhe possa ter repercussões sérias no futuro e que seja impeditiva de adquirir um plano de saúde ou uma apólice de seguro de vida. No caso em tela foram necessários vários exames, alguns deles sofisticados, além de pareceres de especialistas para que se chegasse a um diagnóstico definitivo sobre o mal que o promovente era portador. Por isso, consideramos para tais fins “doença preexistente” como aquela que é diagnosticada pelo médico ou que se manifesta de forma tão clara que não traga maiores dúvidas de sua existência e de suas repercussões.
Destarte, não é exagero lembrar que todo contrato de seguro, como o de convênio de saúde, não pode nem deve se afastar dos princípios elementares que regulam o regime contratual: princípio da autonomia da vontade, princípio do consensualismo, princípio da força obrigatória e o memorável princípio da boa-fé, sem deixar de levar em conta a transparência das informações e a vulnerabilidade do paciente, sempre hipossuficiente economicamente e menos informado.
A utilização dos contratos de assistência médica vem se propagando de forma vertiginosa, trazendo na sua esteira um número impressionante de questionamentos nos aspectos dos interesses, não tanto da área dos profissionais médicos, mas sobretudo da relação entre o usuário e a administração dos planos de saúde. Basta ver o número de contestações que se avolumam mais e mais na Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor, nos Juizados Especiais de Pequenas Causas e nas Varas Especializadas, a despeito da existência entre nós do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990).
Assim, o que tem saltado à vista em certos planos de saúde é a informação velada, as cláusulas leoninas e a recusa na prestação de procedimentos mais onerosos. O que pensar, por exemplo, de uma instituição prestadora de serviços médicos que escancara suas portas indistintamente a todas as pessoas, sem nenhuma preocupação com a avaliação prévia, e, depois, quando o aderente vence o prazo da carência com os pagamentos pontuais e procura o atendimento, lhe é negado, alegando-se um impedimento existente à época da celebração do contrato?
A empresa que explora plano de seguro-saúde e aceita contribuições de associado sem submetê-lo a exame prévio não pode escusar-se ao pagamento de sua contraprestação, alegando omissão nas informações do segurado. Assim foi entendido no Recurso Especial n.º 86.095-SP, Registro n.º 96.0003009-0, relator Min. Ruy Rosado de Aguiar.
Algumas vezes nem se leva em conta a boa-fé do paciente. Nem se considera a possibilidade de o mesmo desconhecer seu real estado de saúde quando aderiu ao plano assistencial. Se para um médico, mesmo para o especialista, é impossível assegurar, com uma margem permissiva de segurança, o dia em que alguém foi acometido de uma doença de caráter metabólico, por exemplo, sujeita aos impulsos indecifráveis da constituição de cada um, muito mais o é para um paciente de modesta compreensão e inteiramente leigo em questões de patologias.
Acresça-se a isso o fato de o paciente não ter obrigação de entender certas particularidades ligadas às doenças. Não tem o dever de saber se são portadoras de tal ou qual enfermidade, nem muito menos quando elas tiveram seu início ou se são ou não patologias com indicação cirúrgica. Essa tarefa é própria dos médicos. E sabe Deus o quanto isso às vezes é difícil.
Deveria existir de forma compulsiva a exigência de uma avaliação clínica pré-admissional aos planos de saúde e seguro de vida para evitar o desconforto de tantas e desnecessárias lides.
Grandes são os desafios e as perspectivas que se abrem com a edição da Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990, dispondo sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Certamente, será mais uma forma de estimular a consciência nacional na direção de garantir o exercício da cidadania de dois segmentos tão importantes da sociedade.
As normas constitutivas deste Estatuto não devem significar apenas mais um efeito publicitário do governo, mas um instrumento com que a comunidade ou os grupos sociais organizados vão contar para denunciar e lutar contra os horrores dos dramas e das aflições que flagelam tão impiedosamente as camadas mais desarrimadas da população brasileira, tendo na infância e na juventude os seus reflexos mais cruéis.
A Constituição Federal, em seu artigo 227, já chamava a atenção que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
O Capítulo I do Título II do Estatuto da Criança e do Adolescente trata da relação dos profissionais de saúde com as políticas sociais públicas que favorecem os menores, desde a assistência pré e perinatal das gestantes no Sistema Único de Saúde, até as condições dignas da existência de cada criança e de cada jovem. Os hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde da gestante, sejam públicos ou privados, são obrigados a manter o registro das atividades desenvolvidas, por meio de prontuários individuais, pelo prazo de dezoito anos; a identificar o recém-nascido mediante o registro de sua impressão digital ou plantar a impressão digital da mãe, sem prejuízo de outros procedimentos recomendados pela autoridade administrativa competente; a proceder a exames visando ao diagnóstico e ao tratamento de anormalidade do metabolismo do recém-nato, bem como a prestar orientação aos pais; a fornecer declaração de nascimento onde constem necessariamente as intercorrências do parto e do desenvolvimento do recém-nascido; e a manter alojamento conjunto, possibilitando ao neonato a permanência junto à mãe.
Caso o responsável ou dirigente do serviço não mantiver o registro das atividades desenvolvidas ou não emitir a declaração de nascimento com as especificações citadas, ou se o médico, enfermeiro ou dirigente de estabelecimento de saúde não identificar corretamente o neonato e a parturiente, por ocasião do parto, poderá ser punido com a pena de detenção de seis meses a dois anos, em ação pública incondicionada, pregam os artigos 227, 228 e 229 daquele Estatuto.
Diz ainda o seu artigo 245 que será punido o médico de estabelecimento de ensino fundamental, pré-escola ou creche que não comunicar à autoridade competente os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente, com pena de multa no valor de três a vinte salários de referência, aplicando o dobro em caso de reincidência.
O Estatuto ainda assegura à criança e ao adolescente o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, prestação e recuperação da saúde, através do SUS, sendo que os portadores de deficiência deverão receber atendimento especializado. O Poder Público está obrigado a fornecer gratuitamente os medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação e reabilitação.
Os estabelecimentos de atenção à saúde deverão proporcionar condições para a permanência em tempo integral de um dos pais ou responsável, nos casos de internação da criança ou do adolescente. O Sistema Único de Saúde promoverá programas de assistência médica e odontológica para a prevenção de enfermidades que afetam a população infantil e promoverá outrossim campanhas de educação sanitária para pais, mestres e alunos, obrigando-se à vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.
Tudo isto está na lei. Esperamos que se concretize na prática.
O Código de Ética Médica vigente foi elaborado depois de demorada discussão com a categoria médica e depois de ouvir outras categorias de saúde, os segmentos organizados da sociedade civil. Por isso, esse Código, além de representar um instrumento valioso, no sentido de indicar os caminhos do médico na sua forma de se conduzir profissionalmente, significa também um compromisso político dos profissionais da medicina com o conjunto da sociedade, com o indivíduo e com o seu meio ambiente.
Por incrível que pareça, é neste instante de maior progresso científico e tecnológico que despontam os mais desafiadores problemas de ordem social, moral e econômica, capazes de golpear fundamente a consciência do observador menos atento.
Criam-se metrópoles de aço e concreto, verticais e desumanas, de árvores cor de chumbo e céu escurecido por uma atmosfera de fumo e pó. Investem-se nos mais sofisticados meios utilitaristas que essa tecnologia pode oferecer, e o homem continua mais triste e mais desolado. Há uma solidão e uma angústia em cada esquina. São cidades mortas, sem esperança e sem ilusão – cidades de homens taciturnos e solitários, apressados em chegar como se tivessem um destino, sujeitos a renunciar a tudo quanto o progresso lhes empresta pelo lirismo e pelo colorido singelo de quem habita uma beira de praia remota ou uma vertente de um vale, longe da visão dos monumentos, mas pensando em criar uma eternidade.
O primeiro aspecto a ser considerado na concessão ao meio ambiente é o direito à sanidade.
O Código de Ética Médica de 2009 irrompe a marcha de seus dispositivos, no Capítulo dos “Princípios Fundamentais”, afirmando dogmaticamente que “a Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminação de qualquer natureza”.
Esta postura avançada do Código – que não se restringe ao tratamento das doenças, mas investe no reencontro do médico com uma proposta capaz de favorecer “a saúde do ser humano” – é significativa e inovadora, na medida em que o compromisso do profissional não se detém apenas no plano curativo, senão promovendo, na integralidade do contexto social, o bem-estar geral da coletividade. Ou seja, seu compromisso não é pelo fato de ele ser apenas um doente, e sim pela condição de ser humano, e como tal, sem qualquer diferença, tem direito a um padrão de vida e de saúde que lhe assegure as condições mínimas de sobrevivência e de dignidade. E é nesse mínimo que não pode existir discriminação. Não se trata de supérfluo, pois isto é privilégio e não direito.
Por outro lado, deve-se entender que a saúde da população é uma resultante de dois fatores condicionantes: o tipo e o nível de vida e a organização dos serviços assistenciais que lhe são oferecidos. Hoje, o conceito de saúde-doença mudou. Não tem mais uma única causa – puramente médica, iniciada com a descoberta dos agentes patógenos. Mas um enfoque multicausal que considera o processo como uma relação entre o indivíduo e o seu meio ambiente.
À medida que crescem as esperanças na técnica e nas ciências médicas, possibilitando uma maior disponibilidade na salvaguarda dos interesses coletivos, o desempenho de certas atividades deixa de ser um assunto estritamente privado, para constituir um fato de interesse coletivo, regulado por normas e princípios ditados pelo Poder Público. É falsa a afirmação de que o direito à sanidade não implica o dever do Estado, mas exclusivamente da sociedade. O dever do Estado na garantia dos direitos sociais vem implicar necessariamente a ruptura com a política social restritiva, em busca da universalização da cidadania. Se o Estado ficar apenas exercendo a função bancária de compra de serviços, dificilmente teremos o controle das estruturas de proteção dos bens públicos. A equitativa e universal prestação de cuidados preventivos, curativos e de recuperação da sanidade da população é uma questão de justiça social, que hoje não pode deixar de ser considerada como direito fundamental da pessoa humana e como dever do Estado.
A redefinição do papel político da sanidade, como um direito de cidadania e um dever do Estado, é um fato novo, decorrente das lutas dos movimentos sociais. Desse modo, para qualquer cogitação de oferecer solução para elevar o nível de saúde da população, deve-se levar em conta que o problema é essencialmente social, e que não pode ser resolvido simplesmente com manobras falsamente paternalistas. A saúde se distribui, social e geograficamente, com a renda. A redistribuição da saúde implica a redistribuição da renda, como afirmava Carlos Gentile de Mello.
O item II dos Princípios Fundamentais do Código de Ética Médica referido diz que “o alvo de toda atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”.
Deixa claro o aludido dispositivo que o ato médico deve ser entendido como um ato político, exercido de forma consequente, consciente e organizada, com recursos que tenham como meta a saúde do ser humano e da coletividade, porque a saúde ou a doença, como fenômenos sociais, exigem uma intervenção inteligente e programada dirigida para o bem comum. A doença não é um fato isolado, nem o médico deve permanecer sempre no epicentro das eclosões nosológicas, mas também na periferia das causas morbígenas. Ele tem que ampliar sua capacidade sobre o meio. Tem de reduzir seu poder asfixiante sobre o indivíduo e lançar-se às mudanças das relações sociais.
No Capítulo dos “Direitos Humanos”, reza o artigo 23 que é vedado ao médico “tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto”. Acreditamos que o Código tem, neste Capítulo, o seu mais distinguido avanço e a melhor proteção da cidadania, que fazem dele um instrumento de conquista democrática. Colocar o médico como profissional incorporado às necessidades sociais e políticas da população é também outro reconhecimento desses direitos inalienáveis do ser humano. Este é o sentido mais eloquente. Ao tratar dos direitos humanos, ele busca reencontrar a dignidade do médico, do seu paciente e da sociedade.
No entanto, esses direitos, mesmo sendo declarados em termos individuais, não devem ser vistos como privilégios do cidadão isoladamente considerado, pois as sociedades, ainda que desarmônicas, são formadas de individualidades. Por isso, os direitos humanos, mesmo sendo considerados como prerrogativas individuais, devem ser analisados no sentido coletivo de transformar e avançar a sociedade no seu tempo e na sua realidade. Mesmo porque os direitos humanos não são invocados em favor desse ou daquele indivíduo, mas em favor de todos eles. Seu rumo é na direção do respeito aos direitos consagrados a cada homem e a cada mulher, mas também no propósito de criar-se uma sociedade solidária e justa, que represente o fim de todas as desigualdades.
O papel do médico é fundamental na efetivação do exercício de cada cidadania, pois, quando seu trabalho não está sintonizado em favor do indivíduo e do bem comum, ele se transforma num elemento de pressão, capaz de influenciar negativamente a vida e a saúde das pessoas e da coletividade. Infelizmente, tem faltado ao médico não a urbanidade no trato com seus doentes, mas a consciência da dimensão de suas atividades como vetor de fomentação do bem coletivo e a noção de que, entre as possibilidades da ciência e o bem-estar real, existe um abismo largo e profundo. É preciso também que os médicos ajudem a sociedade a lutar cada vez mais por melhores níveis de vida, pois essas questões ligadas ao direito e à sanidade não podem ficar exclusivamente nas mãos dos técnicos.
Outro aspecto a ser considerado na concessão ao meio ambiente é o direito de conviver em lugares ecologicamente equilibrados.
Este requisito tão essencial – o de viver em ambientes saudáveis, livres dos fatores nocivos à saúde e protegidos os seus recursos naturais e culturais – não deve ser apenas um princípio meramente constitucional (“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações” – Artigo 225, caput, da Constituição Federal de 1988), mas um imperativo consagrado na proteção inalienável do meio em que se vive, principalmente, quando a humanidade já se vê ameaçada da própria existência.
Considerando-se o médico como agente de saúde indispensável, sabendo-se do valor da relação do homem com a natureza e conhecendo-se a importância da qualidade do ambiente como gerador de doenças, não se pode ficar indiferente a uma estratégia que defenda a saúde do trabalhador a partir do próprio local de trabalho. Não é exagerado falar-se de “saúde do trabalhador”, hoje ainda muito limitada ao ambiente fabril, mas que necessita de uma abordagem mais séria no seu aspecto cultural e socioeconômico, condicionando melhores níveis de vida e de saúde em favor da classe obreira. Mesmo que o problema da poluição afete primeiramente o trabalhador em seu local de trabalho, a verdade é que esse fato compromete também a comunidade e, por essa razão, não poderia deixar de merecer, pelos tantos que redigiram este Código, maior preocupação e normas tão adequadas.
Outra coisa: a sociedade não deve incentivar o trabalhador na troca de sua saúde pelo pagamento de percentuais de insalubridade e periculosidade, como alternativa mais barata e que isenta o patronato insensível de maiores investimentos na melhoria das condições ambientais do trabalho. Essa premiação do risco é criminosa e lesiva aos interesses coletivos. Por isso, é importante que se incentivem as informações aos trabalhadores por profissionais de saúde sobre as condições de trabalho, sobre as doenças mais comuns e sobre o controle do risco de cada setor laboral.
Mesmo sabendo-se que, pela legislação específica, é atribuição dos fiscais do Ministério do Trabalho, dos membros das Comissões Internas de Proteção de Acidentes, do Departamento Nacional de Segurança e Higiene do Trabalho e das lideranças dos trabalhadores sindicalizados, o Código de Ética dos médicos não poderia deixar de punir a falta de esclarecimentos aos trabalhadores sobre riscos de vida e de saúde e de denunciar esses fatos às autoridades competentes, inclusive aos Conselhos Regionais de Medicina de sua jurisdição. Não se pode conceber que as propostas em defesa do meio ambiente não estejam interligadas ao setor de saúde no seu todo, no que se refere a seus planos, programas, atividades e serviços voltados para os cuidados dos locais de trabalho.
Os citados dispositivos deixam claras as preocupações no Código com a saúde integral da sociedade e com as formas de luta em favor da criação ou da manutenção das condições saudáveis de vida. E não apenas na sua vocação histórica de tratar seus pacientes como pessoas isoladas, mesmo que isso não constitua nenhum menosprezo a cada indivíduo, pelo que ele representa na textura social.
Infelizmente muitos não consideram ainda a relevante contribuição do médico como agente fomentador da saúde e, por conseguinte, do bem-estar social. Há aqueles que acreditam caber ao médico apenas o ato de “medicalizar” o paciente e lavar as mãos, indiferente a tudo que possa ocorrer numa desastrosa política de saúde que não atende às necessidades básicas das pessoas. Ou vê-las voltar a conviver com os mesmos fatores morbígenos causadores de suas doenças, quase todas evitáveis. Se a saúde dos indivíduos e da coletividade e as condições do meio ambiente não formam um problema mais próximo do médico, não se sabe, afinal, qual é a sua participação num sistema integrado e universalizado de saúde. Assim, o médico não deve ficar apenas no exercício da atividade curativa e na organização dos serviços assistenciais, senão, ainda, assumir parte da responsabilidade na questão da saúde pública, da educação sanitária e da luta pela melhoria das condições de vida e de saúde coletivas. O médico não deve considerar a doença como um resultado da fatalidade.
Destarte, o médico inserido numa proposta política de reforma sanitária, por meio de ações organizadas de saúde, não pode deixar de colaborar com aqueles que planejam, organizam e executam os planos de saúde pública, pois essa é a forma mais racional de alcançar melhores resultados nesses programas.
Sendo o médico conhecedor das determinantes sociais do processo doença-saúde, que tem como causa fatores resultantes das condições de alimentação, habitação, renda, educação, emprego, lazer, transporte, organização dos serviços de saúde e cuidados com o meio ambiental, não é exagero dizer o valor de que se reveste tais preocupações no Código de Ética Médica.
Os poluidores e deterioradores do meio ambiente não existem apenas nos locais de trabalho. Eles já atingem graus insuportáveis em todos os lugares, e poucas são as providências tomadas a esse respeito. A dicotomia artificial entre ambiente interno e ambiente externo do trabalho tem criado dificuldades e impedido ações efetivas sobre os fatores de poluição.
E mais: dizer que tais fatos não se ajustam à função da medicina é, no mínimo, desconhecer as consequências e os malefícios desses fatores ou relegar a um ponto muito obscuro o papel do médico. Cabe-lhe, pelo menos, denunciar às autoridades competentes essa forma de deterioração no meio ambiente, pelos reais perigos que tais poluidores vêm causando ou que possam causar às condições de vida e de saúde no nosso meio ambiental.
Não temos nenhum entusiasmo nem nenhuma expectativa com os planos de saúde que estão grassando por aí; basta ver como eles responderam às iniciativas contidas na Resolução CFM n.º 1.401/1993 e como disputam o mercado de prestação de assistência médica conveniada.
Nunca acreditamos nas empresas de seguro-saúde, nas empresas de medicina de grupo nem nas cooperativas de trabalho médico como solução para os graves problemas de saúde do povo brasileiro, pois seu alvo primeiro não tem sido a melhoria dos níveis de vida e de saúde dos aderentes aos seus planos, mas as vantagens financeiras do cooperado.
Outro lado discutível das cooperativas médicas, que aparentemente não demonstram interesse de ganho e se autodeterminam como entidade de fins não lucrativos, é o da orientação pelo processo condenável da remuneração por tipos de procedimento, numa filosofia de conflitos, pois, enquanto a cooperativa se empenha e usa expedientes para diminuir os custos, inclusive com o controle dos exames subsidiários, os cooperados buscam produzir mais em face do estímulo do pagamento por tarefa.
Na verdade, todas as formas de exercício profissional liberal privado são livres, desde que não estejam defesas em lei e que ao exercê-las esteja o profissional legalmente habilitado. Assim também é livre o exercício da atividade em cooperativas, até quando essas entidades não afrontem sua própria legislação regulamentadora.
Se o Estatuto de uma cooperativa não fere a Lei Federal n.º 5.764/71, ao excluir cooperado que deixa de atender às suas próprias normas estatutárias, não há por que entender a medida como abusiva ou ilegal.
A determinação que se orienta por não permitir que o cooperado, seja ele pessoa física ou pessoa jurídica, participe de outros planos privados de assistência médica, não quer dizer dominação de mercado, eliminação da concorrência, exercício desleal da profissão ou manobras monopolistas. O que a instituição quer dizer com isso, através do seu Estatuto Social, é que o associado não participe de outras entidades particulares que explorem planos de assistência médica. E isto não está vedado em lei. Assim se pronunciou a Justiça de Caxias do Sul – RS, em sentença confirmada unanimemente pelo Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul, julgando a Apelação Cível n.º 594.120.503.
O princípio constitucional de liberdade de trabalho não impede que o grupo cooperado, por vontade própria, decida limitar-se na amplitude do seu exercício profissional como forma de proteção e de fidelidade ao seu próprio patrimônio. Cada um, livremente, ao entrar na cooperativa médica, de forma consciente, aderiu às normas vigentes que regulam os interesses da entidade.
Os dispositivos do Estatuto Social da UNIMED/PB, por exemplo, não maculam os princípios da Carta Magna. Um deles prevê a eliminação dos quadros da cooperativa quando exercer atividade prejudicial aos seus pares ou praticar atos contrários aos objetivos da cooperativa. Outro aponta que o proprietário, associado ou credenciado, direta ou indiretamente, não pode prestar serviços a pessoas físicas ou jurídicas de qualquer natureza que explorem tal atividade com objetivos econômicos. Isso não apresenta nem de longe qualquer sinal de infringência aos princípios constitucionais.
É muito natural que um conjunto de pessoas, ao formar uma sociedade de qualquer finalidade, estabeleça uma norma interna, com direitos e obrigações, balizada pela necessidade de sobrevivência do grupo e desde que não afrontem as leis vigentes.
Quanto à decantada liberdade de trabalho, não está, pelo menos em nosso entendimento, afrontada. O fato de o Estatuto de uma cooperativa proibir que o cooperado se vincule a outra entidade concorrente não caracteriza desobediência aos princípios constitucionais, pois isso não interfere na limitação do pleno exercício profissional. Apenas o grupo se opõe que um dos seus cooperados participe de outras entidades concorrentes, sem o impedir de se desligar e se filiar a outra empresa de prestação de serviço médico concorrente.
No que se refere aos itens I, II, VII e VIII dos Princípios Fundamentais do Código de Ética Médica em vigor, in verbis:
I – A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.
II – O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.
(...)
VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
VIII – O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.
Não há como vislumbrar qualquer deslize, pois a inclinação desses dispositivos se dá noutra direção, que não é certamente a de incensar privilégios de mercado nem a de proteger interesses inconfessáveis.
No Princípio I do Código de Ética Médica, o que se apregoa solenemente é que a Medicina é um projeto em favor da vida do indivíduo, da coletividade e do meio ambiente, sem ranço de discriminação ou de opinião política. Desse modo, é fácil entender que a Medicina não pode ser confundida como proposta de um corporativismo inconsequente nem pode ela se afastar dos compromissos com o interesse comum, tornando-se uma atividade elitista e caprichosa, favorecendo apenas os grupos mais privilegiados.
No Princípio II, o que se exalta é ser o ato médico mais que um amontoado de regras técnicas. É um ato político, exercido em favor da cidadania. Neste instante, o médico deve entender que a doença não é um fato isolado e que não pode ele permanecer na periferia das eclosões nosológicas. O médico tem de aprender a manifestar sua profunda frustração ante a crescente disparidade entre as possibilidades da sua ciência e o bem-estar real, principalmente daqueles que sofrem a flagelação da injustiça e da iniquidade. Dizer que o alvo de toda atenção do médico são seus próprios interesses é envilecer a dimensão purificadora deste dispositivo e fazer da nossa profissão uma coisa pobre e mesquinha.
O Princípio VII trata da autonomia e da liberdade do exercício profissional médico. Não como quem toma isso igual a um privilégio de classe, mas como a liberdade e a autonomia de exercer um mister em favor do paciente.
O Princípio VIII quase que repete o anterior, quando afirma que o médico não pode abrir mão de sua independência nem renunciar à sua liberdade, para que isso não se manifeste negativamente na eficácia e na qualidade do serviço prestado.
Portanto, não há como ajustar tais dispositivos ao fato de o médico assumir o compromisso de fidelidade à sua instituição, à qual livremente aderiu depois de conhecer suas regras.
Um médico, ao se incorporar a uma dessas cooperativas de trabalho médico, sponte sua, e conhecendo todos os preceitos do seu Estatuto, não pode considerar-se traído caso venha ele ser ameaçado pelo fato de “exercer qualquer atividade considerada prejudicial à Cooperativa ou que colida com seus objetivos”.
Dizemos mais: sob o ponto de vista ético, é censurável alguém pertencer ao mesmo tempo a duas entidades não apenas concorrentes, mas que publicamente ou nos bastidores travam uma luta surda e medonha por espaços de mercado, e cujos conflitos ultrapassam os corredores dos hospitais.
Há três princípios que não podem ser esquecidos numa discussão como essa: 1.º) ninguém está obrigado a associar-se ou a permanecer associado a uma instituição de direito privado, cujo ingresso é livre e espontâneo; 2.º) a criação das cooperativas é assegurada por lei e as suas formas de convivência estão ali inseridas; 3.º) ninguém pode refutar aquilo que aceitou livremente.
Finalmente, não constitui infração aos ditames da Ética o fato de uma cooperativa de prestação de serviços médicos desligar de seus quadros um cooperado que exerce, como pessoa física ou jurídica, atividades consideradas prejudiciais ao grupo, desde que tal posição esteja estatutariamente definida. Isso não fere o médico no livre exercício de sua profissão, não lhe retira a autonomia, muito menos lhe impõe restrições ou imposições capazes de influenciar negativamente na eficácia e na correção do seu trabalho. Mas tão só um comportamento normativo, aceito livremente por quem quer continuar integrado na qualidade do cooperado. Esta é uma limitação aceita e aprovada interna corporis e que em nada afeta o Código de Ética Médica.
Managed care é um modelo de gerenciamento da saúde, defendido por alguns gestores de ações de saúde apologistas da nova medicina liberal, voltado para usuários, empresas e a população em geral. Tal proposta é defendida como forma de conter os altos gastos da assistência médica e hospitalar e pelo fato, segundo seus ardentes incentivadores, de ter grande sucesso nos países ditos desenvolvidos, notadamente por seus resultados preventivos e seus avanços socioeconômicos.
Lana enfatiza que “tudo isso viria a resultar num sistema híbrido, idealizado como um mecanismo de dispensação de serviços mais justo e equitativo dos recursos alocados à disposição da rubrica gastos com saúde dentro de um orçamento necessariamente limitado”. Tal mecanismo se autodenominou managed care, sendo implantado progressivamente, a partir do modelo americano, pelas HMO (Health Maintenance Organization) ou medicina de convênio ou pré-paga, como é assim denominado entre nós, parecendo representar uma solução aparentemente viável para reduzir ou minimizar os custos decorrentes da utilização dos serviços sob um prisma mais racional e econômico, sendo capaz de fazer face e controlar o aumento excessivo da demanda por parte dos usuários. Assim, no modelo proposto, um médico generalista, ao qual seria atribuída uma determinada tarefa em troca de uma remuneração global calculada per capita em proporção ao número de pacientes assistidos de determinada área geográfica sob sua supervisão, seria o porteiro (doorkeeper) de entrada no sistema, referindo os pacientes para determinados procedimentos clínicos e cirúrgicos ou consultas com especialistas, sempre que indicados segundo seu próprio critério pessoal de avaliação.
Na verdade, o que se propõe é uma transferência substancial da assistência para o médico generalista, proporcionando um maior ganho para os gestores do modelo, pois isso torna pouco oneroso o sistema.
De saída, preocupa-nos a qualidade dos serviços prestados em face da sobrecarga de responsabilidades a um único profissional e o impedimento da livre escolha do médico pelo paciente, o que não deixa de constituir um certo cerceamento da liberdade profissional.
Outro grave risco é a intimidade com capitais privados de procedência mercantilista, o que não deixaria de resultar empresas de finalidade meramente lucrativa, inclusive estimulando a redução de gastos com economia de pessoal, exclusão ao atendimento de patologias crônicas e de risco.
A medicina baseada em evidências, segundo seus ardentes defensores, seria a utilização racional e judiciosa da melhor evidência científica disponível para se tomar decisões sobre cuidados aos pacientes. Ou o processo de sempre descobrir, avaliar e encontrar resultados de investigação com base nas decisões clínicas.
Significaria, assim, o emprego do que se depreende melhor nos resultados científicos disponíveis procedentes da pesquisa e da investigação, e não do que possam dispor as teorias fisiopatológicas e a autoridade ou a experiência individual. Uma medicina baseada na análise estatística de efeitos. Em suma, uma medicina de resultados.
Da avaliação solitária e subjetiva do clínico passa-se a aceitar apenas, como de reconhecido valor científico, as informações oriundas da pesquisa de cientistas de peso em estudos demorados e em expressivo número de pacientes observados em serviços de excelência.
Algumas vezes até podemos ter dúvidas sobre uma melhor proposta de atenção à saúde diante de certas peculiaridades e contingências. Ou mesmo alguma dificuldade para saber se tanto investimento é justo e imprescindível. Todavia, o que se deve ter em conta é a convicta certeza de estarmos fazendo sempre aquilo que se nos apresenta como melhor e mais adequado ao paciente e que ele esteja recebendo o que é mais apropriado às suas necessidades e circunstâncias.
Mesmo que a saúde seja aceita e consagrada como um bem social da maior relevância, e que a utilização racional dos recursos que a ela se aplicam seja de imperiosa obrigação, não se pode admitir que a política de assistência à saúde individual ou coletiva seja uma prática voltada apenas para a contenção de gastos, ou, pior ainda, para o lucro desmedido. Não se pode retirar do paciente a melhor assistência dentro do que é disponível, justo e necessário.
No complexo exercício da arte médica há três níveis de incertezas que não podem ser omitidos numa análise como esta. A primeira seria relativa ao próprio paciente, quando se sabe que as pessoas são tão diferentes em seus aspectos físicos e emocionais como desiguais são os seus destinos; depois, as dúvidas que se originam no domínio de tantos meios tecnológicos e condutas recomendadas, algumas vezes até em conflito entre si, parecendo existir não apenas uma medicina, mas muitas; e, por fim, a própria postura do médico baseada em suas convicções, experiências, cultura e até mesmo nas suas habilidades pessoais (DANTAS, F. Normatizando e normalizando práticas não convencionais: ética e pesquisa num contexto de incerteza, Méd on-line, ano II, v. 2, n. 5, jan.-mar. 1999).
Além disso, é evidente que uma boa prática médica sempre será o resultado da experiência, da responsabilidade, da competência e do respeito à dignidade do assistido. Ou seja, aquela na qual se é capaz de tratar as pessoas com respeito, sentimento e eficiência.
Pelo visto, ao se defender a liberdade e a experiência pessoal do médico não se está defendendo as práticas não convencionais, os procedimentos desnecessários, nem muito menos aceitando todas as terapêuticas como efetivas e eficazes.
A facilidade de analisar e utilizar a clínica priorizada em evidências não está ainda na disponibilidade e no domínio de todos os que exercem a medicina. E estas publicações, com raras exceções, são de utilidade discutível na prática clínica do dia a dia. Perde-se muito tempo com consultas, e o resultado, em nível de solução, é até certo ponto desprezível.
Por sua vez, a barreira idiomática no acesso a algumas informações é um fato incontestável, e as limitações de meios e recursos em certas áreas fazem da medicina baseada em evidências uma utopia. As experiências trocadas entre clínicos de mesma área de concentração e que atuam numa mesma realidade têm se mostrado mais proveitosas.
O que se viu nestes últimos anos foi uma verdadeira enxurrada de publicações médicas, algumas em notória contradição, o que torna mais complicada ainda a decisão dos médicos – principalmente dos que estão na ponta do sistema. Isto sem dúvida reflete de forma negativa sobre as ações de saúde, não apenas pelos gastos desnecessários e tempo perdido, mas também pelos prejuízos que podem trazer aos pacientes. Publica-se, no mundo, uma média de 30 mil revistas biomédicas por ano. Se alguém quiser estar em dia com determinados temas mais específicos deverá ler cerca de 300 artigos e 100 editoriais por mês, nas revistas de maior destaque (SILVA, J. J. S. Medicina basada en evidencia: um desafio permanente, Revista Hospital Clinico Universidad de Chile, 2:142-144, 1999).
Por outro lado, no instante em que a medicina baseada em evidências tenta “clicherar” o atendimento baseado unicamente em dados estatísticos, fugindo da avaliação da experiência pessoal e da capacidade de conduta do médico diante de cada caso, ela desfaz o conceito de que “não existem doenças e sim doentes”.
De onde provém o conhecimento médico que se aplica diariamente na prática profissional? Será do que existe na literatura mais sofisticada das revistas do mundo avançado? Certamente, não. É da experiência pessoal do dia a dia, embora isto não queira dizer que sua cultura também deixe de ser da experiência de tantos outros que publicam ou divulgam seus conhecimentos. É fato inegável que o conhecimento está enraizado na experiência pessoal, de acordo com o que se repete na prática diária do médico, sem que isto se constitua numa propriedade intelectual ou que lhe dê sempre o selo da autoridade. E nem sempre as decisões mais acertadas são as dos que possuem maior notoriedade.
O risco da “sacralização” deste novo padrão assistencial e pedagógico de alcançar a verdade absoluta é o de que o modelo de “paradigmas” estabelece que espécie de problemas será estudada, que critérios devem ser usados para avaliar uma solução e que procedimentos experimentais podem ser julgados aceitáveis (KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas, 3. ed., São Paulo: Perspectiva, 1995).
A prática médica sempre será baseada num projeto que alie a arte clínica e o cálculo das probabilidades. Por isso já se disse que a medicina clínica, por mais avançada que venha a ser, será sempre a ciência das probabilidades e a arte das incertezas. Mesmo que uma ou outra evidência seja expressivamente denunciadora, por mais aparente que seja, não deve ser concluída como “fato”. No entanto, até podemos concordar com as evidências se estas forem dirigidas no sentido de balizar determinadas condutas nos seus aspectos éticos ou deontológicos caracterizadas pela má prática.
É necessário que se entenda que, pelo fato de determinado procedimento ser tecnicamente correto, seja ele de forma absoluta eticamente certo. Assim, o ato médico criterioso pode ser visto por dois aspectos: o do procedimento correto e o da retidão moral (GRACIA, D. Medicina basada en evidencias, Bioética, 8. ed., 2000, p. 74-84). Exige-se, portanto, uma análise criteriosa de cada caso, para que as coisas fiquem nos seus devidos lugares: no expresso cumprimento da lex artis e no respeito à dignidade de cada pessoa.
Por outro lado, se fizermos uma leitura mais atenta no que se vem publicando em revistas de alto nível e de grande circulação, como New England Journal of Medicine, JAMA e British Medical Journal, entre outras, vamos observar que nos trabalhos ali publicados não existe nenhum critério para fundamentar “evidência”. É também necessário ter tempo para pesquisar na Internet e dispor de um acervo regular de revistas especializadas, além do domínio de idiomas estrangeiros. Esta é uma tarefa difícil e trabalhosa.
Toda ciência experimental é um saber dedutivo e não indutivo. Tem uma dedução empírica, nunca é completa e suas conclusões são sempre prováveis. O princípio aristotélico de que as verdades científicas são sempre certas e verdadeiras tende a modificar quando o assunto em discussão é uma ciência indutiva e experimental.
A verdade é que mesmo existindo duas opiniões opostas (equiprobabilismo), defendidas por pessoas prudentes e qualificadas, pode qualquer uma delas ser adotada e ser igualmente aceita como certa. Ou, ainda, existir uma opinião defendida por apenas um autor competente e experimentado, e esta conduta ser seguida prudentemente (laxismo). Todavia, na lógica da “medicina de resultados”, evidências incompletas e conflitantes, além de aumentarem a incerteza, podem criar mais dúvidas ainda. Na urgência e na emergência isto se verifica com mais razão e com resultados mais graves.
O risco desta nova ordem é fazer acreditar existirem mais evidências do que a medicina realmente possa ter e apresentar. E mais: pode até em determinadas situações retardar o avanço da medicina e promover uma falsa opção aos mais jovens. Estas foram as conclusões de um dos mais importantes criadores deste novo movimento denominado medicina baseada em resultados quando, entre outros, anunciou de público “nunca mais escrever ou atuar em qualquer coisa relacionada à prática clínica baseada em evidências” (SACKETT, D. L. The sins of expertness and a proposal for redemption, BMJ, 320:1283, 2000).
Outro risco é o de certos conceitos estarem transformando a medicina numa “sacola de truques” (BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalência, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995). Ou o de profissionais jovens aceitarem alguma ideia nova não com a convicção do seu valor científico, mas tão só pela publicação estar em língua estranha ou ser originária de centros tidos como avançados. Ou que se venha desdenhar da relação médico-paciente como um ato romântico que não cabe mais neste programa de exatidão metodológica (DUCLOS, J. Medicina basada en evidencias: una estrategia que acerca o aleja de la medicina interna?, Revista Chile, 127:1398-1402, 1999).
Nenhum expert pode presumir-se de autoridade incapaz de erro, mesmo não intencional, porque não existe verdade soberana. Por isto é sempre aconselhável não se procurar certeza absoluta quando tudo isso se mostra impossível diante de decisões instáveis, pois os caminhos da medicina clínica são contingentes e falíveis, e não há na sua prática “verdades derradeiras”. O conhecimento científico está sempre em franca evolução. Sempre que possível, deve-se avaliar uma proposição com base nos fatos e na lógica que a sustentam, e não nas qualidades pessoais ou no status dos seus defensores (SOKAL A. e BRICMONT, J. Imposturas intelectuais – O abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos, Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 2.079).
Os métodos científicos não são muito diferentes das coisas racionais do dia a dia. O que a ciência faz a mais é utilizar-se de testes e controlar estatísticas, insistindo na repetição ordenada de experiências. Isto, no entanto, não é o mesmo que dizer que a ciência é menos valiosa que a observação dos fatos cotidianos. Mas, no fundo, ela só serve para explicar a coerência das nossas experiências.
Em algumas oportunidades o que se verifica mesmo é uma política de compensação, que em outra coisa não se firma senão na redução de gastos com hotelaria, com a diminuição do tempo de internamento, com a restrição de solicitação de exames subsidiários e com o indisfarçável aviltamento dos salários profissionais. Tudo isto ditado por um sistema empresarial que promove a colonização médica.
É bom lembrar que algumas objeções feitas à chamada medicina baseada em evidências não significam intolerância às inovações advindas da tecnologia moderna, nem muito menos ao que se incorpora de meios e recursos em benefício dos pacientes.
A própria expressão “evidência”, tal qual vem sendo colocada aqui, já se mostra inconsistente, pois se diz que algo é evidente quando prescinde de prova ou quando dispensa uma justificação. Evidente é o que se mostra notório. A evidência é inimiga da prova. Ela é a consagração da verdade. Assim, o importante é saber o que se pode considerar como “evidência”, e quem a determina como “fato concreto”.
Por outro lado, dizer que evidências em medicina são “dados e informações que comprovam achados e suportam opiniões” não oferece a segurança que se espera. Como qualificar uma medicina que se diz evidente, racional e científica quando ela depende tão só de percentuais levantados em dados estatísticos? E o que fazer, por exemplo, quando se sabe que há tópicos da medicina prática para os quais não se conta com nenhuma evidência convincente?
Até podemos entender que muitas das decisões tomadas em epidemiologia clássica sejam baseadas em dados estatísticos, na tentativa de se criarem novas “evidências” para a prática das ações em medicina preventiva. Mas daí dizer que tal lógica deve conduzir e definir as questões de natureza clínica parece um exagero. Primeiro, a clínica trata das consequências e a epidemiologia das causas; depois, na clínica, o centro do interesse está no prognóstico através da prevenção secundária e terciária, e, na epidemiologia, nos fatores de risco na prevenção primária; e, por fim, a clínica baseia-se num raciocínio dedutivo (da doença para o caso concreto) e a epidemiologia, num raciocínio indutivo (dos casos para a doença).
O risco das ideologias no campo da saúde está no seu caráter reacionário e centralizador por não admitir o pensar ou o agir individual. Sua inclinação é pelas ideias abstratas. E o mais desanimador em medicina baseada em evidências é que quanto mais complexo é o quadro clínico, menos evidências científicas ela dispõe para uma convincente tomada de decisão.
Outro risco é a tendência de as conclusões das revisões continuadas serem mantidas pela aceitação de trabalhos que só se reportam aos resultados que se ajustam às conclusões esperadas e não àqueles que revelam consequências adversas ou que não se enquadram numa determinada linha de critérios estabelecida na seleção dos artigos de revisão, deixando-os de fora por razões nem sempre justificadas (LAMPERTS, A. Methodological studies of systematic review: is there Publication Bias?, Arch. Intern. Med., 157:357, 1997).
Diante do exposto, fica bem evidente que ninguém de bom senso poderia voltar-se contra, ou pelo menos ficar indiferente, a todo este acervo cultural e a toda contribuição tecnológica que vêm se inserindo às ciências médicas nestes últimos tempos. Tampouco o que tudo isto pode resultar de contribuição na luta cada vez mais eficaz contra as doenças e em favor dos melhores níveis de vida e de saúde da população.
Todavia, não se pode admitir serenamente que a medicina abra mão da intuição, das teorias fisiopatológicas consagradas e da experiência clínica pessoal, pois não existe nenhuma análise metodológica, nem nenhuma prova científica aprimorada, que não tenha como partida a vivência e a observação individual na prática profissional. Ainda mais: a baseada em evidências não é uma receita pronta e acabada na orientação de todos os procedimentos médicos. Ainda mais quando diante da multifária condição humana permanecem tantas incertezas em derredor dos processos clínicos (CASTIEL, L. D. e PÓVOA, E. C. Dr. Sackett & “Mr. Sackteer”... Encanto e desencanto no reino da expertise na medicina baseada em evidências, Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, n. 17 (1), p. 205-214, jan.-fev. 2001).
O ideal será sempre a associação da investigação clínica científica, do ensino médico continuado, das teorias fisiopatológicas consagradas e da contribuição de cada experiência pessoal. Também a análise e a aplicação racional da informação científica, aliadas à experiência clínica de cuidar de pacientes, seja o indivíduo ou o coletivo, dentro das concepções humanísticas que sempre nortearam esta profissão e a colocaram num lugar de destaque.
A medicina preditiva caracteriza-se por práticas cuja proposta é antever o surgimento de doenças como sequência de uma predisposição individual, tendo como meta a recomendação da melhor forma de preveni-las.
Por tais projetos, como se vê, muitas são as questões levantadas, tanto pela forma anômala de sua relação médico-paciente como pela oportunidade de revelar situações que podem comprometer a vida privada do indivíduo ou submetê-lo a uma série de constrangimentos e discriminações, muitos deles discutíveis.
A saúde e as liberdades individuais representam, num estado democrático de direito, os bens mais fundamentais. A saúde como um bem irrevogável e indispensável que cabe ao Estado sua garantia e seus meios de organização. E a liberdade como um ganho consagrador da cidadania e da luta dos povos.
Tão íntima é esta relação entre a saúde e a liberdade que não se pode admitir qualquer proposta em favor da melhoria das condições de vida e de saúde das pessoas sem se respeitar a autonomia delas, mesmo quando elas não estão dispostas a se submeterem a certas condutas que possam ser consideradas de risco, a exemplo das práticas invasivas da nova tecnologia médica. Assim, não seria exagero admitir-se que ela tanto pode ser uma forma de proposta vantajosa como uma ameaça à liberdade individual.
O ideal será sempre encontrar um modelo onde se conciliem a liberdade do profissional ou do gestor de saúde com o uso individual da liberdade, pois só assim será mais fácil a correção das distorções da natureza para a busca do bem-estar individual e coletivo.
Por isso, o certo é encontrar um caminho onde se procure minimizar o sofrimento e o dano por meios assistenciais à saúde sem o risco dos limites da liberdade individual capaz de ameaçar o sentido crítico das pessoas através de um paternalismo secular de proteção. Não há como existir ainda a chamada “superioridade de juízo”.
Muitos são os países que vivem hoje protegidos das epidemias e das catástrofes das doenças curáveis e evitáveis em face da organização dos serviços de saúde e dos níveis de vida de sua população. Muitas são as comunidades que hoje estão livres da morte prematura e das patologias incapacitantes. A luta em favor da saúde e do bem-estar é uma obrigação moral que se deve impor ao Poder Público. Uma política que prioriza a saúde como uma preocupação de caráter público e de interesse social, respaldada por recursos substanciais capazes de garantir todo este projeto.
É neste instante que a sociedade livre e organizada pode e deve contribuir. Ou seja, não é apenas com a garantia da autonomia e da exigência do direito ao consentimento livre e esclarecido, pois este documento por si próprio não é bastante para assegurar uma relação mais respeitosa nem basta para isentar possíveis culpas. Com isso pode-se criar uma “medicina contratual” de bases falsas.
Entender também que consentimento livre e esclarecido, operacionalizado no princípio da autonomia e da beneficência, não deve representar apenas um fato do interesse médico, mas antes de tudo uma questão político-social própria das sociedades organizadas. Todo cidadão tem o direito de saber sua verdade e participar ativamente das decisões que dizem respeito à sua vida social e, portanto, das decisões médicas e sanitárias que afetam sua vida e sua saúde. Ainda: estas informações devem ser passadas ao paciente numa linguagem que lhe permita o devido esclarecimento. Em suma: toda intervenção médica, para ser legítima, necessita do consentimento; o consentimento precisa de clareza na informação.
A fuga dos médicos para a chamada “medicina defensiva” não é apenas um equívoco senão também uma maneira de agravar cada vez mais a relação com o paciente, aumentando o mal-estar e as demandas judiciais. Mais: a questão do consentimento livre e esclarecido não pode ficar centrada apenas no médico e no paciente, mas também na própria instituição de saúde, na família do paciente e nos demais profissionais de saúde.
Não se pode mais aceitar o modelo paternalista de relação no qual somente cabia dar informação ao paciente e pedir seu consentimento quando isto representasse uma forma imprescindível de se ter um bom resultado através da sua colaboração na realização de um procedimento médico. Está claro que tal conduta não responde mais aos interesses da realidade atual.
Em contrapartida, esta mesma autonomia que permite ao paciente o direito de informação sobre dados lhe dá a prerrogativa de limitar o conhecimento destas verdades não permitindo que as demais pessoas delas tenham conhecimento, principalmente quando se tratar de seus dados genéticos. Do mesmo modo tem o indivíduo o “direito de não saber”, ele próprio, quando ao seu entendimento isto lhe traria perturbações de ordem psíquica capaz de alterar suas emoções, a exemplo de doenças futuras ou incuráveis, principalmente quando tais exames foram impostos por interesses de terceiros.
Por outro lado não é demasiado dizer que o Estado tem o direito de conscientizar os indivíduos no sentido de se conduzir de uma forma moderada e cuidadosa capaz de ter uma vida saudável, através de estratégias de uma política sanitária. Isto não quer dizer que se reduzam os espaços individuais através de práticas puritanas.
Se não levarmos em conta esta autonomia das pessoas, qualquer conceito que se tenha de saúde é ambíguo e fica difícil para o Poder Público impor regras sanitárias, simplesmente porque tanto a saúde como a doença exigem explicações.
Eis a pergunta que se impõe: como evitar as forma impositivas de discutir a saúde? Ou, melhor, como preservar a liberdade numa proposta democrática e plural em favor da saúde?
É claro que não existem regras prontas e acabadas para se aplicar programas dentro de uma política de saúde. As verdadeiras obrigações do Estado para com os indivíduos, no que diz respeito à saúde, são uma questão muito complexa e estão apenas no início de uma longa discussão. Por isso mesmo, não existe uma definição mais precisa capaz de apontar uma solução mais consensual. Muitas dessas obrigações ainda são confusas, tanto pelo caráter íntimo da autonomia individual como pela inexistência de um instituto jurídico que, nesse particular, defina e proteja tais deveres.
No instante em que a sociedade decidir de vez quais as suas obrigações para proteger cada uma das pessoas, com certeza vai existir uma definição de limites da conduta dela, limites estes que não seriam impostos se ela não estivesse, por exemplo, em situação de risco.
Desse modo, a sociedade pode exigir de cada um de nós uma obrigação a partir de certos cuidados; assim como não temos o direito de prejudicar as outras pessoas, temos a obrigação de não nos prejudicar, pelos mesmos princípios éticos devido a todos.
A tendência atual dos que representam o sistema de saúde é falar sempre dos interesses de saúde da comunidade, sem discriminação, sem limitação de qualquer natureza. A dúvida está num fato só: saber se, nos casos em que a sociedade permite o aborto, os fetos são ou não considerados pacientes.
A posição mais intolerante da sociedade é quando um indivíduo é portador de determinada desordem física ou mental. Muitas vezes o tratamento dar-se-á porque não se tem outra alternativa, a não ser conviver com uma pessoa em situação tão precária. Assim, poderemos fazer a seguinte indagação: a sociedade tem o direito de interferir na assistência de uma paciente terminal ou em estado vegetativo permanente, como forma de se evitarem os custos no sentido de beneficiar outras pessoas?
Vejamos o seguinte exemplo: quais as opções políticas capazes de influenciar o comportamento de uma mulher durante a gravidez, no propósito de favorecer o bem-estar do feto? Pode-se dizer que as políticas variam desde a concordância voluntária através da educação e do acesso aos serviços pré-natais até as sanções e pressões sobre a gestante. Sabemos que a aquiescência espontânea é a mais fundamentada das políticas, porque respeita os direitos das liberdades civis e a privacidade da mulher e ainda porque é a mais possível de ser efetivada.
Uma postura que deve estar sempre presente no papel do médico é estimular o tratamento voluntário. No entanto, sempre existirão aqueles que não concordam ou que não alcançam o valor de uma conduta adequada e terminarão por contribuir para os danos que afetarão a saúde.
Deveria o Estado ir além da educação e punir o comportamento maternal irresponsável, impondo sanções civis ou criminais quando venha a ocorrer um dano real ao indivíduo? Deveria o Estado prevenir o dano antes que ele ocorra, punindo e obrigando ao tratamento? Tudo faz crer que não.
Na verdade quem sofre e adoece é o indivíduo, mas é no coletivo onde se repercutem os conflitos.
Dentre os direitos sociais, a saúde se apresenta como um direito essencial da personalidade, pré-requisito básico de qualquer estado democrático que tem como projeto o alcance da cidadania. Por isso a saúde não pode ficar circunscrita apenas aos seus aspectos psicofísicos, mas deve se estender aos limites de sua liberdade existencial. Dentro desta premissa, o chamado “consentimento livre e esclarecido” não deve ficar apenas entendido como regra na relação médico-paciente, mas no respeito à vontade do paciente onde o direito à saúde é um direito fundamental de cada homem e de cada mulher. Esta é uma forma de devolver ao indivíduo sua própria soberania.
Na esteira deste raciocínio cabe a pergunta: se o indivíduo tem assegurada sua plena autonomia como direito fundamental assegurado, pode ele, por exemplo, vender seus próprios órgãos para transplante? É claro que a aceitação deste tipo de comércio deixaria evidente a situação de penúria de alguém a quem restou como oportunidade o comércio de seus próprios órgãos. Isto não pode ser aplicado aos casos de doação onde prevalece a solidariedade e o altruísmo, estes sim reconhecidos e aceitos dentro do ideário das liberdades humanas.
Dentro destas liberdades deve constar uma série de direitos que poderiam ser chamados de “biodireitos”, como do direito de procriar ou não procriar, direito de não ver seu patrimônio genético manipulado a não ser no interesse terapêutico, direito de saber a verdade sobre seus diagnósticos e prognóstico, direito ao ambiente saudável e o direito de morrer com dignidade ante as práticas distanásicas, entre outros. Enfim, todos os direitos que se concentrem dentro de área que vise ao bem-estar e à proteção da saúde.
Em contrapartida, há normas que limitam o exercício profissional inseridas nos direitos do médico e diante da indisponibilidade dos meios e recursos, quando é avaliado o pleito do paciente.
No que se refere à proteção da saúde, há uma intricada rede de implicações entre os direitos e as obrigações do médico ou do gestor de saúde em relação aos potenciais usuários de um sistema sanitário que modula a forma de atuar de cada um dos seus agentes.
Neste contexto, a liberdade do médico deve ser solidária e compreensiva, dentro de uma compreensão política e social que tenha como objetivo principal a saúde pública e privada, onde se consagre o consentimento livre e esclarecido, e, quando possível, a eficácia assistencial.
O primeiro dos direitos dos médicos provém das leis que lhe outorgam o exercer a profissão com liberdade, desde que devidamente habilitados legal e profissionalmente pelos órgãos competentes. Outros direitos estão assegurados no Código de Ética Médica dos Conselhos de Medicina do Brasil, constantes do seu Capítulo II, intitulado “Direitos dos Médicos”.
Estes direitos lhe são conferidos sem nenhuma predisposição corporativista, mas dentro de um projeto de condições necessárias para que ele possa exercer a medicina, na legalidade e na licitude que se fazem imprescindíveis nas suas atividades profissionais.
Daí a liberdade de o médico indicar procedimento que achar mais adequado dentro das normas reconhecidas e aceitas pela comunidade científica, a liberdade para apontar falhas nos regulamentos e normas das instituições em que trabalhe, a liberdade de se recusar a exercer sua profissão em instituições públicas ou privadas que não disponham das condições mínimas de trabalho e que possam trazer danos aos pacientes, a liberdade de internar seu paciente em hospitais onde não pertença ao seu corpo clínico e o direito de realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.
Um dos grandes desafios do futuro será a capacidade de se conhecer, através da chamada medicina preditiva, certas informações advindas da sequência do genoma, onde a capacidade de prevenir, tratar e curar doenças poderá se transformar numa oportunidade de discriminar pessoas portadoras de certas debilidades. Se estas oportunidades diagnósticas forem no sentido de beneficiar o indivíduo, não há o que censurar. No entanto, estas medidas preditivas podem ser no sentido de excluir ou selecionar qualidades por meio de dados históricos e familiares, como nos interesses das companhias de seguro, e isto pode ter um impacto negativo na vida e nos interesses das pessoas.
Não é exagero se pensar que amanhã estas companhias de seguro não venham considerar a pele branca de um indivíduo um fato encarecedor das apólices apenas por uma possibilidade vulnerável de câncer de pele? Chegará um tempo, certamente, com a possibilidade cada vez maior do reconhecimento no âmbito molecular, onde o perfil do DNA venha indicar uma propensão a uma doença cardíaca ou à possibilidade de alcoolismo, que estas companhias refutem de forma peremptória ou maximizem o prêmio tornando-o inalcançável aos aderentes de planos.
O American Journal of Human Genetics, no ano de 2000, fez uma pesquisa junto às administradoras de planos de saúde perguntando se elas ajustariam seus preços se tivessem informações genéticas de seus clientes, cobrando-lhes mais. Dois terços delas responderam que sim. As outras certamente mentiram afirmando que não aumentariam.
Não será nenhuma surpresa se amanhã se crie uma legislação onde se proíba a invasão do código genético com o fim de discriminar o indivíduo, deixando-o assim sem nenhuma garantia no que diz respeito à sua constituição genética. Hoje já se sabe que a presença de certo alelo tem uma probabilidade maior de desenvolver a doença de Alzheimer e logo mais teremos certamente informações sobre determinados fatores genéticos responsáveis pelas doenças psiquiátricas. Isto, com certeza, terá um impacto médico de maior significação a partir das possibilidades de tratamento e cura. Por outro lado, também poderá trazer consequências muito sérias capazes de promover implicações de ordens psíquica, social e ética.
O mais grave nisto tudo é que as enfermidades ditas poligenéticas ou multifatoriais podem ou não se desenvolver, ficando o indivíduo discriminado apenas pela ameaça de risco que ele corre de contraí-las.
O primeiro risco que corremos é o de natureza científica, pois não temos ainda o conhecimento bastante para determinadas posições de natureza genética, o que pode redundar em medidas precipitadas que no mínimo trarão ainda mais discriminação, mesmo que isso não passe de um fator de risco.
Outro fato é que existe um conjunto de doenças que poderá ser diagnosticado num futuro bem próximo; todavia, não se contará tão cedo com soluções exatas e eficazes, principalmente no que concerne a um sistema público de saúde. Muitas serão as oportunidades em que o único tratamento será à base de medidas eugênicas através do aborto.
Some-se a isso a possibilidade de conhecimento preditivo de doenças graves e sem tratamento criar no indivíduo condições para as perturbações de ordem psíquica ou fazer com que ele tome medidas radicais como, por exemplo, a de não ter filhos, desagregar a família e sofrer prejuízos econômicos. Isto não quer dizer, é claro, que se deva abrir mão dos meios que impulsionem a medicina preditiva, mas que se busquem mecanismos que diminuam seus efeitos negativos e discriminatórios.
Fica evidente que, mesmo existindo um futuro promissor advindo destas conquistas, seria injusto não se apontarem relevantes conflitos de interesses os mais variados que poderiam comprometer os direitos humanos fundamentais. É preciso que se encontre um modelo racional onde as coisas se equilibrem: de um lado o interesse da ciência e de outro o respeito à dignidade humana.
Por fim, é sabido que num estado democrático de direito não existe nenhuma prerrogativa individual que possa ter proteção absoluta, principalmente quando se admite também a proteção dos direitos fundamentais de terceiros. Isto, quando reconhecido, impõe limites ao princípio da autonomia. Assim, por exemplo, quando a vida e a saúde de terceiros estão seriamente ameaçadas pela negativa de informações individuais, a quebra do direito da intimidade justifica-se, baseado no princípio do estado de necessidade de terceiros. Este dever de solidariedade pública estaria justificado quando diante de uma situação excepcional.
Sempre que houver um conflito entre um interesse público e um interesse privado deve-se agir com prudência e ponderação, tendo em conta sempre a possibilidade do uso de medidas menos graves. Deve-se entender também que existe limites na intromissão da intimidade individual.
A vida e a saúde das pessoas têm um relevante significado na manutenção da ordem pública e na segurança do Estado e devem estar inseridas como questão prioritária em todo projeto social. Por isso, a saúde passa a ter um sentido político.
O conceito de assistência à saúde, entendido ainda por alguns como sinônimo de prática médica curativa ou preventiva, ou como simples organização dos serviços prestados em atendimento, não pode mais ser aceito. Mas como um conjunto de políticas sociais complementares que não passa exclusivamente pela prática assistencial. O conceito moderno de saúde transcende uma dimensão política, fruto de uma composição dos níveis e das condições de vida que vai além da organização sanitária. Resumindo: são as condições objetivas de existência de que necessita uma população ou a forma concreta de vida social, excluída da prática medicalizadora da saúde. É muito mais uma questão de forma de vida.
Dessa forma, a conquista e a preservação da saúde impõem políticas em favor da vida social e não há como o Estado deixar de ser responsável por este bem da população. A caridade facultativa em favor dos pobres, além de humilhante, é um ato aleatório que não alcança os interesses da coletividade devidos por quem representa juridicamente a sociedade política e compõe um estado democrático.
Este modelo não deixou de comprometer a área da saúde e da assistência médica, alterando em pouco tempo os padrões da política de saúde e da organização dos serviços. Para reverter todo esse quadro faz-se necessário uma ampla reformulação das relações políticas ao nível do Estado e da sociedade, fomentando a descentralização do poder e reabilitando o indivíduo na sua cidadania e na sua personalidade.
Espera-se que passo a passo a humanidade vá construindo um ideário onde fique evidente a importância da valorização da pessoa e o reconhecimento irrecusável dos direitos humanos. Não adianta todo esse encantamento com o progresso da técnica e da ciência se não for a favor do homem. Se não, esse progresso será uma coisa pobre e pequena.
A saúde e as liberdades individuais representam, num estado democrático de direito, os bens mais fundamentais. A saúde como um bem irrevogável e indispensável que cabe ao Estado sua garantia e os meios de organização. E a liberdade como um ganho consagrador da cidadania e da luta dos povos.
Tão íntima é esta relação entre a saúde e a liberdade que não se pode admitir qualquer proposta em favor da melhoria das condições de vida e de saúde das pessoas sem se respeitar a autonomia delas, mesmo quando elas não estão dispostas a se submeterem a certas condutas que venham considerar como de riscos, a exemplo das práticas invasivas da nova tecnologia médica. Assim, não seria exagero admitir-se que ela tanto pode ser uma forma de proposta vantajosa como uma ameaça à liberdade individual.
Por isso, o certo é encontrar um caminho onde se procure minimizar o sofrimento e o dano por meios assistenciais à saúde sem o risco dos limites da liberdade individual capaz de ameaçar nosso sentido crítico através de um paternalismo secular de proteção. Não há como existir ainda a chamada “superioridade de juízo”.
Muitos são os países que vivem hoje protegidos das epidemias e das catástrofes das doenças curáveis e evitáveis em face da organização dos serviços de saúde e dos níveis de vida da população. Muitas são as comunidades que hoje estão livres da morte prematura e das patologias incapacitantes. A luta em favor da saúde e do bem-estar é uma obrigação moral que se deve impor ao Poder Público.
Deve-se isto a uma política que prioriza a saúde como uma preocupação de caráter público e de interesse social, respaldada por recursos substanciais capazes de garantir todo este projeto. É neste instante que a sociedade livre e organizada pode e deve contribuir. Ou seja, não é apenas com a garantia da autonomia e da exigência do direito ao consentimento livre e esclarecido, pois este documento por si próprio não é bastante para assegurar uma relação mais respeitosa nem basta para isentar possíveis culpas. Com isso pode-se criar uma “medicina contratual” de bases falsas.
Assim, não se podem esquecer os direitos dos médicos. O primeiro dos direitos dos médicos provém das leis que lhe outorgam exercer a profissão com liberdade, desde que devidamente habilitados legal e profissionalmente pelos órgãos competentes. Outros direitos estão assegurados no Código de Ética Médica dos Conselhos de Medicina do Brasil, constantes do seu Capítulo II, intitulado “Direitos dos Médicos”.
Estes direitos lhe são conferidos sem nenhuma predisposição corporativista, mas dentro de um projeto de condições necessárias para que ele possa exercer a medicina, na legalidade e na licitude que se fazem imprescindíveis na suas atividades profissionais.
Daí a liberdade de o médico indicar procedimento que achar mais adequado dentro das normas reconhecidas e aceitas pela comunidade científica, a liberdade para apontar falhas nos regulamentos e normas das instituições em que trabalhe, a liberdade de se recusar a exercer sua profissão em instituições públicas ou privadas que não disponham das condições mínimas de trabalho e que possam trazer danos aos pacientes, a liberdade de internar seu paciente em hospitais onde não pertença ao seu corpo clínico e o direito de realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.
Sempre foi da tradição médica, quando não se encontrava solução para o diagnóstico ou tratamento de um paciente, o facultativo ou a família ou o próprio paciente propor a formação de uma junta médica de especialistas para resolver tal situação.
De um tempo para cá o paciente ou a família tem, nos casos de maior impacto diagnóstico, procurado outro profissional da mesma área para uma “segunda opinião”. Este modelo tem encontrado na própria classe médica o apoio quase unânime. Isto não pode ser considerado como uma proposta liberalista e privatizante, visto que, além de ser um direito do paciente, hoje a nível da atividade médica liberal, com certeza também será mais adiante, tanto nos planos de saúde como no próprio Sistema Único de Saúde. Por que não?
O Código de Ética Médica em vigor, em seu artigo 39, assim se expressa: “É vedado ao médico: Opor-se à realização de junta médica ou segunda opinião solicitada pelo paciente ou por seu representante legal”.
Assim, nada mais justo que o paciente ou seus familiares tenham o direito de procurar outros profissionais, com ou sem aprovação do médico assistente, para uma avaliação do caso, para lhe ajudar no tratamento ou, simplesmente, para assumir a assistência. Este é um direito inalienável deles, o de escolher o médico ou os médicos de sua confiança, cabendo, ainda, ao profissional assistente entender essa situação e, no possível, colaborar, fornecendo todas as informações necessárias.
Embora o Conselho Federal de Medicina, por meio de seu Parecer-Consulta CFM n.º 09/2001, tenha considerado inconveniente credenciar empresas organizadas para realizar a chamada “segunda consulta” ou “segunda opinião”, entende que o paciente ou seus familiares têm ampla liberdade de pedir, a quem julgue de sua confiança, tantas opiniões ou consultas que acharem necessárias sobre aquilo que é do seu interesse.
Acredito que, em muitas circunstâncias, havendo necessidade de uma reavaliação de diagnóstico ou de terapêutica, por considerá-los incorretos ou inadequados, deve ser do próprio médico assistente a iniciativa de consultar outros colegas ou de formar uma junta médica. Se é a família ou o paciente quem indica esse profissional, qualquer que seja a razão dos solicitantes, ela deve ser respeitada.
No entanto, se a família ou o paciente chama outro médico para acompanhar o caso, sendo ele da mesma especialidade daquele que já tratava do paciente, cabe ao primeiro médico decidir se continua ou não dando a sua contribuição. Nesse caso, não se pode aludir abandono de tratamento.
No que diz respeito aos atestados às Juntas Médicas, o Parecer-Consulta CFM n.º 01/2002 diz: “A Junta Médica pode e deve, quando em situações de conflito entre o atestado médico emitido pelo médico assistente e o observado pela própria Junta, no exame físico e na análise dos exames complementares do periciado, recusar ou homologar o entendimento semelhante ou diverso do médico assistente, atendendo ao previsto nas diretrizes recomendadas em consenso das Sociedades de Especialidades”.
No entanto quando se trata da tentativa da implantação de empresas de consultoria oferecendo como produto uma segunda consulta ou segunda opinião, mesmo com a anuência dos pacientes, isso traz uma preocupação que não é de caráter corporativista, mas tão só duvidoso, pois a motivação é a de fomentar dúvidas e a consequente intenção mercantilista. Nisto tudo a vítima será sempre o paciente.
Não será nenhum exagero que amanhã venham surgir entre nós empresas estrangeiras, localizadas fora do nosso país, para operar em segunda consulta por meio da internet com remessa dos exames escaneados por arquivos e relatório sintomatológico do paciente, muitas vezes sem nenhuma menção do paciente e sem a sua completa avaliação.
No plano individual, o médico brasileiro sempre teve uma relativa atuação, sobrevivendo através de heróis solitários e mártires anônimos. No plano coletivo, ele se omite de uma participação política, optando pelo neutralismo e pela acomodação.
A saúde, como fenômeno social, exige uma intervenção política. O médico não pode permanecer agindo apenas na periferia das doenças. Tem de reduzir seu poder sobre o indivíduo e ampliar sua capacidade de intervenção sobre o meio. Há uma necessidade imediata de o médico iniciar um processo de consciência crítica e não perder seu direito de decisão na política de saúde.
A Medicina, por sua vez, não deve restringir-se a considerar a doença como um fato isolado. Ela tem que se deslocar da doença para a saúde. A Medicina precisa se organizar como poder político.
A partir do momento em que foi fácil entender ser a saúde das populações mais dependentes de suas necessidades básicas do que da assistência médica propriamente dita, e que toda doença tem na sua origem ou nas suas consequências uma causa social, daí em diante o médico necessita ocupar outros espaços.
Para se conquistar a saúde não basta modificar a relação entre o homem e a natureza, senão, também, mudar as relações sociais. Temos de aceitar o fato de que as comunidades podem e devem influir decisivamente na remoção das causas geradoras das doenças; do contrário, o ato torna-se restrito, não influencia casos semelhantes, perde sua projeção externa e não afasta os fatores morbígenos.
Os médicos conscientes manifestam sua profunda frustração ante a crescente disparidade entre as possibilidades da ciência e o bem-estar real. Apesar do enorme progresso tecnológico, a medicina atual, vista como um sistema, cura cada vez menos. Por outro lado, necessita o médico de uma consciência coletiva em torno de uma política de classe, não como instrumento de pressão ou contestação, mas essencialmente de decisão. Destruir o sentido de grupo, galvanizando a comunidade médica numa unidade monolítica, tendo à frente autênticos líderes, preocupados com os problemas que afligem a todos, pois, além de representar nossa profissão um bem social de indiscutível valor e uma fração importante do bem comum, temos em nossas mãos um poder de decisão inalienável.
Mesmo que o Sistema Único de Saúde seja considerado o mais amplo e participativo plano de atendimento em saúde que se conhece, indistintamente oferecido para todos os brasileiros, não se pode omitir suas falhas, sua privação de verbas e sua má gerência. A crise da saúde entre nós é um fato incontestável, e isto se nota pela precariedade da rede hospitalar a sua disposição, o desrespeito à forma de atendimento, a superlotação dos serviços nos ambulatórios e setores de urgência, a péssima remuneração dos seus profissionais, o desentrosamento entre as equipes de saúde, a falta de especialistas nos setores de atendimento, o excesso de burocracia na sua estratégia de encaminhamento dos pacientes, entre outros.
Sendo assim, isso não poderia deixar de redundar numa lamentável forma de violência contra a população, principalmente aquela que não pode se socorrer de outro tipo assistencial.
Figueiredo (Direito sanitário. Direito médico: implicações éticas e jurídicas nas práticas médicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009) afirma: “Outra forma de violência institucional silenciosa configura-se pela descontinuidade dos programas de governo em decorrência das mudanças políticas partidárias. O setor da saúde tem sido aquele cuja formulação de políticas tem mais resistido às mudanças governamentais e às intempéries da interferência de interesses partidários na administração de cada gestão”.
A proteção dos direitos à saúde está consagrada no sistema jurídico brasileiro a partir da Constituição Federal, que demarca tal garantia nos artigos 1.º, III, e 5.º, X, e a cláusula geral de tutela da personalidade se encontra no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º, III). O artigo 52 do novo Código Civil brasileiro admite a possibilidade de a pessoa jurídica ser sujeito de dano moral quando afirma: “Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”.
E quando tal proteção não ocorre ou quando ela é imperfeita, quem deve responder pelos danos materiais e morais causados ao paciente? Acreditamos que a responsabilidade civil do estado não pode ser descartada, porque o artigo 37, § 6.º, da Constituição Federal disciplinou a extensão desta responsabilidade: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. Desde que fique demonstrado o nexo causal entre a ação ou a omissão e o dano, excluindo-se as causas excludentes como culpa da vítima, fato de terceiro ou caso fortuito, não há o que discutir: o Estado responde objetivamente, independentemente de quem foi a culpa: se de seus agentes ou da inadequação dos serviços prestados por suas instituições ou entidades conveniadas.
Outra forma de violência contra a saúde é a limitação da autonomia do profissional de saúde, que vai desde o modo de limitar suas intervenções, insinuações de altas precoces, diminuição do pedido de exames complementares ou cerceamento na hora de prescrever.
A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, aprovada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), em 19 de outubro de 2005, aprovada por significativos países componentes da ONU, ratificou tal autonomia em seu artigo 5.º nos seguintes termos: “Deve ser respeitada a autonomia dos indivíduos para tomar decisões, quando possam ser responsáveis por essas decisões e respeitem a autonomia dos demais. Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indivíduos não capazes de exercer autonomia”. E no artigo 6.º: “Qualquer intervenção médica preventiva, diagnóstica e terapêutica só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido do indivíduo envolvido, baseado em informação adequada”.
Por outro lado, tornou-se cláusula consagrada no mundo civilizado o direito de informação devido ao paciente e à coletividade – corolário da cidadania plena, considerando que o direito de acesso à informação também é um direito humano fundamental e dever dos Estados, no que diz respeito à promoção de informações adequadas sobre prevenção, controle e tratamento das doenças. Isto não se resume apenas ao dialogo médico-paciente nos consultórios, mas também ao uso dos meios de comunicação como forma de orientar a população em caso de endemias, epidemias ou pandemias. Isto está consagrado no artigo 220 da Constituição Federal: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1.º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no artigo 5.º, IV, V, X, XIII e XIV”.
Tem, ainda, o paciente ou seus familiares responsáveis o direito de saber das informações contidas no prontuário daquele, pois tal direito está claro no artigo 5.º, XXXIII, da Constituição Federal do Brasil, que de forma dogmática afirma: “Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.
Em 1994, como uma das propostas do governo federal para implementar a atenção básica aos municípios, foi criado o Programa Saúde da Família, também conhecido como PSF. Um dos pontos de maior relevo deste programa é a reorganização dos serviços de saúde e a reorientação das práticas profissionais neste nível de assistência, além da promoção, prevenção e reabilitação dos níveis de vida e de saúde da população assistida.
Como se vê, este programa tem como referência o Programa de Medicina Familiar instituído há algumas décadas em Cuba, aplicado dentro de uma concepção voltada para a saúde pública e individual das populações periféricas. Traz consigo, portanto, muitos e complexos desafios a serem superados para se consolidar como tal.
Desde 1970 vem-se tentando entre nós a reorganização dos serviços de saúde a partir de um projeto que tenha no seu conjunto de atores e sujeitos sociais um modelo que seja a promoção e a proteção da saúde, a prevenção das doenças e a atenção integral às pessoas. Tudo isso dentro de uma concepção capaz de reformular os velhos conceitos da medicina curativa, principalmente de forma mais criativa, racional, econômica e humanizada, em confronto com a prática especializada dos hospitais, cada vez mais abusiva em seus procedimentos tecnológicos e cada vez mais onerosa e burocratizada.
Na verdade, este projeto é mais uma “estratégia de saúde familiar” do que um programa, pois em vez de uma metodologia que tenha início, desenvolvimento e fim, ele se propõe tão só a reorganizar a atenção primária sem preocupação de uma conclusão.
Assim, depois de muitas tentativas, esse programa foi proposto e encampado pelo Ministério da Saúde, como uma “política nacional de atenção básica, com caráter organizativo e substitutivo”, para confrontar com o velho modelo de assistência primária controlada por médicos especialistas.
A Portaria n.º 2.488, de 21 de outubro de 2011, do Ministério da Saúde, aprovou a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS).
Nesta Portaria está expresso que a Atenção Básica deve ser caracterizada por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde com o objetivo de desenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades. É desenvolvida por meio do exercício de práticas de cuidado e gestão, democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios definidos, pelas quais assume a responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações.
Acrescenta que esta atenção deve ser desenvolvida com o mais alto grau de descentralização e capilaridade, próxima da vida das pessoas. Deve ser o contato preferencial dos usuários, a principal porta de entrada e centro de comunicação da Rede de Atenção à Saúde. Orienta-se pelos princípios da universalidade, da acessibilidade, do vínculo, da continuidade do cuidado, da integralidade da atenção, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social. A Atenção Básica considera o sujeito em sua singularidade e inserção sociocultural, buscando produzir a atenção integral.
Foi assim que somente em 28 de março de 2006, pela Portaria n.º 648, aquele Ministério estabeleceu o Programa Saúde da Família como uma proposta prioritária para a reorganização da Atenção Básica no Brasil, tendo como proposta “possibilitar o acesso universal e contínuo a serviços de saúde de qualidade”, dentro dos princípios basilares do SUS: universalização, equidade, descentralização, integralidade e participação da comunidade. Em suma: o programa tem como proposta principal a valorização dos meios e métodos que beneficiam a vida e a saúde das pessoas fora do ambiente hospitalar.
Mesmo numa análise mais superficial, nota-se que este programa é comprometido quando a escolha dos profissionais de saúde, na sua ampla maioria, ali colocados, é feita por motivação partidária, como quem usa “moedas de troca” para fins político-eleitorais. Basta ver, entre outros, que, terminado o período do gestor municipal, trocam-se as equipes ao sabor dos mesmos interesses de antes, acolhidas entre os protegidos do novel prefeito. E isto é feito sem nenhuma cerimônia, sem ao menos ouvir a população nem conferir os resultados. Os prefeitos e seus assessores estão mais preocupados em distribuir empregos do que com a saúde do povo.
Os médicos e seus companheiros de área de saúde não têm nenhuma segurança funcional, não lhes dão as férias merecidas, não percebem o 13.º salário, nem contam com o fundo de garantia, direitos estes já adquiridos por todos os trabalhadores num tempo de perder de vista.
Devia haver outros critérios para a seleção desses profissionais, o estímulo a passarem por especialidades ou especializações ligadas à saúde da família, com prioridade aos jovens convocados para esta forma de prestação de assistência imbuídos de uma mentalidade que faz desse ato uma proposta consciente de saúde familiar, dentro de um projeto em favor da cidadania – em prol do bem comum.
Por tais razões, os profissionais que integram essas equipes são desestimulados e seu maior contingente é formado por médicos aposentados, desmotivados e que aceitam tal encargo como forma de passar o tempo ou, infelizmente, para complementarem uma aposentadoria humilhante e precária.
Somos favoráveis à criação de uma pós-graduação em Saúde de Família, concursos públicos, treinamentos permanentes e salários condignos, para que o profissional possa viver em tempo integral com estas obrigações e com um salário condigno com sua nobre e necessária função.
A vocação para esse tipo de trabalho é importante, porque sua atividade não será apenas a de receitar em ambulatórios, mas participar de um planejamento por meio da coleta de informações na comunidade, priorizando as situações a serem acompanhadas no planejamento local; assistir à população em todos os âmbitos da unidade de saúde, no domicílio e nos demais espaços comunitários, como escolas, associações, creche ou quando for o caso; atuar sempre de forma multiprofissional e sem preocupação hierárquica; realizar palestras a grupos de assistidos, como gestantes, cardíacos e diabéticos, e influir no seu tipo de alimentação com hábitos mais saudáveis; instituir ações de prevenções e agravos em acidentes domésticos; trabalhar com grupos de jovens sobre problemas de drogas, gravidez precoce e doenças sexualmente transmissíveis; fazer relatórios circunstanciados ao superior responsável pelo programa no que diz respeito às estatísticas e às necessidades mais imediatas; participar de reuniões permanentes com a equipe ouvindo e trocando ideias com todos; conscientizar a população da origem dos seus males e dizer que ela também é importante no projeto de saúde e bem-estar; identificar parceiros na comunidade que possam potencializar as ações do programa; lutar pela organização política do grupo com a criação de associações locais, regionais e nacionais; lutar pela qualidade de atendimento à população; exigir um programa de ensino continuado para reciclagem constante das equipes.
Observe-se que, atualmente, vigora a Portaria n.º 2.488/2011, que substitui e aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS).
A medicina atual alcançou um nível técnico muito alto, mas tudo isso pode se transformar em frustração desde que o agir do médico não tenha o poder que nele se imagina. Mesmo com todo esse progresso, ela pode ser contestada desde que permaneça sem a compreensão de si mesma e sem as condições de decidir em favor de seus pacientes. Sua respeitabilidade não é medida apenas pelo que ela representa em suas conquistas tecnológicas e científicas, mas também pelo que ela significa como bem comum.
No âmbito de suas estratégias, a medicina passou a ser uma “profissão dirigida”. O sentido paternalista foi confrontado com o consentimento livre e esclarecido do paciente e seus familiares ou pelos gestores de saúde. Muitos dos seus objetivos, principalmente nestes últimos 30 anos, vêm assumindo dimensões políticas, sociais e econômicas bem distintas das de antigamente. Muitos acreditam que os movimentos sociais tiveram certa influência nesta mudança, quando encaparam algumas posições em favor do aborto, da eutanásia e da reprodução assistida.
Daí por que a ética do médico contemporâneo teve de se ajustar pouco a pouco às ânsias da sociedade e não responde tanto às imposições da moralidade histórica das regras hipocráticas. Tem mais significação nos dilemas e nos reclamos de uma moralidade fora de sua tradição. A ética fundada na moralidade interna passa a ter um sentido secundário.
O conceito que se passa a ter de ética na hora atual, portanto, tem uma tendência a se adaptar a um modelo de profissionalização que vai sendo ditado por outras pessoas não médicas. Esse novo conceito de ética no contexto de cuidado médico vai se aproximando de outro modelo de ética, em que a preocupação com problemas morais complementa-se fora da medicina. O rumo da ética do médico certamente será ajustar e supervisionar o ato profissional dentro de um espaço delimitado pelos valores sociais e culturais que a sociedade admite e necessita.
Como status social do médico entende-se a avaliação que faz a sociedade de que alguém goza de certo prestígio, respeito e reconhecimento por determinados atributos e comportamentos. Ou seja, um certo papel que ele representa no cenário social.
Em tese, pode-se dizer que o humilde médico que trabalha numa longínqua cidade do interior tem, nas devidas proporções, o mesmo status social de um médico de certa fama das grandes cidades. Tem o mesmo respeito, a mesma consideração e a mesma gratidão da sua comunidade.
E quanto à condição social do médico? Qual a explicação que se tem para justificar a disparidade entre o alcance da medicina como ciência e as condições econômicas dos seus profissionais? Por condição social, pelo menos no enfoque dado aqui, entende-se o nível das aspirações materiais justas e merecidas de quem exerce uma profissão tão importante e que necessita de meios para sobreviver dignamente com sua família.
Do ponto de vista social, cultural e emocional, aconteceram perdas tanto para a comunidade como para os próprios médicos. Eles passaram de profissionais liberais para profissionais assalariados; da independência para a dependência de ação; da liberdade de investigação diagnóstica e de prescrição para seguir as orientações dos planos de saúde; e do trabalho isolado para o trabalho em equipes. No entanto, não mudaram suas responsabilidades morais e legais de orientar, diagnosticar e prescrever sempre de forma correta. Isso distanciou a sociedade do médico. Do ponto de vista afetivo, aquele que era o amigo da família, que acompanhava as pessoas desde o nascimento, passa a ser visto como um prestador de serviços, frio e sem interação emocional com o paciente, dando margens a conflitos e litígios judiciais.
Entendemos que houve dois momentos que marcaram de forma bem efetiva a evolução social do médico no Brasil: a edição da Lei Eloy Chaves e a criação do Sistema Único de Saúde.
De início, predominou a medicina liberal e a assistência benemérita nas Santas Casas de Misericórdia e o emprego em alguns hospitais públicos. Nesta época era mais comum a medicina privada caracterizada pelo mercado aberto da livre escolha, hoje ainda o sonho de todo médico como mecanismo de poder e melhor condição econômica.
Uma 2ª fase surgiu com a promulgação da Lei Eloy Chaves, Decreto Legislativo n.º 4.682, de 24.01.1923, sendo a primeira norma a instituir no país a previdência social, com a criação das Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAP) para os ferroviários. É considerado o marco da previdência social no país, trazendo consigo a criação das demais instituições de aposentaria e pensões e uma avalanche de nomeações de médicos em todo o país.
E uma 3.ª fase surgiu com a criação do SUS e a alternativa da medicina suplementar que autorizava, quando esgotadas as capacidades dos órgãos públicos, a utilização das organizações e consultórios particulares por meio da remuneração por “unidade de serviço” e a universalização da assistência médica pública complementada pelos credenciamentos de mão de obra e serviços assistenciais privados. Diz a Lei n.º 8.080/1990 no seu artigo 20: “Os serviços privados de assistência à saúde caracterizam-se pela atuação, por iniciativa própria, de profissionais liberais, legalmente habilitados, e de pessoas jurídicas de direito privado na promoção, proteção e recuperação da saúde”.
Mesmo assim, esse modelo de universalização na orientação e ações de serviços de saúde não trouxe para os médicos uma melhora, esperada principalmente pela falta de condições de trabalho, despreparo do seu gerenciamento, indiferença com o aperfeiçoamento dos recursos humanos, excesso de trabalho, baixa remuneração e insatisfação pessoal e frustração dos usuários do sistema.
O médico e suas classes
O modelo vigente criou um número tão grande e tão diversificado de níveis entre os médicos que muitos chegam a admitir que não formamos uma classe, mas apenas uma categoria. Outros admitem que sim, e apontam, para tanto, alguns critérios, tendo em vista o rendimento econômico, a posição social e o domínio da biotecnologia moderna.
Assim, os médicos da classe A seriam aqueles privilegiados pela sua formação, pelo domínio dos procedimentos mais elitizados e pelo prestígio que gozam no seio da coletividade. Sua área de atuação e de relacionamento é no segmento da sociedade que paga sua assistência médica e, por isso, eles vivem unicamente da clientela privada. Essa elite médica – apêndice do poder dominante vem se restringindo em termos relativos e sobreviverá favorecida por uma clientela de escol e por instituições de grande aporte tecnológico e financeiro. Todavia, em tempos de crise ou na decadência profissional se aliam ou agem como os da classe mais abaixo.
Na classe B estariam aqueles que aliam seus empregos públicos aos consultórios onde recebe seus pacientes, principalmente advindos dos convênios com planos e seguros de saúde. Têm uma renda mensal em média de 20 a 30 salários mínimos. Atendem os pacientes em casas de saúde particulares ou em hospitais públicos ou privados sob convênios e procuram sua realização profissional em espaços do setor universitário. Sua grande aspiração é passar para a classe acima, o que podem fazer com muito esforço, sorte e trabalho. Em verdade, esses médicos devem muito à Residência Médica, a qual infelizmente não absorve mais do que 40% dos que se formam, embora o MEC insista em falar em 70%.
Por fim, existe a chamada classe C, que de um tempo para cá vem aumentando cada vez mais, representada pelos desempregados, subempregados e recém-formados, atendendo em casas de saúde privadas onde dão plantão de emergência ou ganham por procedimento realizado e pelo valor das tabelas dos convênios, sendo o SUS o seu maior financiador.
Na pesquisa de Carneiro e Gouveia em O Médico e o seu Trabalho constatou-se que o percentual de médicos desempregados era irrisório (0,8%), concluindo-se que esse grave problema – que afeta milhões de trabalhadores brasileiros – não ocorre de modo significativo no meio médico. Se considerarmos como assalariado aquele que não dispõe de um contrato de trabalho estabelecido com o comprador de serviços e os que vivem de trabalho avulso, podemos considerar que aquele percentual é muito maior.
Poucos tiveram a oportunidade de fazer uma Residência Médica. Por uma questão de formação, não conseguem “subir” de classe. Já não há esperanças de ascensão, pois lhes falta oportunidade ou tempo disponível para uma educação continuada. Alguns vivem dos contratos eventuais dos Programas de Saúde Familiar com carga de trabalho de 40 horas semanais ao sabor da simpatia e dos interesses dos prefeitos municipais. Muitos dos seus anseios e de suas frustrações são os mesmos da população que ele serve. Ganham em torno de dez salários mínimos. A partir dos anos 1980 do século passado, por meio da pletora e da organização política, chegaram aos cargos mais elevados de algumas entidades.
Qual o próximo modelo?
O anseio do médico sempre foi conciliar um modelo que permita exercer uma boa medicina em favor do seu paciente e que lhe realize em suas aspirações materiais e espirituais. O ideal seria, na concepção de alguns, o exercício de uma medicina amplamente liberal, mas é necessário entender que ser um profissional liberal não depende das condições de mercado de trabalho, mas de uma condição ideológica dentro de um modelo médico.
Caracterizam a condição de profissional liberal: a autonomia técnica, a escolha do médico pelo paciente, a opção por uma carga horária de trabalho e a determinação de seus honorários. O fato apenas de atender em consultório particular não faz desse exercício uma profissão liberal. Submeter-se, por exemplo, às regras rígidas dos convênios, mesmo em consultório, não faz de nossa profissão uma atividade estritamente liberal. Todavia, pensar-se no exercício plenamente liberal da medicina como modelo geral é uma utopia. Haverá um ou outro exemplo em cada comunidade. Não há condições nem sentido em exercer a medicina fora das regras da socialização traduzida pela mescla do emprego público, pela atividade privada e pela medicina de convênio em consultório ou hospitais. Isto não foi criado pelo médico nem pelos pacientes, mas pelo mundo.
Dentro desse modelo, que é o plausível, o primeiro passo deve ser dado em favor da melhoria dos salários e das condições de trabalho. Isto com certeza não trará resultados positivos apenas para o médico, mas também para seus pacientes e para a sociedade. Outro passo importante será no sentido da redução da jornada de trabalho, para que haja tempo disponível para o estudo, lazer e convívio mais permanente com seus familiares.
No trabalho A Saúde do Médico no Brasil, inspirado e editado sob os auspícios do Conselho Federal de Medicina, está escrito de forma bem clara que as entidades podem fazer muito mais, quando enfatiza: “As entidades médicas de classe devem acudir a esses intentos que, no momento, fustigam a vida dos esculápios brasileiros roubando-lhes saúde e vida. É necessário também fazer compreender a todos os médicos a sua condição inequívoca de trabalhadores e que as relações de trabalho não mudaram tanto, senão que foram exacerbadas na sua perversidade. A satisfação por exercer uma profissão de tão elevados propósitos – sacerdotal em seus desígnios – é mais do que justa, porém nada tem a ver com o orgulho que nos afastou das lutas e nos alienou em nome de uma promessa de riqueza que nunca veio para a maioria, e pode ser que nunca virá. Estamos pagando caro pela nossa indiferença”.
As ações em favor das melhores condições de trabalho e remuneração se darão por meio da organização política dos médicos mediante discussão de seus problemas e necessidades. Muitos se mostram pessimistas. Mesmo assim, vale a pena pensar alternativas que possam reverter o contexto atual em favor da profissão médica.
O serviço médico obrigatório, além de constrangedor e inconstitucional, é desnecessário, haja vista outras tantas maneiras de resolver a distribuição geográfica desses profissionais em nosso país. Colocar médicos recém-formados ou em formação para atuar em regiões mais distantes como forma de concretizar o curso de medicina é um procedimento coativo e imprudente. Sintetizando, pode-se dizer que esse modelo é inconstitucional, autoritário, desigual, incoerente, inconcebível e improdutivo.
É inconstitucional porque fere frontalmente os princípios adotados na Carta Magna, em que é vedado o trabalho obrigatório e não remunerado; é autoritário porque surge de uma medida baixada de cima para baixo, em que se ouviram aos mais íntimos da cúpula do governo e sem escutar as universidades, professores e entidades que lidam com os problemas do ensino médico; é desigual porque manda aquele contingente de graduados ou pré-graduados, ainda despreparados, conviver com as frações mais desarrimadas da sociedade, criando dessa forma duas modalidades de medicina: uma para os pobres do SUS, que vivem na periferia ou em regiões inóspitas, e outra para os que podem bancar sua assistência; é incoerente porque apregoa que, mandando os alunos ou recém-formados para junto dos pacientes do SUS, eles vão se “humanizar”, o que é, para não dizer outra coisa, um absurdo, pois nos parece que não será, por meio da assistência que se vem prestando ali – com mulheres parindo no chão, crianças voltando sem atendimento e doentes sem acesso a meios terapêuticos e propedêutico–, que aqueles jovens vão se humanizar; é inconcebível porque seria impossível mobilizar um número expressivo de instrutores e professores qualificados capazes de aceitar conviver com suas famílias nas mais remotas regiões do País orientando os estagiários; e é improdutivo porque o resultado desse tipo de atendimento é, no mínimo, temerário.
Nesse período de dois anos terão uma autorização temporária para o exercício da medicina, cumprindo os deveres de um profissional. Essa é outra questão duvidosa e temerária. E mais: a medida proposta não serve para complementar a formação do médico, mas para suprir a decadência e o sucateamento do sistema de saúde.
Aumentar o curso de medicina de oito anos, dois deles dedicados ao trabalho junto às unidades do SUS, pode à primeira vista parecer uma proposta simpática e democrática. Os médicos a se formarem em universidades públicas pagariam seu débito com a sociedade por terem estudado de forma gratuita. Mas isso é falso porque eles não estudaram ali gratuitamente, pois pagaram direta ou indiretamente seus estudos com os impostos recolhidos e estão numa universidade de melhor qualidade graças ao seu próprio esforço intelectual.
Quem pensar que o problema do Brasil é falta de médicos está enganado. Que existe uma má distribuição de médicos em nosso país é certo. No entanto, esta má distribuição não deve ser debitada ao médico, mas à falta de condições de trabalho, de meios para exercer suas atividades, de condições de habitabilidade para ele e sua família, às precárias condições de ensino e aprendizado, à interação com outros profissionais de saúde, à ausência de outros profissionais de saúde e à ausência de uma carreira de estado que possa garantir o exercício de sua profissão com certa tranquilidade.
Enfim, não é justo nem admissível impor a alguém o trabalho forçado e sem remuneração como pré-requisito ao direito de receber o registro profissional nos conselhos profissionais. Ninguém é contra um estágio que tem como objetivo avaliar o aluno e trazer-lhe conhecimentos, mas não para usar esse tipo de mão de obra para suprir uma demanda reprimida.
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