CAPÍTULO 2

Uma arqueologia do olhar

Nascimento da clínica dá prosseguimento às análises arqueológicas iniciadas com História da loucura. Seu objeto, entretanto, não é a loucura ou a doença mental, mas a própria doença; não é mais a psiquiatria, mas a medicina moderna, da qual o início do século XIX assinala o aparecimento.

Como caracterizar esse momento fundamental da história da prática e do conhecimento médicos? Como distinguir a medicina que institui seus princípios no início da modernidade da medicina que lhe antecedeu? Como analisar, em suas propriedades principais, essa mutação?

Desse fato, a própria medicina, criticando seu passado e para justificar sua originalidade e sua eficácia, apresenta uma explicação: a instauração de um conhecimento que se tornou científico quando a medicina se transformou em ciência empírica. Assim, a característica fundamental da medicina moderna é ser baseada na observação, na percepção que, instituindo-a como ciência empírica, possibilita que rejeite a atitude predominantemente teórica, sistemática, filosófica própria de seu passado. Não é dessa época a afirmação de Tenon de que é preciso tornar a ciência ocular? Não foi Corvisart quem enunciou que “toda teoria se cala ou desvanece no leito do doente”1? Não foi Bichat, ainda mais radical nessa linha, que, fazendo do conhecimento da morte a base indispensável para o conhecimento da doença, desclassificou as anotações feitas pelos médicos ao leito dos doentes, convidando, para clarificar o conhecimento, à abertura de alguns cadáveres?2

Não é desse tipo a análise realizada por Nascimento da clínica ao pretender estabelecer os principais componentes da ruptura operada pela medicina moderna. Será que o mais importante é que, nessa época, a medicina descobre seu objeto como uma empiricidade oposta à teoria? Será que o fundamental da transformação se deve à utilização de instrumentos mais potentes que vão possibilitar conhecer algo a que, até aquele momento, não se podia ter acesso e ao correlato refinamento de noções que puderam ser mais rigorosamente definidas?

De um modo geral, a posição da análise arqueológica — que também aqui procura se situar com relação às histórias factuais e às histórias epistemológicas — é a seguinte: a mutação existe, mas além de se situar em outro nível, é muito mais radical. Não foi na modernidade que, superando as ilusões subjetivas e infundadas, a medicina descobriu seu objeto ou ultrapassou o estágio de uma linguagem carregada de imagens, metáforas e analogias, tornando-se conceitual, quantitativa, rigorosa. Não foi nossa época que ensinou a ver e a dizer. O que muda é que ela diz de outro modo e vê um outro mundo; o que muda é a relação entre aquilo de que se fala e aquele que fala; o que muda é a própria noção de conhecimento.

O objeto da medicina moderna é outro não porque ela consegue ser finalmente um conhecimento objetivo, mas porque diz respeito a outra coisa. No nível do objeto, a ruptura que inaugura a medicina moderna é o recorte de um novo domínio, a demarcação de um novo espaço: a passagem de um espaço da representação, ideal, taxonômico, superficial, para um espaço objetivo, real, profundo. Mais explicitamente, a passagem de um espaço de configuração da doença, considerada como espécie nosográfica, para um espaço de localização da doença, o espaço corpóreo individual. Correlativamente, produz-se não uma redefinição conceitual mais perfeita da linguagem médica através da expulsão do metafórico e do qualitativo, mas a emergência de uma nova linguagem. E, para dar conta dessa transformação, é preciso privilegiar não os novos temas ou teorias, nem sua construção formal, mas a elaboração da linguagem a partir de sua articulação com o domínio de objeto da medicina. O que se transformou, portanto, foi o modo de existência do discurso médico no sentido de que ele não se refere mais às mesmas coisas, nem utiliza a mesma linguagem.

Analisarei essa ruptura entre a medicina clássica e a medicina moderna para em seguida refletir sobre a nova concepção de arqueologia que se elabora nesse livro.

I

O estudo da medicina da época clássica retoma e aprofunda o que havia sido exposto em História da loucura: a medicina clássica é uma medicina classificatória que se elabora tendo como modelo a história natural. É a ordem taxonômica da história natural que organiza o mundo da doença imprimindo-lhe uma ordem que neutraliza toda desordem através de sua classificação sistemática e hierárquica em gênero e espécie.a

Seguindo o modelo classificatório da história natural, a medicina das espécies privilegia o olhar. Mas um olhar que não pretende penetrar na profundidade das coisas, desvelar um espaço oculto e obscuro. A doença se define por sua estrutura visível, mostra-se inteiramente a um olhar que percorre seu ser de superfície. Essa verdade totalmente dada na aparência são os sintomas. Guiando-se por eles, considerados como o ser da doença, a medicina pode identificar a essência de cada doença e situá-la em um quadro nosográfico de parentescos mórbidos: definir uma doença é enumerar seus sintomas. Segundo a terminologia da época, a medicina clássica (esse olhar de superfície) é um conhecimento histórico por oposição a um conhecimento filosófico.3

O que é essa idéia do conhecimento como ordenação? Se, por um lado, a doença pode ser considerada um fenômeno da contranatureza, na medida em que é uma desordem que compromete a ordem natural, por outro lado ela é vista pela medicina como um fenômeno da própria natureza, na medida em que tem uma natureza própria comparável à das plantas e dos animais. Nos dois casos a ordenação produzida pelo conhecimento se deve ao estabelecimento de uma vizinhança. A essência de uma doença é definida por sua situação em um espaço nosográfico. O olhar classificatório “é unicamente sensível a repartições de superfície, em que a vizinhança é definida não por distâncias mensuráveis, mas por analogias de formas”b. São as analogias estabelecidas pela comparação de sintomas que definem as doenças, isto é, estabelecem sua essência específica.

Seguindo o modelo da história natural, a medicina clássica tem como sujeito e como objeto, respectivamente, o olhar de superfície do médico e o espaço plano de classificação das doenças. Ora, isso acarreta uma diferença básica com relação à medicina moderna: o conhecimento da doença, para se produzir, deve abstrair o doente. Se a doença é uma essência nosográfica, e se o papel do conhecimento médico é a fixação de seu lugar na ordem ideal das espécies, a consideração do doente só pode introduzir um elemento contingente, acidental, opaco, exterior em relação à doença tomada como pura essência. É assim que Sydenham aconselhava: “É preciso que aquele que descreve uma doença tenha o cuidado de distinguir os sintomas que necessariamente a acompanham, e que lhe são próprios, daqueles que são apenas acidentais e fortuitos, como os que dependem do temperamento e da idade do doente.”4 O conhecimento aprofundado da nosografia, que permite caracterizar a essência de uma doença por sua situação no quadro taxonômico das espécies, é independente da observação do corpo doente. Se a doença sempre se apresenta em um corpo, a habilidade do médico é justamente saber considerá-la, sem privilegiar essa dimensão factual, como essência, pensá-la em sua realidade transparente e exposta. A razão é não haver coincidência entre a doença e o corpo doente. Na medicina clássica, o espaço de configuração da doença não se superpõe a seu espaço de localização em um corpo doente:5 é prioritário. Se o conhecimento não parte do exame do corpo humano é porque este não constitui a realidade básica a partir da qual a doença se origina e adquire suas formas. A realidade da doença se encontra, em sua essência, no espaço ideal da nosografia. Não é por atingir um órgão ou um tecido que ela será determinada, circunscrita e oposta a outras manifestações mórbidas. “Para a medicina classificatória, o fato de atingir um órgão não é absolutamente necessário para definir uma doença: esta pode ir de um ponto de localização a outro, ganhar outras superfícies corporais, sua natureza permanecendo idêntica”6; “Os órgãos são os suportes sólidos da doença e não suas condições indispensáveis.”7

A medicina clássica, fundada no modelo taxonômico da história natural, considera, portanto, a doença uma essência, independente do corpo do doente, essência que deve ser analisada em gênero e espécies a partir de analogias de forma; é uma medicina das espécies patológicas.

Partindo das características da medicina classificatória, tomada como representante da medicina clássica dos séculos XVII e XVIII, Foucault analisa a ruptura produzida com o nascimento da clínica. Mas que não se pense que a arqueologia opõe diretamente a medicina das espécies à clínica moderna. Sendo conceitual, a história arqueológica tem o cuidado de distinguir, sob o nome de clínica, os vários sentidos nele presentes. Assim, além de um sentido geral, pouco rigoroso e enganoso — porque causador de retrospecções — de “estudo de casos”, “puro e simples exame do indivíduo”,8 a análise define e distingue a “protoclínica” do século XVIII, a “clínica” do final do século XVIII e a “anátomo-clínica” do século XIX.

Se a clínica considerada como estudo de casos não tem interesse para a análise, o mesmo não ocorre com a protoclínica, que apresenta uma estrutura conceitual específica. Seu estudo, porém, não é o passo fundamental da caracterização da ruptura inaugurada pela medicina moderna. O que Foucault mostra é justamente como a clínica do século XVIII não representa uma transformação decisiva da experiência médica; ela é, de fato e de direito, contemporânea da medicina classificatória, na medida em que não critica radicalmente seus princípios. A razão é que nessa época a clínica não é produtora de conhecimentos, não tem o objetivo de criar uma nosografia, mas de “reunir e tornar sensível” o espaço nosográfico. Está subordinada a uma elaboração teórica que lhe é anterior e que ela deve ilustrar. “A clínica não é um instrumento para descobrir uma verdade ainda desconhecida; é uma determinada maneira de dispor a verdade já adquirida e de apresentá-la para que ela se desvele sistematicamente. A clínica é uma espécie de teatro nosológico cujo desfecho o aluno desconhece.”9 Não é o exame do doente que ensina sobre a doença; a utilidade do doente é exemplificar as doenças, que não são conhecidas a partir do inventário do organismo doente, como será feito mais tarde; o doente é um simples acidente cuja realidade individual não deve prejudicar a ordem essencial da doença. A função da clínica, portanto, é eminentemente pedagógica: “A clínica só diz respeito à instrução, no sentido estrito, dada pelo professor a seus alunos. Não é em si mesma uma experiência, mas o resultado, para uso dos outros, de uma experiência anterior.”10 Não tem a função de produzir, mas de reproduzir um conhecimento, mesmo se a apresentação do caso para ilustrar a teoria pode sempre fracassar, na medida em que aquilo que os estudantes vêem pode contradizer o que é dito pelo professor. Assim, a protoclínica do século XVIII, mesmo tendo um perfil próprio, não introduz nenhuma ruptura na história da medicina. O que a análise arqueológica mostra é que ela está mais próxima da medicina clássica do que da moderna.

O mesmo não acontece com a clínica do final do século XVIII, que já desempenha um papel bastante diferente no campo do conhecimento e da prática médicos. Entre a clínica e a protoclínica se verifica uma importante mudança devida ao lugar que a percepção ocupa na aquisição do saber médico. A medicina clássica dependia o menos possível da percepção: seu objeto era o espaço racional de classificação das entidades patológicas e a função do olhar era simplesmente remeter à ordem do pensamento que devia definir as essências; “as formas inteligíveis fundavam as formas sensíveis através de uma disposição que as suprimia.”11 Posição da medicina que corresponde a uma concepção mais geral do conhecimento, que o situa no nível da representação, da idealidade. Como se pode notar por um texto que, ao definir o conhecimento pela representação e opor, em seguida, a concepção clássica à concepção moderna, pós-kantiana, de conhecimento como conhecimento de um objeto empírico, é a primeira formulação da tese central de As palavras e as coisas: “Para Descartes e Malembranche, ver era perceber (e até nas espécies mais concretas da experiência: prática da anatomia no caso de Descartes, observações microscópicas no caso de Malembranche); mas tratava-se de, sem despojar a percepção de seu corpo sensível, torná-lo transparente para o exercício do espírito: a luz, anterior a todo olhar, era o elemento da idealidade, o indeterminável lugar de origem em que as coisas eram adequadas à sua essência e a forma segundo a qual estas a ele se reuniam através da geometria dos corpos; atingida sua perfeição, o ato de ver se reabsorvia na figura sem curva, nem duração, da luz.”12 A clínica é, ao contrário, a primeira tentativa de fundar o saber na percepção.c A partir dela, o olhar que observa produz conhecimento: não tem mais a função de ilustrar a teoria ou a ela se adequar; ao mesmo tempo em que observa, pesquisa. O que não significa empirismo ou recusa de teoria; a análise de Foucault tem justamente o objetivo de negá-lo, examinando a relação entre percepção e linguagem médicas.

O estudo da clínica, que pretende mostrar sua originalidade com respeito à medicina classificatória, se realiza pelo estabelecimento da relação entre esse saber médico e dois saberes extramédicos: a analítica da linguagem de Condillac e o cálculo de probabilidades — um modelo gramatical e um modelo matemático —, que são suas condições de possibilidade. “A clínica abre um campo tornado ‘visível’ pela introdução no domínio patológico de estruturas gramaticais e probabilitárias.”13 Vejamos em que consiste essa relação da clínica com os signos e com os casos.14

A medicina clínica abole a diferença absoluta entre a doença, o signo e o sintoma que vigorava na medicina do século XVIII. Para esta, a doença é uma realidade inacessível. O que dela se conhece não é sua natureza, mas sua manifestação visível, sua transcrição primeira, a figura invariável de sua essência, aquilo que está mais próximo de sua natureza: o sintoma. Por outro lado, o signo não possibilita um conhecimento da doença, mas apenas um reconhecimento, isto é, não enuncia sua natureza, mas seu desenvolvimento temporal no corpo do doente, tornando possível o diagnóstico, o prognóstico, a anamnese. “Através do invisível, o signo indica o mais longínquo, o que está por baixo, o mais tardio. Trata-se nele do término, da vida e da morte, do tempo, e não da verdade imóvel, dada e oculta que os sintomas restituem em sua transparência de fenômenos.”15

É essa relação que será transformada no final do século XVIII quando se introduz uma complexidade na estrutura do sintoma. Desaparece a diferença total entre sintoma e doença. A doença não é mais uma natureza oculta e incognoscível; sua natureza, sua essência, é sua própria manifestação sensível, fenomênica, no nível dos sintomas: uma doença é um conjunto de sintomas capazes de serem percebidos pelo olhar. Mas desaparece também a diferença absoluta entre sintoma e signo. Na medida em que o sintoma permite distinguir um fenômeno patológico de um estado de saúde, ele também é signo da doença, o que significa dizer signo de si mesmo, pois a essência da doença é ser um conjunto de sintomas.16 Mas para isso é necessária a intervenção de algo exterior ao próprio sintoma, um ato de consciência, um ato de olhar que torna visível a totalidade do campo da experiência, um ato de descrição.17 Descobre-se então que o espaço da clínica são os signos e os sintomas: um campo ao mesmo tempo da percepção e da linguagem, na medida em que o próprio real obedece ao modelo da linguagem. “Na clínica, ser visto e ser falado se comunicam de imediato na verdade manifesta da doença, de que constituem precisamente todo o ser. Só existe doença no elemento visível e, conseqüentemente, enunciável.”18 A clínica é um olhar que seria, ao mesmo tempo e por isso mesmo, linguagem. “O olhar clínico tem essa paradoxal propriedade de ouvir uma linguagem no momento em que percebe um espetáculo.”19

Ora, se essa transformação é possível é porque a clínica se funda no modelo da analítica da linguagem de Condillac. É ela que possibilita, quando aplicada à medicina, o fim da distinção absoluta entre a realidade da doença, os signos e os sintomas – possibilitando também, conseqüentemente, que o campo da percepção (campo dos signos e dos sintomas) se torne uma entidade lingüística. Se o sintoma tem uma estrutura complexa que o identifica à doença e o torna signo de si mesmo é porque é um signo natural, ou seja, desempenha o mesmo papel que um tipo específico de linguagem — sua forma inicial, originária, a linguagem de ação — desempenha na filosofia de Condillac. “No equilíbrio geral do pensamento clínico, o sintoma desempenha quase o mesmo papel que a linguagem de ação: como esta, ele está inserido no movimento geral de uma natureza; e sua força de manifestação é tão primitiva, tão naturalmente dada quanto ‘o instinto’ que funda esta forma inicial de linguagem;20 ele é a doença em estado manifesto, como a linguagem de ação é a impressão, na vivacidade que a prolonga, a mantém e a transforma em uma forma exterior que tem a mesma realidade que sua verdade interior.”21 Mas essa linguagem de ação, linguagem dos signos naturais, isto é, dos gritos que a natureza estabeleceu para os sentimentos de alegria, medo, dor etc., para deixar de ser confusa, deve tornar-se uma língua composta de “signos de instituições”, escolhidos pelo homem, arbitrários e capazes de analisar o pensamento. Pensado como linguagem de ação, o sintoma, que é a realidade da doença, tem uma estrutura lingüística e, ao mesmo tempo, pode ser enunciado por uma linguagem rigorosa.

Esse, porém, não é o único modelo em que se funda a clínica no final do século XVIII; o outro é o cálculo de probabilidades. Mesmo que de modo imperfeito, precário, parcial — devido à posição marginal que a instituição hospitalar ainda ocupava na prática médica —, a medicina clínica nascente vai tratar analiticamente, utilizando a teoria matemática das probabilidades, a incerteza “como a soma de determinado número de graus de certeza isoláveis e susceptíveis de um cálculo rigoroso”,22 reestruturando assim o seu campo de percepção, isto é, transformando o fato patológico em um acontecimento registrado que faz parte de uma série aleatória.

Comparando a clínica à medicina clássica, Nascimento da clínica estuda as principais características dessa percepção dos casos.23 1) A complexidade da combinação. Para a medicina classificatória, quanto mais geral fosse a essência, ou seja, quanto mais alto fosse o lugar que ocupava no quadro classificatório, mais simples ela seria. Para a clínica, ao contrário, a simplicidade está no nível dos elementos, e a complexidade dos casos individuais é dada pela combinação desses elementos. Por conseguinte, o conhecimento médico deve analisar essa composição, determinar seus elementos e a forma como se relacionam. 2) O princípio de analogia. Na medicina das espécies, a analogia tinha como objeto as formas visíveis das doenças. Agora ela se dá pela relação entre os elementos de uma ou de várias doenças, relação que privilegia não a forma, mas as funções.d 3) A percepção das freqüências. Na medicina clássica, as singularidades, as variações individuais são apagadas pela generalidade das essências, o que exige o abandono de tudo o que é acidental. Na clínica, a certeza do conhecimento médico, dependendo do número de casos examinados, será obtida pela integração das variações individuais ao domínio de probabilidade, a um campo médico que tem uma estrutura estatística. 4) O cálculo dos graus de certeza. A análise do modo como a medicina do final do século XVIII utilizou o modelo matemático revela, finalmente, a grande ambigüidade da clínica, que foi levada a confundir o cálculo dos graus de probabilidade com a análise dos elementos sintomáticos, na medida em que confere um coeficiente de probabilidade não aos casos, mas aos signos.

É por ser uma investigação que se desenvolve, mesmo que imperfeitamente, no nível dos signos e dos sintomas que a medicina clínica estabelece um tipo específico de relação entre a percepção e a linguagem. Já observamos que metodologicamente Nascimento da clínica se situa na junção desses dois níveis. Quando Foucault fala de linguagem, não se trata de conteúdos temáticos ou modalidades lógicas, mas da “estrutura falada do percebido”, isto é, da articulação das maneiras de ver e dizer. É através da correlação entre a linguagem médica e seu objeto que ele pretende analisar o modo como diferentes tipos históricos de medicina se exercem, assinalando rupturas arqueológicas a partir das transformações do “olhar médico”. Ora, o que mostra o estudo da clínica é que o espaço da percepção é a tal ponto um espaço lingüístico que não há diferença importante entre ver e dizer. Na medicina classificatória ver estava totalmente subordinado a dizer. O fundamental nesse tipo de conhecimento médico se dava no nível da linguagem, que estabelecia um quadro classificatório ideal das doenças a partir de suas manifestações sintomáticas. Em relação à linguagem, a visão era secundária. Com a clínica não há mais uma linguagem anterior à visão: no momento em que se percebe um espetáculo, ouve-se uma linguagem. “Um olhar que escuta e um olhar que fala: a experiência clínica representa um momento de equilíbrio entre a palavra e o espetáculo. Equilíbrio precário, pois se baseia em um postulado: todo o visível é enunciável e é inteiramente visível porque é inteiramente enunciável.”24 Na clínica, percepção e linguagem devem estar rigorosamente articuladas; limitar-se a um desses dois aspectos é se impossibilitar de conhecer. Foucault explicita, inclusive, que essa articulação se faz através de três meios diferentes: a alternância dos momentos falados e dos momentos percebidos em uma observação; o esforço para definir uma correlação entre o olhar e a linguagem; o ideal de uma descrição exaustiva.25 Assim, a clínica não é um conhecimento empírico, um conhecimento do real, isto é, do corpo doente. Na medida em que relaciona o olhar médico com o espaço dos signos e dos sintomas, o conhecimento produzido por ela é analítico: “A observação é a lógica no nível dos conteúdos perceptivos.”26

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Esse espaço e a linguagem diretamente ligada a ele serão, no entanto, profundamente modificados pela constituição, no início do século XIX, da anátomo-clínica: “O grande corte na história da medicina ocidental data precisamente do momento em que a experiência clínica tornou-se o olhar anátomo-clínico.”27 De que modo se formou a figura moderna da medicina, a anátomo-clínica do século XIX? Como o próprio nome indica, o nascimento da anátomo-clínica é o resultado da relação constitutiva da clínica com a anatomia patológica.

E o que interessa logo a Foucault é analisar como essa relação foi possível, destruindo — pela exposição dos fatos e pela crítica de suas interpretações históricas — a ilusão, a “justificação retrospectiva”, que imagina a proibição das dissecções de cadáveres no século XVIII como sendo a causa de a clínica ter ignorado, nessa época, a anatomia patológica. “A análise de Foucault é conceitual. Se a clínica não utilizou a anatomia patológica não foi porque a abertura dos cadáveres era proibida – o que aliás não é verdade; foi por uma incompatibilidade conceitual entre saberes: “A clínica, olhar neutro sobre as manifestações, as freqüências e as cronologias, preocupada em estabelecer parentesco entre os sintomas e compreender sua linguagem, era, por sua estrutura, estranha a essa investigação dos corpos mudos e atemporais; as causas ou as sedes a deixavam indiferentes: história e não geografia … . O conflito não é entre um saber jovem e velhas crenças, mas entre duas figuras do saber.”28

Para que a anatomia patológica pudesse apresentar alguma utilidade para a clínica era necessária uma transformação interna que Nascimento da clínica estuda através da comparação entre Morgagni e Bichat e caracteriza pelo deslocamento de seu objeto dos órgãos para os tecidos. Enquanto o princípio básico da anatomia de Morgagni é a diversificação das doenças segundo os órgãos atingidos, o princípio básico da anatomia de Bichat é o isomorfismo dos tecidos. Isto é, enquanto o primeiro especificava as doenças por uma repartição local que privilegiava a vizinhança orgânica, o segundo irá definir o espaço corporal não a partir do órgão, considerado como elemento anatômico, mas pelo tecido ou pelas individualidades tissulares que são as membranas. Esses elementos homogêneos e superficiais não se identificam com o volume orgânico — são intra-orgânicos, interorgânicos e transorgânicos — e constituem sistemas em que os próprios órgãos se encontram incluídos. “Duas percepções estruturalmente muito diferentes: Morgagni deseja perceber, sob a superfície corporal, as espessuras dos órgãos cujas figuras variadas especificam a doença; Bichat deseja reduzir os volumes orgânicos a grandes superfícies tissulares homogêneas, a regiões de identidade em que as modificações secundárias encontrarão seus parentescos fundamentais.”29

Foi a transformação da anatomia patológica, tal como operada por Bichat, que tornou possível a constituição da anátomo-clínica. Na medida em que desprivilegiou a consideração do volume, referindo a espessura dos órgãos ao espaço superficial, fino, dos tecidos, ele definiu um olhar de superfície como método da anatomia patológica que se identificava com os princípios da Análise que estava no fundamento da clínica. “Bichat impõe, no Traité des membranes, uma leitura diagonal do corpo que se faz segundo camadas de semelhanças anatômicas que atravessam os órgãos, os envolvem, dividem, compõem e decompõem, analisam e, ao mesmo tempo, ligam. Trata-se de um modo de percepção idêntico ao que a clínica foi buscar na filosofia de Condillac: a descoberta de um elementar que é, ao mesmo tempo, um universal, e uma leitura metódica que, percorrendo as formas da decomposição, descreve as leis da composição. Bichat é, estritamente, um analista: a redução do volume orgânico ao espaço tissular é, provavelmente, de todas as aplicações da Análise, a mais próxima de seu modelo matemático. O olho de Bichat é um olho de clínico porque concede um absoluto privilégio epistemológico ao olhar de superfície.”30

É então que começa a se produzir uma mudança fundamental com relação à clínica e à medicina classificatória, que implicará o deslocamento do espaço da percepção da doença considerada como essência nosográfica para o corpo doente. Falando da metáfora do tato utilizada pelos médicos para definir o “golpe de vista” característico da anátomo-clínica, Foucault assinala a transformação que se inicia: “E nessa nova imagem que se faz de si mesma, a experiência clínica se arma para explorar um novo espaço: o espaço tangível do corpo, que é ao mesmo tempo, a massa opaca em que se escondem os segredos, as invisíveis lesões e o próprio mistério das origens. E a medicina dos sintomas pouco a pouco entrará em regressão para se dissipar diante da medicina dos órgãos, do foco e das causas, diante de uma clínica totalmente ordenada pela anatomia patológica. É a idade de Bichat.”31 E Foucault caracteriza essa transformação como uma “decalagem realista” da análise tal como era exercida no “nominalismo clássico”, no sentido de que o novo espaço da percepção é objetivo, isto é, se encontra no corpo do doente, onde as doenças se organizam em classes a partir dos tipos de tecido. “A presença de tecidos de mesma textura através do organismo permite ler, de doença em doença, semelhanças, parentescos, todo um sistema de comunicações, em suma, que está inscrito na configuração profunda do corpo.”32 Com Bichat a doença se torna, ao mesmo tempo, corporal — e não mais ideal — e analítica, na medida em que o tipo de percepção médica inaugurada por ele considera o próprio processo patológico como analítico, isto é, faz da doença uma análise real. “Trata-se agora de uma análise que diz respeito a uma série de fenômenos reais, atuando de maneira a dissociar a complexidade funcional em simplicidades anatômicas; ela libera elementos que não são menos reais e concretos por terem sido isolados por abstração; descobre o pericárdio no coração, a aracnóide no cérebro e as mucosas no aparelho intestinal. A anatomia só pôde tornar-se patológica na medida em que o patológico anatomiza espontaneamente.”33

A anátomo-clínica se constitui precisamente a partir da relação que se estabelece entre os métodos da clínica e da anatomia patológica, dois procedimentos analíticos ou dois olhares de superfície: a clínica, que se propõe a ler os sintomas patológicos, e a anatomia patológica, que estuda as alterações dos tecidos. A anátomo-clínica, tal como se delineia nesse momento, se propõe a relacionar essas entidades heterogêneas: sintomas e tecidos. Isso se realiza pela aplicação do “princípio diacrítico”, que postula que só existe fato patológico comparado. E isto significa o imperativo de estabelecer uma relação entre os sintomas e as lesões tissulares, ligação entre duas superfícies de níveis diferentes que institui uma terceira dimensão e, conseqüentemente, um volume. A anátomo-clínica é mais do que uma análise sintomática ou uma análise tissular. Estabelecendo um caminho entre as dimensões heterogêneas dos sintomas e dos tecidos, cria um novo espaço de percepção médica: o corpo doente. “É preciso, portanto, que o olhar médico percorra um caminho que até então não lhe tinha sido aberto: via vertical, que vai da superfície sintomática à superfície tissular, via em profundidade, que, do manifesto, penetra em direção ao oculto, via que é preciso percorrer em ambos os sentidos, e continuamente, para definir a rede das necessidades essenciais entre os dois termos. O olhar médico, que atingia as regiões de duas dimensões dos tecidos e dos sintomas, deverá, para ajustá-las, se deslocar ao longo de uma terceira dimensão. Assim será definido o volume anátomo-clínico.”34 De superficial, o olhar médico se torna profundo, na medida em que deve penetrar no volume empírico constituído pelo corpo do doente, localizar a sede da doença no próprio corpo doente, determinando a lesão considerada como fenômeno primitivo com relação aos sintomas, agora fenômenos secundários.35 A doença se localiza no corpo; a lesão explica os sintomas. E para diagnosticar a doença o olhar médico deve penetrar verticalmente no corpo, seguindo um percurso que se estende da superfície sintomática à superfície tissular que lhe é interior, do manifesto ao oculto.

Eis a grande modificação no saber médico produzida pela anátomo-clínica: o acesso do olhar ao interior do corpo doente que faz com que a doença deixe de ser uma entidade nosológica para se tornar uma realidade existente no corpo e identificada pela lesão. O espaço da doença é o próprio espaço do organismo. A doença é o próprio corpo tornado doente. Percebê-la é perceber o corpo. A doença, que era uma espécie natural, estudada segundo o modelo botânico, passa com a anátomo-clínica a ser considerada, segundo o modelo da anatomia, como uma realidade articulada com a vida e que tem vida. “De Sydenham a Pinel, a doença se originava e se configurava em uma estrutura geral de racionalidade em que se tratava da natureza e da ordem das coisas. A partir de Bichat o fenômeno patológico é percebido tendo a vida como pano de fundo, ligando-se, assim, às formas concretas e obrigatórias que ela toma em uma individualidade orgânica. A vida, com suas margens finitas e definidas de variação, vai desempenhar na anatomia patológica o papel que a ampla noção de natureza exercia na nosologia: o fundamento inesgotável mas limitado em que a doença encontra os recursos ordenados de suas desordens.”e Do mesmo modo que a natureza, considerada como idéia, representação, se opõe à vida, considerada como coisa, objeto, assim também a doença, que era uma entidade nosográfica, passa a ser a forma patológica da vida, desvio interno da vida, vida patológica. A anátomo-clínica é a descoberta do olhar de profundidade, olhar que torna visível o que era invisível na medida em que situa a doença na profundidade do corpo humano, identificando o espaço de configuração com seu espaço de localização.

É então que, mais uma vez, se coloca de maneira nova a relação entre signo e sintoma. Na clínica, como vimos, não havia diferença fundamental entre os dois: todo sintoma podia se tornar signo e todo signo era apenas um sintoma lido, isto é, dizia o que era o sintoma. Na anátomo-clínica, o signo se dissocia do sintoma, pois enquanto este pode nada significar, o signo, sem estabelecer uma relação com o sintoma, tem valor ou certeza na medida em que remete à lesão, ao organismo doente. “O signo, portanto, só pode remeter à atualidade da lesão e nunca a uma essência patológica.”36

É nesse deslocamento da doença considerada como essência nosográfica para a doença identificada com o organismo doente que reside a principal característica da transformação que deu nascimento à clínica moderna. Mas, com Bichat, esse deslocamento ainda não era completo. Segundo Foucault, quando Bichat situa a doença no corpo, a partir da realidade analítica dos tecidos, ainda há uma diferença entre ela e a lesão orgânica. Nesse estágio do método anátomo-clínico a doença ainda não era inteiramente identificada à lesão: era determinada por sua espécie e não por sua sede ou sua causa. O que explica a importância dada nessa época à análise classificatória, sobretudo a Pinel.

Deve-se a Broussais o passo definitivo que desvalorizará a problemática das essências mórbidas e deslocará a doença do espaço nosográfico para o organismo. Foucault mostra como para Broussais o estudo das febres deve ser realizado pela análise das formas particulares de inflamação — processo que se desenvolve no interior de um tecido, alterando-o de modo específico —, o que torna possível precisar a relação entre os sintomas da doença e a lesão orgânica: “Nisto reside a grande conversão conceitual que o método de Bichat tinha autorizado mas ainda não esclarecido: é a doença local que, se generalizando, apresenta os sintomas particulares de cada espécie; mas, tomada em sua forma geográfica primeira, a febre nada mais é do que um fenômeno localmente individualizado que tem uma estrutura patológica geral. Em outras palavras, o sintoma particular (nervoso ou hepático) não é um signo local; é, pelo contrário, índice de generalização; apenas o sintoma geral de inflamação traz em si a exigência de um ponto de ataque bem localizado. Bichat se preocupava com a tarefa de fundar organicamente as doenças gerais: daí sua pesquisa das universalidades orgânicas. Broussais dissocia os pares sintoma particular – lesão local, sintoma geral – alteração de conjunto, cruza seus elementos e mostra a alteração de conjunto sob o sintoma particular e a lesão geográfica sob o sintoma geral. A partir de então, o espaço orgânico da localização é realmente independente do espaço da configuração nosológica: este desliza sobre o primeiro, desloca seus valores em relação a ele, e só às custas de uma projeção invertida é que a ele remete.”37 Em seguida, estudando a questão da origem da inflamação, Foucault mostra como a teoria de um agente externo ou das alterações internas permite a Broussais definir a causa das doenças: “Com Broussais — coisa que não havia sido ainda adquirida com Bichat — a localização pede um esquema causal envolvente: a sede da doença nada mais é do que o ponto de fixação da causa irritante, ponto que é determinado tanto pela irritabilidade do tecido quanto pela força de irritação do agente. O espaço local da doença é, ao mesmo tempo e imediatamente, um espaço causal.

Então — e aí está a grande descoberta de 1816 — desaparece o ser da doença. Reação orgânica a um agente irritante, o fenômeno patológico não pode mais pertencer a um mundo em que a doença, em sua estrutura particular, existiria de acordo com um tipo imperioso, que lhe seria prévio, e em que ela se recolheria, uma vez afastadas as variações individuais e todos os acidentes sem essência; insere-se em uma trama orgânica em que as estruturas são espaciais, as determinações causais, os fenômenos anatômicos e fisiológicos. A doença nada mais é do que um movimento complexo dos tecidos em reação a uma causa irritante: aí está toda a essência do patológico, pois não existem mais doenças essenciais nem essências das doenças.”38

Com Broussais se completa o processo de transformação profunda que possibilita a medicina moderna: a anátomo-clínica, conhecimento do individual, abandonando os postulados da medicina classificatória, assimila completamente o espaço da doença ao espaço do organismo. O que permite a Foucault assinalar o término de sua análise da constituição da medicina moderna: “A partir de 1816, o olho do médico pode se dirigir a um organismo doente. O a priori histórico e concreto do olhar médico moderno completou sua constituição.”39

II

Nascimento da clínica é um texto conciso em que — com exceção do prefácio — a questão metodológica praticamente não é abordada. No entanto, ela não só está presente em todo o livro como, o que é importante, se formula de modo diferente do que em História da loucura. Analisarei o discurso da história arqueológica tal como se formula e se exerce nesse momento de sua trajetória a partir, novamente, das questões do conceito, da descontinuidade e da normatividade histórica.

A arqueologia da clínica tal como Foucault a realiza não só é diferente das histórias factuais da medicina como a elas se opõe. A crítica à história factual aparece em vários momentos do livro. Um exemplo é a refutação da tese da eternidade da clínica realizada no início do 4º capítulo.40 E essa desclassificação das histórias que opõem as teorias e os sistemas — considerados como elementos negativos — à clínica, vista como aspecto positivo e constante que se teria imposto como verdade final, é realizada a partir de uma perspectiva conceitual: essas histórias vêem a clínica como um simples estudo de casos, como um puro e simples exame do indivíduo. Além disso, trata-se de histórias retrospectivas que projetam sobre o passado realidades e teorias do presente para afirmar sua universalidade. “Essa narrativa ideal, tão freqüente no final do século XVIII, deve ser compreendida tomando como referência a recente criação das instituiçõesf e dos métodos clínicos: dá-lhes um estatuto ao mesmo tempo universal e histórico. Valoriza-os como restituição de uma verdade eterna, em um desenvolvimento histórico contínuo, em que os únicos acontecimentos foram de ordem negativa: esquecimento, ilusão, ocultação. De fato, tal maneira de reescrever a história evitava uma história muito mais complexa. Mascarava-a, reduzindo o método clínico a qualquer estudo de caso, conforme o velho uso da palavra, e autorizava assim todas as simplificações ulteriores que deveriam fazer da clínica, e que fazem dela ainda em nossos dias, um puro e simples exame do indivíduo.”41

Outro exemplo: o modo como os historiadores relacionaram a anatomia patológica com a clínica, ou melhor, interpretaram a abertura dos cadáveres como sendo o fundamento da medicina clínica, como se o “novo espírito médico” tivesse sido formado pela superação dos obstáculos a ele colocados pela religião, pela moral e pelos preconceitos quando proibiam a dissecção. Foucault não apenas mostra que uma série de fatos prova ser isso falso, como demonstra que na verdade se tratava de uma oposição entre duas formas de saber conceitualmente incompatíveis: a anatomia patológica e a clínica do século XVIII. Além disso, explica a existência desse tipo de história pela ilusão retrospectiva que ela pretende criar para justificar o presente: “Esta ilusão tem um sentido preciso na história da medicina; funciona como justificação retrospectiva: se as velhas crenças tiveram durante tanto tempo esse poder de proibição, foi porque os médicos deviam sentir, no fundo de seu apetite científico, a necessidade recalcada de abrir cadáveres. Aí estão o erro e a razão silenciosa que o fez ser cometido tão freqüentemente: a partir do momento em que se admitiu que as lesões explicavam os sintomas e que a anatomia patológica fundava a clínica, foi preciso convocar uma história transfigurada em que a abertura dos cadáveres, ao menos a título de exigência científica, precedia a observação, finalmente positiva, dos doentes; a necessidade de conhecer o morto já devia existir quando aparecia a preocupação de compreender o vivo. Imaginou-se, portanto, integralmente, uma conjuração negra da dissecção, uma Igreja da anatomia militante e sofredora, cujo espírito oculto teria possibilitado a clínica antes mesmo de seu aparecimento na prática regular, autorizada e diurna da autópsia.”42

Finalmente, é importante lembrar o que afirmei no início deste capítulo: Nascimento da clínica é inteiramente construído para refutar a tese histórica de que a medicina se tornou científica ao se transformar em conhecimento empírico, rejeitando, conseqüentemente, a atitude teórica, filosófica, sistemática que marcou o seu passado. Foucault não nega que a medicina moderna seja empírica. O que ele critica é essa dicotomia estabelecida pelos historiadores. Não há dúvida de que a questão principal examinada em Nascimento da clínica é a das características da medicina chamada empírica. Só que, para a arqueologia, a transformação não é explicada pela oposição histórica entre dois elementos, teoria e experiência; ela é analisada a partir da relação intrínseca entre dois níveis do conhecimento médico: o olhar e a linguagem. A ruptura que inaugura a medicina moderna é o deslocamento de um espaço ideal para um espaço real, corporal, e a conseqüente transformação da linguagem a que a percepção desse espaço está intrinsecamente ligada; em outros termos, é a oposição entre um olhar de superfície que se limita deliberadamente à visibilidade dos sintomas e um olhar de profundidade que transforma o invisível em visível pela investigação do organismo doente. Em suma, a característica básica da ruptura é a mudança das próprias formas de visibilidade.

Para melhor compreender como a arqueologia funciona e se define nesse momento, é preciso situar também a posição de Nascimento da clínica com relação à epistemologia. Sem dúvida, esse livro não é uma história epistemológica. Mas em que reside a distinção entre esses dois tipos de história? O ponto básico é que a abordagem de Foucault ainda não formula a distinção entre arqueologia e epistemologia a partir da diferença de nível entre a ciência e o saber; ainda não se situa em relação à epistemologia através da constituição de um objeto original, específico, próprio, que seria o saber; ainda não se pensa como um tipo de enfoque específico que produz um objeto — o saber — anterior ao objeto da epistemologia — a ciência — e dele independente.g Se o enfoque é diferente, isso se deve às características intrínsecas do objeto estudado, isto é, ao fato de a medicina não ser propriamente uma ciência. Quando Nascimento da clínica procura determinar uma ruptura que se pode caracterizar como arqueológica isso não acontece porque se situa em um nível diferente, mas porque o objeto de estudo tem em si mesmo características específicas. Assim, para mostrar que a ruptura entre a medicina clássica e a medicina moderna foi arqueológica, Foucault argumenta que não houve ruptura epistemológica, isto é, nem passagem de uma linguagem metafórica a uma linguagem conceitual nem aquisição de objetividade. “Não houve ‘psicanálise’ do conhecimento médico, nem ruptura mais ou menos espontânea dos investimentos imaginários; a medicina ‘positiva’ não é a que fez uma escolha ‘objetal’ em direção, finalmente, da própria objetividade.”43 O que pretende a arqueologia nesse momento é esclarecer a produção de um tipo de conhecimento que, por suas características intrínsecas, não pode ser estudado com proveito pela epistemologia, na medida em que não é um discurso propriamente científico.

É importante inclusive observar, para sentir como não é muito clara, ou ao menos suficientemente tematizada, essa relação entre arqueologia e epistemologia, uma ambigüidade terminológica: a expressão “arqueologia”, que aparece no subtítulo do livro — Uma arqueologia do olhar médico — em nenhum momento aparece no próprio corpo da obra. Em compensação, a palavra “epistemológico” é várias vezes utilizada para qualificar o objeto de estudo que, do ponto de vista conceitual, define em Nascimento da clínica a abordagem arqueológica: “Tratava-se apenas de um desnível no fundamento epistemológico em que eles apoiavam sua percepção. Situada neste nível epistemológico, a vida se liga à morte como ao que a ameaça positivamente e pode destruir sua força viva”; “A estrutura perceptiva e epistemológica que fundamenta a anatomia clínica, e toda a medicina que deriva dela, é a da invisível visibilidade”; “Essa rede, reordenada para nossos olhos, só se tornou confusa no dia em que o olhar médico mudou de suporte epistemológico”; “Todos esses retornos foram epistemologicamente necessários para que aparecesse, em sua pureza, uma medicina dos órgãos, e para que a percepção médica se libertasse de todo preconceito nosológico”; “O novo espírito médico, de que Bichat é, sem dúvida, a primeira testemunha absolutamente coerente, não deve ser inscrito na ordem das purificações psicológicas e epistemológicas; ele nada mais é do que uma reorganização epistemológica da doença, em que os limites do visível e do invisível seguem novo plano”.44 Citações que, relacionando a palavra epistemologia com expressões como “olhar médico”, “percepção médica”, “visível” e “invisível”, “invisível visibilidade”, orientam em que sentido pode ser definido o conceito de arqueologia em Nascimento da clínica, distinguindo-se tanto das histórias factuais quanto das histórias epistemológicas.

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Nascimento da clínica realiza uma análise descontinuísta da medicina. Isso fica claro depois de tudo o que foi dito. A crítica conceitual às histórias factuais que atestam a “velhice” da clínica e celebram sua posição dominante na medicina moderna situa como “justificação retrospectiva” essa visão ilusoriamente continuísta do conhecimento médico. Por outro lado, a análise conceitual também detecta a não-existência de ruptura propriamente epistemológica que estaria na base da medicina moderna. Quando Foucault afirma que não houve “psicanálise” do conhecimento médico, em uma alusão à expressão utilizada epistemologicamente por Bachelard, quer assinalar que a transformação que está na origem da clínica não é do mesmo tipo que as analisadas pelos epistemólogos com relação à física ou à química. A questão quase não é tematizada no livro, mas parece claro que Foucault pretende justificar o seu projeto de análise arqueológica da ruptura que inaugura a medicina moderna pela afirmação do caráter original desse tipo de conhecimento em relação às ciências investigadas pelos epistemólogos. Assim, para ele trata-se tanto de escapar das histórias factuais, quanto de se distanciar das histórias epistemológicas. O que só é possível pela definição da especificidade do tipo de análise histórica que pretende realizar. Vejamos como isso se faz.

Em Nascimento da clínica a história arqueológica situa-se em dois níveis diferentes, mas correlacionados: o olhar e a linguagem. Muitas vezes, aparecem no livro expressões como “percepção médica”, “experiência médica”, “olhar médico” empregadas como sinônimos e utilizadas como correlatas da definição de um espaço do conhecimento médico. Assim, Foucault utiliza durante todo o livro o termo “espacialização” no sentido da constituição de um espaço de visibilidade da percepção médica, que não é um privilégio da medicina moderna, “positiva”, “científica”, mas de toda medicina. Sabemos que ele não nega que a medicina moderna seja empírica. O que ele critica é a posição dicotômica que imagina que a característica básica da clínica moderna seja o fato de ela ter descoberto o visível por oposição ao pensado. A esta opinião ele opõe a hipótese, que procura demonstrar ao longo do livro, de que a mudança se deve à transformação da relação entre o visível e o invisível. Assim, uma das características da medicina moderna é ter transformado o invisível da espessura orgânica do corpo doente em visível. O que a clínica faz é tornar visível o que era invisível para a percepção da medicina clássica. Neste sentido, a mutação fundamental que se processa entre a medicina clássica e a moderna é a passagem de um espaço taxonômico para um espaço corpóreo: é a espacialização da doença no organismo.

Mas a análise da percepção médica e de seu espaço não existe independentemente da análise da linguagem da medicina. Esse estudo da linguagem, como já assinalei, não é de modo algum um estudo das teorias e dos temas médicos, que, seguindo a lição da epistemologia, Foucault desprestigia em todas as suas pesquisas, examinando-os a partir dos conceitos. Por outro lado, Nascimento da clínica não é o estudo histórico dos conceitos básicos da medicina em épocas diferentes, nem mesmo a análise da formação de um determinado conceito médico. É verdade que o livro está sempre procurando mostrar como muda, da época clássica para a época moderna, o próprio conceito de doença, ou melhor, como desaparece o ser da doença, dando lugar ao corpo doente. Mas, para esclarecer essa mudança, Foucault concentra a análise no “desenvolvimento da observação médica e de seus métodos”.45 O que lhe interessa é o processo de produção de conhecimentos, analisado em épocas diferentes, tanto no nível da linguagem quanto da percepção médicas, para mostrar de que modo a clínica foi possível como forma de conhecimento. “A medicina como ciência clínica apareceu sob condições que definem, com sua possibilidade histórica, o domínio de sua experiência e a estrutura de sua racionalidade. Elas formam o seu a priori concreto.”46 “Mas, considerada em sua disposição de conjunto, a clínica aparece para a experiência do médico como um novo perfil do perceptível e do enunciável: nova distribuição dos elementos discretos do espaço corporal (isolamento, por exemplo, do tecido, região funcional de duas dimensões, que se opõe à massa, em funcionamento, do órgão e constitui o paradoxo de uma ‘superfície interna’), reorganização dos elementos que constituem o fenômeno patológico (uma gramática dos signos substituiu uma botânica dos sintomas), definição das séries lineares de acontecimentos mórbidos (por oposição ao emaranhado das espécies nosológicas), articulação da doença com o organismo (desaparecimento das entidades mórbidas gerais que agrupavam os sintomas em uma figura lógica, em proveito de um estatuto local que situa o ser da doença, com suas causas e seus efeitos, em um espaço tridimensional).”47

O estudo da linguagem médica é necessário à análise arqueológica na medida em que é o complemento indispensável da percepção, do olhar. Com isso Foucault se insurge contra a dicotomia instaurada pelos historiadores ao explicarem a medicina moderna pela rejeição da teoria e opção pela experiência. Mas não se trata de acrescentar ao estudo do olhar o estudo de um elemento heterogêneo que dê conta dos tipos de raciocínio ou da estrutura de argumentação da medicina, estudada formalmente, nem de seus principais conteúdos. O que interessa a Foucault é analisar a linguagem em sua relação intrínseca com a experiência médica e seu objeto. Neste sentido, por exemplo, a clínica é um novo recorte das coisas e o princípio de sua articulação em uma nova linguagem.48 Não pode existir “espacialização” sem “verbalização” do patológico.

Eis a passagem de Nascimento da clínica mais elucidativa do problema: “Para apreender a mutação do discurso quando esta se produziu é, sem dúvida, necessário interrogar outra coisa que não os conteúdos temáticos ou as modalidades lógicas e dirigir-se à região em que as ‘coisas’ e as ‘palavras’ ainda não se separaram, onde, no nível da linguagem, modo de ver e modo de dizer ainda se pertencem. Será preciso questionar a distribuição originária do visível e do invisível, na medida em que está ligada à separação entre o que se enuncia e o que é silenciado: surgirá então, em uma figura única, a articulação da linguagem médica com seu objeto. Mas não há precedência para quem não se põe questão retrospectiva; apenas a estrutura falada do percebido, espaço pleno no vazio do qual a linguagem ganha volume e medida, merece ser posta à luz de um dia propositadamente indiferente. É preciso se colocar e, de uma vez por todas, se manter no nível da espacialização e da verbalização fundamentais do patológico, onde nasce e se recolhe o olhar loquaz que o médico põe sobre o coração venenoso das coisas.”49

Se cito esse longo texto é porque ele mostra exemplarmente como a arqueologia considera fundamental para sua análise a relação entre a percepção e a linguagem, estabelecendo a ruptura a partir justamente da mudança dessa relação. O objeto da análise arqueológica é a região em que as palavras e as coisas ainda não se separaram, a articulação da linguagem médica com o seu objeto, a estrutura falada do percebido, a espacialização e a verbalização fundamentais do patológico, o olhar loquaz do médico. Expressões que, todas elas, assinalam como é a relação entre os dois termos que é tematizada por Foucault; mas também indicam que o nível do olhar é privilegiado em relação à linguagem, na medida em que esta é sempre tematizada em função do espaço de percepção da doença. Se, por um lado, ver e dizer são aspectos complementares, o privilégio do olhar que encontramos em Nascimento da clínica significa a tentativa da arqueologia de escapar do estudo exclusivo da linguagem médica e o projeto de centrar o estudo no processo de produção de conhecimentos da medicina e suas transformações. É por essa análise do olhar que a arqueologia, tal como é praticada e teorizada nesse momento, encontra o seu espaço próprio e a dimensão de profundidade que deve conferir radicalidade à investigação histórica da ruptura. “O que mudou foi a configuração silenciosa em que a linguagem se apóia, a relação de situação e de postura entre quem fala e aquilo de que fala.”h Mas é importante não esquecer que uma das características básicas do livro é considerar olhar e linguagem aspectos intrinsecamente ligados, como sugere a expressão “olhar loquaz”.

É justamente pela conjugação dos dois aspectos, dos dois termos, dos dois níveis — olhar e linguagem — considerados em sua intrínseca relação que é possível entender as rupturas que afetaram e transformaram o conhecimento médico. Elas são reorganizações da relação entre esses termos que, em momentos históricos diferentes, modificam a importância de cada um deles. Na medicina clássica há privilégio da linguagem com relação ao olhar. O próprio espaço da doença é um “espaço racional”, um “espaço essencial”,50 o que tem como conseqüência que perceber será decifrar a ordem inteligível das doenças estabelecida, no nível da representação, pelo espaço nosográfico. A linguagem médica é, portanto, necessariamente anterior à percepção. Na clínica, há equilíbrio entre olhar e linguagem. A linguagem não é mais anterior à percepção médica. Se o conhecimento clínico é analítico é porque o próprio espaço da percepção tem uma estrutura lingüística. Na anátomo-clínica, porém, há privilégio do olhar em relação à linguagem. A identificação do espaço da doença com o organismo doente destrói a idealidade do espaço do conhecimento médico, tornando-o empírico. A elaboração da linguagem moderna da medicina se funda na possibilidade de a medicina penetrar no volume corpóreo em busca da lesão orgânica.

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Considerada, assim, pelo sistema das reorganizações entre o olhar e a linguagem que caracteriza o nível de profundidade em que se situa a arqueologia, a ruptura que institui a anátomo-clínica é analisada sem fazer apelo a nenhuma recorrência histórica, pois hora nenhuma Nascimento da clínica apela aos critérios da atualidade científica. Do mesmo modo, desaparece a idéia de uma recorrência às avessas que orientava a investigação de História da loucura. Em nenhum momento da análise um tipo de medicina é explicitamente considerado superior ou inferior a outro. Embora várias vezes Foucault qualifique o objeto de seu estudo como epistemológico, é um tipo diferente e original de história que é aqui posto em prática com relação à medicina.

Também não se trata de uma história descritiva, mas de uma história conceitual que pretende dar conta da experiência médica em diversas épocas, explicitando suas características essenciais a partir de uma dimensão de profundidade. É através da busca do que caracteriza mais profundamente o conhecimento médico que Foucault situa nesse momento a arqueologia com relação às outras histórias das ciências. Neste sentido, mesmo se não procura critérios externos — anteriores ou posteriores — para julgar a racionalidade dos conhecimentos médicos de determinada época, Foucault deseja definir uma normatividade intrínseca da medicina em épocas diferentes, fazendo da ruptura o momento de instauração de uma nova normatividade. Projeto de explicitação da normatividade pela profundidade que é assinalado pela idéia de que se trata, em Nascimento da clínica, de “determinar as condições de possibilidade da experiência médica”, de analisar a “reorganização epistemológica da doença”, de desvelar oa priori concreto” da medicina, e é realizado pelo estudo dos diversos tipos de espacialização e verbalização fundamentais do patológico.

Introduz-se assim uma modificação importante em relação ao modo como era exercido e refletido o projeto arqueológico em História da loucura. Aqui também a análise se situava em dois níveis: percepção e conhecimento. Mas se tratava de níveis heterogêneos e sem comunicação. Conhecimento significando as teorias sistemáticas sobre a loucura, sobretudo as da medicina; percepção assinalando a relação com o louco no espaço institucional do internamento, nível que define propriamente o objeto da arqueologia. História da loucura é atravessada por essa dicotomia estrutural. Já Nascimento da clínica pretende investigar o conhecimento médico através de dois aspectos intrinsecamente relacionados, o olhar e a linguagem. Mas isso de modo a privilegiar nitidamente a dimensão do olhar, considerada mais fundamental porque ponto de referência para a análise da linguagem.

O que mostra, por outro lado, que Nascimento da clínica ainda não utiliza a noção de saber como categoria metodológica capaz de especificar o objeto próprio da análise. Não existe nesse livro o que aparecerá somente com As palavras e as coisas: a elaboração de uma distinção entre a arqueologia e a história epistemológica baseada na diferença de nível entre a ciência e o saber. A profundidade que define a posição arqueológica ainda não é a episteme, como será em As palavras e as coisas, nem é mais a percepção institucional como era em História da loucura, mas o olhar loquaz do médico. Na trajetória que analiso, Nascimento da clínica não é uma arqueologia do saber, nem uma arqueologia da percepção; ela se define propriamente como uma arqueologia do olhar.


a Foucault se refere explicitamente ao “modelo botânico” (cf. Naissance de la clinique, p.5-6; citarei como N.C.), acrescentando que a ordem da doença é uma cópia do mundo da vida. Em As palavras e as coisas ele dirá que o conceito de vida só existe na modernidade com o nascimento da biologia, o objeto da história natural clássica sendo os seres vivos. A diferença na maneira de os dois livros abordarem a questão é apenas terminológica. Além disso, Nascimento da clínica também fala de natureza opondo-a a vida (cf. p.156).

b N.C., p.5. As palavras e as coisas, que aprofunda o estudo da configuração geral da história natural clássica, abandona a idéia de caracterizá-la pela analogia ou pela semelhança — termos que vão servir para definir o tipo de conhecimento das plantas e dos animais próprio ao Renascimento —, preferindo defini-la pelo estabelecimento de identidade e diferenças. O que muda, porém, é mais a terminologia do que o conceito. A idéia continuará sendo definir o conhecimento clássico como ordenação.

c Essa idéia, que aparece na 1a edição, é modificada na 2a edição do livro. Não falando mais de percepção e sim de olhar, Foucault afirma então que “a clínica não é, sem dúvida, a primeira tentativa de ordenar uma ciência pelo exercício e pelas decisões do olhar”, explicitando suas relações com a história natural. N.C., p.88.

d Em As palavras e as coisas Foucault continua falando de analogia de funções.

e N.C., p.156. A substituição do conceito de natureza, ou ser natural, pelo conceito de vida com a biologia, no século XIX, considerada como uma ciência empírica, será estudada em As palavras e as coisas.

f O problema da instituição, fundamental em História da loucura, pode, mesmo que seja importante para Nascimento da clínica, ser deixado de lado quando se trata de sua tese central. Analisarei, no capítulo IV, a posição da arqueologia em relação à instituição.

g Isso pode não aparecer claramente a quem só conhece a 2a edição do livro, de 1972, onde Foucault introduziu algumas modificações terminológicas. Eliminando as expressões que apresentavam Nascimento da clínica como uma “análise estrutural do significado” e introduzindo o conceito de “saber” como objeto de uma “análise do discurso”, o que ele visava era, sem dúvida, a homogeneizar sua terminologia com a de A arqueologia do saber. Essas pequenas reformulações não modificam, entretanto, nem o conteúdo, nem mesmo a metodologia do livro. Sobre esse problema, cf., por exemplo, p.XIII, XIV, 51, 68, 89, 138, 139.

h N.C., p.VII. Sobre a caracterização da ruptura como uma “reorganização formal e em profundidade”, cf. p.X. Outro texto sobre o mesmo problema: “A clínica … deve sua real importância ao fato de ser uma reorganização em profundidade não só dos conhecimentos médicos, mas da própria possibilidade de um discurso sobre a doença.” N.C., p.XV.