Se a inter-relação conceitual salienta o aspecto sincrônico, estrutural, sistemático do discurso científico, é preciso não esquecer que a ciência tem uma história. Ciência é processo, devir. A tese de que o progresso é um componente essencial da ciência é comum a vários epistemólogos e historiadores da ciência que, como Canguilhem, privilegiam em suas análises o aspecto conceitual. Podemos encontrá-la em Bachelard, Koyré, Cavaillès, por exemplo. Para Bachelard, autor do qual Canguilhem mais se aproxima, esta é uma tese fundamental: “Para o pensamento científico o progresso é demonstrado, é demonstrável, sua demonstração é mesmo um elemento pedagógico indispensável para o desenvolvimento da cultura científica. Em outras palavras, o progresso é a própria dinâmica da cultura científica, e é essa dinâmica que a história das ciências deve descrever.”30 Não há dúvida de que a ciência, como dinamismo, como processo, é marcada, para Bachelard e Canguilhem, pelo progresso. Mas é preciso antes de tudo saber em que sentido se pode falar de progresso quando se trata de ciência.
Dizer que o progresso é uma característica essencial da ciência significa dizer que ela é um processo normatizado, que tem uma direção e mesmo um sentido, ou seja, é um processo finalizado. A idéia de progresso aplicada à ciência assinala o fato de o conhecimento científico se desenvolver no sentido de uma verdade e de uma racionalidade cada vez maiores. A questão da verdade, que estava no âmago do privilégio do conceito para a história das ciências, é novamente o elemento básico da análise do tipo de historicidade que caracteriza as ciências. Isso aparece claramente na conferência de Bachelard “L’Actualité de l’histoire des sciences”. A base da argumentação é a afirmação do progresso como especificidade da história das ciências. “Primeiro ponto a meditar: a história das ciências não pode ser uma história totalmente como as outras. Pelo próprio fato de que a ciência evolui no sentido de um progresso manifesto, a história das ciências é necessariamente a determinação dos sucessivos valores de progresso do pensamento científico. Na realidade nunca se escreveu uma história, uma grande história, de uma decadência do pensamento científico.” E o tipo desse progresso é explicitado quando logo adiante o autor afirma: “A temporalidade da ciência é um crescimento do número das verdades, um aprofundamento da coerência das verdades. A história das ciências é a narrativa desse crescimento, desse aprofundamento.”31
O fato de a história das ciências ser a história de um progresso do conhecimento é reconhecido várias vezes por Canguilhem. Assim ele a pensa como “um progresso de esclarecimentos”32 ou como a “leitura, nos textos, da abertura progressiva e difícil da inteligência aos mecanismos, aparentemente ilógicos, da vida”33; ou ainda como “a tomada de consciência explícita, exposta como teoria, do fato de que as ciências são discursos críticos e progressivos para a determinação daquilo que, na experiência, deve ser tido como real”34; ou até mesmo como “a história da relação progressiva da inteligência com a verdade”35. Só que aceitar o progresso da ciência e relacioná-lo com a verdade ainda não especifica suficientemente a história epistemológica. Definir sua especificidade implica considerar a ciência e sua história do ponto de vista do tipo de relação existente entre a verdade e o erro.
Há pelo menos dois textos em que Canguilhem trata explicitamente do problema, distinguido-se sobretudo da concepção positivista da história das ciências. Em “La théorie cellulaire”36, que mostra a diferença entre sua concepção do progresso da ciência e uma concepção dos “progressos do espírito humano” que ele caracteriza globalmente como a da Aufklärung, de Condorcet e de Comte, sua crítica incide basicamente na existência de um estado definitivo do saber. A tese positivista — que segundo Canguilhem teve a adesão de Claude Bernard ao afirmar, por exemplo, que “a ciência do presente está necessariamente acima da do passado” — é a de que “a anterioridade cronológica é uma inferioridade lógica”. À primeira vista essa afirmação não apresenta nenhuma diferença com relação à idéia de progresso encontrada na história epistemológica de Bachelard e Canguilhem. Por exemplo, não diz Bachelard que “pensar historicamente o pensamento científico é descrevê-lo do menos ao mais”37, no sentido de um progresso em direção à verdade, ou melhor, de um conhecimento cada vez mais verdadeiro, depurado dos erros iniciais, idéia integralmente aceita por Canguilhem? A grande diferença, porém, diz respeito à relação entre o presente e o passado da ciência, e, nesse sentido, o essencial da crítica de Canguilhem atinge a negação do valor do erro passado para o aperfeiçoamento da verdade. “O progresso não é concebido como uma relação de valores em que o deslocamento de valor em valor constituiria o valor, ele é identificado com a posse de um último valor que transcende os outros permitindo depreciá-los.”38 A uma depreciação teórica do erro se opõe seu primado teórico. O erro é um valor e, como tal, se não tem mais, teve uma positividade. Daí a necessidade de conceber a história das ciências “como uma psicologia da conquista progressiva das noções em seu conteúdo atual, como a mise en forme de genealogias lógicas e, para empregar uma expressão de Bachelard, como um recenseamento dos ‘obstáculos epistemológicos’ superados”39. Uma idéia ultrapassada representou uma ultrapassagem. “A história das ciências não é o progresso das ciências invertido, isto é, a mise en perspective de etapas ultrapassadas cuja conseqüência seria a verdade atual. É um esforço para pesquisar e fazer compreender em que medida noções, atitudes ou métodos ultrapassados foram, em sua época, uma ultrapassagem e, por conseguinte, em que o passado ultrapassado permanece sendo o passado de uma atividade para a qual cabe conservar o nome de científica. Compreender o que foi a instrução do momento é tão importante quanto expor as razões da destruição posterior.”40
O outro texto, La formation du concept de reflexe aux XVIIeme et XVIIIeme siècles, retoma as mesmas idéias, só que enunciando o princípio explicativo da diferença entre as duas concepções de progresso: o desconhecimento, por parte do positivismo, da diferença entre ciência e história. Canguilhem define aí o positivismo como uma filosofia da história que generaliza a lei de sucessão das teorias segundo um movimento irreversível de substituição do falso pelo verdadeiro.41 Postura que se explica pela projeção da racionalidade científica sobre o trabalho do historiador. Quando a ciência afirma uma proposição como verdadeira ela lhe confere uma validade retroativa. A verdade científica elimina o falso. Mas é preciso não esquecer que se a ciência é um processo, um devir, “não existe juízo final científico” e não se pode, ou melhor, não se deve fazer história como se faz ciência, identificando a lógica da verdade atual com a verdade de sempre.42 É, portanto, a imposição de critérios próprios da ordem científica à história da ciência que é responsável pela distinção absoluta entre o verdadeiro e o falso na ordem histórica e pelo desconhecimento da eficácia própria do erro. Em vez de anulação, o que Canguilhem propõe é a valorização do erro, que tem o mesmo direito que a verdade a figurar na história das ciências.
Mas é necessário precisar a natureza do progresso. A tese geral é a de que, ao invés de contínuo, ele é descontínuo. A história epistemológica de Canguilhem, não só suas pesquisas concretas como seus escritos sobre a metodologia da história,43 sempre se manifestou contra a idéia de que o progresso das ciências seja contínuo. Ele não é o desenvolvimento de uma verdade que existe em germe desde o mais longínquo passado, a mais distante origem, e evolui linearmente até a atualidade; não é tampouco um “aumento de volume por justaposição, o anterior subsistindo com o novo”44. Para Canguilhem, uma história que vê o progresso como contínuo se caracteriza pela busca dos precursores de uma determinada ciência: “Um precursor seria um pensador, um pesquisador, que outrora teria feito uma parte do caminho completado mais recentemente por um outro.”45 Aceitar a figura do precursor é destruir a possibilidade de uma história das ciências, na medida em que, nesse caso, a própria idéia de historicidade, de temporalidade das ciências fica abolida. Um precursor seria um pensador de dois tempos diferentes: do seu e daquele de quem ele é precursor. Segundo Canguilhem, só se pode estabelecer uma sucessão lógica entre dois autores depois de se certificar da “identidade da questão e da intenção da pesquisa, identidade de significação dos conceitos diretores, identidade do sistema de conceitos onde os precedentes adquirem sentido”a. É pelo fato de ser conceitual que a história epistemológica critica o mito do precursor e a aproximação histórica de discursos heterogêneos.
Para Canguilhem, o progresso das ciências é descontínuo — princípio que também se encontra no âmago da filosofia de Bachelard,b para quem a história de uma ciência se realiza por meio de rupturas sucessivas, por negação, por “liquidação do passado”. O progresso não é evolutivo, mas dialético. Podemos distinguir em Bachelard dois sentidos — não autônomos, é verdade, mas inter-relacionados — do termo “ruptura”. Em primeiro lugar, ele designa a descontinuidade existente, em qualquer momento da história, entre a racionalidade científica e o saber vulgar, comum, cotidiano. Fazer ciência não é organizar, sistematizar os dados da percepção. O objeto científico não é natural, é construído. Não há continuidade entre os procedimentos do senso comum e os do conhecimento científico. A ciência não é do mesmo nível que o conhecimento imediato, sensível, nem parte dele: insurge-se contra ele. “A nosso ver, a epistemologia deve aceitar o seguinte postulado: o objeto não pode ser designado como um ‘objetivo’ imediato; em outras palavras, uma ida em direção ao objeto não é inicialmente objetiva. É preciso, pois, aceitar uma verdadeira ruptura entre o conhecimento sensível e o conhecimento científico,”46 “em seu desenvolvimento contemporâneo, as ciências físicas e químicas podem ser caracterizadas epistemologicamente como domínios de pensamentos que rompem claramente com o conhecimento vulgar.”47 Portanto, a ciência tem outras bases que não as da opinião, do senso comum, do saber cotidiano. Sua problemática, seus métodos, seus objetos, seus conceitos assinalam uma ruptura entre razão e percepção. O imediato deve dar lugar ao construído.48
Por outro lado, o termo ruptura designa a descontinuidade entre uma ciência e a pré-ciência, o saber que ocupava abusivamente seu lugar; diz respeito à dimensão propriamente diacrônica, histórica, da constituição de uma determinada ciência. Bachelard insurge-se contra a idéia de que o saber tenha um desenvolvimento contínuo que seguiria um percurso linear desde a aurora do saber até a ciência moderna. “É, portanto, inútil colocar um falso problema na origem de um verdadeiro problema, é absurdo aproximar alquimia e física nuclear.”49 A busca de precursores de uma ciência é inteiramente infundada. Uma ciência se constitui em determinado momento da história, momento em que institui sua própria racionalidade e inicia sua história, sem retomar para si a problemática do saber pré-científico. “A história das ciências deve ser tão exigente, tão crítica quanto a própria ciência. Querendo obter filiações sem ruptura se confundiriam todos os valores, os sonhos e os programas, os pressentimentos e as antecipações; se encontrariam em toda parte precursores para tudo.”c É o que afirma Canguilhem sobre Bachelard. E a questão da ruptura não se esgota nesse primeiro momento, o da fundação da ciência. Mesmo depois de seu nascimento, o progresso, que a caracteriza essencialmente, se realiza por rupturas sucessivas. É esse movimento de reformulação do saber que é chamado por Bachelard de “dialética”, no sentido de que a história do pensamento científico se desenrola como um processo de reorganização incessante de suas bases. “O que Bachelard chama ‘dialética’ é o movimento indutivo que reorganiza o saber aumentando suas bases, em que a negação dos conceitos e dos axiomas é apenas um aspecto de sua generalização. Bachelard chama, aliás, essa retificação dos conceitos de envolvimento ou inclusão, como também, superação.”50
Que o progresso das ciências deva abandonar toda perspectiva continuísta e dar atenção à descontinuidade: eis um ponto básico da história epistemológica de Canguilhem. Como se pode ver por esta declaração: “Existem vários modos de compor a história das ciências. Aquele cujo sucesso é o mais imediatamente assegurado, porque é o mais conciliador, o mais ‘amável’, procura encontrar para cada invenção de conceito, de método ou de dispositivo experimental, antecipações ou esboços. É raro que a busca dos precursores não seja compensatória, mas também é raro que não seja artificial e forçada… . Em compensação, existe uma maneira de escrever a história das ciências diferente daquela que procura restabelecer uma continuidade latente dos progressos do espírito: é a que procura tornar apreensível e impressionante a novidade de uma situação, o poder de ruptura de uma invenção. É a este tipo de história que gostaríamos de dar uma contribuição.51 Cabe agora analisar como se apresenta em seus trabalhos essa problemática da descontinuidade.
Antes de mais nada, é preciso insistir no fato de que, tanto em suas investigações históricas quanto na explicitação teórica do método e dos princípios da epistemologia, a questão da descontinuidade é abordada por Canguilhem de forma original e específica. Para ele uma rupturad não é um acontecimento único, singular, que inaugura de uma vez por todas um saber científico; nem seu efeito é global, no sentido de atingir a totalidade de uma obra científica.52 As rupturas são sucessivas e parciais. Qual é a extensão de uma ruptura? Está claro, por tudo que foi dito, que a descontinuidade definida e localizada pela abordagem epistemológica não se inscreve na dimensão da ciência em geral como a passagem de um estado pré-científico a um estado científico, na medida em que não tem sentido pressupor a existência de um tempo homogêneo que unifique as diversas ciênciase; também não se situa no nível específico de uma ciência, determinando seu nascimento pela constituição de um método e a definição de um novo objeto; e ainda menos diz respeito a uma mudança produzida nas teorias de uma determinada ciência, teorias que não constituem um objeto fundamental para a análise histórica, na medida em que expressam mais os resultados de uma ciência do que sua efetuação, mais o produto do que seu processo.
Se há uma especificidade da história epistemológica de Canguilhem, é o fato de ter situado a análise da descontinuidade no nível do conceito, segundo ele o mais fundamental entre os elementos do discurso científico. A epistemologia é uma história conceitual; insisti várias vezes nesse ponto básico para estabelecer a distinção entre a história epistemológica e os outros tipos de história das ciências. Aqui, porém, aparece uma peculiaridade da história epistemológica de Canguilhem com relação às outras histórias das ciências que também se caracterizam por serem epistemológicas: o privilégio do conceito é de tal modo marcante em suas análises que a questão da historicidade é tematizada através dele. Se a ciência não é propriamente o domínio da análise é justamente porque ela é uma teia de elementos conceituais de tempos heterogêneos. O fato de o discurso científico se definir como sistema conceitual não impede, como já foi assinalado, a independência relativa do conceito. Diacronicamente, essa independência significa que cada conceito tem sua própria história: “É pela elaboração progressiva da compreensão de um conceito científico que nos interessamos.”53 A história das ciências “deve ser uma história das filiações conceituais. Mas essa filiação tem um estatuto de descontinuidade…”54
Como se põe a questão da descontinuidade para uma história epistemológica que se define como história das filiações conceituais? A idéia de Canguilhem é a de que um conceito se constitui em determinado momento da história, sua formulação é datada e traz o nome de quem a produziu.f Um conceito, porém, não se forma de uma vez por todas. A história das ciências deve ser a “história da formação, da deformação e da retificação de conceitos científicos”.55 Sua trajetória apresenta distintas etapas. Seguindo o exemplo da análise do conceito de reflexo, vejamos como se apresenta essa filiação descontínua.
Canguilhem conclui sua história da formação do conceito de movimento reflexo por uma “definição recapitulativa” de grande interesse porque formula de modo lógico — no sentido de sistemático, estrutural, conceitual — o que foi analisado historicamente, indicando inclusive o responsável pela formulação de cada elemento conceitual: “O movimento reflexo (Willis) é aquele que imediatamente provocado por uma sensação antecedente (Willis), é determinado por leis físicas (Willis, Astruc, Unzer, Prochaska) e, em relação com os instintos (Whytt, Prochaska), pela reflexão (Willis, Astruc, Unzer, Prochaska) das impressões nervosas sensitivas em motrizes, no nível da medula espinhal (Whytt, Prochaska, Legallois) com ou sem consciência concomitante (Prochaska).”56 O itinerário, que vai de Willis a Prochaska, descreve a trajetória da formação do conceito. O momento inicial, momento do aparecimento do conceito, se dá com Willis, que o formula pela primeira vez na história em 1670, mas é só com Prochaska que o conceito de reflexo está formado, isto é, definido em todas as suas notas essenciais. É o que Canguilhem chama “reflexo 1800”.
E se esta formulação é datada, é justamente porque é etapa de uma trajetória mais ampla que ainda vai sofrer modificações. Podemos encontrar os detalhes da análise no texto intitulado “Le concept de reflexe au XIXeme siècle”57, cuja idéia central é a seguinte: “O século XIX não inventa o conceito de reflexo, mas o retifica. Esta retificação do conceito não é um problema lógico, é um problema experimental, o que representa grande parte da história da neurofisiologia da época. Aliás, esta retificação não é retilínea — encerra polêmicas, sendo que nem todas constituem progressos. A nostalgia de uma concepção psicoteleológica do reflexo acarreta às vezes retificações em sentido contrário. Podemos distinguir, na história desta retificação, três etapas, isto é, três nomes: Marshall Hall, Pflüger, Sherrington.”58 Mesmo depois de formado, um conceito sofre retificações que atestam sua história descontínua. Eis o conteúdo dessas etapas de retificação conceitual. A retificação realizada por Hall foi o descobrimento de uma função central específica da medula espinhal — função diastáltica ou diacêntrica — que faz desta um intermediário central entre a ação sensitiva e a ação motriz do princípio nervoso.59 Pflüger, segundo momento de retificação, postula a existência de uma “alma medular” como princípio explicativo da finalidade das reações reflexas, o que para Canguilhem representa uma “falsa síntese dialética”, uma deformação conceitual, na medida em que sua definição não se situa no plano rigorosamente fisiológico, utilizando noções metafísicas.60 É Sherrington quem opera uma nova retificação do conceito, fazendo do reflexo, que perde sua rigidez e simplicidade elementar, “a reação de um todo orgânico a uma modificação de sua relação com o meio”, realizando assim, “no terreno da pura e simples fisiologia, esta síntese dialética entre o conceito de reflexo e o de totalidade orgânica”.61
Independentemente do conteúdo das reformulações sucessivas que farão do reflexo um conceito autenticamente fisiológico, conservemos o exemplo da história do movimento reflexo para relacionar a análise conceitual com a questão da cientificidade. Utilizo várias vezes expressões como “discurso científico”, “conceito científico”. Mas isso não deve induzir em erro. A história de um conceito não é necessariamente a história da cientificidade. Não determina um corte epistemológico, no sentido dado por Althusser e alguns de seus discípulos, isto é, o ponto de não-retorno a partir do qual uma ciência começa, assume sua história e já não é mais possível uma retomada de noções pertencentes a momentos anteriores.62 Mas a ruptura que possibilita o nascimento de um conceito também não é, como na perspectiva propriamente bachelardiana, a passagem de uma noção pré-científica a um conceito científico, ou de um conhecimento comum a um conhecimento científico. Em nenhum momento, como disse, Canguilhem faz diferença entre noção e conceito. As duas expressões são para ele rigorosamente sinônimas.g
O que a investigação sobre a formação do conceito de reflexo mostra claramente é a diferença entre o nascimento de um conceito e a definição dos critérios de cientificidade. De modo geral, podemos afirmar que para Canguilhem a formação de um conceito não está subordinada à instauração da cientificidade, mas, ao contrário, é sua condição de possibilidade. Assim o nascimento do conceito de reflexo se deve a Willis não por ele ter produzido uma teoria científica, mas por ter sido capaz de tirar todas as conseqüências de uma analogia entre a vida e a luz. O primeiro conceito de reflexo tem como fundamento não um raciocínio científico, mas uma imagem. “Willis inventou a palavra e o conceito de reflexo no contexto de uma teoria mais imaginária do que experimental do influxo nervoso e da contração muscular.”63 E não se trata de lamentar o fato ou de criticar suas deficiências: “Quando Willis imaginava a contração muscular como uma explosão de pólvora de canhão (pulvis pyrius) acesa pelo nervo funcionando como botafogo (funis ignarius) ele dizia, portanto, levando em consideração a química da época, tudo o que podia, muito racionalmente.”64 Em vez de crítica, o que se nota é a valorização da “puissance d’analogie”65 que permitiu a Willis formular o conceito. “Se o falso pode, formalmente falando, implicar o verdadeiro, em nome de que lógica se pretende condenar o exercício, na invenção dos conceitos científicos, de uma imaginação analógica?”66 É inclusive essa concepção puramente especulativa que explica a superioridade de Willis sobre Descartes em relação ao movimento reflexo: “Se ele forma o conceito de movimento reflexo, que vai adquirir durante o século XVIII um peso crescente de observações, antes de encontrar nos fisiólogos do século XIX uma consolidação experimental sistemática e explícita, é em função de uma teoria — pouco importa que seja considerada quimérica ou mesmo apenas filosófica — da alma animal que Descartes não tinha.”67
Essas questões da autonomia do conceito em relação à produção de critérios definidores da racionalidade científica e do privilégio conferido ao conceito pela história epistemológica de Canguilhem podem se tornar ainda mais claras se analisarmos, finalmente, o problema da experimentação científica. A produção de um conceito e a experimentação não só não coincidem, como a segunda depende da primeira, que lhe serve de condição de possibilidade. O caso de Willis é claro: se ele foi o primeiro a formular o conceito de reflexo, isso não significa que tenha realizado ou mesmo tentado realizar experimentações a partir do conceito. E ainda mais clara, porque mais explítita, é a comparação estabelecida por Canguilhem entre o conceito de reflexo de Prochaska, o “reflexo 1800”, e as reformulações de 1850 e 1900, isto é, de Pflüger e Sherrington. Que critérios utilizar para a comparação? Canguilhem alinha três diferentes, todos originários da epistemologia de Bachelard, dando preferência ao terceiro, privilegiado por ele como o mais fundamental.68 O primeiro critério é a distinção entre o pensamento científico e o pensamento pré-científico, distinção que não se mostra adequada na medida em que, o estado científico estando em gestação segundo Bachelard desde fins do século XVIII, essas diversas formulações do conceito fariam todas parte desse estado. O segundo critério é a distinção entre experiência comum e experiência científica — distinção mais útil porque permite agrupar as experiências de Whytt e de Prochaska como comuns e as de Pflüger como científicas. Isso não significa, porém, que um conceito seja científico e o outro não: na medida em que os elementos de sua compreensão lógica não mudaram fundamentalmente de um para o outro, o primeiro não se tornou falso. Além disso, em se tratando de experiência, a distinção entre comum e científico não é fixa; muda com o tempo. “As experiências de Legallois eram mais científicas que as de Whytt; ao lado das experiências de Pflüger, com mais forte razão ao lado das experiências de Sherrington, elas parecem comuns.”69 Canguilhem marca a diferença entre o reflexo 1800 e o reflexo 1850 a partir da distinção bachelardiana entre o “fenomenológico” e o “fenomenotécnico”.70 Com isso ele pretende salientar que até então o reflexo era um conceito, mas só se tinha dele uma experiência teórica, nos livros, enquanto a partir daquele momento começa a existir também no laboratório. “O reflexo deixa de ser apenas conceito para tornar-se percepto”h, diz Canguilhem, para acentuar a distinção entre compreender e fazer, deduzir e produzir.
De modo geral, podemos dizer, tomando como exemplo a análise do movimento reflexo, que o conceito pode nascer antes de se tornar científico, que sua formulação é anterior às experiências e às experimentações e que ele será tanto mais científico quanto mais fenomenotécnico se tornar. O que interessa fundamentalmente a Canguilhem não é analisar o momento em que o conceito começa a fazer parte de uma teoria científica ou permite experiências científicas, mas estabelecer as filiações descontínuas que constituem sua história desde o instante de seu nascimento.
a “L’Objet de l’histoire des sciences” in Études…, p.22.“Pensamos que, em matéria de história das ciências, os direitos da lógica não devem ser obscurecidos pelos direitos da lógica da história. Deste modo, em vez de ordenar a sucessão das teorias de acordo com a lógica de sua conveniência e de sua homogeneidade de inspiração, é preciso antes de tudo se assegurar, em presença de determinada teoria, em que se procura detectar um conceito implícito ou explícito, que se faz dela uma idéia da qual nenhuma preocupação com a coerência interna está ausente.” In Formation…, p.5.
b Esta é também a posição de Cavaillès, para quem, não sendo contínuo, o progresso da ciência é “revisão perpétua dos conteúdos por aprofundamento e rasura. O que existe depois é mais do que aquilo que existia antes, não porque o contém ou mesmo o prolonga, mas porque sai dele necessariamente e traz em seu conteúdo a marca cada vez mais singular de sua superioridade”. Sur la logique et la théorie de la science, p.78. É importante também assinalar que, para Bachelard, o progresso da ciência se realiza no sentido de uma descontinuidade cada vez mais acentuada.
c “L’Histoire des sciences dans l’oeuvre épistémologique de Gaston Bachelard”, in Études…, p.184. Em “La théorie cellulaire” Canguilhem utiliza as categorias de pressentimento e antecipação para distinguir e opor as contribuições de Buffon e Lorenz Oken no que diz respeito à formulação da teoria celular, indicando que “Entre Oken”, caso em que há antecipação, “e os primeiros biólogos conscientes de encontrar nos fatos de observação os primeiros fundamentos da teoria celular, a filiação se estabelece sem descontinuidade”. La connaissance de la vie, p.59. Além disso, também explicita a distinção entre os dois conceitos: “Para que haja, propriamente falando, antecipação, é preciso que os fatos que a auto-rizam e as vias da conclusão sejam do mesmo tipo que aqueles que conferem a uma teoria seu alcance certamente transitório. Para que haja pressentimento basta a fidelidade a seu próprio élan, aquilo que M. Bachelard chama em L’Air et les songes ‘um movimento da imaginação’.” Ibid., p.58.
d Canguilhem usa geralmente o termo rupture de origem bachelardiana. Mas encontra-se também a utilização da expressão fracture, retirada de Cavaillès, como também coupure. Sejam quais forem as palavras utilizadas, parece-me que o sentido é o mesmo. (Cf. Formation…, p.160; Études…, p.297.)
e “O tempo civil em que se inscreve a biografia dos cientistas é o mesmo para todos. O tempo do advento da verdade científica, o tempo da verificação, tem uma liquidez ou uma viscosidade diferentes para disciplinas diferentes nos mesmos períodos da história geral.” “L’Objet de l’histoire des sciences”, in Études…, p.19.
f Cf. Formation…, p.148. O estudo do aparecimento do conceito de reflexo leva Canguilhem a mencionar — indicando o exemplo de Aristóteles — a relação da ciência com o saber religioso, moral e jurídico. Mas, com isso, o que lhe interessa principalmente é assinalar, no nível do conceito, a relação de oposição, a ruptura epistemológica entre a ciência e o saber não-científico. “E, com efeito, se a distinção entre movimento voluntário e movimento involuntário tornou-se um problema de fisiologia foi pela importância que ela adquiriu a partir, antes de tudo, de sua significação religiosa, moral e jurídica. Antes de ser um problema científico é uma questão que diz respeito à experiência da culpabilidade e da responsabilidade.” E, depois de expor o exemplo de Aristóteles, Canguilhem continua: “Pode-se, portanto, dizer sem erro que a noção de irreflexão é bem mais velha do que a fisiologia da medula espinhal. Mas essa fisiologia só começa a existir como ciência no momento em que o movimento irrefletido é nomeado reflexo… é a fisiologia da medula espinhal que é, graças a Willis e seus sucessores, tão velha quanto a noção de ação reflexa.” In Formation…, p.148-9.
g Em “Qu’est-ce qu’une idéologie scientifique?” — sugestivo artigo que pretende integrar aquisições metodológicas das abordagens de Althusser e de Foucault (cf. Idéologie et rationalité, Prefácio, p.9) para mais uma vez definir o conceito de história das ciências — Canguilhem procura repensar a distinção bachelardiana entre conhecimentos superados e conhecimentos sancionados a partir da relação entre ciência e “ideologia científica”. O que é uma ideologia científica? Em primeiro lugar, é um discurso que tem ambição de cientificidade e com esse objetivo imita os procedimentos da ciência: “em uma ideologia científica existe uma ambição explícita de ser ciência por imitação de algum modelo de ciência já constituído” op.cit., p.39. Em segundo lugar, é um sistema explicativo que tem ambição de totalidade, estendendo os resultados de algumas ciências além de seus campos de desenvolvimento controlado: “A ideologia científica é evidentemente o desconhecimento das exigências metodológicas e das possibilidades operatórias da ciência no setor da experiência que ela procura conhecer…”, ibid., p.39. Em terceiro lugar, contrariamente à ciência, a ideologia científica tem uma função eminentemente pragmática de proteção, de defesa de interesses. Por exemplo, “a ideologia evolucionista funciona como autojustificação dos interesses de um tipo de sociedade, a sociedade industrial em conflito, por um lado, com a sociedade tradicional e, por outro, com a reivindicação social. Ideologia, por um lado, antiteológica; por outro, anti-socialista”, ibid., p.43. Finalmente, a ideologia científica não só é desclassificada e destituída pela ciência, que a faz aparecer como ideologia, como também desaparece com a mudança de suas condições históricas de possibilidade. Defendendo a tese de que a história epistemológica não pode ser unicamente a história da verdade, e que antes e depois da constituição de uma ciência sempre se encontra uma ideologia científica, o objetivo de Canguilhem nesse artigo é salientar a necessidade e a importância de o historiador das ciências levá-la em consideração em suas análises: “Não será possível defender, ao contrário, que a produção progressiva de conhecimentos científicos novos requer, tanto no futuro quanto no passado, uma certa anterioridade da aventura intelectual sobre a racionalização, uma extrapolação presunçosa, ditada pelas exigências da vida e da ação, daquilo que já seria necessário conhecer e ter verificado, com prudência e desconfiança, para que os homens entrem em contato com a natureza, com toda segurança, segundo novas relações? Neste caso, a ideologia científica seria tanto obstáculo quanto, às vezes, condição de possibilidade para a constituição da ciência. Neste caso, a história das ciências deveria incluir uma história das ideologias científicas reconhecidas como tais.” Ibid., p.38.
h Formation…, p.161. O Vocabulaire… de Lalande define percept como “objeto de percepção, sem referência a uma realidade, a uma coisa em si à qual corresponderia este percepto”.