CAPÍTULO 1
História da loucura inicia a série de análises históricas que, desde o primeiro momento, são denominadas “arqueológicas”, por Foucault, para distingui-las da história das ciências e das idéias. Não se deve pensar, no entanto, que se trata de um método cujos princípios básicos possibilitarão, pela aplicação a diferentes objetos de pesquisa, uma série de análises empíricas. Se pode ser considerada um método, a arqueologia caracteriza-se pela variação constante de seus princípios, pela permanente redefinição de seus objetivos, pela mudança no sistema de argumentação que a legitima ou justifica. Na História da loucura, por exemplo, a especificidade do objeto de estudo foi sem dúvida determinante para a formulação e o exercício de um tipo de abordagem histórica que procura situar seu espaço através do debate com os outros tipos de história.
História da loucura não é uma história da psiquiatria que procure investigar os conceitos básicos, as principais teorias ou os métodos dessa disciplina nos diferentes momentos de sua existência: as análises não vão além do início do século XIX. Também não é, estritamente, um livro sobre o nascimento da psiquiatria que investigue o momento da constituição do discurso teórico sobre a doença mental: os conceitos básicos das teorias de Pinel e Esquirol quase não são considerados. O livro está historicamente centrado na época clássica, detidamente estudada, tanto do ponto de vista da prática do enclausuramento do louco, quanto no que diz respeito à relação da teoria da loucura com a medicina: o estudo do Renascimento tem a função de balizar e esclarecer a concepção clássica de loucura e o confinamento do louco em instituições de reclusão. Mas toda a sua argumentação se organiza para esclarecer a situação da loucura na modernidade. E na modernidade loucura diz respeito fundamentalmente a psiquiatria.
Desenvolvendo uma argumentação que tematiza não essencialmente o discurso psiquiátrico, mas o que lhe é anterior e exterior, História da loucura tem na psiquiatria seu alvo principal: seu objetivo é estabelecer as condições históricas de possibilidade dos discursos e das práticas que dizem respeito ao louco considerado como doente mental. Se esse texto tem uma extraordinária importância, há duas razões para isso. Por um lado, ele mostra que a psiquiatria é uma “ciência” recente — a doença mental tem pouco mais de 200 anos — e que a intervenção da medicina em relação ao louco é datada historicamente. História da loucura analisa as características, as verdadeiras dimensões e a importância dessa ruptura de tal modo que, depois dela, não é mais possível falar rigorosamente de doença mental antes do final do século XVIII, momento em que se inicia o processo de patologização do louco. A partir da pesquisa de Foucault a história da loucura deixa de ser a história da psiquiatria. Por outro lado, o livro demonstra que a psiquiatria é o resultado de um processo histórico mais amplo, que pode ser balizado em períodos ou épocas, que de modo algum diz respeito à descoberta de uma natureza específica, de uma essência da loucura, mas à sua progressiva dominação e integração à ordem da razão. Se esse texto revolucionou a maneira de pensar a psiquiatria foi porque permitiu, a partir da análise de sua história, o conhecimento de seus reais objetivos. Ele destrói a postura ufanista dos historiadores da psiquiatria, dando as reais dimensões do propalado gesto libertador de Pinel e do humanismo terapêutico que o caracteriza; desmascara as imagens que dão à psiquiatria o mérito de ter possibilitado à loucura ser finalmente reconhecida e tratada segundo sua verdade, mostrando o caminho que a história precisou seguir para que a psiquiatria tornasse o louco doente mentala.
Ao mesmo tempo, História da loucura não é mais propriamente uma história da ciência, seja no sentido de uma história epistemológica, seja no sentido de uma história descritiva. Seguindo a lição da epistemologia, não considera a ciência como o desenvolvimento linear e contínuo a partir de origens que se perdem no tempo e são alimentadas pela interminável busca de precursores. Assinalar rupturas e estabelecer períodos é uma de suas características fundamentais. Por outro lado, percorre os saberes sobre a loucura, sejam eles psiquiátricos ou não, sistemáticos ou não, teóricos ou não, para estabelecer suas diversas configurações históricas, sem se limitar às fronteiras espaciais e temporais da disciplina psiquiátrica.
Além disso, História da loucura também não se limita ao nível do discurso para apresentar a formação histórica da psiquiatria. Ao contrário, chega mesmo a privilegiar o estudo dos espaços institucionais de controle do louco e dos saberes a eles intrinsecamente relacionados, descobrindo inclusive, desde a época clássica, uma heterogeneidade entre os discursos teóricos — sobretudo médicos — a respeito da loucura e das relações que se estabelecem nesses lugares de reclusão. Foi analisando os saberes teóricos, mas sobretudo as práticas de enclausuramento e as instâncias sociais — família, Igreja, justiça, medicina — com elas relacionadas, e, finalmente, generalizando a análise até as causas econômicas e sociais das modificações institucionais que História da loucura foi capaz de explicitar as condições de possibilidade históricas da psiquiatria.
Vejamos como se estrutura a argumentação do livro e quais são suas principais conclusões para, em seguida, refletirmos, partindo das questões do conceito, da descontinuidade e da normatividade, sobre o tipo de análise histórica que ela inaugura — a arqueologia — na especificidade do primeiro momento de sua trajetória.
I
No Renascimento, não havia hospital ou prisão para o louco; ele vivia solto, era um errante, às vezes expulso das cidades, freqüentemente vagando pelos campos, entregue a comerciantes, peregrinos ou navegantes. Mas Foucault não se preocupa em aprofundar o conhecimento da realidade do louco nesta época. Partindo da Nave dos Loucos, objeto várias vezes representado pela pintura e pela literatura, o que lhe interessa é, através do nível simbólico, analisar uma inquietação própria da época: o aparecimento do louco no âmago da questão da verdade e da razão, como ameaça, irrisão, ilusão.
A compreensão geral do que foi a relação entre loucura e razão no Renascimento deve considerar dois pontos. Em primeiro lugar, a falta de unidade do fenômeno loucura expresso pelas formas plásticas ou discursivasb. Aquilo que aparece nas imagens da pintura — em Bosch, Thierry Bouts, Stephan Lochner, Grünewald, Brueghel, Dürer — é uma experiência fundamental, um de seus segredos, uma de suas vocações; sua essência, sua natureza secreta. Assim, a loucura é saber. Saber difícil, fechado, esotérico. Saber trágico que prediz o fim do mundo, a felicidade e o castigo supremos e anuncia que a vitória final não é de Deus nem do diabo, mas do louco. Experiência trágica que é cósmica porque a loucura tem fundamento na realidade. O que é desvelado no delírio do louco já existia como verdade — inacessível e secreta para os outros — no próprio mundo. Saber, portanto, positivo que dá realidade ao sonho, profundidade à ilusão, eternidade ao instante.1 Mas, por outro lado, com Brant, Erasmo ou Montaigne, a situação é inteiramente diferente. O que o discurso — filosófico, literário ou moral — expressa é não mais uma experiência trágica, mas uma consciência crítica da loucura.c E aos olhos dessa consciência ela não é mais saber: é ignorância, punição, gozação, desmoralização do saber. Não diz mais respeito ao mundo, mas ao homem; não é mais cósmica, mas moral. Não significa mais uma relação tão profunda com o mundo que é capaz de descobrir e revelar suas verdades mais secretas; pelo contrário, é imposição de uma ordem subjetiva, apego exacerbado à individualidade que afasta da ordem do mundo e a torna o outro da razão, da verdade, da sociedade. O louco passa a ser alguém que toma o erro como verdade, a mentira como realidade, a feiúra como beleza, a violência como justiça. Loucura é presunção, ilusão, desregramento, irregularidade na conduta, defeito, falta, fraqueza. Os personagens da Stultifera navis, de Brant, são avaros, delatores, bêbados, desordeiros, devassos, adúlteros, heréticos; “em suma, tudo o que o próprio homem pôde inventar como irregularidade em sua conduta”.2
Em segundo lugar, não só existe oposição entre experiência trágica e consciência crítica da loucura, mas também o conflito foi marcado por uma vitória decisiva. Privilégio progressivo do julgamento crítico — deslocamento que pode ser atestado no interior da própria literatura3 — que permite à razão, instância de verdade e moralidade, mascarar, subordinar, confiscar e, assim, anular os poderes da loucura, grande inquietação do Renascimento. Duplo resultado dessa evolução: 1) a loucura torna-se uma forma relativa à razão: reduzida a verdade irrisória, a loucura tem a razão como juiz; 2) a relação se aprofunda: a loucura torna-se uma das formas, um dos momentos, uma das forças da razão. Realidade não mais exterior, mas interior, a serviço da razão. A verdade de uma — a loucura — é enunciar a verdade da outra.
O que Foucault pretende com a reduzida análise da loucura no Renascimento, através de suas expressões pictóricas e lingüísticas, se delineia então claramente: trata-se de atestar, através da elaboração simbólica da época, o início de um processo de dominação da loucura pela razão. Esse processo será decisivo para o estatuto que a loucura vai adquirir na cultura ocidental, mas, nesse momento, é específico: significa a destruição da loucura como saber que expressa a experiência trágica do homem no mundo em proveito de um saber racional e humanista centrado na questão da verdade e da moral. Não destruição, é verdade — e isso é fundamental, como veremos, para que se compreenda História da loucura em relação aos outros livros de Foucault —, mas encobrimento, desarmamento, confisco, pois, mesmo dominada, essa experiência da loucura não está morta. Assim, a relação entre loucura e razão se dá, no Renascimento, de modo conflituoso e ambíguo, implicando reciprocidade e semelhança entre elas. Isso se expressa claramente, por exemplo, na filosofia cética, que integra a loucura ao processo da dúvida a ponto de permitir que ela possa comprometer a relação do pensamento com a verdade. Nesse momento, a dominação da loucura é a abolição de sua especificidade e sua integração em uma ordem da razão que ainda a acolhe e aceita suas razões.4
Na época clássica, essa dominação vai se radicalizar. Transformação que, segundo Foucault, tem em Descartes o grande marco filosófico: o momento em que a loucura vai ser excluída da ordem da razão. Procurando dar à verdade um fundamento apodítico, Descartes, na primeira das Meditações metafísicas, ao afastar a possibilidade de a loucura comprometer o processo da dúvida, exclui-a do pensamento. Se alguém pensa, não pode ser louco. Se alguém é louco não pode pensar. E se Foucault privilegia a questão da loucura na análise do texto de Descartes é porque, diferentemente dos casos do sonho e dos sentidos, o que garante o pensamento contra a loucura é a própria impossibilidade de ser louco, impossibilidade essa “essencial não ao objeto do pensamento, mas ao sujeito que pensa”5. A loucura é condição de impossibilidade do pensamento. E vice-versa.d
A análise, que no Renascimento se limita à contraposição da produção discursiva da literatura, filosofia e moral à iconografia, vai se estruturar basicamente através da distinção e articulação de dois níveis diferentes, chamados “percepção” e “conhecimento”. Conhecimento aqui é a produção teórica sobre a loucura. Por exemplo, a medicina, que na época clássica deduz a teoria da loucura de uma teoria geral da doença e é um conhecimento classificatório ou taxonômico que não parte da observação do louco, nem tem incidência no processo de internação ou no cotidiano das instituições de enclausuramento; mas também o direito, que formula uma teoria da irresponsabilidade e da alienação jurídicas. “Conhecimento”, categoria metodológica que indica um tipo específico de problemática tematizada em História da loucura, significa o nível do discurso teórico, o saber científico ou que tem pretensão à cientificidade. Já com “percepção” Foucault pretende designar a relação com o louco que não seja ditada por regras do conhecimento científico ou pseudocientífico, que não seja informada por condições teóricas explícitas, elaboradas, sistematizadas, como no caso do discurso médico sobre a loucura. Percepção aqui é a maneira de considerar o louco intimamente ligada ao modo de agir sobre ele. Depende de outras regras, de outros critérios que não o discurso teórico, embora de modo algum seja ausência de discurso ou exclua saber. Não é cegueira ou ignorância, mas uma relação com o louco que se dá no nível das instituições. É assim, por exemplo, que o hospício é considerado o a priori da “percepção médica”.e
Ora, essa distinção não é uma afirmação metodológica válida para todas as análises arqueológicas. Se ela sustenta e encaminha toda a argumentação de História da loucura, é feita com o objetivo preciso de esclarecer um fato nunca antes observado: que, na época clássica, as instituições que recebiam loucos, os critérios de internação, a designação de alguém como louco e sua conseqüente exclusão da sociedade não dependiam de uma ciência médica, mas de uma “percepção” do indivíduo como ser social; que o estatuto de louco era conferido não pelo conhecimento médico, mas por uma “percepção social”, dispersa e produzida por diversas instituições da sociedade como a polícia, a justiça, a família, a Igreja etc., a partir de critérios que dizem respeito não à medicina, mas à transgressão das leis da razão e da moralidade. Distinção que será decisiva — aí está talvez o motivo básico pelo qual a análise segue esse caminho — para desvendar as baixas origens da psiquiatria no século XIX.f
Mas não nos antecipemos demais. Sigamos detidamente os dois planos traçados pela arqueologia e vejamos como a época clássica percebia o louco e conhecia a loucura, situando-nos tanto no nível institucional, quanto no da teoria médica.
O marco institucional dessa nova etapa do processo de dominação da loucura pela razão é a criação em 1656, por Luís XIV, em Paris, do Hospital Geral que agrupa La Salpêtrière, Bicêtre e outros estabelecimentos. Tese principal de Foucault: não se trata, apesar do nome, de uma instituição médica, mas de uma estrutura “semijurídica”6, entidade assistencial e administrativa que se situa entre a polícia e a justiça e seria como a “ordem terceira da repressão”7.
Esse fenômeno — que não se limita a Paris ou à França, mas atinge toda a Europa, e não é somente estatal, pois também a Igreja organizou estabelecimentos de reclusão — tem um significado social, econômico, moral e político importante para se compreender a percepção da loucura na época clássica.g Socialmente, o “Grande Enclausuramento” — como Foucault o denominou retomando uma formulação da época — assinala a passagem de uma visão religiosa da pobreza, que considerando-a uma positividade mística a santifica, para uma percepção social, que, atribuindo-lhe a negatividade de uma desordem moral e um obstáculo à ordem social, condena-a e exige sua reclusão. Economicamente foram dadas a esse fenômeno duas justificativas: em tempo de desemprego, principalmente proteger a cidade contra os distúrbios que podiam ser causados pelos ociosos; em tempo de pleno emprego, possibilidade de adquirir mão-de-obra barata. Foucault afirma, entretanto, que, quando existiu, a função econômica das instituições de reclusão nunca foi positiva, pois elas aumentavam o desemprego das regiões vizinhas e realizavam uma ação artificial sobre os preços. A função do Grande Enclausuramento não é eminentemente econômica. E se este não foi um aspecto relevante é porque, na época, o trabalho era menos uma categoria econômica do que uma categoria moral, e a origem da pobreza era vista não como o desemprego ou a escassez de mercadorias, mas como a falta de disciplina e os maus costumes. Assim, é sobretudo moralmente que se pode apreender o principal significado dessa instituição. O Grande Enclausuramento assinala o nascimento de uma ética do trabalho em que este é moralmente concebido como o grande antídoto contra a pobreza. Força moral, portanto, mais do que força produtiva. Enfim, politicamente, ele significa a incorporação de um projeto moral a um projeto político, a integração de uma exigência ética à lei civil e à administração do Estado sob a forma da correção da imoralidade através da repressão física.
O Grande Enclausuramento é, portanto, um fenômeno eminentemente moral, um instrumento de um poder político que, laicizando a moral e realizando-a em sua administração, não apenas exclui da sociedade aqueles que escapam a suas regras, mas, de modo mais fundamental, cria, produz uma população homogênea, de características específicas, como resultado dos próprios critérios que institui e exerce. “Em cento e cinqüenta anos, o internamento tornou-se o amálgama abusivo de elementos heterogêneos. Ora, em sua origem, ele devia comportar uma unidade que justificava sua urgência; entre suas formas diversas e a idade clássica que as suscitou, deve haver um princípio de coerência que não basta esquivar sob o escândalo da sensibilidade pré-revolucionária”.8 O ato de internar não é algo negativo, no sentido de unicamente separar, isolar, excluir. É muito mais do que isso: ele é positivo, não no sentido, é evidente, de um juízo de valor, mas no de criador de realidade e de saber. Institui um outro da sociedade, um estrangeiro aos olhos da razão e da moral, ao mesmo tempo que organiza um domínio novo de experiência que tem unidade e coerência, “uma coerência que não é nem a de um direito, nem a de uma ciência, mas a coerência mais secreta de uma percepção”9.
Que população é essa constituída pelas práticas e pelas regras do Grande Enclausuramento? Essa população se forma a partir de quatro regiões, ou domínios de experiência, que a época clássica, agrupando e excluindo, vai transformar em um mundo homogêneo. A maior parte dos motivos de internação nesses estabelecimentos repressivos diz respeito à sexualidade. A sexualidade imoral do doente venéreo — que adquiriu o mal fora da família —, da sodomia, prostituição, “devassidão”, “prodigalidade”, “ligação inconfessável”, “casamento vergonhoso”. Uma segunda região diz respeito a fenômenos antes considerados profanação do sagrado que agora significam desordem do coração, da alma, desordem moral ou social, como a blasfêmia, o suicídio, ou magia, feitiçaria, alquimia, que são desclassificados como erro, engano, ilusão. O terceiro domínio é formado pela libertinagem, que na época clássica era irracionalismo e subordinação da razão à não-razão dos desejos do coração.10 Enfim, o quarto componente da população enclausurada — o que nos interessa fundamentalmente — é representado pelo louco. Na época clássica, o espaço do louco é o Grande Enclausuramento. Isso significa que ele não é percebido como doente e muito menos como doente mental. No Hospital Geral não há tratamento, e se um médico faz visitas esporádicas a esses estabelecimentos é por medo de que a população internada adoeça e possa contaminar a cidade, contraindo principalmente a famosa “febre das prisões”, o tifo.
Problema: existe, na mesma época, uma percepção da loucura como doença que interna no hospital alguém que perdeu a razão, quando há esperança de cura, lugar onde ele deve receber o tratamento habitual para qualquer doença: sangria, purgação, vesicatórios e banhos.
Contradição? O mais simples, segundo Foucault, seria resolver a questão em termos de progresso da ciência, de marcha da história no sentido de uma racionalidade médica cada vez maior: enquanto os loucos do Grande Enclausuramento seriam doentes ignorados, não localizados por um saber médico emergente, os outros já teriam sido reconhecidos como doentes e tratados no hospital.11 Solução que seria incorreta, pois o hospital não é a verdade futura do enclausuramento. Desde a Idade Média e o Renascimento havia o costume, embora limitado, de hospitalizar o louco. O que é característico da época clássica é o início do enclausuramento do louco em uma instituição de reclusão que não tem características médicas, nem se fundamenta no conhecimento de uma natureza patológica específica. O importante da análise é delinear a percepção clássica da loucura não como uma individualização através de critérios médicos, em que ela seria patologizada como doença mental, mas, ao contrário, como uma “desindividualização”, diz Foucault – pretendendo com esse termo assinalar que a loucura é um domínio, uma região, uma categoria de um fenômeno mais amplo que lhe determina a configuração. Isto é, na época clássica o louco é percebido não em sua especificidade própria, mas como integrado ou dissipado em uma massa de que também fazem parte venéreos, sodomitas, libertinos, mágicos e alquimistas. Categorias heterogêneas a olhos retrospectivos — que vêem o passado com os critérios do presente —, mas que para a percepção clássica eram objeto de uma repressão geral que estabelecia parentescos entre elas, a partir de um critério que as unifica.
A questão do critério é justamente o ponto mais importante da análise. Se o que dá coerência ao fenômeno do enclausuramento é uma percepção que distingue, isola e exclui, ela se exerce a partir da razão considerada como critério que permite desclassificar toda essa população como marcada pelo índice negativo da desrazão. O que é isolado e localizado no internamento clássico, sob as variadas figuras que o compõem, é a desrazão. Assim, Foucault pretende mostrar que a internação do louco na época clássica não obedece a critérios científicos expressos pela medicina, mas à ordem da razão, pois aquilo que se percebe na relação com o louco não é a doença, mas a desrazão, isto é, uma ausência total de razão. E, quando a análise descarta a racionalidade científica como fundamento da relação que se estabelece com o louco e que se expressa principalmente na criação do Hospital Geral, o que aparece estruturando essa relação não é uma razão teórica, pura, mas uma razão situada na vida social, cuja existência nunca foi formulada claramente — reconhece Foucault —, mas a partir da qual é possível analisar o que é o louco na época clássica. A desrazão objetiva o negativo da razão em tipos concretos, sociais, existentes, individualizados; é a negação da razão realizada como espaço social banido, excluído.
Essa percepção da desrazão não é médica, mas ética. O sistema que organiza o tipo de percepção do louco que se encontra na base do processo de internação é estruturado pela razão e pela moral ou, em outros termos, pela razão clássica que é uma razão ética. E o objeto constituído por essa percepção é o submundo moral da desrazão como desordem de costumes e negatividade de pensamento. É nessa realidade que a loucura, em vez de adquirir individualidade própria, se dissemina. Na época clássica, a separação entre loucura e razão é, portanto, ética e não médica.
Mas, nessa época, a percepção da loucura como desrazão, embora a mais importante, não é a única dimensão do problema. O outro aspecto é o conhecimento médico. Se para a percepção social o louco é um não-ser, um fenômeno “contranatureza”, e por isso reduzido ao silêncio e enclausurado em instituições de reclusão em que a medicina não entra, para a medicina a loucura será algo bastante diferente: será objeto de um saber que vai procurar determinar sua essência, sua natureza. Entre as duas formas praticamente não há comunicação. A relação de força que se estabelece no internamento atinge o louco, e não a loucura, no sentido de que é apoiada em uma percepção social da desrazão, e não em uma concepção médica da loucura como doença. Por outro lado, a teoria médica que pretende definir a loucura como doença em nenhum momento se apóia em uma observação dos loucos, como procurará fazer a psiquiatria. Daí a dicotomia estabelecida por Foucault: “O século XVIII percebe o louco, mas deduz a loucura.” Eis como é explicitado o sentido dessa dicotomia: “A evidência do ‘este é louco!’, que não admite contestação, não se baseia em nenhum domínio teórico sobre o que seja a loucura. Mas, inversamente, quando o pensamento clássico deseja interrogar a loucura naquilo que ela é, não é a partir dos loucos que o faz, mas a partir da doença em geral. A resposta a uma questão como ‘o que é a loucura?’ se deduz de uma analítica da doença, sem que o louco deva falar de si mesmo, em sua existência concreta. O século XVIII percebe o louco, mas deduz a loucura. E no louco o que ele percebe não é a loucura, mas a inextricável presença da razão e da não-razão. E aquilo a partir do que ele reconstrói a loucura não é a múltipla experiência dos loucos, é o domínio lógico e natural da doença, um campo de racionalidade.”12 Depois de situado o estatuto do louco na época clássica, vejamos que lugar ocupa a loucura na teoria médica.
A medicina clássica é classificatória, isto é, um tipo específico de medicina que tem como modelo a história natural e, portanto, considera a doença como espécie natural. A doença não é um defeito, um não-ser, uma entidade negativa. É algo positivo; possui uma verdade, uma essência, uma natureza. O mundo do patológico possui uma ordem, como o mundo natural. O conhecimento médico é taxonômico: estabelece identidade e diferenças entre as doenças, organizando um quadro classificatório e hierárquico em termos de classes, ordens, gêneros e espécies. E do mesmo modo que nos seres vivos esse trabalho de ordenação tem por objeto a estrutura visível da planta ou do animal, no caso da medicina o que guia o conhecimento é o sintoma como realidade fundamental da doença. “A definição de uma doença”, diz Boissier de Sauvages “é a enumeração dos sintomas que servem para o conhecimento de seu gênero e espécie e para distingui-la de todas as outras.”13 Mas fundamental não quer dizer profundo. O conhecimento classificatório não se interessa por nada que seja invisível, secreto, oculto no corpo; é um conhecimento superficial. O sintoma, a verdade da doença, é um fenômeno aparente, manifesto, evidente. E o método capaz de conhecê-lo — o método sintomático — em vez de ser, segundo a terminologia da época, “filosófico” — conhecimento das causas e dos princípios — é “histórico”: limita-se a descrever e ordenar o que é visível, estabelecendo um quadro classificatório.14
É nessa racionalidade médica que a época clássica procura integrar o conhecimento da loucura. Foucault ilustra esse projeto expondo as classificações de Platero, Jonston, Boissier de Sauvages, Lineu e Weickhard. Mas seu objetivo principal é mostrar a impossibilidade efetiva que marcou a tentativa de assimilação do conhecimento da loucura à medicina das espécies por causa de dificuldades, resistências, obstáculos de três tipos diferentes.15
O primeiro obstáculo é a presença, no projeto de conhecimento da loucura, de princípios heterogêneos à ordem classificatória que lhe desviam o sentido e alteram os princípios na medida em que abandonam o nível dos sintomas por um nível moral ou causal. No primeiro caso, quando uma classificação se aproxima das diversidades concretas, individuais, começa a fazer “retratos morais” onde a loucura perde sua significação patológica e aparece como desordem moral, repetindo as diversas categorias encontradas nos fichários do Grande Enclausuramento. No outro caso, quando a classificação se complexifica, há um deslocamento do nível dos sintomas para o da causalidade física, corporal, que se torna o elemento básico do conhecimento, ao fazer, por exemplo, menção ao “vício dos órgãos situados fora do cérebro”, ou à “alteração passageira dos fluidos” ou então à “depravação dos elementos sólidos”. Sempre, portanto, em um caso como no outro, abandono do nível próprio da análise da doença por uma crítica moral ou uma consideração causal.
O segundo obstáculo é constituído por um conjunto de temas surgidos antes da época clássica e que permanecerão inalterados até o século XIX, tendo-se imposto até mesmo a Pinel e Esquirol. Essas noções, que não são do mesmo tipo nem do mesmo nível teórico que as categorias nosográficas (Foucault chega a afirmar estarem elas ligadas “às profundidades qualitativas da percepção médica”), são muito mais importantes do que elas. A razão é que, apesar da diversidade e da riqueza do pensamento nosográfico, é um pequeno número de figuras muito mais imaginárias do que conceituais — como o frenesi, caracterizado pelo delírio febril; a mania, pelo delírio sem febre, mas furioso; a melancolia, pelo delírio solitário; a demência, pela abolição da inteligência16 — que organiza e explicita efetivamente o pensamento médico neste setor. São esses poucos temas “quase perceptivos” que se impõem como verdade médica da loucura na época clássica. O que leva Foucault a concluir que aquilo que se constitui, nos séculos XVII e XVIII, sob o efeito do trabalho das imagens é uma estrutura perceptiva e não um sistema conceitual ou um conjunto de sintomas.17
O terceiro obstáculo se deve ao aparecimento das teorias dos “vapores”, no final do século XVII, ou das “doenças dos nervos”, no século XVIII. “Proponho-me entender, diz Gullen, sob o título de doenças nervosas, todas as afecções preternaturais do sentimento e do movimento que não se fazem acompanhar de febre como sintoma da doença primitiva; refiro-me também a todas as doenças que não dependem de uma afecção local dos órgãos, mas de uma afecção mais geral do sistema nervoso e das propriedades desse sistema sobre as quais se baseiam sobretudo o sentimento e o movimento.”18 A definição desses distúrbios pode ser considerada como tendo dificultado a elaboração de uma teoria classificatória da loucura por dois motivos: por um lado, o mundo dos vapores ou das doenças nervosas possui princípios de classificação próprios; as distinções que o caracterizam obedecem, por exemplo, a critérios de localização, etiologia, função orgânica perturbada que são totalmente estranhos à medicina classificatória, que deve permanecer no nível dos sintomas; por outro lado, essas noções — também muito mais imaginárias do que conceituais — estão diretamente ligadas à prática terapêutica, o que não ocorria com as da nosografia clássica, da relação entre médico e doente, nascendo sempre novos tipos de doença que não podiam ser assimilados às categorias nosográficas.
Assim, a breve exposição das questões relativas à racionalidade médica nos séculos XVII e XVIII evidencia o quanto a percepção do louco e o conhecimento da loucura são duas séries divergentes. Trata-se de dois níveis diferentes que não se tocam nem se cruzam; elaboram-se independentemente, sem que um tenha incidência sobre o outro. “Essa divisão inapelável faz da idade clássica uma idade de entendimento para a existência da loucura. Não há possibilidade de nenhum diálogo, de nenhuma confrontação entre uma prática que domina a contranatureza e a reduz ao silêncio e um conhecimento que tenta decifrar as verdades da natureza.”19
Mas a situação singular em que se encontra a loucura na racionalidade médica evidencia também que a separação entre as duas ordens não é absoluta. O mesmo princípio que se encontra na base da percepção serve também de critério na ordem do conhecimento: as questões do louco e da loucura — sem dúvida heterogêneas — têm na razão seu ponto de convergência. Seja no caso do louco, percebido como o outro do pensamento e da moral, isto é, como negatividade pura, ausência total de razão, seja no caso da loucura, definida como espécie patológica a partir do olhar da razão analítica e classificatória, característica de uma das modalidades do conhecimento científico da época, a razão é sempre a referência necessária e primordial. “Em um mesmo movimento que caracteriza a percepção da loucura na época clássica, a razão reconhece imediatamente a negatividade do louco no desrazoável, mas se reconhece no conteúdo racional de toda loucura. Reconhece-se como conteúdo, como natureza, como discurso, como razão, finalmente, da loucura, ao mesmo tempo em que mede a intransponível distância entre a razão e a razão do louco.”20 Isso significa que, no fundo, a loucura, pouco importam quais sejam seus níveis ou suas figuras específicas, é sempre constituída pela razão, seja no sentido de critério de conduta — que a exclui da sociedade —, seja no de critério de conhecimento — que a objetiva na ordem do saber. Loucura, produto social e epistemológico da razão.
Mas Michel Foucault parece ir ainda mais longe. O que se conclui da exposição da teoria da loucura na época clássica é que não só a percepção do louco é marcada pelo índice negativo da desrazão; a análise dos obstáculos à manutenção dos sintomas evidencia que as categorias da desrazão estão presentes na própria objetivação da loucura pelo saber teórico da medicina clássica. Fazer da loucura delírio ou paixão, dar-lhe características de cegueira, ofuscamento, erro, desordem ou falta moral é produzi-la como não-razão.
Isso não significa que haja homogeneidade entre conhecimento médico e percepção social. Quando a medicina tematiza a loucura, nem abandona totalmente os critérios prescritos para o conhecimento médico nem lhe integra a percepção social. Há sempre inadequação: procura formular-se no interior do pensamento nosográfico, mas é incapaz de permanecer coerente com suas regras, transgredindo assim seus princípios. Em vez de homogeneidade, o que caracteriza o conhecimento médico da loucura é a oscilação entre a nosografia e a percepção social: quando é uma coisa não é outra. Mas o importante é que a própria ordem do conhecimento manifesta de maneira positiva — isto é, pelo procedimento racional que objetiva — a negatividade da loucura;21 como também que a cisão entre o louco e a loucura — característica da racionalidade clássica — é, ao mesmo tempo, explicada e compensada pela realidade da desrazão. Tanto em um nível quanto no outro, a razão é sempre a verdade de uma loucura que se tornou razão, mas afetada por um índice negativo. “A loucura é a razão mais uma extrema e fina camada negativa; é o que existe de mais próximo da razão e de mais irredutível; é a razão afetada por um índice indelével: a Desrazão.”22
A loucura como desrazão não é, porém, a verdade final dessa história cheia de peripécias. Um dia, o mundo da desrazão tinha perdido sua evidência. Mas se isso aconteceu não se deve à patologização da loucura definida como doença mental e objeto de uma medicina especial, com conceitos e técnicas próprias. A mudança nem se deu de forma tão abrupta, nem tem no nível teórico seu componente mais importante. Antes do nascimento da psiquiatria, e por um processo de que ela não será a causa mas o resultado, se produzirá uma transformação da realidade e do conceito de loucura que lhe dará autonomia e individualidade com relação à desrazão, ao mesmo tempo em que situará os fundamentos a partir dos quais poderá emergir a categoria de doença mental. Essa diferença que começa a se delinear, entre loucura e desrazão — e vai levar a uma separação definitiva entre as duas —, Foucault a situa na segunda metade do século XVIII e a investiga tanto no nível da produção teórica quanto no da prática do enclausuramento.
O ponto decisivo a respeito do aspecto teórico é o aparecimento de uma consciência histórica da loucura. Isto é, enquanto a experiência da desrazão é afetiva, imaginária, atemporal — afirma Foucault, sem no entanto fazer a análise —, a reflexão sobre a loucura é temporal, histórica, social.23
O ponto central dessa elaboração teórica se dá em torno da relação entre a loucura, o mundo e a natureza. O mundo, pensado como causa da loucura, não é uma totalidade, uma realidade global: é um elemento particular, um fator considerado de maneira independente, além de visto como relativo e móvel. Buffon o define pelo conjunto das “forças penetrantes”, noção próxima do que no século XIX se chamará “meio”, embora, diferentemente deste, seja uma noção negativa, no sentido de que serve para explicar as doenças e não a normalidade.24 São três as forças penetrantes que são causas de loucura: a sociedade, a religião e a civilização. A consideração da sociedade como causa de loucura se reduz praticamente à questão da liberdade. Não uma liberdade natural, mas aquela de uma sociedade mercantil, que não coage os desejos. A melancolia dos ingleses, por exemplo, é explicada por uma causalidade econômica e política que acusa a riqueza, o progresso, as instituições sociais. A religião que causa loucura não é a que reprime as paixões, mas a que não regula o tempo e a imaginação; aquela que, sendo uma maneira ilusória de satisfazer as paixões, produz alucinações e delírios. Finalmente, a civilização produz loucura por um trabalho científico exacerbado ou por uma sensibilidade dominada pela vida social, condenada ao ar impuro, ao artificialismo, às ilusões do teatro, dos romances etc.
O que é importante nessa reflexão sobre o mundo, aqui tematizado a partir da noção de forças penetrantes, é sua oposição à natureza. Como progresso, história, o mundo é o meio social que, afastando o homem da natureza, torna possível a loucura. Esta passa a ser não mais ausência de razão, mas perda da natureza e da natureza própria do homem, alterando a sensibilidade, os desejos, a imaginação. É a perda da imediatez em proveito das mediações. A tese de Foucault aparece claramente: deixando de ser desrazão, a loucura, relacionada à sociedade e considerada perda da natureza, antes de ser doença mental, torna-se alienação. O que há de importante na reflexão médico-filosófica da segunda metade do século XVIII sobre a loucura é a formulação de “um conceito bastante rudimentar de alienação que permite definir o meio humano como a negatividade do homem e nele reconhecer o a priori concreto de toda loucura possível”25. A loucura não é mais fundamentalmente erro, como na época clássica; é um produto da relação entre o homem e o mundo que afasta, distancia o homem de si mesmo, aliena sua natureza na medida em que “o homem, na loucura, não perde a verdade, mas sua verdade; não são mais as leis do mundo que lhe escapam, mas ele mesmo que escapa às leis de sua própria essência”26. O fenômeno da loucura se passa no interior do próprio sujeito. Dizendo respeito à verdade do homem, a loucura se interioriza, se psicologiza, torna-se antropológica.
A análise, porém, não continua nesse nível. Depois de assinalar a existência, na segunda metade do século XVIII, de teorias que individualizam a loucura como alienação, Foucault vai examinar o deslocamento institucional, evidenciando mais uma vez como o nível da percepção, da instituição, do contato direto com o louco é privilegiado em sua análise.27
Sob esse aspecto, a individualização da loucura vai significar a criação de instituições destinadas exclusivamente aos loucos. O importante é que essa transformação do espaço de reclusão não se deve basicamente à medicina, mas a fatores políticos, econômicos e sociais. Também não significa uma libertação do louco, nem a apreensão de sua verdade. Em vez de libertação, trata-se de especificação de um espaço de reclusão próprio para o louco, categoria social que não deve ser deixada em liberdade. Em vez de uma tentativa de discernir sua verdade, trata-se de — mesmo esquadrinhando a realidade da loucura e refinando as categorias do internamento, que não coincidem com as categorias nosográficas — se distinguir dela, afastá-la negativamente como perigosa. A medicina, e a teoria que define o louco como doente mental, em vez de estar na origem, se encontra no fim desse processo. E se esse aspecto é privilegiado é porque as transformações institucionais e a percepção ou a consciência pré-psiquiátrica da loucura que se formula em termos taxonômicos, sociais e políticos são as próprias condições de possibilidade da psiquiatria.
É através da crítica — interna e externa — ao Grande Enclausuramento que se vai delinear a nova realidade institucional da loucura no século XVIII. Internamente, essa crítica significa a indignação não de ver os loucos misturados a uma população que se começa a perceber como heterogênea, mas de ver presos confundidos e coabitando com loucos.28 Com os próprios internados protestando contra essa assimilação, a crítica política ao despotismo denuncia o arbitrário que significa outros estarem com os loucos, sem de modo algum questionar a relação entre loucura e internamento, lugar que naturalmente lhe parece destinado.
Mas a crítica externa é mais importante. Economicamente, evidencia-se que o internamento não constitui um meio adequado de solucionar o problema do desemprego, nem de equilibrar os preços. Responde-se à crise não mais com a criação, mas com a limitação dessas instituições de reclusão. Turgot, por exemplo, fecha vários depósitos de mendicidade. A razão dessa transformação é a importância que a população adquire para o capitalismo e o pensamento econômico. Na economia mercantilista, a população pobre — ociosa, vagabunda, desempregada —, não sendo produtora ou consumidora, devia ser internada nas instituições para ela destinadas como meio de excluí-la do circuito econômico. Com o capitalismo nascente, que tem necessidade de operários e para quem o homem aparece como criador de valor, não se pode mais confundir a pobreza — rarefação de gêneros alimentícios e de dinheiro — com a população, que é a força produtora das riquezas e, por isso, ela mesma uma riqueza. “Erro grosseiro do internamento e erro econômico: acredita-se acabar com a miséria pondo para fora do circuito e mantendo, pela caridade, uma população pobre. Na verdade, mascara-se artificialmente a pobreza e se suprime uma parte da população, riqueza sempre dada.”29 Desprezando essa racionalidade caduca do internamento, o capitalismo tem como imperativo tornar a população força de trabalho produtiva.
Conseqüência dessa nova maneira de enfrentar os problemas econômicos: a transformação da política assistencial. Na medida em que o internamento cria ou mantém a pobreza, não se deve, em princípio, internar, mas assistir aos pobres em liberdade. A política assistencial, porém, não é homogênea. Quase todos os projetos da segunda metade do século XVIII baseiam-se na distinção de duas categorias de pobres: os “pobres válidos” e os “pobres doentes”.30 Válido é o elemento considerado positivo para a sociedade. É alguém que pode trabalhar e, por isso, deve-se fazer trabalhar e não excluir da vida social. O doente, ao contrário, é um peso morto, um elemento negativo, sem utilidade econômica; no entanto, sua assistência é um dever social para o pensamento filantrópico. A questão é como deve ser organizada essa assistência: se deve ser estatal, e organizada em grandes instituições, ou privada, tendo por base a família, o que é a idéia da maioria, por apresentar vantagens sentimentais, econômicas e médicas.31
Que situação ocupa a loucura no âmbito de todas essas transformações? Como eu dizia ao iniciar a análise do processo de individualização da loucura no nível institucional, o resultado dessas transformações políticas, econômicas e sociais não foi a libertação dos loucos, mas a manutenção de casas de reclusão especialmente para eles. Enquanto a tendência é a assistência à doença e à miséria se tornar privada, relação de homem a homem, localizada prioritariamente na família e, no máximo, subsidiada pelo Estado, a assistência à loucura adquire, na nova ordem contratual que a burguesia começa a estabelecer, um estatuto público com seu confinamento em uma instituição de reclusão específica para ela, na medida em que qualquer mistura seria um aviltamento não dela, mas dos outros. A grande mudança que assinala a segunda metade do século XVIII com relação aos loucos é seu isolamento solitário proveniente do esfacelamento da categoria de desrazão, de sua incapacidade para o trabalho e impossibilidade de assistência a domicílio, devido à periculosidade que caracteriza sua existência livre.
Isso pode parecer pouco, mas foi fundamental para determinar o destino que ainda hoje se reserva aos loucos. Pois desse novo tipo de reclusão que vai atingir e dominar o louco resulta um novo estatuto da loucura que antecede e prepara a “revolução psiquiátrica” do século XIX e permite estabelecer suas verdadeiras dimensões. É assim que, privilegiando o aspecto da percepção, e não o do conhecimento da loucura, Michel Foucault vai analisar, no nível das instituições, da vida social, como o louco foi relacionado, nesse momento, com o novo espaço de reclusão, com seus guardiões e com a questão do crime no tribunal; três “estruturas”, três “figuras” que vão constituir, pela primeira vez na história e antes mesmo da psiquiatria, a loucura como interioridade psicológica através de um processo que a medicaliza, objetiva e inocenta.32
Medicalização da loucura não significa, nesse momento anunciador de tão importantes transformações, importação da teoria médica da loucura no espaço do internamento; é, antes de tudo, a reestruturação interna das instituições de reclusão do louco que, paulatinamente, por um efeito próprio à reorganização de seu espaço, vai lhes dar uma significação intrinsecamente médica de agente terapêutico. Medicalização, independentemente da convocação da nosografia ou da própria presença do médico, é o aparecimento da reclusão como tendo em si mesma uma significação curativa.
O primeiro momento, ainda que bastante imperfeito, desse processo foi a Instrução … sobre o modo de governar e de tratar os insensatos, de 1785. Ela tem como autores Doublet e Colombier e propõe a organização do enclausuramento do louco como uma tentativa de síntese entre um procedimento de exclusão e os cuidados médicos habituais ao século XVIII. Síntese, no fundo, bastante precária, solução ainda de compromisso na medida em que os dois aspectos, em vez de coincidirem, apenas se sucedem: primeiro se trata; se o tratamento não funciona, exclui-se pura e simplesmente. Mas o passo fundamental da transformação vai ser dado logo depois por Tenon, ao formular a idéia de que a coerção que exerce o internamento é a condição de possibilidade da eclosão da loucura em sua verdade. É a organização de um espaço de liberdade entre quatro paredes que dá à própria reclusão uma virtude terapêutica. Descoberta essencial, e de grande futuro: a liberdade, vigiada e isolada, cura. “O importante é que essa transformação da casa de internamento em asilo não se fez pela introdução progressiva da medicina — espécie de invasão vinda do exterior —, mas por uma reestruturação interna desse espaço a que a época clássica apenas havia conferido funções de exclusão e de correção. A alteração progressiva de suas significações sociais, a crítica política da repressão e a crítica econômica da assistência, a apropriação de todo o campo do internamento pela loucura, no momento em que todas as outras figuras da desrazão foram pouco a pouco libertadas, foi tudo isso que fez do internamento um lugar duplamente privilegiado para a loucura: o lugar de sua verdade e o lugar de sua abolição.”33
Ao mesmo tempo, e sobretudo com Cabanis, a loucura é objetivada, isto é, torna-se objeto de conhecimento no próprio espaço de reclusão. Novo tipo de relação entre a loucura e quem a reconhece, que depende essencialmente do próprio funcionamento institucional. Cabanis chega até mesmo a propor que se faça um “diário de asilo”. O conhecimento da loucura é uma peça do mecanismo de controle estabelecido no próprio internamento. Por ser vigiada — por magistrados, advogados, médicos, ou homens que apenas possuem experiência —, a loucura é interrogada pelo olhar, considerado neutro, possibilitado pela instituição de reclusão. O guarda vira sujeito de conhecimento e a loucura torna-se, a partir de então, “forma olhada, coisa investida pela linguagem, realidade que se conhece; torna-se objeto”34. Para compreender o sentido da trajetória traçada por História da loucura, é importante assinalar que esse momento, e a nova forma institucional que ele inicia, representa um passo a mais na radicalização do processo de dominação da loucura pela razão: “É essa queda na objetividade que domina a loucura mais profundamente e melhor do que a sua antiga sujeição às formas da desrazão. O internamento, em seus novos aspectos, pode oferecer à loucura o luxo de uma liberdade: ela é agora serva e desarmada de seus profundos poderes. E se fosse preciso resumir em uma palavra esta evolução, sem dúvida poder-se-ia dizer que o próprio da experiência da Desrazão é que nela a loucura era sujeito dela mesma; mas na experiência que se forma, no final do século XVIII, a loucura é alienada com relação a si mesma no estatuto de objeto que ela recebe.”35
A terceira estrutura lança Foucault para fora do espaço do internamento, obrigando-o à análise das transformações da justiça penal na época da Revolução Francesa: a reorganização da polícia confia ao cidadão poderes de estabelecer as fronteiras da ordem e da desordem, da moral e da imoralidade, podendo assim julgar a loucura; a criação dos “tribunais de família” — que tinham o objetivo de aliviar as jurisdições do Estado em vários tipos de processos, mas também de dar forma jurídica às medidas que no Antigo Regime eram pedidas ao rei pelas famílias e que possibilitavam a internação do desrazoado — dava agora explicitamente à família o poder de julgar a loucura; as modificações na natureza da pena, que vai considerar o escândalo como castigo ideal por se adequar imediatamente à falta e às exigências da consciência moral e atingir o homem em seu íntimo, dando vergonha. Tudo isso faz da consciência pública instância de julgamento, inaugurando uma dimensão psicológica do crime que também contribui fundamentalmente para a mudança da significação da loucura que estou descrevendo. “Com isso está em vias de surgir toda uma psicologia que muda as significações essenciais da loucura e propõe uma nova descrição das relações do homem com as formas ocultas da desrazão…. A psicologia e o conhecimento daquilo que há de mais interior no homem nasceram justamente da convocação que se fez da consciência pública como instância universal, como forma imediatamente válida da razão e da moral para julgar os homens. A interioridade psicológica foi constituída a partir da exterioridade da consciência escandalizada. Tudo o que havia constituído o conteúdo da velha desrazão clássica vai poder ser retomado nas formas do conhecimento psicológico.”36
Do ponto de vista institucional, o júri popular é, na reforma da justiça criminal que tem lugar nessa época, a instância que expressa essa consciência pública. A hipótese de Foucault é de que à medida que a justiça se universaliza — é a nação inteira que julga, tendo por norma os direitos universais do homem, através do corpo de jurados — o crime se interioriza, se privatiza, se subjetiviza, isto é, se irrealiza como crime na profundidade do comportamento criminoso. Em uma palavra: se psicologiza. O que Foucault chama “psicologia” é o conhecimento do indivíduo e do que nele existe de mais secreto: seu passado, suas motivações, seu comportamento, sua consciência. E, para ele, a instituição do júri popular foi uma das condições de possibilidade do nascimento da psicologia como “ciência”, através de uma interrogação não sobre o fato criminoso, mas sobre suas motivações subjetivas. Ora, o que se descobre com os primeiros processos de crimes passionais realizados perante um júri é que um comportamento humano que irrealiza o crime tem no seu âmago a loucura. Um discurso de defesa como o do advogado Bellart, em 1792, postula claramente que no fundo do crime existe o mundo humano da inocência e da irresponsabilidade, o mundo da loucura — não mais como desrazão, mas como alienação —, que passa a ser uma das verdades mais profundas do homem.37 Introduzida no sujeito psicológico como verdade do crime, a loucura torna-se finalmente determinismo irresponsável.
Com esse novo estatuto da loucura, adquirido por uma transformação tanto no nível do conhecimento quanto no da percepção, o caminho está preparado para o surgimento da psiquiatria. Deixando de ser elemento do conjunto da desrazão clássica, o louco já pode se metamorfosear no alienado da figura moderna da medicina mental, isto é, em doente mental. O que é analisado mais uma vez nos níveis do conhecimento e da percepção.
Foucault não estuda os grandes sistemas nosográficos — a “mania classificatória” — da psiquiatria do século XIX. Isso não seria fundamental. Em primeiro lugar porque as modificações são poucas: as figuras imaginárias que constituíam os grandes temas, as principais noções do conhecimento clássico da loucura permaneceram quase inalteráveis. O que não significa que haja continuidade entre a questão teórica da loucura na época clássica e na moderna. Mas — e essa é uma das teses importantes de História da loucura — a ruptura se dá, ou é muito mais fundamental, na segunda metade do século XVIII, antes mesmo do advento da psiquiatria e do aparecimento da categoria de doente mental. Em segundo lugar porque o nascimento da psiquiatria só pode ser elucidado a partir do tipo de intervenção que a caracteriza. É o nível da percepção, e não o do conhecimento, que aparece como fundamental quando se trata de estabelecer suas condições de possibilidade.
Isso não significa, porém, que Foucault deixe inteiramente de lado a análise dos conceitos psiquiátricos. Ele estuda três exemplos de doença mental com o objetivo de dar conta da nova realidade da loucura como alienação. Pois, segundo ele, essa nova realidade assinala o nascimento de uma reflexão antropológica sobre o homem, sua loucura e sua verdade, no sentido em que o conhecimento do homem, que se inaugura no século XIX, passa pelo louco, o conhecimento da verdade do homem passa pelo alienado.38 Estudando rapidamente categorias psiquiátricas como a “paralisia geral”, a “insanidade moral” e a “monomania”, ele mostra sucessivamente como a doença, isto é, a falta e a culpabilidade, se inscreve no corpo, que encontra o castigo no próprio organismo; como a loucura expressa, pela conduta — sem mesmo afetar a razão —, a subjetividade, exterioriza a interioridade; enfim, como a loucura, ao se manifestar unicamente em um tipo de comportamento, dá ao indivíduo a possibilidade de aparecer como outro que não ele mesmo. Tal reflexão é antropológica, porque por meio dela a verdade do homem se objetiva.
Daí o papel importante da psiquiatria no âmbito das ciências humanas: o conhecimento objetivo, “científico”, da verdade do homem passa pela consideração do louco, na medida em que é como loucura, como fenômeno patológico, que pela primeira vez essa verdade se objetiva. O que do ponto de vista da problemática da loucura, de que procuro seguir os traços, consolida uma mudança radical em relação à época clássica: o fato de que a loucura diz respeito não mais à questão da verdade e da falsidade, mas à verdade do homem e à sua negatividade. “Essa estrutura antropológica de três termos — o homem, sua loucura e sua verdade — substituiu a estrutura binária da desrazão clássica (verdade e erro, mundo e fantasia, ser e não-ser, Dia e Noite).”39
Mas, de todo modo, o conhecimento psiquiátrico — calcado no conhecimento médico —, a elaboração de seus múltiplos sistemas, não é o componente fundamental da transformação. É sobretudo do lado institucional que Foucault vai desenvolver sua análise do nascimento da psiquiatria. A razão é que, quando se considera a instituição hospício, não é a importação, a influência da nosografia na prática psiquiátrica que explica o que é a loucura como doença mental. Em vez de ser um fator determinante, a nosografia é basicamente uma justificação, uma legitimação médica. Daí o privilégio dado por Foucault à questão da terapêutica, isto é, à investigação da organização e do funcionamento do hospício, considerado como o principal instrumento terapêutico da psiquiatria do século XIX.
Quais são os procedimentos utilizados, no interior do hospício, para produzir a cura? A análise das operações reais que, com Tuke na Inglaterra e Pinel na França, organizaram o mundo asilar, os métodos terapêuticos e, assim, uma nova percepção da loucura aponta as seguintes estratégias: a religião, purificada de suas formas imaginárias e reduzida a seu conteúdo essencial; o medo, que deve incutir culpa e responsabilidade; o trabalho, que cria o hábito da regularidade, da atenção e da obrigação; o olhar dos outros, que deve produzir autocontenção e é desmistificador; a infantilização; o julgamento perpétuo, que faz do hospício um microcosmo judiciário e do louco um personagem em processo; e last but not least o médico, responsável pela internação e a autoridade mais importante no interior do asilo.40
O que tudo isso nos ensina senão que a psiquiatria é uma terapêutica sem medicina, que os procedimentos utilizados como curativos são efetivamente técnicas de controle, relações de força unilaterais formuladas em termos de autoridade e dominação? A ação do psiquiatra é moral e social, e não depende necessariamente, para sua eficácia, de competência científica: desalienar é instaurar uma ordem moral. A medicina mental é uma terapêutica, uma educação moral, característica que, até nossos dias, ainda a acompanha. O que, de um ponto de vista teórico ou conceitual, só é possível porque o louco não é mais, como na época clássica, um desrazoado, isto é, o outro do pensamento e da moral, mas um alienado, ou seja, alguém teoricamente passível de recuperação, de transformação ou de cura, pois sob a alienação existe, no mais íntimo do homem, algo inalienável que é explicitado pela psiquiatria em termos de natureza, verdade, razão, moral social etc. Se a loucura é alienação, sua cura é retorno ao inalienável pela ação exercida pelo hospício. Chegou para o louco, e cada vez mais para todos nós, a era do patológico.
II
Eis a trama de História da loucura e o essencial de uma argumentação que se situa em diferentes níveis, percorre várias disciplinas, desenvolve-se em várias etapas, alimenta-se de uma erudição incomum e uma linguagem de surpreendente beleza – tudo isso, entretanto, sem em nenhum momento perder o seu rigor ou abandonar seu objetivo. Retomemos mais uma vez essa argumentação, agora com o intuito de analisar o novo conceito de história arqueológica que essa imensa e ambiciosa pesquisa inaugura.
Uma característica de História da loucura que logo se evidencia à sua leitura é a distância em relação às histórias factuais das ciências. Ela está bastante longe de ser apenas um inventário de datas, biografias, descobertas, tratados; uma exposição de doutrinas, temas, teorias; o repertório dos procedimentos teóricos ou práticos que uma ciência reconhece como corretos; a busca dos precursores do que hoje é aceito como verdade. Tais atividades caracterizam não apenas as histórias da psiquiatria, mas grande parte da historiografia das ciências. Além disso, toda a argumentação do livro se desenvolve em oposição ao que chama de “ilusão retrospectiva” da história da psiquiatria. O prefácio da primeira edição já assinalava que para dar conta de seu problema era preciso “renunciar ao conforto das verdades terminais e nunca se deixar guiar pelo que podemos saber sobre a loucura. Nenhum dos conceitos da psicopatologia deverá, mesmo e sobretudo no jogo implícito das retrospecções, exercer um papel organizador”41. Iniciando o estudo das “experiências da loucura” na época clássica, Foucault afirma: “Deixemos aos jogos das arqueologias médicas o cuidado de determinar se era doente ou não, alienado ou criminoso, este que entrou para o Hospital por ‘desarranjo dos costumes’ ou aquele que ‘maltratou sua mulher’ e quis várias vezes se livrar dela. Para colocar esse problema é preciso aceitar todas as deformações que nosso olhar retrospectivo impõe.”42 As histórias da psiquiatria, projetando sobre o passado “verdades terminais” dessa disciplina, estão impossibilitadas de conhecer o passado enquanto passado. Seu enfoque é deformador porque pressupõe uma identidade entre loucura e doença mental, quando esta última é apenas uma etapa de uma trajetória mais ampla, de um processo mais global, um conceito básico de determinada configuração discursiva.
Eis o ponto fundamental da crítica: as histórias factuais são incapazes de diferenciar um conceito de uma palavra. O fato de a loucura ter sido patologizada pelo discurso psiquiátrico não deve nos levar a pensar que sempre foi assim. É preciso entender o sentido conceitual tal como é definido pelos discursos da própria época: “regra metodológica que logo deve ser aplicada: quando nos textos médicos da época clássica se trata de loucuras, vesânias e até mesmo, de modo bastante explícito, de ‘doenças mentais’ ou ‘doenças do espírito’, o que se designa com isso não é um domínio de perturbações psicológicas ou de fatores espirituais que se oporiam ao domínio das patologias orgânicas … Trata-se de um jogo a que os médicos historiadores gostam de entregar-se: descobrir sob as descrições dos clássicos as verdadeiras doenças ali designadas. Quando Willis falava de histeria não englobava fenômenos epilépticos? Quando Boerhaave falava de manias não descrevia paranóias? Sob os traços de determinada melancolia de Diemerbroek, não é fácil encontrar os signos certos de uma neurose obsessiva? Estes são jogos de príncipesh, não de historiadores. Pode ser que, de um século a outro, não se fale, com os mesmos nomes, das mesmas doenças; mas isso é porque, fundamentalmente, não se trata da mesma doença. Quem diz loucura, nos séculos XVII e XVIII, não diz, em sentido rigoroso, ‘doença do espírito’, mas algo em que o corpo e a alma estão conjuntamente em questão.”43 Assim, é por ser conceitual que História da loucura não apenas se distingue das histórias da psiquiatria, como também está incessantemente criticando o seu método.
Mas a questão do conceito não se coloca para ela da mesma maneira que para uma história epistemológica. Para esta, como vimos, o conceito é, fundamentalmente, aquilo que define a racionalidade científica, isto é, a principal expressão da norma de verdade do discurso científico, mesmo se o estudo histórico do conceito não se limita ao interior de determinada ciência, e seu nascimento não coincide com sua cientificidade. História da loucura produz um importante deslocamento com relação à epistemologia: radicaliza essa independência do conceito em relação à ciência. Seu objeto nem é propriamente a ciência, nem a tem como critério. A psiquiatria não é, rigorosamente falando, ciência, mas nem por isso se torna impossível analisar seus conceitos. Ela é um discurso teórico que, mesmo não tendo, pretende ter cientificidade, pois se organiza tomando como parâmetro o discurso da medicina.
Assim, História da loucura não faz propriamente história das ciências. Não se confina no interior de uma disciplina científica, aceitando suas fronteiras, nem se limita à análise dos discursos que pretendem ter cientificidade: também leva em consideração discursos filosóficos, teológicos, poéticos, literários etc. Esse procedimento é marcante nas pesquisas históricas realizadas por Foucault. Não há privilégio do discurso científico para a investigação do que efetivamente foi dito nos discursos. A concepção da loucura em diferentes épocas não é exclusividade de nenhum tipo de texto ou disciplina. Daí a extensão mais ampla dessa nova abordagem histórica com relação à epistemologia. Tendo como fio condutor a loucura, a análise leva em consideração o conjunto heterogêneo dos discursos que a constituem como objeto. E o fundamental sobre isso é que aquilo que permite estabelecer esse conjunto, realizar essa aproximação, é o elemento conceitual que nele se encontra e é privilegiado.
Mas é preciso não esquecer um problema importante quando se pretende entender, em sua especificidade e em suas transformações internas, o novo tipo de história que esse livro inicia: a inexistência naquele momento do conceito de saber como objeto próprio da arqueologia e aquilo que permite balizá-la em relação à epistemologia. A partir de As palavras e as coisas Foucault formula a idéia, importante metodologicamente, de que o saber é o nível específico da análise arqueológica. Isso porque o saber constitui uma positividade mais elementar do que a ciência, possuindo critérios internos de ordenação independentes dos dela e a ela anteriores; mas também porque funciona como sua condição de possibilidade, a ponto de se poder afirmar que não há ciência sem saber, enquanto o saber tem uma existência independente de sua possível transformação em saber científico.
O procedimento utilizado por História da loucura para se diferenciar da história epistemológica e definir a especificidade da arqueologia é outro: baseia-se na distinção, que já assinalei, entre conhecimento e percepção. Só a ciência produz conhecimento, afirma a epistemologia. Foucault utiliza o termo “conhecimento” no sentido mais geral de teoria sistemática sobre a loucura, isto é, a objetivação do fenômeno loucura por um discurso científico ou que tem a pretensão de aparecer como tal, como é o caso das teorias da medicina, da psiquiatria, do direito, que pretendem elaborar um saber objetivo, “positivo”. Ora, um aspecto fundamental de História da loucura é o reconhecimento da insuficiência desse nível para dar conta da questão das condições de possibilidade da psiquiatria. É assim que, justificando a importância do estudo da loucura, considerada como desrazão, no espaço do Grande Enclausuramento, Foucault explicita as razões pelas quais tal estudo, dada sua especificidade, não pode se restringir à consideração da “positividade”, da objetividade do conhecimento. “Isso não teria importância para quem quisesse fazer a história da loucura em estilo de positividade. Não foi através do internamento dos libertinos, nem da obsessão com a animalidade, que se tornou possível o reconhecimento progressivo da loucura em sua realidade patológica; foi, ao contrário, afastando-se de tudo o que podia enclausurá-la no mundo moral do classicismo que ela conseguiu definir sua verdade médica; é isto ao menos o que supõe todo positivismo quando tenta descrever o seu próprio desenvolvimento; como se toda a história do conhecimento atuasse apenas pela erosão de uma objetividade que pouco a pouco se descobre em suas estruturas fundamentais; e como se não fosse justamente um postulado admitir, de saída, que a forma da objetividade médica pode definir a essência e a verdade secreta da loucura. Talvez o pertencimento da loucura à patologia deva antes ser considerado como um confisco, espécie de avatar que teria sido preparado há muito tempo na história de nossa cultura, mas de nenhum modo determinado pela própria essência da loucura.”44
Como analisar o nascimento da psiquiatria? Não se situando apenas, nem fundamentalmente, no nível do discurso. E isso por duas razões: primeiro porque a psiquiatria talvez não seja capaz de definir a essência da loucura, como pensam os epistemólogos a respeito da relação da ciência com seu objeto, sendo outro o seu objetivo; segundo porque, para esclarecer esse objetivo, é preciso situar a análise em outro nível, chamado “percepção”, o da relação teórica e prática estabelecida com o louco em uma situação de exclusão institucional, que é o aspecto mais importante da análise: “O que importa, para compreender estas relações temporais e reduzir seus prestígios, é saber como nessa época a loucura era percebida, antes de qualquer produção de conhecimento, de toda formulação do saber.”45 Assim, percepção se opõe a conhecimento, mas de modo algum exclui saber, no sentido que Foucault dará posteriormente a esse termo. Ao contrário, lança-o na pesquisa de discursos mais diretamente ligados às práticas institucionais, como processos judiciários e policiais, ou material de arquivo das prisões, dos hospitais, dos hospícios etc., textos bastante heterogêneos com relação aos textos teóricos analisados pelos historiadores das ciências, mas que nem por isso deixam de ser investigados conceitualmente.
É então que se põe a questão do conceito de arqueologia nesse primeiro momento de sua trajetória. Com História da loucura surge, pela primeira vez, a denominação menos de um método rígido, estável e preciso, do que de uma exigência e de uma tentativa, sempre renovada, de dar conta do discurso científico — tomando essa expressão em sentido amplo — de modo diferente do que faz a epistemologia. Embora a denominação tenha variado de sentido com o desenvolvimento das pesquisas arqueológicas, uma coisa entretanto não mudou: a definição de um tipo de abordagem e de um espaço próprio que tomam como referência a história epistemológica.
Em História da loucura “arqueologia” tem o sentido preciso e restrito de investigação de condições de possibilidade mais profundas do que as dadas no nível do conhecimento, da ciência. “É constitutivo o gesto que separa a loucura e não a ciência que se estabelece, uma vez feita essa separação, quando voltou a calma. É originária a cesura que estabelece a distância entre razão e não-razão; quanto à captura da não-razão que a razão realiza para lhe arrancar sua verdade de loucura, de falta ou de doença, essa captura provém da razão, e de longe. Vai, portanto, ser necessário falar desse debate primitivo sem pressupor vitória ou direito à vitória; falar desses gestos repetidos na história, deixando em suspenso tudo o que pode parecer acabamento, repouso na verdade; falar desse gesto de corte, dessa distância estabelecida, desse vazio instaurado entre a razão e o que ela não é, sem nunca se apoiar na plenitude daquilo que ela pretende ser.”46 Daí a importância da dicotomia estrutural que organiza toda a pesquisa. E, nessa dicotomia, o espaço próprio que distingue a arqueologia e assinala sua importância e sua originalidade é um lugar aquém do “conhecimento”; lugar que não só lhe é anterior e sobre o qual ele repousa, como é superior, isto é, prioritário para desvendar sua verdade, para descobrir seus reais objetivos. Privilégio do gesto que separa com relação às categorias que explicam ou pretendem explicar, que, no caso preciso, corresponde à oposição entre a história dos discursos, das linguagens, das teorias, dos conceitos, psiquiátricos ou não, sobre a loucura e a arqueologia da relação de força que se estabelece com o louco, independentemente da razão científica, e é capaz de estabelecer suas verdadeiras razões.
Eis dois textos de Foucault que deixam isso muito claro: “Neste sentido, refazer a história deste processo de banimento é fazer a arqueologia de uma alienação. Trata-se então não de determinar que categoria patológica ou policial foi assim aproximada, o que sempre supõe esta alienação já dada; mas é preciso saber como esse gesto foi realizado, isto é, que operações se equilibram na totalidade que ele forma.”47 E ainda: “No meio do mundo sereno da doença mental, o homem moderno não se comunica mais com o louco: existe, por um lado, o homem de razão que delega o médico para a loucura, só autorizando assim uma relação através da universalidade abstrata da doença; existe, por outro lado, o homem de loucura que só se comunica com o outro por intermédio de uma razão igualmente abstrata, que é ordem, coerção física e moral, pressão anônima do grupo, exigência de conformidade. Linguagem comum não há; ou melhor, não há mais; a constituição da loucura como doença mental, no final do século XVIII, constata um diálogo rompido, dá a separação como já adquirida e faz cair no esquecimento todas essas palavras imperfeitas, sem sintaxe fixa, mais ou menos balbuciantes, através das quais se dava o contato entre a loucura e a razão. A linguagem da psiquiatria, que é monólogo da razão sobre a loucura, só pôde se estabelecer sobre tal silêncio. Não quis fazer a história desta linguagem; mas, antes de tudo, a arqueologia deste silêncio.”48
Ainda não há, portanto, em História da loucura, uma “arqueologia do saber” como será formulada posteriormente; o que existe nesse momento é o que poderíamos chamar “arqueologia da percepção”. Mas essa percepção analisada no livro nem é silenciosa nem exclui saber. Como podemos ver, por exemplo, quando Foucault explicita o que são as figuras, as estruturas49 que, no nível das instituições, foram determinantes para o nascimento do conceito de alienação mental: “De fato, essas figuras não podem ser descritas em termos de conhecimento. Elas se situam aquém dele, lá onde o saber ainda está próximo de seus gestos, de suas familiaridades, de suas primeiras palavras.”50
É importante observar — e essa observação nos remeterá a um segundo ponto, a descontinuidade histórica — que essa diferença de nível leva Foucault a criticar uma história continuísta que descreveria o itinerário da psiquiatria como uma passagem linear de uma percepção social a um conhecimento científico da loucura, como a transformação de uma na outra: “E pouco a pouco esta primeira percepção se teria organizado e finalmente se aperfeiçoado em forma de uma consciência médica que teria formulado como doença da natureza aquilo que até então era reconhecido apenas como mal-estar da sociedade. Seria necessário assim supor uma espécie de ortogênese que fosse da experiência social ao conhecimento científico, progredindo secretamente da consciência de grupo até a ciência positiva, sendo aquela apenas a forma oculta desta e como que seu vocabulário balbuciante. A experiência social, conhecimento aproximado, seria da mesma natureza que o próprio conhecimento, estando já a caminho de sua perfeição.i Por esta razão, o objeto do saber lhe preexiste, dado que já era apreendido antes de ser rigorosamente delimitado por uma ciência positiva: em sua solidez intemporal, ele permanece em estado de sonolência até o despertar total da positividade.”51
Sem dúvida seguindo a lição da história epistemológica, a arqueologia critica as histórias continuístas. Mas não devemos pensar que o termo descontinuidade tenha o mesmo significado para os dois tipos de abordagem. Em História da loucura o estudo desse objeto exige, como vimos, uma divisão histórica em três períodos — Renascimento, época clássica, modernidade — e o conseqüente estabelecimento de dois momentos de ruptura. Ora, essas rupturas não são epistemológicas. Elas podem ser especificadas por três características.
Em primeiro lugar, elas são gerais. Não dizem respeito apenas a uma ciência, mas pretendem dar conta de um conjunto de discursos que tematizam explícita ou implicitamente a loucura, constituindo-a como objeto. Mas se a ruptura é geral, isso não significa que seja global: ela está sempre circunscrita à questão da loucura, estudada a partir das inter-relações conceituais que é possível estabelecer em determinada época entre saberes, no nível tanto da percepção, quanto do conhecimento. Não há, assim, homogeneidade total em uma época. Há heterogeneidade, por exemplo, entre a experiência trágica e a consciência crítica da loucura no Renascimento; entre as duas formas institucionais de reclusão da loucura — o hospital e o Grande Enclausuramento —, ou entre uma consciência jurídica e uma consciência social da loucura, ou mesmo entre a teoria médica e o sistema de exclusão na época clássica; mas também entre consciência da loucura e consciência da desrazão no final do século XVIII.
Em segundo lugar, as rupturas podem ser consideradas verticais no sentido de que a arqueologia não pretende balizar a ciência a partir de uma análise exclusivamente interna de seus procedimentos, nem de uma análise do que é apenas externo: ela procura levar em consideração e articular níveis diferentes. Essa verticalidade da investigação, tal como é praticada, é algo novo em história das ciências. A distinção, que estrutura a argumentação do livro, entre percepção e conhecimento mostra claramente como o âmbito da arqueologia, nesse momento, ultrapassa o discurso. Mas não para relacionar a loucura com as condições econômicas e políticas como dois níveis completamente heterogêneos, e sim para investigar como as práticas econômicas e sociais desempenham um papel intrínseco na constituição dos próprios conceitos de loucura. O que faz de História da loucura o livro arqueológico de Foucault mais próximo das pesquisas que realizará com o nome de “genealogia do poder”.
Essa análise realiza-se em dois planos. Por um lado, privilegia as instituições. Por exemplo, a reclusão do louco com a população de libertinos, profanadores e desviantes sexuais será determinante para o aparecimento da loucura como desrazão na época clássica. Situando-se em um nível mais elementar do que as teorias nosográficas da loucura, o estudo privilegia claramente as práticas do internamento, ao mostrar que as próprias categorias de desrazão e de alienação se constituem com a organização, o funcionamento e a transformação das instituições de reclusão. Mas, além disso, a análise das condições de possibilidade dos conceitos remete a um plano mais geral. É assim que uma instituição como o Grande Enclausuramento — sua criação, seu declínio, sua transformação em hospício — é relacionada com fatores econômicos, sociais e políticos.
Elaborada em forma de generalização crescente, a pesquisa nunca liga o discurso diretamente às condições econômicas: a relação se dá por meio das instituições. E, nessa relação, a teoria nosográfica não é privilegiada, nunca aparece como o lugar capaz de mostrar, em suas verdadeiras dimensões, a história da loucura. Além disso, a verticalidade da análise diz respeito acima de tudo ao saber diretamente ligado à percepção, embora pretenda explicitar as condições de possibilidade da percepção e do conhecimento modernos da loucura. Procedimento que levará Foucault a concluir que a psiquiatria é, em última análise, uma relação de compromisso entre dois aspectos heterogêneos: o campo abstrato de uma natureza teórica e o espaço concreto de um internamento, ou, em outras palavras, uma “analítica médica” e uma “percepção asilar”.52
É então que se delineia uma terceira característica da descontinuidade: a investigação histórica não estabelece uma ruptura absoluta entre as diversas épocas. É certo, e mesmo fundamental, que o Grande Enclausuramento assinala uma descontinuidade com a situação do louco no Renascimento, o mesmo acontecendo com o asilo de Pinel e Esquirol em relação à reclusão clássica. Além disso, a teoria psiquiátrica não é homogênea à nosografia clássica ou à consciência crítica da loucura no Renascimento. Mas a descontinuidade histórica não é total: as teorias e as práticas de uma época dependem do que passou, no sentido de que há sempre condições de possibilidade antecedentes.
O que História da loucura descobre é um processo orientado que tem uma direção precisa. O sentido desse processo, iniciado no Renascimento, é o de crescente subordinação da loucura à razão. Assim, História da loucura é uma crítica da razão: uma análise de seus limites, das fronteiras que se estabelecem e se deslocam excluindo ou reduzindo aquilo que ameaça sua ordem. Processo que é descontínuo — o que aparece nitidamente com o balizamento de três épocas diferentes —, mas tem o sentido do aprofundamento da afirmação da razão, ou do estabelecimento de uma dominação cada vez mais poderosa da razão sobre a loucura. Portanto, a descontinuidade não é total: a psiquiatria, alvo principal do livro, tem condições de possibilidade históricas, temporais, antecedentes: “Tanto é verdade que nosso conhecimento científico e médico da loucura repousa implicitamente na constituição anterior de uma experiência ética da desrazão;”53 “da culpabilidade e do patético sexual aos velhos rituais obsedantes da invocação e da magia, aos prestígios e aos delírios da lei do coração se estabelece uma rede subterrânea que delineia como que as fundações secretas de nossa experiência moderna da loucura.”54 Não é por um gesto libertador, como o atribuído a Pinel, que a psiquiatria rompe com o passado e inaugura o novo estatuto do louco considerado como doente mental. Esse gesto foi bem preparado; e não é um gesto de libertação. A patologização da loucura que ele representa é, ao contrário, a radicalização de um processo de dominação antes expresso pela categoria de desrazão, através do qual o louco é objetivado medicamente como alienado. E a idéia de curar a loucura, como também a organização de toda uma estratégia terapêutica em torno do louco — fundada no princípio de que na loucura subsiste um núcleo de razão, de natureza, de verdade, que é alienado mas não destruído –, significa que a psiquiatria pretende realizar, de modo mais perfeito, pelo sistema da recuperação, aquilo que no final do século XVIII o sistema clássico de exclusão se mostrou incapaz de realizar: o controle social do louco.
É preciso ainda salientar que as condições de possibilidade históricas da psiquiatria são mais institucionais do que teóricas. Se a concepção psiquiátrica da loucura como doença mental é uma novidade conceitual que assinala uma ruptura com a teoria clássica, a prática asilar é muito mais importante para dar conta da constituição da psiquiatria: são as transformações sociais — que estão em sua origem — que, pouco a pouco, desfazem o mundo da desrazão produzindo finalmente a alienação mental. É assim que, no plano da percepção, tudo já estava preparado para o ato teatral — a libertação dos acorrentados — de Pinel. O deslocamento da desrazão para a doença mental é institucional, antes de ser teórico. O louco foi circunscrito, isolado, individualizado, patologizado por problemas econômicos, políticos e assistenciais, e não por exame médico.
Como então se põe a questão da normatividade histórica de História da loucura? Está mais do que claro, por tudo o que foi dito, que Foucault não se contenta apenas em descrever o processo de percepção e conhecimento da loucura nas diversas épocas. É certo que não se trata mais de uma história normativa, no sentido de efetuar julgamentos sobre os discursos tomando como norma a própria cientificidade, definida pelo presente de uma ciência. Sabemos que para a epistemologia — a de Bachelard, Canguilhem, Koyré ou Cavaillès — o progresso é uma característica essencial da ciência, que sua história é um processo finalizado em direção à verdade, isto é, a produção de uma verdade cada vez mais depurada dos erros iniciais.
História da loucura não toma posição, implícita ou explicitamente, contra essas teses epistemológicas. Mas o que Foucault mostra claramente nesse livro — e isso é uma de suas grandes novidades — é que a história da psiquiatria não pode ser feita nesses termos. É a própria especificidade do objeto de investigação que, em História da loucura, será determinante da abordagem utilizada. Assim, por exemplo, deixa de ter valor para a pesquisa uma afirmação essencial da epistemologia: o progresso da ciência. O motivo, nesse primeiro momento da análise arqueológica, é que o objeto de estudo — a psiquiatria — não pode ser propriamente considerado uma ciência. É exatamente isso que acarreta o desprestígio da investigação no nível do conhecimento e o correlato privilégio de um nível mais fundamental, o da percepção.
Algumas passagens o mostram: “Não se trata aqui de estabelecer uma hierarquia, nem de mostrar que a época clássica foi uma regressão com relação ao século XVI no conhecimento que teve da loucura…. os textos médicos dos séculos XVII e XVIII seriam suficientes para provar o contrário. Trata-se apenas de — isolando as cronologias e as sucessões históricas de toda perspectiva de ‘progresso’, restituindo à história da experiência um movimento que nada toma emprestado do conhecimento ou da ortogênese do saber — fazer aparecer o perfil e as estruturas dessa experiência da loucura tal como o classicismo realmente a sentiu. Esta experiência nem é um progresso, nem um atraso com relação a alguma outra.” Ou: “Situação ambígua, mas significativa do embaraço então existente e que é testemunha de novas formas de experiência que estão surgindo. Para compreendê-las, é preciso se libertar de todos os temas do progresso, daquilo que eles implicam de perspectivação e de teleologia.” E ainda: “Tentaremos não descrever esse trabalho, e as formas que o animam, como sendo a evolução de conceitos teóricos na superfície de um conhecimento; mas, situados na espessura histórica de uma experiência, tentaremos retomar o movimento pelo qual se tornou finalmente possível um conhecimento da loucura: este conhecimento que é o nosso… .”55
Neutralizada a questão do progresso com relação ao conhecimento e à percepção da loucura, desaparece necessariamente toda possibilidade de recorrência histórica. A análise arqueológica que História da loucura inaugura não privilegia a verdade, a razão, o conhecimento, da psiquiatria ou de qualquer outra ciência, no sentido de que não parte deles e procura se desvencilhar de seus critérios. Mas isso não significa dizer que o livro seja apenas descritivo. História da loucura é uma história judicativa, normativa. Só que não se trata mais de uma história recorrente como a que a epistemologia de Bachelard ou de Canguilhem realiza, pois Foucault não julga o conhecimento da loucura a partir da racionalidade da ciência atualj.
No entanto, a problemática da recorrência não só está presente, como organiza a argumentação de todo o livro. Só que a utilização instrumental da recorrência se dá de maneira invertida: História da loucura realiza, se posso dizer, uma recorrência às avessas, no sentido de que o critério de julgamento que utiliza vem, não do presente, mas do passado. História da loucura é um discurso normativo no sentido preciso de detectar uma direção na história das teorias e práticas relacionadas com a loucura que revela como uma realidade originária, essencial, da loucura teria sido encoberta — e não descoberta — por ter se mostrado ameaçadora, perigosa.
Analisarei mais detidamente essa questão para explicitar em que sentido História da loucura realiza uma história normativa. E antes de tudo eu gostaria de observar que essa hipótese de uma experiência originária da loucura, que Foucault também chama de desrazão, embora seja fundamental para o desenvolvimento da argumentação de História da loucura, foi criticada em Arqueologie du savoir, quando ele afirma que não se trata, em seu primeiro livro, “de interpretar o discurso para fazer, através dele, uma história do referente”. O que é explicitado do seguinte modo: “Não se procura restituir o que podia ser a própria loucura tal como ela se apresentaria inicialmente a alguma experiência primitiva, fundamental, secreta, quase não-articulada e que teria sido, em seguida, organizada (traduzida, deformada, travestida, talvez reprimida) pelos discursos e pelo jogo oblíquo freqüentemente retorcido de suas operações.” Acrescentando em nota: “Isto é escrito contra um tema explícito em História da loucura e presente várias vezes no Prefácio.”56 Sem dúvida por essa razão Foucault retirou o prefácio, na segunda edição do livro, em 1972. Isso, no entanto, não elimina a hipótese de uma loucura originária ou de uma experiência fundamental da loucura, que está na base de toda a argumentação do livro e sem o que ela não pode ser inteiramente compreendida. Penso, inclusive, que ela é o que mais aproxima Foucault da filosofia de Nietzsche, sobretudo do modo como esta é formulada em O nascimento da tragédia, livro com o qual História da loucura apresenta uma homologia estrutural surpreendente.
O objetivo final de O nascimento da tragédia é denunciar a modernidade como civilização racional, por seu espírito científico ilimitado, por sua vontade absoluta de verdade, e saudar o renascimento de uma experiência trágica do mundo em algumas das realizações filosóficas e artísticas da própria modernidade. O importante nessas criações filosóficas e artísticas, identificadas pelo Nietzsche da época em Schopenhauer e Wagner, é que elas retomam a experiência trágica existente na tragédia grega, que possibilitou, pela arte, a experiência do lado terrível, tenebroso, cruel da vida como forma de intensificar a própria alegria de viver do povo grego, mas foi reprimida, sufocada, invalidada pelo “socratismo estético”, que subordinara a criação artística à compreensão teórica.
Ora, assim como o primeiro livro de Nietzsche é a denúncia da racionalização, e portanto da morte, da tragédia a partir da experiência trágica presente nos poetas gregos pré-socráticos, a primeira pesquisa arqueológica de Foucault é a interpretação da história da racionalização da loucura, a partir de seu confronto com uma experiência trágica, constante, fundamental, que denuncia como encobrimento esse processo histórico que, em sua etapa moderna, define a loucura como doença mental. Daí Foucault ser tão incisivo ao dizer que a psicologia jamais enunciará a verdade da loucura, porque é a loucura que detém a verdade da psicologia.
Se História da loucura é um livro escrito “sob o sol da grande pesquisa nietzschiana”, como diz seu primeiro prefácio, é, antes de tudo, porque nele a história da relação entre a razão e a loucura, que a considerou como negatividade, é realizada a partir das “estruturas do trágico”, única forma de não cair na armadilha de falar da loucura reduzindo-a ao silêncio, como tem feito a razão, seja no racionalismo clássico, seja na ordem psiquiátrica moderna. E se a hipótese de uma experiência trágica é decisiva no livro é porque apenas essa experiência permite dizer a verdade da psiquiatria ou da psicologização da loucura, situando-a no processo histórico de um controle cada vez mais eficaz efetuado pela razão.
Assim, a loucura, nesse livro, não é apenas uma produção prático-política e teórico-científica, da qual Foucault investiga o momento de constituição histórica e as etapas de transformação; é também uma experiência originária, mais fundamental do que suas figuras históricas, que teria sido encoberta, mascarada, dominada pela razão, embora não tenha sido destruída. “Por um lado inteiramente excluída, por outro inteiramente objetivada, a loucura nunca se manifestou por si mesma e com sua própria linguagem”, diz Foucault, deixando claro que há três níveis em sua compreensão da loucura.57
Esse processo de dominação tem início no Renascimento, momento em que começa História da loucura, que faz suas as palavras de Artaud, quando afirmava que o Renascimento foi não um engrandecimento, mas uma diminuição do homem.58 O que, nas palavras de Foucault, significa: “A experiência trágica e cósmica da loucura viu-se mascarada pelos privilégios exclusivos de uma consciência crítica. É por isso que a experiência clássica, e através dela a experiência moderna da loucura, não pode ser considerada como uma figura total que, por esse caminho, chegaria finalmente à sua verdade positiva: é uma figura fragmentária que se dá abusivamente como exaustiva; é um conjunto desequilibrado por tudo que lhe falta, isto é, por tudo aquilo que o esconde. Sob a consciência crítica da loucura e suas formas filosóficas ou científicas, morais ou médicas, uma abafada consciência trágica não deixou de ficar em vigília.”59 Realidade originária, essência primitiva, a desrazão, não como uma forma de negação clássica da loucura, mas como resistência ameaçadora, foi portanto calada, sufocada, embora ainda subsista.k Foucault faz uma história da “percepção” e do “conhecimento” e não uma história da “experiência” da loucura, ou da desrazão, limitando-se a afirmar que ela continuou se expressando em personagens como Goya, Nietzsche, Van Gogh, Nerval, Hölderlin, Artaud etc. O que lhe interessa é realizar uma história negativa da loucura, isto é, uma história crítica, normativa, judicativa a partir de um valor considerado positivo.
Portanto, se a hipótese de uma loucura originária, não inteiramente dominada pela razão e em luta contra ela, é importante, o motivo é que só essa experiência pode dizer a verdade da psiquiatria, ou seja, situá-la com relação ao processo de implantação de uma razão que sufocou, aprisionou e procurou destruir a loucura. No Renascimento, por meio de uma crítica moral que a situou como ilusão; na época clássica, através de um racionalismo que a desqualificou como erro; na modernidade, pelas ciências humanas, que, aceitando-a como alienação, a patologizaram. “Nunca, para o classicismo, a loucura poderá ser considerada a essência da desrazão, até mesmo a mais primitiva de suas manifestações; nunca uma psicologia da loucura poderá pretender dizer a verdade da desrazão. É preciso, ao contrário, recolocar a loucura no livre horizonte da desrazão, a fim de poder restituir as dimensões que lhe são próprias.60
É neste sentido que eu falava de um uso invertido da recorrência que permite julgar a produção teórica sobre a loucura, demonstrando ser ela não só incapaz de enunciar a verdade da loucura, como também responsável pelo banimento da verdade da loucura como desrazão. Assim, a produção teórica sobre a loucura pode ser considerada como o contrário de um conhecimento, no sentido de que lhe cria supostas naturezas ou essências. O curioso é que todo esse processo histórico se realiza com o objetivo de subordinar a loucura justamente à razão e à verdade. Curioso e paradoxal, na verdade, porque é como se fosse preciso uma suposta ciência para possibilitar o maior domínio da razão sobre a loucura. De todo modo, o que demonstra Foucault é que o saber sobre a loucura não é o itinerário da razão para a verdade, como é a ciência para a epistemologia, mas a progressiva descaracterização e dominação da loucura para sua integração cada vez maior à ordem da razão. Eis o que é a história da loucura: a história da fabricação de uma grande mentira.
a Um belo dia, como se diz, Michel Foucault procura Georges Canguilhem trazendo debaixo do braço, praticamente pronta, sua tese de doutorado. Vinha, por sugestão de Jean Hyppolite, justamente lhe pedir que a orientasse. Expõe o objeto do estudo, suas hipóteses, suas conclusões, e Canguilhem, surpreso, responde: “Se isto fosse verdade já se teria sabido!” O epistemólogo leva, porém, o texto para casa e no encontro seguinte com Foucault não pode deixar de afirmar: “O senhor tem razão; é verdade!” Essa pequena história, que me foi contada por Canguilhem no final dos anos 70, atesta a extraordinária importância desse livro que, se hoje pode ser lido sem que se perceba sua novidade, isso se deve a uma evidência que ele mesmo criou e difundiu.
b A aparente unidade se dá no nível dos temas. Foucault privilegia os conceitos e o opõe à “continuidade dos temas”, à “identidade superficial do tema”. Cf. Histoire de la folie, p.28 (citarei como H.F.).
c Foucault fala também de experiência crítica. Se privilegiamos o termo consciência, uniformizando a terminologia, é para ressaltar melhor a forma específica de sua oposição à experiência trágica.
d A análise das Meditações se encontra no início do cap.2. “Le grand renfirmement”. É indispensável assinalar que a leitura de Foucault foi contestada por Derrida (“Cogito et histoire de la folie”, reeditado in L’Écriture et la différence, Paris, Seuil, 1967, p.51-97). Derrida nega o fato de a experiência da loucura ser mais universal do que a do sonho: ela seria, no processo da dúvida metódica, “a exasperação hiperbólica da hipótese da loucura”; nega também que Descartes pretenda definir ali o conceito de loucura, mesmo que seja para excluí-la. A resposta de Foucault (Mon corps, ce papier, ce feu, que figura como apêndice na segunda edição, de 1972, de Histoire de la folie) retoma ponto por ponto a argumentação de Derrida e procura refutá-la comparando-a ao próprio texto de Descartes. Mas, em última análise, sua oposição a Derrida é sobretudo metodológica: não se deve reduzir o discurso a texto cujos traços seriam lidos a partir de sua estrutura interna como se nada existisse fora dele. O discurso é uma prática, um acontecimento e quando é considerado como tal, isto é, quando não se busca seu sentido ou sua estrutura, lança o investigador para fora do discurso. A arqueologia relaciona diferentes discursos e, não se limitando a esse nível, articula as “formações discursivas” com práticas econômicas, políticas e sociais. As expressões “formação discursiva”, “prática discursiva” não aparecem na História da loucura; só serão formuladas em L’Archéologie du savoir (ver infra, cap.IV). Derrida volta a comentar História da loucura em “Faire justice a Freud. L’Histoire de la folie à l’âge de la psychanalyse” (in Penser la folie: essais sur Michel Foucault, Éditions Galilée, 1992). O texto de Foucault e os de Derrida estão traduzidos em Três tempos sobre a “História da loucura”, organizado por Cristina Ferraz (Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001).
e H.F., p.548. É importante observar que, embora tenhamos explicitado a distinção entre os dois níveis da análise através dos termos percepção e conhecimento, existe em História da loucura uma flutuação terminológica que pode dificultar a compreensão da argumentação que o livro desenvolve e os pressupostos que a possibilitam. Assim, por exemplo, o termo “experiência” é utilizado no sentido de percepção, de conhecimento (p.189), em um significado mais amplo que engloba tanto percepção quanto conhecimento (p.541); e também no sentido, bastante diferente, de uma experiência fundamental, originária da loucura, que é o utilizado no texto. Foucault emprega o termo sensibilidade no sentido de percepção (p.66).
f Podemos assinalar desde já que a psiquiatria pretenderá abolir essa distância entre percepção e conhecimento transformando a percepção social em percepção médica.
g A análise desses quatro aspectos se encontra entre as páginas 67 e 91 de H.F..
h “Supondo-se, evidentemente, que tenham lido Diemerbroek.”
i “É curioso notar que esse preconceito metodológico, com toda sua ingenuidade, é comum aos autores de que falamos (Foucault dá a lista na página anterior, 92) e à maioria dos marxistas que fazem história das ciências”.
j O momento em que o livro mais se aproxima da história epistemológica é quando, na segunda parte, estuda a teoria clássica, não psiquiátrica, da loucura. Aí a análise em termos de obstáculos faz de História da loucura uma história normativa no sentido de julgar o conhecimento da loucura a partir dos requisitos definidos pela medicina classificatória, demonstrando a impossibilidade de a teoria da loucura permanecer fiel aos critérios de racionalidade estabelecidos por uma medicina compreendida como conhecimento nosográfico das doenças a partir dos sintomas.
k É evidente que, apesar da existência de um mesmo termo, a desrazão clássica, que é um produto do Grande Enclausuramento, e portanto um objeto construído, não pode ser a desrazão positiva que vai servir de princípio de julgamento da psiquiatria e da racionalidade clássica, que lhe preexiste e é por ela reprimida.