CAPÍTULO 4
Epistemologia, arqueologia, genealogias
Com suas análises históricas da loucura, da clínica médica e dos saberes sobre o homem, História da loucura, Nascimento da clínica e As palavras e as coisas apresentaram conclusões de uma surpreendente novidade para o estudo desses temas. Mas assinalaram também o nascimento e o desenvolvimento de um tipo de investigação original em relação aos métodos da história das idéias ou das ciências que sempre apresentou modificações importantes a cada pesquisa realizada. Se os dois primeiros livros passaram, em um primeiro momento, praticamente despercebidos, ou pelo menos não despertaram grande interesse, o mesmo não se deu com As palavras e as coisas. A arqueologia dos saberes sobre o homem deu lugar a uma série de artigos que, entretanto, em sua grande maioria, ignoraram ou interpretaram mal o que efetivamente Foucault pretendia. Daí a necessidade sentida por ele de elucidar algumas questões de método.
A arqueologia do saber não é mais uma pesquisa histórica. É um livro que, embora não se proponha construir, em sentido rigoroso, uma teoria ou uma metodologia da história arqueológica, tem como objetivo principal refletir sobre o procedimento utilizado, e por vezes explicitado, no trabalho de pesquisa dos livros anteriores. Levando em consideração o que foi escrito sobre eles, partindo até mesmo de questões que lhe foram formuladas, Foucault procura, com esse novo livro, precisar melhor suas categorias de análise, superar dificuldades encontradas na própria pesquisa ou apontadas por outros e propor novas direções para seu projeto teórico.a Neste sentido, A arqueologia do saber é um testemunho de que o trabalho teórico de Foucault é um projeto que propõe, revê, aprofunda, retifica. Projeto que, percebendo sua novidade e sempre descobrindo novas possibilidades, faz, com este novo livro, uma análise reflexiva que, através de uma revisão crítica das pesquisas já efetuadas, procura sistematizar teoricamente o que, em momentos diferentes e de modo não homogêneo, foi praticado e, mais uma vez, redefinir a história arqueológica.
Pretendo, como conclusão deste estudo sobre a formação do conceito de história arqueológica, primeiro, expor o método arqueológico tal como o define A arqueologia do saber, a partir de seus objetos: o discurso, o enunciado, o saber; em seguida, estabelecer uma relação entre essa nova formulação e as formulações metodológicas anteriores, para apresentar de modo mais sistemático a trajetória da arqueologia, suas transformações internas e os sucessivos deslocamentos com relação à epistemologia; enfim, estabelecer um balizamento temporal à história arqueológica expondo, de modo sintético, o projeto filosófico de Foucault depois de A arqueologia do saber.
O novo livro define a arqueologia como uma análise de discursos. Isto à primeira vista pode parecer não conter novidade, mesmo porque já assinalei a relação dos trabalhos de Michel Foucault com a história das idéias e das ciências. Mas o que significa exatamente essa definição?
Antes de tudo, os discursos são abordados em um nível anterior à sua classificação em tipos. A análise é feita sem obedecer às distribuições tradicionais dos discursos em ciência, poesia, romance, filosofia etc., sendo assim capaz de dar conta do que se diz em todos esses domínios sem se sentir limitada por essas divisões. Mas, rejeitados os balizamentos aceitos tradicionalmente, como reencontrar a unidade que ao menos eles permitiam, possibilitando situar o objeto da pesquisa histórica? Essas unidades, segundo Foucault, nem sempre existiram (categorias como literatura ou política como as compreendemos hoje são, por exemplo, bastante recentes), precisam justificar sua legitimidade e, portanto, exigem uma teoria. Mas será possível propor um novo tipo de unidade ou se deve aceitar os discursos como pura dispersão?
Foucault formula quatro hipóteses, analisadas e rejeitadas, sobre o que faz a unidade de um discurso (como a medicina, a gramática, a economia política). Primeiro, o que faz a unidade de um discurso não é o objeto a que ele se refere. Não é a unidade do objeto loucura que constitui a unidade da psicopatologia. Ao contrário, é a loucura que foi construída pelo que se disse a seu respeito, pelo conjunto dessas formulações. Segundo, a organização de um discurso também não é presidida por sua forma de encadeamento, um modo constante de enunciação, um “estilo”. Trata-se antes de um grupo de enunciações heterogêneas que coexistem em uma disciplina, como a clínica médica por exemplo. Terceiro, a unidade de um discurso não pode ser buscada em um sistema fechado de conceitos compatíveis entre si, que seria o núcleo de base a partir do qual os outros seriam derivados, e que formaria uma espécie de “arquitetura conceitual”. É preciso explicar o aparecimento de novos conceitos, alguns até incompatíveis com os outros, o que só é possível pela definição de um sistema das regras de formação dos conceitos. Quarto, não é a presença de um mesmo tema que serve de princípio de individualização dos discursos: tema evolucionista, na biologia, fisiocrático, na economia. No caso do evolucionismo, Foucault mostra a existência de um mesmo tema em dois tipos de discurso diferentes: história natural no século XVIII, biologia no século XIX. No caso da fisiocracia, trata-se de explicar o tema da formação do valor na análise das riquezas, que também admitia a explicação utilitarista a partir dos mesmos conceitos. Um único tema pode ser encontrado em tipos diferentes de discurso, do mesmo modo que um único discurso pode produzir temas diferentes. Assim, será preciso definir, na análise dos discursos, um campo de possibilidades temáticas, a regra de formação dos temas possíveis.1 Os discursos não têm, portanto, princípios de unidade. E daí surge a idéia de analisá-los como pura dispersão. A dita unidade de um discurso, como uma ciência por exemplo, unidade procurada nos níveis do objeto, do tipo de enunciação, dos conceitos básicos e dos temas, é na realidade uma dispersão de elementos.
Aí está a razão pela qual a arqueologia desrespeita o estabelecido e analisa os discursos neutralizando as possíveis unidades. Os discursos são uma dispersão no sentido de que são formados por elementos que não estão ligados por nenhum princípio de unidade como os acima enumerados. O que permite precisar ainda mais o ponto de partida de A arqueologia do saber: a análise dos discursos será a descrição de uma dispersão. Mas com que objetivo? Para estabelecer regularidades que funcionem como lei da dispersão, ou formar sistemas de dispersão entre os elementos do discurso como uma forma de regularidade. Em outras palavras, trata-se de formular regras capazes de reger a formação dos discursos. A essas regras, que são as condições de existência de um discurso, e devem explicar como os discursos aparecem e se distribuem no interior de um conjunto, Foucault chama “regras de formação”.2
Como explicitar esse conceito de “regras de formação”, fundamental para a arqueologia? Criticou-se, primeiramente, a possibilidade de estabelecer uma unidade a partir de objetos, enunciados, conceitos e temas. Como eles não são considerados critérios pertinentes, a análise, então, se inverte: se esses componentes não servem de regra, eles são regulados em seu aparecimento e transformação. A descoberta dessas regras, que disciplinam objetos, tipos enunciativos, conceitos e temas, caracteriza o discurso como regularidade e delimita o que Foucault chama de “formação discursiva”. Um sistema de regras de formação determina uma “formação discursiva”. Em suma, um discurso, considerado como dispersão de elementos, pode ser descrito como regularidade, e portanto individualizado, descrito em sua singularidade, se suas regras de formação forem determinadas nos diversos níveis.
1) No nível dos objetos. Trata-se de definir os objetos “relacionando-os ao conjunto das regras que permitem formá-los como objetos de um discurso e constituem assim suas condições de aparecimento histórico”3. Se não se trata de um único objeto, mas de objetos que aparecem, coexistem e se transformam, pode se circunscrevê-los através da definição de um “espaço comum”. Segundo Foucault, para definir o espaço comum aos objetos é preciso estabelecer um conjunto de relações entre as instâncias de emergência, delimitação e especificação dos objetos.4
2) No nível dos tipos enunciativos. Vimos que foi deixada de lado a pretensão de caracterizar um discurso por um modo determinado de enunciação. A medicina clínica no século XIX, por exemplo, era formada por diversos tipos: “descrições qualitativas, narrativas biográficas, demarcação, interpretação e recorte dos signos, raciocínios por analogia, dedução, estimativas estatísticas, verificações experimentais e muitas outras formas de enunciados”5. Se não se tem uma forma única, é preciso então descrever uma coexistência de formas diversas para situar uma determinada articulação. “O que se deve caracterizar como medicina clínica é a coexistência desses enunciados dispersos e heterogêneos; é o sistema que rege sua repartição, o apoio de uns nos outros, o modo como se implicam ou se excluem, a transformação que sofrem, o jogo de sua mudança, de sua disposição e sua substituição.”6 Assim, analisar um discurso é determinar as regras que tornam possível a existência de enunciações diversas.
3) No nível dos conceitos. Não se trata de analisar os próprios conceitos no sentido de determinar a “arquitetura dedutiva” formada pelos principais conceitos de uma ciência. Trata-se de considerar as regras que tornaram possível o aparecimento e a transformação dos conceitos, isto é, a organização do campo discursivo em que se encontram os conceitos analisados, em um nível mais elementar do que o dos próprios conceitos, e que Foucault chama de “pré-conceitual”: “Tal análise diz respeito, portanto, em um nível de certo modo pré-conceitual, ao campo em que os conceitos podem coexistir e às regras a que este campo está submetido.”7 É preciso assim definir, na análise dos discursos, as regras de formação dos conceitos, as regras que permitem relacioná-los em um sistema comum. Esse sistema de formação conceitual deve dar conta da emergência simultânea ou sucessiva de conceitos dispersos, heterogêneos e até mesmo incompatíveis.
4) No nível dos temas e teorias, isto é, das “estratégias”. Foucault dá como exemplo o tema de uma língua originária, para a gramática do século XVIII; o tema da evolução das espécies, para a história natural; a teoria do parentesco das línguas indo-européias e de um idioma arcaico, para a filologia do século XIX; a teoria da circulação das riquezas a partir da produção agrícola, para a análise das riquezas dos fisiocratas.8 Como a presença de uma estratégia determinada não individualiza um discurso, o objetivo será definir um sistema de relações entre diversas estratégias que seja capaz de dar conta de sua formação. “Uma formação discursiva será individualizada se é possível definir o sistema de formação das diferentes estratégias que nela se desenvolvem; em outros termos, se é possível mostrar como todas derivam (apesar de sua diversidade às vezes extrema e sua dispersão no tempo) de um mesmo jogo de relações.”9 Essas relações são estabelecidas a partir da determinação dos pontos de difração possíveis do discurso, ou seja, a propriedade que têm os discursos de formarem subconjuntos, o que os caracteriza como uma unidade de distribuição que abre um campo de opções estratégicas possíveis; a partir, em seguida, da determinação de instâncias específicas de decisão, isto é, as escolhas estratégicas efetivamente realizadas que dependem da configuração discursiva em que se insere o discurso e que permite ou exclui certos temas ou teorias.
A análise desses diversos níveis do discurso mostra assim em que sentido, para A arqueologia do saber, falar de discurso é falar de relações discursivas ou de regularidade discursiva. O ponto importante da análise é que as regras que caracterizam um discurso como individualidade se apresentam sempre como um sistema de relações. São as relações entre objetos, entre tipos enunciativos, entre conceitos e entre estratégias que possibilitam a passagem da dispersão à regularidade. Assim, enquanto se processam emergências e transformações, na medida em que se estabelece a regularidade da relação, o sistema permanece com características que permitem individualizá-lo.
Surge, então, um problema. Como falar de sistema único, quando na verdade vimos a possibilidade de constituição de quatro sistemas diferentes? Qual deles é fundamental ou prioritário? Enfim, qual deles individualiza? Segundo Foucault, esses quatro feixes de relações estão também relacionados entre si, formando um sistema único. Não há justaposição nem autonomia absoluta, mas um sistema vertical de dependência. E essa hierarquia de relações também não privilegia nível algum, na medida em que se dá nos dois sentidos, fazendo um nível sempre depender do outro em sua formação.10
Isso não quer dizer, no entanto, que as análises arqueológicas, que devem definir as regras de formação dos objetos, das enunciações, dos conceitos e estratégias, não possam privilegiar algum dos níveis. Segundo Foucault, o ponto difícil da análise, e que pedia mais atenção, nem sempre foi o mesmo.11 Na História da loucura o problema maior era a emergência dos objetos e, assim, a análise procurou prioritariamente definir as regras de formação dos objetos para individualizar o discurso sobre a loucura. No Nascimento da clínica, como a questão importante eram as modificações que se efetuaram nos tipos de enunciação do discurso médico, o estudo procurou, sobretudo, definir a regularidade que presidia essas modificações. Já As palavras e as coisas privilegiou o estudo das regras de formação dos conceitos, que se prestavam melhor à inter-relação de saberes que se pretendia realizar.
Enfim, a análise arqueológica como descrição dos discursos não deve se fechar no interior do próprio discurso: deve articular o acontecimento discursivo com o não-discursivo, as formações discursivas com as não-discursivas. Ela não permanece unicamente no nível do discurso, embora este seja o seu objeto próprio, aquilo para o qual tudo converge, mas busca estabelecer uma relação com acontecimentos de outra ordem, seja ela técnica, econômica, social ou política: “Fazer aparecer em sua pureza o espaço em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos não é tentar restabelecê-lo em um isolamento que nada poderia superar; não é fechá-lo em si mesmo; é tornar-se livre para descrever nele e fora dele jogos de relações.”12 E essas análises que articulam duas ordens são realizadas a partir de cada nível do discurso.
Como articular essas duas ordens? Serão as formações não-discursivas as determinantes das formações discursivas? Emanarão os discursos dos acontecimentos econômicos e sociais como reflexo ou expressão desses últimos? Para Foucault, essa relação é muito mais complexa, e sua tentativa é mostrar que articular discurso e não-discurso é articular regras de formação dos discursos e formação não-discursiva. Mas ele mesmo confessa não ter sistematizado essas relações, e neste sentido A arqueologia do saber não elabora uma teoria.13
Em todo caso, essa articulação das formações discursivas com o político, o social, o econômico é uma tarefa que quase sempre esteve presente nas obras de Foucault – em graus variados, é bem verdade, dependendo do assunto a ser tratado. O motivo é, segundo A arqueologia do saber, que toda formação discursiva não é do mesmo modo permeável aos acontecimentos não-discursivos, e por isso a análise arqueológica procura descobrir formas específicas de articulação. Assim Foucault critica o que chama “análise simbólica”, que estabelece entre o discursivo e o não-discursivo uma correspondência em que os reflexos se dão nos dois sentidos; mas também uma “análise causal”, que procuraria situar de que maneira as práticas políticas e econômicas determinam a consciência dos homens e vêm assim influenciar seus discursos: “Se a arqueologia aproxima o discurso médico de um determinado número de práticas, é para descobrir relações muito menos ‘imediatas’ do que a expressão, mas muito mais diretas do que as de uma causalidade mediatizada pela consciência dos sujeitos que falam. Ela quer mostrar não como a prática política determinou o sentido e a forma do discurso médico, mas como e por que ela faz parte de suas condições de emergência, de inserção e de funcionamento.”14
A análise arqueológica, que tematiza os discursos pela definição de suas regras de formação, explicita sua condição de possibilidade pela definição do discurso como conjunto de enunciados. Daí a necessidade de dizer o que é o enunciado, e mostrar em que sentido a arqueologia, análise das formações discursivas, é uma descrição dos enunciados.
Para a definição do enunciado é preciso, em primeiro lugar, estabelecer o que o diferencia da proposição e da frase.15 Darei algumas indicações de como procede Foucault. O problema surge quando se pensa o discurso em termos de enunciados, isto é, na medida em que o enunciado é concebido como unidade elementar — elemento último da decomposição do discurso — que forma um discurso entrando em relação com outras do mesmo tipo, permitindo definir o discurso como família de enunciados. Se designar um objeto próprio é indispensável para que a arqueologia possa se justificar, em que sentido a unidade elementar da arqueologia se distingue, por um lado, da proposição, da lógica, por outro, da frase, da gramática?
Para a lógica, expressões como “Ninguém ouviu” e “É verdade que ninguém ouviu” são uma mesma proposição, podem ser simbolizadas da mesma maneira. Mas como enunciados elas não são equivalentes, não podem ocupar o mesmo lugar no discurso. Na linha inicial de um romance, a primeira indica uma constatação, enquanto a segunda pode fazer parte de um monólogo interior. Inversamente, pode-se ter um enunciado simples e completo quando se tem uma proposição complexa, “O atual rei da França é calvo”, ou fragmentar, “Minto”. Para a gramática, a frase é a unidade básica. Pode-se dizer que havendo frase há enunciado. Entretanto, existem enunciados que não correspondem a frase alguma. Um quadro classificatório das espécies botânicas, uma árvore genealógica são constituídos de enunciados, mas não de frases. As palavras “amo, amas, ama” escritas em uma gramática latina não formam uma frase embora sejam o enunciado da conjugação de um verbo. A série de letras A, Z, E, R, T, em um manual de datilografia, não é uma frase, embora seja o enunciado da ordem alfabética adotada para as máquinas francesas.
Essas distinções são importantes porque servem para mostrar como não se utilizam critérios lógicos ou gramaticais quando se faz uma análise arqueológica. O enunciado não está no mesmo nível que essas duas unidades, e não constitui uma unidade existente ao lado delas. Para que se possa falar de frase ou proposição é preciso que haja enunciado. Elas são afetadas pela presença de um enunciado que as faz existir em tempo e espaço determinados. O enunciado é, portanto, uma função de existência. “Não é de espantar que não se tenha podido encontrar critérios estruturais de unidade para o enunciado; é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que as faz aparecer com conteúdos concretos, no tempo e no espaço.”16
Foucault vai, então, procurar caracterizar essa forma original de existência própria dos signos verbais como enunciados. Com esse objetivo ele fixará, em primeiro lugar, a relação do enunciado com seu correlato, isto é, com aquilo que ele enuncia. A esse correlato ele chama de “referencial” e define como um conjunto de domínios que são “regras de existência para os objetos que aí se encontram nomeados, designados ou descritos, para as relações que aí se encontram afirmadas ou negadas.”17 Esse referencial é a condição de possibilidade do aparecimento, diferenciação e desaparecimento dos objetos e relações que são designados pela frase ou que podem verificá-la. Assim, essa função de existência relaciona as unidades de signos, que podem ser proposições ou frases, com um domínio ou campo de objetos possibilitando que determinados objetos possam ser mencionados.
Em seguida, formulará a relação que o enunciado tem com um sujeito. Quem é o sujeito de um enunciado? Ele não é nem o sujeito da frase, nem o seu autor. O enunciado é uma função vazia onde diferentes sujeitos podem vir a tomar posição e, assim, ocupar esse lugar quando formulam o enunciado; é uma posição determinada, um espaço vazio a ser preenchido por indivíduos diferentes: “Se uma proposição, uma frase, um conjunto de signos podem ser ditos ‘enunciados’ não é portanto na medida em que houve, um dia, alguém para proferi-los ou para depositar em algum lugar seu traço provisório; é na medida em que pode ser assinalada a posição do sujeito.”18
O modo de existência do enunciado apresenta ainda uma terceira característica. Ele exige que haja um domínio a ele associado. Um enunciado não existe isoladamente, como pode existir uma frase ou uma proposição. Para que estas se tornem enunciados é preciso que sejam um elemento integrado a um conjunto de enunciados. Só existe enunciado localizado, e por isso é indispensável a existência de um “campo adjacente” ou “espaço colateral”. Esse espaço é sempre um conjunto de formulações constituído por aquelas onde um enunciado se situa como elemento, por aquelas a que o enunciado se refere ou que torna possível no futuro e, finalmente, pelo conjunto maior das formulações que o caracterizam como um tipo determinado de discurso.19 “Todo enunciado se encontra assim especificado: não existe enunciado em geral, enunciado livre, neutro e independente, mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, apoiando-se neles e se distinguindo deles: ele sempre se integra em um jogo enunciativo, em que tem sua parte, por pouco importante ou ínfima que seja.”20
Finalmente, uma última condição é constitutiva do enunciado: sua existência material. Como caracterizar esse regime de materialidade? Foucault começa distinguindo o enunciado de uma enunciação. Tem-se uma enunciação toda vez que alguém emite um conjunto de signos. Ela se dá como uma singularidade que, portanto, impede uma repetição. Sempre se tratará de uma outra enunciação. Um enunciado, ao contrário, é passível de repetição. Duas enunciações podem, assim, conter um único enunciado, mesmo pronunciadas por pessoas diferentes e até mesmo em circunstâncias, tempo e espaço diferentes. Isso porém nem sempre acontece, justamente porque a identidade e, portanto, a repetição de um enunciado depende de sua materialidade. O importante é determinar essa “materialidade repetível” do enunciado. Não se trata de materialidade sensível que envolva tinta, papel, disposição gráfica etc. A materialidade constitutiva do enunciado é de ordem institucional. Uma frase dita na vida cotidiana, escrita em um romance, fazendo parte do texto de uma constituição ou integrando uma liturgia religiosa não constitui um mesmo enunciado. Sua identidade depende de sua localização em um campo institucional. A instituição constitui a materialidade do que é dito e, por isso, não pode ser ignorada pela análise arqueológica.
Em suma, o enunciado é uma função que possibilita que um conjunto de signos, formando unidade lógica ou gramatical, se relacione com um domínio de objetos, receba um sujeito possível, coordene-se com outros enunciados e apareça como um objeto, isto é, como materialidade repetível. É pelo enunciado que se tem o modo como existem essas unidades de signos. Ele lhes dá as modalidades particulares de existência, estipula as condições de existência dos discursos. Descrever um enunciado é descrever uma função enunciativa que é uma condição de existência.
Não existe, portanto, incompatibilidade entre análise do discurso e descrição dos enunciados. Os discursos são analisados no nível do enunciado, e o que circunscreve, delimita e regula um grupo de enunciados é uma formação discursiva. Não existe contradição e sim correspondência entre discurso e enunciado, correspondência que se realiza entre os quatro tipos de regras de formação que caracterizam uma formação discursiva e as quatro relações que determinam o modo de existência do enunciado: “Descrever enunciados, descrever a função enunciativa de que são portadores, analisar as condições nas quais se exerce esta função, percorrer os diferentes domínios que ela supõe e a maneira como eles se articulam é procurar desvelar o que poderá se individualizar como formação discursiva.” E Foucault continua explicitando a relação que nos interessa estabelecer: “O que foi definido como ‘formação discursiva’ escande o plano geral das coisas ditas no nível específico dos enunciados. As quatro direções em que a analisamos (formação dos objetos, formação das posições subjetivas, formação dos conceitos, formação das escolhas estratégicas) correspondem aos quatro domínios em que se exerce a função enunciativa.”21
Essa introdução do termo “enunciado”, sua articulação com a análise do discurso, é indispensável para que se possa definir com maior precisão o objeto da análise arqueológica: um discurso é um conjunto de enunciados que têm seus princípios de regularidade em uma mesma formação discursiva. Trata-se de um conjunto finito, de um grupo limitado, circunscrito, de uma seqüência finita de signos verbais efetivamente formulados. A arqueologia não se interessa pelos discursos possíveis, discursos para os quais se estabelecem princípios de verdade ou de validade a serem realizados; ela estuda os discursos reais, efetivamente pronunciados, existentes como materialidade.
Neste sentido, ela não faz uma análise das palavras, signos de outra coisa, nem uma análise das próprias coisas, objetos da experiência, designados pelas palavras. O discurso é um conjunto de regras dado como sistema de relações. Essas relações constituem o discurso em seu volume próprio, em sua espessura, isto é, caracterizam-no como prática. Considerá-lo como prática, “prática discursiva”, significa defini-lo como “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma época dada e para determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de existência da função enunciativa”22.
Vimos que Foucault situa sua pesquisa no campo da história e mais particularmente da história das idéias, do pensamento ou das ciências. Aí se localiza seu debate, aí aparecem os problemas que tenta resolver, aí se processam as transformações que apontam na direção de uma arqueologia.
Uma das características mais fundamentais do tipo de transformação por que passam as pesquisas históricas, segundo A arqueologia do saber, é sua posição face ao documento. Qual o estatuto do documento para a história? Ela não o trata mais, ou não deve mais tratá-lo, como signo de outra coisa, que precisa ser interpretado para que se desvele através dele, superando ou reduzindo sua opacidade, a verdade que o habita e deve ser decifrada. Não se trata mais de descobrir, atrás de uma manifesta opacidade, o elemento transparente localizado na profundidade. A história pretende trabalhar e elaborar o documento, “ela o organiza, recorta, distribui, ordena, reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, delimita elementos, define unidades, descreve relações. O documento, pois, não é mais, para a história, a matéria inerte através da qual ela procura reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que passou e de que apenas o rastro permanece: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações.”23
Essa transformação consiste em tratar os documentos como monumentos, ou, mais precisamente, no caso de uma história das idéias que se pretende uma arqueologia, em tratar o discurso não como “documento”, mas como “monumento”24. A arqueologia é uma história dos discursos considerados como monumentos, isto é, em sua espessura própria, na materialidade que os caracteriza; ela procura determinar as condições de existência do discurso tomado como acontecimento em relação a outros acontecimentos, discursivos ou não. Isso significa dizer que a arqueologia analisa os discursos como práticas que obedecem a regras de formação: dos objetos, dos modos de enunciação, dos conceitos e dos temas e teorias, como procurei mostrar. Analisar as regras de formação dos discursos é estabelecer o tipo de positividade que os caracteriza. E essa positividade é a positividade de um saber e não a de uma ciência. Quando a arqueologia descreve uma “formação discursiva”, determinando em seus quatro níveis suas regras de formação, aquilo que está sendo definido é um saber.
Podemos, finalmente, afirmar que a arqueologia tem no saber seu campo próprio de análise, o que permite compreender em que sentido a ciência não é propriamente seu objeto de estudo. O saber não é uma exclusividade da ciência. “O saber não está investido apenas em demonstrações, ele também pode estar em ficções, reflexões, narrativas, regulamentos institucionais, decisões políticas.”25 É por meio de documentos científicos, filosóficos, literários ou outros — que a arqueologia considera como formações discursivas — que se define um saber. Os saberes são independentes das ciências, isto é, também se encontram em outros tipos de discurso; mas toda ciência se localiza no campo do saber e pode ser analisada como tal. Para a arqueologia a questão da cientificidade ou não de um discurso não tem importância.
Para que haja ciência é preciso que os discursos obedeçam a determinadas leis de construção das proposições, regras que dão aos discursos o caráter distintivo de ciência. A questão da cientificidade do conhecimento científico é a própria razão de ser da epistemologia. É esta que, como história filosófica das ciências, história repensada, retificada, recorrente, investiga a formação dos conceitos científicos, a constituição dos objetos da ciência, a passagem de um nível pré-científico ao nível propriamente científico. A história epistemológica “é necessariamente escandida pela oposição da verdade e do erro, do racional e do irracional, do obstáculo e da fecundidade, da pureza e da impureza, do científico e do não-científico”26. Investigando a validade ou a racionalidade do conhecimento, ela necessariamente se situa em uma perspectiva normativa no sentido de que tem na ciência constituída um princípio de julgamento de seu passado.
Foucault cita como exemplos desse tipo de epistemologia os trabalhos de Gaston Bachelard e Georges Canguilhem e afirma explicitamente a não-existência de incompatibilidade entre história arqueológica e história epistemológica. A razão é a distinção entre o limiar de cientificidade, que somente alguns discursos atingem, e o limiar de positividade, indispensável para a individualização e autonomia de um discurso. Para haver saber basta a existência de uma prática discursiva, e a análise arqueológica tem como objetivo determinar suas regras de formação. Assim, se do ponto de vista da racionalidade dos conhecimentos pode-se distinguir história e pré-história da ciência, do ponto de vista da positividade dos discursos essa distinção não tem sentido. Enquanto a epistemologia, situando-se em uma perspectiva normativa, recorrente, pretende estabelecer a legitimidade de conhecimentos, a arqueologia, neutralizando a questão da cientificidade, interroga as condições de existência de discursos, até mesmo quando os discursos analisados são ou se pretendem científicos.
Sabemos que Foucault privilegiou as ciências em suas análises arqueológicas. Trata-se, porém, segundo A arqueologia do saber, de um privilégio momentâneo, que se deve ao fato de ser mais fácil determinar relações arqueológicas através da análise de discursos que se dão ou procuram se dar normas de verificação e de coerência. Nunca, porém, nesses casos, a arqueologia procura estudar a ciência em sua estrutura específica, mas como saber.
Foucault ainda chama de análise da episteme essa análise das formações discursivas que leva em consideração ciências ou conhecimentos que aspiram a ser científicos.27 Mas é interessante assinalar que episteme, termo que especifica o nível da análise arqueológica em As palavras e as coisas, é agora por ele definido como “o conjunto das relações que se pode descobrir, em determinada época, entre as ciências quando são analisadas no nível das regularidades discursivas”28. Definição, como vemos, bastante diferente das que encontramos em As palavras e as coisas. É que agora a arqueologia se encontra em uma nova etapa de sua trajetória.
A arqueologia do saber é um livro intrinsecamente relacionado às pesquisas históricas realizadas por Foucault, no sentido de que sem referência a elas seria impossível compreender o seu significado. Não se trata, porém, da formulação do método que teria sido utilizado nessas pesquisas. É impossível assimilar as posições metodológicas estabelecidas por A arqueologia do saber e o modo como as análises arqueológicas foram efetivamente realizadas nos livros anteriores. Esse novo livro é uma revisão — do ponto de vista não dos resultados, mas da efetuação da análise — de um projeto que sofreu críticas, sempre procurou se reformular e mais uma vez se avalia com o objetivo de estabelecer novos princípios. Seu significado e sua importância são menos a explicitação do que havia sido feito, do que a instauração de novas bases para a história arqueológica.
Não se deve entretanto imaginar que ele estabeleça uma descontinuidade, no sentido de inaugurar uma etapa inteiramente diferente do projeto teórico de Foucault considerado em sua totalidade. Os princípios de análise definidos e ilustrados em A arqueologia do saber se relacionam mais com as pesquisas históricas sobre as ciências do homem antes realizadas do que com o tipo de análise que os livros seguintes farão sobre o poder ou a subjetividade, que Foucault denominará “genealogia”. Assim, se os quatro livros que analisamos apresentam, quando considerados do ponto de vista do método, grande heterogeneidade, quando comparados com os seguintes, apresentam uma homogeneidade mais fundamental, que justamente torna possível identificar o projeto de uma história arqueológica e diferenciá-lo, tanto de uma epistemologia quanto de uma genealogia. A história arqueológica é datada no âmbito do projeto teórico de Foucault, e, na trajetória que ela seguiu, A arqueologia do saber representa mais um ponto final do que um recomeço radical. Assim, A arqueologia do saber nem é a explicitação conceitual de uma metodologia antes aplicada e ainda não definida, nem o estabelecimento de um novo método de análise dos saberes que irá guiar as pesquisas posteriores. É mais uma etapa — a última — de uma trajetória em que a arqueologia, para clarificar o seu exercício, define sua especificidade.
Até o momento, portanto, pretendendo dar conta de cada um dos livros dessa fase, analisei a trajetória da arqueologia. Para concluir essa análise, explicitarei, agora de modo mais sistemático, retomando para isso as questões do conceito, da descontinuidade e da normatividade, o sentido desse percurso.
Antes de mais nada, porém, assinalo um ponto importante no que diz respeito ao conteúdo das pesquisas explicitamente chamadas de arqueológicas: História da loucura, Nascimento da clínica e As palavras e as coisas são marcados por grande homogeneidade temática. História da loucura tem toda sua argumentação orientada para elucidar a questão da natureza da psiquiatria. Descobre uma especificidade do discurso psiquiátrico em relação ao discurso científico no sentido de que — e nisso o discurso psiquiátrico é o resultado de um processo que se realiza desde o século XVI — o “conhecimento” da loucura que ele enuncia é enganoso ou, mais precisamente, é o inverso da produção de uma verdade cada vez mais depurada dos erros iniciais. Mas isso ainda não é o mais importante. Pois não é no nível da teoria da loucura — jurídica, médica ou psiquiátrica — que se encontra o essencial da relação histórica entre razão e loucura: é na relação direta com o louco na exclusão institucional e nos critérios sociais que a possibilitam. Privilégio de um nível mais fundamental e profundo — chamado “percepção” — que é, nesse momento, a razão de a história ser considerada arqueológica.
Superando essa dicotomia estrutural entre conhecimento e percepção, Nascimento da clínica estuda a produção de conhecimento não mais sobre a loucura, mas sobre a doença em geral, na época clássica e na modernidade, a partir de dois aspectos diferentes mas intrinsecamente relacionados: o olhar e a linguagem. Nascimento da clínica prolonga assim a investigação de História da loucura no que diz respeito a uma história da medicina. História da loucura foi levada a estudar a medicina, sobretudo na época clássica, na medida em que a teoria clássica da loucura como doença fazia parte da medicina classificatória — mesmo que não tenha conseguido se elaborar coerentemente e completamente segundo sua racionalidade —, enquanto a psiquiatria, formulando o conceito de doença mental, se dá como medicina specialis em relação à medicina moderna. O que Nascimento da clínica faz é retomar a análise histórica do conhecimento da doença já esboçada no livro anterior, procurando estabelecer as características básicas da ruptura entre a medicina classificatória e a clínica médica moderna.
As palavras e as coisas, prolongando o estudo da relação da medicina com seus saberes constituintes, nas épocas clássica e moderna, desloca a pesquisa do âmbito da medicina para o da história natural e da biologia, estudando a configuração de cada uma e a ruptura existente entre elas. Mas sua ambição é muito maior: relaciona a biologia com os outros saberes da modernidade, economia e filologia — denominando a todos “ciências empíricas” —, opondo-lhes os saberes analíticos da época clássica sobre os seres vivos, as riquezas e o discurso; situa as relações entre estes saberes analíticos e empíricos respectivamente com a filosofia clássica da representação e do ser e com a antropologia filosófica moderna; demonstra, finalmente, como as ciências humanas têm nestes saberes empíricos e filosóficos sobre o homem suas condições históricas de possibilidade. Teses que já se encontravam esboçadas ao menos desde Nascimento da clínica, que já situava a oposição entre história natural e anatomia em termos de ruptura entre saberes analíticos e empíricos, mostrava que os saberes empíricos e filosóficos da modernidade fazem aparecer a questão da finitude do homem29 e, até mesmo, afirmava ser a clínica, como conhecimento do indivíduo, um saber constituinte das ciências humanas.30
Há, portanto, homogeneidade temática entre as pesquisas arqueológicas de Foucault quando consideradas em suas grandes linhas. A ponto de podermos caracterizá-las como uma única e extensa pesquisa centrada na questão dos saberes sobre o homem na modernidade. Pois, no fundo, trata-se de uma análise histórica que, estabelecendo um mesmo recorte temporal para os saberes ocidentais do século XVI até o século XIX — Renascimento, época clássica e modernidade —, tem dois objetivos intrinsecamente relacionados: por um lado, procura destruir o mito da existência de um saber sobre o homem em outras épocas que não a moderna; por outro, evidencia o papel privilegiado que o homem ocupa nos saberes da modernidade, pelo estudo dos nascimentos do humanismo terapêutico psiquiátrico, da clínica como conhecimento do corpo doente individual, das ciências empíricas e da filosofia que instituem o homem como ser empírico e transcendental e, finalmente, das ciências humanas que o representam como interioridade psicológica ou exterioridade social.
Retomemos agora a trajetória metodológica da história arqueológica. E, em primeiro lugar, a relação da arqueologia com o conceito. Em todas as suas pesquisas, a história arqueológica se distingue das histórias factuais das idéias ou das ciências e se define como uma história conceitual. Neste sentido ela situa-se em continuidade com a história epistemológica, mais especificamente com a realizada por Georges Canguilhem, como reconhece o próprio Foucault: “É a ele que devo o fato de ter compreendido que a história da ciência não se encontra necessariamente na alternativa: crônica das descobertas ou descrição das idéias e opiniões que cercam a ciência pelo lado de sua gênese indecisa ou de suas recaídas externas; mas que se devia, que se podia fazer a história da ciência como a de um conjunto coerente e transformável de modelos teóricos e instrumentos conceituais.”31 Vimos que a epistemologia se diferencia das histórias descritivas que limitam sua pesquisa à coleta de dados, celebração de datas, exposição de teorias, invenção de precursores, desconhecendo que a ciência, como sistema de produção de conhecimentos e lugar próprio da verdade, tem no conceito seu elemento mais importante. Quando retoma da epistemologia a crítica das histórias factuais e segue a exigência de a história ser conceitual, a arqueologia, porém, não estabelece a mesma relação entre conceito e ciência. Pois ela não realiza uma análise da filiação, mesmo que seja descontínua, de um conceito, isto é, a análise da formação, deformações e reformulações de determinado conceito, como a realizada, por exemplo, por Canguilhem com relação ao movimento reflexo. Neste sentido, a arqueologia não é propriamente uma análise do conceito. Segundo A arqueologia do saber, ela é uma análise do discurso, das formações discursivas, que pretende determinar as regras de formação dos objetos, das modalidades enunciativas, dos conceitos e dos temas e teorias. A formação dos conceitos é, portanto, um nível, entre outros, da análise arqueológica dos discursos. Nível que entretanto não se confunde com o sistema conceitual de uma ciência: é “pré-conceitual”, isto é, nível das regras que tornam possível o aparecimento dos conceitos, suas compatibilidades e incompatibilidades.
A definição das “formações discursivas” e suas regras, isto é, do saber e sua positividade, permite a esse último livro arqueológico de Foucault situar-se com relação à epistemologia e sua análise do conceito científico. A história arqueológica, porém, desde o início de sua trajetória procurou definir sua especificidade pela tentativa de dar conta conceitualmente da não-cientificidade do discurso. E isso foi feito de duas maneiras diferentes. Em História da loucura e Nascimento da clínica a especificidade da arqueologia, ao se definir pelos níveis da percepção ou do olhar, permanece ainda bastante ligada à originalidade dos objetos estudados, psiquiatria e medicina, discursos que não podem ser considerados científicos, propriamente falando.b Quando se pretende estudar historicamente um discurso não-científico, como o da psiquiatria do século XIX, é evidente que a história epistemológica é um instrumento inadequado. A razão pode ser facilmente compreendida depois de tudo que disse: ela se deve à impossibilidade de estabelecer com relação a esse tipo de saber os critérios de cientificidade que permitirão realizar uma história recorrente. Considerando qualquer uma das chamadas “ciências humanas” será possível definir qual é sua última linguagem, onde se encontra sua atualidade, o que constitui verdadeiramente o seu presente? Será possível determinar o sentido de seu progresso através da análise da formação, deformação e retificação de seus conceitos? Acredito que não; como acredito também que aí reside a importância de um estilo de análise como o de Michel Foucault.c
A modificação que, em seguida, se produzirá, e significará uma extensão do projeto, é a definição de uma “arqueologia do saber”. A arqueologia que, de início, aparece como adequada para dar conta de disciplinas não propriamente científicas ou que têm pretensão à cientificidade, a partir de As palavras e as coisas se torna capaz de analisar qualquer saber.
Uma prova dessa inflexão no projeto arqueológico é a maneira como foi concebida a idéia de positividade. A partir do momento em que o saber aparece, com As palavras e as coisas, como aquilo que especifica o nível da análise, esse nível se define pela positividade do que foi efetivamente dito e é, inclusive, condição de possibilidade da constituição das ciências. Independentemente dos critérios de validação estabelecidos pelas ciências, todo saber tem uma positividade, e é ela que deve ser examinada. Idéia retomada por A arqueologia do saber quando considera a positividade um limiar capaz de distinguir a arqueologia da epistemologia, situada no limiar da cientificidade, e de caracterizar e individualizar um discurso como saber. Antes de As palavras e as coisas, porém, Foucault aceita a idéia de positividade tal como é formulada pela epistemologia, que a relaciona intrinsecamente à idéia de cientificidade. Assim, em História da loucura, se bem que a positividade não qualifique exatamente o conhecimento científico, ela diz respeito ao discurso teórico que pretende à cientificidade, e ao qual será oposto o nível da percepção. Limitar-se à positividade ou privilegiá-la aparece, nesse momento, como um modo de escamotear a análise. Nascimento da clínica emprega a palavra “positiva” entre aspas referindo-se à medicina moderna, normalmente considerada positiva, isto é, científica, pretendendo com isso indicar que não houve “psicanálise” do conhecimento médico. Dois casos, portanto, em que a arqueologia ainda se distanciava do termo positividade, que posteriormente servirá para designar o nível próprio da arqueologia.
Essa modificação na trajetória da arqueologia, que a conduz a se definir como arqueologia do saber, tem também conseqüência na maneira de tratar a relação dos discursos com as práticas econômicas, políticas e institucionais. Segundo A arqueologia do saber a análise não deve se limitar ao discurso, mas articulá-lo com as formações não-discursivas. O livro não estabelece, porém, de modo a priori, como essa relação deve ser feita; critica qualquer tipo de relação de causalidade ou de determinação entre os dois níveis, indicando que só a pesquisa concreta pode descobrir as formas específicas dessa articulação. Ora, independentemente dessas indicações gerais, é preciso reconhecer que a consideração das práticas sociais tem sua importância progressivamente diminuída nas pesquisas arqueológicas.
Ela é, sem dúvida, fundamental em História da loucura. A razão é que, quando se tratou de analisar historicamente as condições de possibilidade da psiquiatria, o próprio desenvolvimento da pesquisa apontou as práticas institucionais do internamento, o saber que as acompanha e as transformações econômicas e políticas que a elas se articulam, como mais relevantes, para elucidar o problema estudado, do que as teorias médicas a respeito da loucura. Privilégio, portanto, da “percepção” do louco em relação ao “conhecimento” da loucura. Nascimento da clínica, por sua vez, articula os diversos tipos de medicina seja com instituições como o hospital e a escola, seja, em uma perspectiva mais geral, com transformações políticas, sobretudo na época da Revolução Francesa. Situa, por exemplo, incompatibilidades entre a concepção clássica da doença e o hospital; relaciona a constituição da clínica com a questão política da reorganização do ensino, do exercício médico e do hospital. Mas, embora importante, a consideração das práticas sociais perde o privilégio em Nascimento da clínica a tal ponto que é possível entender sua tese sem lhe fazer referência. O objetivo do livro — analisar, nos níveis do “olhar” e da “linguagem”, os princípios constitutivos do conhecimento médico moderno definindo o tipo específico de ruptura que ele estabelece — exigia o privilégio do discurso médico. Já As palavras e as coisas, estudando a constituição das ciências humanas a partir do estabelecimento de uma rede conceitual dos saberes que lhes servem de condição de possibilidade, deixa inteiramente de lado a relação entre os saberes e as estruturas econômicas e políticas. Situando pela primeira vez de maneira clara e sistemática o saber — e não mais a percepção ou o olhar — como o nível próprio da análise arqueológica, Foucault se interessa fundamentalmente em explicitar as condições de possibilidade intrínsecas do nascimento e da transformação de determinados saberes, o que o leva a procurar desclassificar todo tipo de história que queira explicá-los a partir do exterior, do não-discursivo. Curiosamente, como veremos, a “genealogia” dos saberes que Foucault iniciará logo depois de A arqueologia do saber seguirá uma direção bastante diferente e, sob esse aspecto, mais próxima de História da loucura.
Retomemos, em segundo lugar, o estudo da relação da arqueologia com a descontinuidade histórica. Seguindo um princípio da epistemologia, a história arqueológica procurou, em todas as suas pesquisas, detectar descontinuidades. Mas isso nem é feito de modo homogêneo nos diversos livros, nem significa o estabelecimento de rupturas epistemológicas. A descontinuidade histórica é um dos temas principais de A arqueologia do saber, livro que, mais uma vez, reafirma sua atenção às diferenças, e ao sistema que as possibilita, contra a história das idéias que tem na busca de continuidades uma constante. Relaciona a ruptura com sua teoria do discurso, definindo-a como uma transformação que se produz nas formações discursivas, seus elementos e suas regras, tendo sempre uma extensão circunscrita: “A ruptura é o nome dado às transformações que atingem o regime geral de uma ou várias formações discursivas.”32 Definição da ruptura que se adequa à da arqueologia como descrição da rede conceitual a partir das regularidades intrínsecas do discurso, com o objetivo de estabelecer compatibilidades e incompatibilidades.
Esse caráter regional e limitado da análise da descontinuidade — esta nem atinge todas as formações discursivas de uma época nem é um processo homogêneo —, que a circunscreve a formações discursivas determinadas, a uma “configuração interpositiva”, pretende, sem dúvida, retificar a amplitude que As palavras e as coisas conferia às rupturas.33 Pois vimos como essa pesquisa arqueológica caracteriza uma época pela existência de uma única episteme que rege o conjunto dos saberes, pretendendo encontrar na heterogeneidade de saberes particulares uma homogeneidade mais fundamental capaz de ordenálos. Em As palavras e as coisas a ruptura é pensada a partir dessa extensão global conferida à episteme: é a passagem de uma episteme a outra.d
De modo geral, podemos dizer que as rupturas assinaladas pela arqueologia dizem respeito não a um determinado conceito, mas a um conjunto de saberes caracterizado a partir de inter-relações conceituais estabelecidas em determinada época. Mas a extensão das descontinuidades variou em cada uma das investigações arqueológicas. Se em As palavras e as coisas ela pretende cobrir o saber de uma época, atingindo o máximo de extensão, em Nascimento da clínica sua extensão é mínima, pois o livro se limita propositadamente ao âmbito da medicina, estudada a partir de seus saberes fundadores. Já História da loucura leva em consideração vários saberes diferentes, mas a especificidade da análise é perfeitamente determinada. Os discursos de disciplinas distintas são sempre analisados em função da questão da loucura e do louco em diversos momentos da história, que é a questão central do livro.
História da loucura, entretanto, apresenta duas diferenças importantes no modo de considerar a descontinuidade. A primeira é sua concepção vertical da ruptura. Esse livro não pretende balizar as diversas concepções da loucura por uma análise exclusivamente interna dos conceitos da medicina, da psiquiatria ou de qualquer outra disciplina; vimos mesmo que ele privilegia o exterior desses saberes, analisando as práticas econômicas e políticas relevantes para explicar a situação do louco na sociedade. Em conseqüência desse privilégio concedido ao aspecto institucional do problema, o estabelecimento de rupturas arqueológicas se dá menos pela emergência de novas disciplinas que tematizam a loucura do que pelo aparecimento de novas práticas políticas de controle do louco e dos saberes a elas diretamente ligados, saberes e práticas que desempenham um papel intrínseco na constituição dos próprios conceitos de loucura em diferentes épocas. Neste sentido, podemos dizer que as condições históricas de possibilidade da psiquiatria são mais institucionais do que teóricas.
Por outro lado, as condições de possibilidade são antecedentes. Uma grande diferença da análise da descontinuidade tal como a realiza História da loucura em relação às futuras pesquisas arqueológicas é o fato de ela nunca estabelecer rupturas absolutas entre diferentes épocas. História da loucura é o livro menos descontinuísta de Foucault, isto é, para ele a descontinuidade nunca é total. Enquanto em As palavras e as coisas, por exemplo, avaliada pelos critérios intrínsecos à ordem do saber que traz em si mesmo suas condições de possibilidade, uma ruptura entre duas épocas é radical, no sentido de que depende apenas da episteme, que define os “sistemas de simultaneidade”, em História da loucura os discursos e as práticas de uma época dependem sempre do acontecido anteriormente. A razão dessa diferença é que as diversas configurações históricas da problemática da loucura são analisadas nesse momento por Foucault como etapas de um itinerário teórico e político. Se há, sem dúvida, descontinuidades, elas são sempre o resultado de condições estabelecidas previamente. É assim que a psiquiatria não é apenas uma nova teoria da loucura e uma nova prática de controle do louco: é a radicalização de um processo histórico. Para História da loucura, portanto, a história é descontínua, mas é, ao mesmo tempo, um processo orientado, idéia que, ainda dependente das categorias epistemológicas, desaparecerá das outras análises arqueológicas.
Somos assim naturalmente levados à questão da normatividade da arqueologia. Sabemos que, tematizando a racionalidade do conhecimento científico, a epistemologia situa-se necessariamente em uma perspectiva normativa no sentido de que, como história recorrente, institui o presente de uma ciência como princípio de avaliação de seu passado. A posição da arqueologia frente à recorrência não apenas é diferente da epistemologia como sofreu uma importante modificação interna.
História da loucura é ainda bastante marcada pelo projeto epistemológico: a análise arqueológica da loucura é inteiramente orientada por uma recorrência às avessas. Essa primeira pesquisa histórica de Foucault é um discurso normativo — no sentido de detectar uma direção na história das práticas e das teorias que dizem respeito à loucura — que revela como uma realidade originária da loucura foi progressivamente encoberta, e não descoberta, pelo fato de se constituir como um perigo para a sociedade. Se falei de recorrência a seu respeito foi para assinalar que História da loucura julga a verdade das teorias da loucura caracterizando-as como o contrário de um conhecimento. E se criei a expressão “recorrência às avessas” foi para deixar claro que o critério de julgamento que ela utiliza não se encontra de modo algum na atualidade de uma ciência: é atemporal, não é estabelecido por nenhuma ciência e, além disso, diz respeito a uma experiência. Daí uma importante diferença dessa pesquisa em relação aos outros livros de Foucault: ela não apenas avalia os discursos sobre a loucura do ponto de vista da verdade ou da falsidade de suas pretensões, mas também não se limita à loucura como discurso ou mesmo às figuras concretas do louco considerado como desrazoado ou alienado. É uma experiência fundamental da loucura — mascarada, dominada, mas não destruída, pela história — que serve de critério de julgamento da loucura produzida teórica e institucionalmente. Eis como e por que a questão da recorrência não está ausente de História da loucura.
Já Nascimento da clínica situa-se, sob esse aspecto, em uma perspectiva bastante diferente. Com esse livro a arqueologia continua a neutralizar a questão da cientificidade e, portanto, da recorrência histórica; não analisando a medicina como processo finalizado em direção à verdade, em nenhum momento ele aceita a anátomo-clínica como princípio de julgamento do passado da medicina. Por outro lado, Nascimento da clínica também não apresenta nenhum traço de recorrência às avessas; nenhum critério extramédico é utilizado para julgar da racionalidade da medicina. A ruptura entre a medicina moderna e a medicina clássica — questão central do livro — é estabelecida a partir da análise do próprio conceito de conhecimento médico e suas transformações, privilegiando os critérios que cada época define como verdadeiros e que são explicitados através da análise da correlação entre o olhar e a linguagem. Com esse livro a história dos discursos de determinada época é esclarecida não por critérios posteriores ou anteriores — e portanto exteriores — mas por condições de possibilidade internas e profundas. Idéia que é retomada no livro seguinte.
A grande novidade de As palavras e as coisas é haver situado as rupturas no nível específico do saber, elidindo da análise arqueológica as considerações sobre a “percepção”, o “olhar”, a “experiência”, o “conhecimento”. Definindo-se como uma arqueologia do saber, a análise histórica encontra-se agora em melhores condições para situar seu lugar com relação à história epistemológica, inclusive quanto à questão da recorrência. O ponto importante é que desaparece da definição do saber toda consideração de processo ou de progresso: um saber posterior não é, por esse motivo, superior ao anterior. Ora, desaparecendo da análise do saber o aspecto teleológico do conhecimento científico, desaparece também a possibilidade de estabelecimento de uma recorrência histórica.e
A abolição da recorrência vai ter uma importante conseqüência sobre o modo como a arqueologia considera a verdade. Sabemos que a epistemologia subordina a verdade à ciência. A ciência é o lugar próprio da verdade no sentido de que não tem que se adequar a uma verdade que lhe seria exterior, pois só seus procedimentos são capazes de produzi-la; a questão da verdade se reduz à dos critérios do conhecimento verdadeiro, critérios esses definidos pela ciência em sua atualidade. A arqueologia desloca radicalmente essa problemática. Privilegiando em sua análise não mais a ciência, mas o saber, a história arqueológica também neutraliza a questão da verdade. Ou melhor, desvincula a reflexão histórico-filosófica sobre a verdade da ciência e sua atualidade, eliminando a utilização de qualquer critério externo de verdade para julgar o que é dito nos discursos. A arqueologia aceita a verdade como uma configuração histórica e examina seu modo de produção unicamente a partir das normas internas dos saberes de determinada época. Radicalização que permite especificar a ruptura arqueológica com relação à ruptura epistemológica. No nível do saber é possível estabelecer uma pluralidade de rupturas igualmente importantes, isto é, que não invalidam o passado no sentido de transformá-lo em negatividade, mas apenas revelam a presença de outros princípios de organização dos saberes, uma incompatibilidade histórica entre discursos que entretanto conservam, cada um, sua positividade.
Assim, abolindo o julgamento recorrente, a arqueologia não abandona a exigência de normatividade postulada pela história epistemológica. O que faz é deslocar e modificar os critérios, com o objetivo de estabelecer princípios históricos de organização dos discursos. E isso de modo diferente em cada pesquisa arqueológica: em História da loucura pelo julgamento da percepção e do conhecimento da loucura a partir da experiência originária tomada como norma; em Nascimento da clínica pelo balizamento de uma ruptura arqueológica entre dois tipos históricos de medicina a partir da análise do olhar loquaz considerado como dimensão de profundidade do conhecimento; em As palavras e as coisas pelo estabelecimento da ordem interna constitutiva dos saberes em sua positividade a partir da episteme concebida como critério de ordenação. A arqueologia do saber não abandona a idéia de normatividade. Segundo ela, a arqueologia tem por objetivo descrever conceitualmente a formação dos saberes, sejam eles científicos ou não, para estabelecer suas condições de existência, e não de validade, considerando a verdade como uma produção histórica cuja análise remete a suas regras de aparecimento, organização e transformação no nível do saber. Assim, na última etapa da trajetória da arqueologia, a exigência de normatividade da análise histórica se manifesta através do projeto de uma descrição capaz de elucidar a regularidade intrínseca dos saberes, estabelecer compatibilidades e incompatibilidades e individualizar formações discursivas.
Quando consideramos a produção teórica desses quatro primeiros livros e, minimizando suas pequenas ou grandes diferenças, a comparamos em bloco ao que será realizado logo depois, percebemos claramente abrir-se um novo caminho para as análises históricas dos saberes. Se Foucault não invalida o passado, ele agora parte de outra questão. Seu objetivo não é principalmente analisar as compatibilidades e incompatibilidades entre saberes a partir da configuração de suas positividades; o que pretende, em última análise, é explicar o aparecimento de saberes a partir de condições de possibilidade externas aos próprios saberes, ou melhor, que, imanentes a eles — pois não se trata de considerá-los como efeito ou resultante —, os situam como elementos de um dispositivo de natureza essencialmente política. É essa análise dos saberes, que pretende explicar sua existência e suas transformações situando-os como peças de relações de poder ou incluindo-os em um dispositivo político, que utilizando um termo nietzschiano Foucault chama “genealogia.”34
A palavra “genealogia” foi introduzida em Vigiar e punir, onde seu sentido aparece mais claramente. Citemos essas passagens: “O objetivo deste livro: uma história correlata da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do atual complexo científico-judiciário em que o poder de punir se apóia, recebe suas justificações e suas regras, entende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade”; “A história desta ‘microfísica’ do poder punitivo seria então uma genealogia da ‘alma’ moderna ou uma peça para uma genealogia da ‘alma’ moderna”; “É possível fazer a genealogia da moral moderna a partir de uma história política dos corpos?”35 Foucault também utiliza essa terminologia em A vontade de saber e em alguns cursos do Collège de France.36 Em geral, o que notamos no modo como esse termo é empregado é a idéia de que a questão central das novas pesquisas é o poder e sua importância para a constituição dos saberes. A mutação essencial assinalada por livros como Vigiar e punir e A vontade de saber, primeiro volume da História da sexualidade, foi a introdução da questão do poder como instrumento de análise capaz de explicar a produção dos saberes. A genealogia é uma análise histórica das condições políticas de possibilidade dos discursos. Nesse momento, como veremos, muda também de modo radical o tipo de questão metodológica colocado por Foucault. Pois, não se tratando mais de justificar a especificidade da história arqueológica, momento em que as questões do conceito, da descontinuidade e da normatividade apareciam em primeiro plano, desaparece todo posicionamento em relação à história epistemológica. Na época em que escreveu Vigiar e punir e A vontade de saber, a questão metodológica dizia respeito sobretudo ao poder e sua relação com o saber. Vejamos quais são os princípios básicos dessa genealogia do poder.
Uma coisa é clara nas análises genealógicas do poder: elas produzem um importante deslocamento com relação à ciência e à filosofia políticas, que privilegiam em suas investigações sobre o poder a questão do Estado. Estudando a formação histórica das sociedades capitalistas, através de pesquisas precisas e minuciosas sobre o nascimento da instituição carcerária e a constituição do dispositivo de sexualidade, Foucault, a partir de uma evidência fornecida pelo próprio material de pesquisa, viu delinear-se claramente uma não-sinonímia entre Estado e poder. O que de modo algum é inteiramente novo ou inusitado. Quando revemos suas pesquisas anteriores sob essa perspectiva, principalmente a História da loucura, não será indiscutível que aquilo que poderíamos chamar de condições de possibilidades políticas de saberes específicos, como a medicina ou a psiquiatria, podem ser encontradas, não por uma relação direta com o Estado, considerado como um aparelho central e exclusivo de poder, mas por uma articulação com poderes locais, específicos, circunscritos a uma pequena área de ação, que Foucault analisava em termos de instituição? Com a análise genealógica, essa questão não só foi explicitada com maior clareza, mas formulada de modo mais minucioso e sistemático. O que aparece então claramente é a existência de formas de exercício do poder diferentes do Estado, a ele articuladas de maneiras variadas e indispensáveis inclusive à eficácia de sua ação.
Essa atenção a um tipo específico de poder deu-se através de uma distinção entre uma situação central ou periférica e um nível macro ou micro que, mesmo utilizando uma terminologia espacial que não parece dar conta inteiramente da novidade que a análise contém, facilita a compreensão da tese. Ela visa a mostrar a diferença entre as grandes transformações do sistema estatal, as mudanças de regime político no nível dos mecanismos gerais e dos efeitos de conjunto e a mecânica de poder que se expande por toda a sociedade, assumindo as formas mais regionais e concretas, investindo em instituições, tomando corpo em técnicas de dominação. Poder esse que intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos — o seu corpo —, e se situa no nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana, e por isso pode ser caracterizado como micropoder ou subpoder. O que Foucault chama de “microfísica do poder”37 significa um deslocamento tanto do espaço da análise quanto do nível em que esta se efetua. Dois aspectos intimamente ligados: a consideração do poder em suas extremidades, a atenção a suas formas locais, a seus últimos lineamentos tem como correlato a investigação dos procedimentos técnicos de poder que realizam um controle detalhado, minucioso do corpo — gestos, atitudes, comportamentos, hábitos, discursos.
Realidades distintas, mecanismos heterogêneos, os dois tipos específicos de poder se articulam e obedecem a um sistema de subordinação que não pode ser compreendido sem se levar em consideração a situação concreta e o tipo singular de intervenção. O importante é que as análises indicaram claramente que os poderes periféricos e moleculares não foram confiscados e absorvidos pelo aparelho de Estado, nem, se nasceram fora dele, foram inevitavelmente reduzidos a uma forma ou manifestação do aparelho central. Os poderes são exercidos em níveis variados e em pontos diferentes da rede social, e nesse complexo os micropoderes existem integrados ou não ao Estado, distinção que não foi muito relevante ou decisiva para a orientação das análises.
Essa relativa independência ou autonomia da periferia com relação ao centro significa que as transformações no nível capilar, minúsculo, do poder não estão necessariamente ligadas às mudanças ocorridas no âmbito do Estado. Isso pode acontecer ou não, e não pode ser postulado aprioristicamente. Sem dúvida, Foucault salientou a importância da Revolução Francesa na criação ou transformação de saberes e poderes que dizem respeito à medicina, à psiquiatria ou ao sistema penal. Mas nunca fez dessas análises concretas uma regra de método. A razão é que o aparelho de Estado é um instrumento específico de um sistema de poderes que não se encontra unicamente nele localizado, mas o ultrapassa e complementa. Isto inclusive aponta para uma conseqüência política contida em suas análises, que, evidentemente, não têm apenas como objetivo dissecar, esquadrinhar teoricamente as relações de poder, mas servir como instrumento de luta, articulado com outros instrumentos, contra essas mesmas relações de poder. É que nem o controle nem a destruição do aparelho de Estado são suficientes, como muitas vezes se pensa, para fazer desaparecer ou transformar, em suas características fundamentais, a rede de poderes que vigora em uma sociedade.
Do ponto de vista metodológico, uma das principais precauções de Foucault é procurar dar conta desse nível molecular de exercício do poder sem partir do centro para a periferia, do macro para o micro. Tipo de análise que ele próprio chama de descendente38, no sentido de que deduziria o poder partindo do Estado e, procurando ver até onde ele se prolonga nos escalões mais baixos da sociedade, penetra e se reproduz em seus elementos mais atomizados. É verdade que livros como Vigiar e punir e A vontade de saber, além de entrevistas, artigos ou cursos desse período, não refletem explicitamente sobre o Estado e seus aparelhos, como fazem em relação aos poderes mais diretamente ligados aos objetos de suas pesquisas. Não se trata, porém, de minimizar o papel do Estado nas relações de poder existentes em determinada sociedade. O que Foucault pretende é se insurgir contra a idéia de que o Estado seria o órgão único de poder, ou de que a rede de poderes das sociedades modernas seria uma extensão dos efeitos do Estado, um simples prolongamento de seu modo de ação, o que significaria destruir a especificidade dos poderes que a análise pretende focalizar.
Daí a necessidade de utilizar um procedimento inverso: partir da especificidade da questão colocada — a dos mecanismos e técnicas infinitesimais de poder que estão intimamente relacionados à produção de determinados saberes sobre o criminoso, a sexualidade, a doença, a loucura etc. — e analisar como esses micropoderes, que possuem tecnologia e história específicas, se relacionam com o nível mais geral do poder constituído pelo aparelho de Estado. A análise ascendente que Foucault propõe e realiza estuda o poder não como uma dominação global e centralizada que se difundiria e repercutiria nos outros setores da vida social de modo homogêneo, mas como tendo existência própria e formas específicas no nível mais elementar. O Estado não é o ponto de partida necessário, o foco absoluto que estaria na origem de todo tipo de poder social, e de que também se deveria partir para explicar a constituição dos saberes nas sociedades capitalistas. Foi muitas vezes fora dele que se instituíram as relações de poder, essenciais para situar a genealogia dos saberes modernos, que, com tecnologias próprias e relativamente autônomas, foram utilizadas e transformadas pelas formas de dominação do aparelho de Estado.
Quando Foucault foi levado a distinguir no poder uma situação central e periférica e um nível macro e micro de exercício, o que pretendeu foi detectar a existência e explicitar as características de relações de poder que se diferenciam do Estado e seus aparelhos. Mas isso não significa querer situar o poder em outro lugar que não o Estado, como sugere a palavra periferia. O interessante da análise é sugerir que os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, em relação ao qual não existe exterior possível. Daí a importante e polêmica idéia de que o poder não é algo que se detém como uma coisa, uma propriedade, que se possui ou não.39 Não existe de um lado os que detêm o poder e de outro os que se encontram alijados dele. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem práticas ou relações de poder. O que significa dizer que poder é algo que se exerce, que funciona. E funciona como uma maquinaria, como uma máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação. E esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra seu exercício não podem ser travadas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento de poder. Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede do poder, teia que se estende por toda a sociedade e da qual ninguém pode escapar: ele está sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de relações de força. E como onde há poder há resistência, não existe propriamente o lugar da resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social.40 Foucault rejeita, portanto, uma concepção do poder inspirada pelo modelo econômico, que o considera como mercadoria. E se um modelo pode ser elucidativo de sua realidade, é na guerra que ele pode ser encontrado.41 Ele é luta, confronto, relação de força, situação estratégica. Não é um lugar que se ocupa, nem um objeto que se possui. Ele se exerce, se disputa. E não é uma relação unívoca, unilateral; nessa disputa ou se ganha ou se perde. Isso com relação à situação do poder na sociedade.
Mas a análise se completa pela investigação de seu modo de ação, o que leva a genealogia a desenvolver uma concepção não-jurídica do poder, segundo a qual é impossível entendê-lo se for definido como um fenômeno que diz respeito fundamentalmente à lei ou à repressão. De modo geral, Foucault faz referência a dois tipos de teoria.42 Por um lado, as teorias que têm origem nos filósofos do século XVIII que definem o poder como direito originário que se cede, se aliena para constituir a soberania e tem como instrumento privilegiado o contrato; teorias que, em nome do sistema jurídico, criticarão o arbítrio real, os excessos, os abusos de poder, formulando a exigência de que o poder se exerça como direito, na forma da legalidade. Por outro lado, as teorias que, radicalizando a crítica ao abuso do poder, criticam não apenas o poder por transgredir o direito, mas o próprio direito, por ser um modo de legalizar o exercício da violência, e o Estado, órgão cujo papel é realizar a repressão. Assim é também na ótica do direito que se elaboram essas teorias, na medida em que o poder é concebido como violência legalizada.
A idéia básica de Foucault é que as relações de poder não dizem respeito fundamentalmente ao direito, nem à violência; nem são basicamente contratuais nem unicamente repressivas. Ninguém desconhece, por exemplo, que a difícil questão da repressão está sempre polemicamente presente em Vigiar e punir e A vontade de saber, livros que estão constantemente querendo demonstrar que é falso definir o poder como algo que diz “não”, impõe limites, castiga. A uma concepção negativa que identifica o poder com o Estado e o considera essencialmente como aparelho repressivo, no sentido de que seu modo básico de intervenção sobre os cidadãos se daria em forma de violência, coerção, opressão, Foucault opõe uma concepção positiva que pretende dissociar os termos dominação e repressão. O que suas análises quiseram mostrar é que a dominação capitalista não conseguiria se manter se fosse exclusivamente baseada na repressão.
Sabemos que não existe em Foucault, nesse período, uma pesquisa específica a respeito da ação do Estado nas sociedades modernas. Mas o que a consideração dos micropoderes mostra, em todo caso, é que o aspecto negativo do poder — sua força destrutiva — não é tudo e talvez não seja o mais fundamental, ou que, ao menos, é preciso refletir sobre seu lado positivo, isto é, produtivo, transformador: “É preciso parar de sempre descrever os efeitos do poder em termos negativos: ele ‘exclui’, ele ‘reprime’, ele ‘recalca’, ele ‘censura’, ele ‘abstrai’, ele ‘mascara’, ele ‘esconde’. De fato, o poder produz; ele produz real; produz domínios de objeto e rituais de verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter dizem respeito a essa produção.”43 O poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma “positividade”. E é justamente esse aspecto que explica o fato de ele ter como alvo o corpo humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo. Não se explica inteiramente o poder quando se procura caracterizá-lo por sua função repressiva. Pois o seu objetivo básico não é expulsar os homens da vida social, impedir o exercício de suas atividades, e sim gerir a vida dos homens, controlá-los em suas ações para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades. Objetivo ao mesmo tempo econômico e político: aumento do efeito de seu trabalho, isto é, tornar os homens força de trabalho dando-lhes uma utilidade econômica máxima; diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra as ordens do poder, neutralização dos efeitos de contrapoder, isto é, tornar os homens dóceis politicamente. Portanto, aumentar a utilidade econômica e diminuir os perigos políticos; aumentar a força econômica e diminuir a força política.44
Mas é preciso observar que as análises de Foucault sobre o poder fazem parte de investigações históricas delimitadas, circunscritas, com objetos bem demarcados. Por isso, embora às vezes suas afirmações tenham uma ambição englobante, inclusive pelo tom não raro provocativo e polêmico que as caracteriza, é importante não perder de vista que se trata de análises particularizadas, que não podem e não devem ser aplicadas indistintamente a novos objetos, fazendo-lhes assumir uma postura metodológica que lhes daria universalidade. Se Foucault começou a formular explicitamente a questão do poder foi em resposta a questões levantadas pela pesquisa que realizava sobre a história da penalidade, quando apareceu para ele o problema de uma relação específica de poder sobre os indivíduos enclausurados que incidia sobre seus corpos e utilizava uma tecnologia própria de controle.45 E essa tecnologia não era exclusiva da prisão; encontrava-se também em outras instituições como o hospital, a caserna, a escola, a fábrica, como indicava o texto mais explícito sobre o assunto, o Panopticon, de Jeremy Bentham.
Foi esse tipo específico de poder que Foucault chamou de “disciplina” ou “poder disciplinar”.46 É importante notar que a disciplina nem é um aparelho de Estado, nem uma instituição: ela funciona como uma rede que os atravessa sem se limitar a suas fronteiras;47 é uma técnica, um dispositivo, um mecanismo, um instrumento de poder; são “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que asseguram a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade”;48 é o diagrama de um poder que não atua do exterior, mas trabalha o corpo dos homens, manipula seus elementos, produz seu comportamento, enfim, fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e manutenção da sociedade industrial, capitalista. Ligada à explosão demográfica do século XVIII e ao crescimento do aparelho de produção, a dominação política do corpo que ela realiza responde à necessidade de sua utilização racional, intensa, máxima, em termos econômicos. Mas, por outro lado — e isso é um aspecto bastante importante da análise —, o corpo só se torna força de trabalho quando trabalhado pelo sistema político de dominação característico do poder disciplinar.
Eis suas características mais importantes. Em primeiro lugar, a disciplina é um tipo de organização do espaço. É uma técnica de distribuição dos indivíduos através da inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório. Isola em um espaço fechado, esquadrinhado, hierarquizado, capaz de desempenhar funções diferentes segundo o objetivo específico que dele se exige. Mas, como as relações de poder disciplinar não precisam necessariamente de espaço fechado para se realizar, essa é sua característica menos importante. Em segundo lugar, e mais fundamentalmente, a disciplina é um controle do tempo. Isto é, estabelece uma sujeição do corpo ao tempo, com o objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo de eficácia. Neste sentido, não é o resultado da ação que lhe interessa, mas seu desenvolvimento. E esse controle minucioso das operações do corpo, ela o realiza através da elaboração temporal do ato, da correlação de um gesto específico com o corpo que o produz e, finalmente, pela articulação do corpo com o objeto a ser manipulado. Em terceiro lugar, a vigilância é um de seus principais instrumentos de controle. Não uma vigilância que reconhecidamente se exerceria de modo fragmentar e descontínuo; mas que é ou precisa ser vista pelos indivíduos que a ela estão expostos como contínua, perpétua, permanente; que não tenha limites, penetre nos lugares mais recônditos, esteja presente em toda a extensão do espaço. “Indiscrição” com respeito a quem ela se exerce que tem como correlato a maior “discrição” possível da parte de quem a exerce. Olhar invisível — como o do Panopticon de Bentham, que permite ver tudo permanentemente sem ser visto — que deve impregnar quem é vigiado, de tal modo que este adquira de si mesmo a visão de quem o olha. Finalmente, a disciplina implica um registro contínuo de conhecimentos. Ao mesmo tempo que exerce um poder, produz um saber. O olhar que observa para controlar não é o mesmo que extrai, anota e transfere as informações para os pontos mais altos da hierarquia de poder?
Essas características do poder disciplinar são aspectos inter-relacionados. Assim, por exemplo, quando a medicina, com a psiquiatria, inicia um controle do louco, ela cria o hospício, ou hospital psiquiátrico, como um espaço específico; institui a utilização ordenada e controlada do tempo, que deve ser empregado sobretudo no trabalho, desde o século XIX considerado o meio terapêutico fundamental; monta um esquema de vigilância total que, se não está inscrito na organização espacial do hospício, se baseia em uma “pirâmide de olhares” formada por médicos, enfermeiros, serventes; extrai da própria prática os ensinamentos capazes de aprimorar seu exercício terapêutico.49 Mas, além de serem inter-relacionadas, umas servindo de ponto de apoio às outras, essas técnicas se adaptam às necessidades específicas de diversas instituições que, cada uma à sua maneira, realizam um objetivo similiar, quando consideradas do ponto de vista político.
Vimos seus objetivos do ponto de vista tanto econômico quanto político: tornar o homem “útil e dócil”. E pelo que mostrou a análise das instituições disciplinares, realizada em Vigiar e punir, ou das relações de poder ainda mais sutis, móveis e dispersas no campo social existente nos dispositivos de sexualidade, realizada em A vontade de saber, essas técnicas não podem, rigorosamente falando, ser chamadas de repressivas, sem que se confundam os meios específicos de ação dos poderes nas sociedades capitalistas.
A grande importância estratégica que as relações disciplinares de poder desempenham nas sociedades modernas desde o século XIX vem justamente do fato de elas não serem negativas, mas positivas, quando tiramos desses termos qualquer juízo de valor moral e pensamos unicamente na tecnologia política empregada. E então surge uma das teses fundamentais da genealogia: o poder é produtor de individualidade. O indivíduo é uma produção do poder e do saber.
Que significa essa tese, à primeira vista absurda, de que o indivíduo é um efeito do poder? Compreendê-la é penetrar no âmago da questão da disciplina. As análises genealógicas não discerniram o indivíduo como um elemento existindo em continuidade nos vários períodos históricos, como uma espécie de matéria inerte anterior e exterior às relações de poder que seria por elas atingido, submetido e finalmente destruído. Tornou-se um hábito explicar o poder capitalista como algo que descaracteriza, massifica; o que implica a existência anterior de algo como uma individualidade com características, desejos, comportamentos, hábitos, necessidades, que seria investida pelo poder e sufocada, dominada, impedida de se expressar.
Para Foucault, não foi isso o que aconteceu. Atuando sobre uma massa confusa, desordenada e desordeira, o esquadrinhamento disciplinar faz nascer uma multiplicidade ordenada no seio da qual o indivíduo emerge como alvo de poder. O nascimento da prisão, por exemplo, em fins do século XVIII, não representou uma massificação com relação ao modo como anteriormente se era encarcerado. O isolamento celular — total ou parcial — é que foi a grande inovação dos projetos e das realizações de sistemas penitenciários. O nascimento do hospício também não destruiu a especificidade da loucura. Antes de Pinel e Esquirol é que a loucura era um subconjunto de uma população mais vasta, uma região de um fenômeno não só mais amplo e englobante, mas que lhe determina a configuração como desrazão. É o hospício que produz o louco como doente mental, personagem individualizado a partir da instauração de relações disciplinares de poder. Em suma, o poder disciplinar não destrói o indivíduo; ao contrário, o fabrica. O indivíduo não é o outro do poder, que seria anulado por ele; é um de seus efeitos mais importantes.
Essa análise, porém, é histórica e específica. Não é, certamente, todo poder que individualiza, mas um tipo específico que, seguindo uma denominação que aparece freqüentemente em médicos, psiquiatras, militares, políticos etc., do século XIX, Foucault intitulou disciplina. Além disso, esse poder é característico de uma época, de uma forma específica de dominação. A existência de um tipo de poder que pretende instaurar uma dissimetria entre os termos de sua relação, no sentido de que se exerce o mais possível anonimamente e deve ser sofrido individualmente é, segundo Foucault, uma das grandes diferenças entre a sociedade em que vivemos e as sociedades que a precederam. Enquanto em uma sociedade como a medieval “a individualização é máxima do lado em que se exerce a soberania e nas regiões superiores do poder …, em um regime disciplinar a individualização, em contrapartida, é ‘descendente’: à medida que o poder se torna mais anônimo e funcional, aqueles sobre quem ele se exerce tendem a ser mais fortemente individualizados; e isso por vigilâncias mais do que por cerimônias, por observações mais do que por narrativas comemorativas, por medidas comparativas, que têm a ‘norma’ como referência, e não por genealogias que apresentam os ancestrais como pontos de referência; por ‘separações’ mais do que por proezas.”50
O adestramento do corpo, o aprendizado do gesto, a regulação do comportamento, a normalização do prazer, a interpretação do discurso, com o objetivo de separar, comparar, distribuir, avaliar, hierarquizar, tudo isso faz com que apareça pela primeira vez na história a figura singular, individualizada do homem como produção do poder. Mas também, e ao mesmo tempo, como objeto de saber. Das técnicas disciplinares, que são técnicas de individualização, nasce um tipo específico de saber: as ciências do homem.
A constituição histórica das ciências do homem é uma questão central das investigações de Foucault. Vimos como ela aparece e é estudada, em seus primeiros livros, na perspectiva de uma arqueologia dos saberes. Mas ela é retomada e transformada pelo projeto genealógico. Agora, o objetivo principal é explicitar, aquém do nível dos conceitos, dos objetos teóricos e dos métodos, não propriamente como — objeto das análises arqueológicas — mas por que as ciências do homem apareceram.
Uma grande novidade dessa pesquisa foi não procurar as condições de possibilidade históricas das ciências do homem nas relações de produção, na infra-estrutura material, situando-as como uma resultante superestrutural, um epifenômeno, um efeito ideológico.51 A questão não foi relacionar o saber — considerado como idéia, pensamento, fenômeno de consciência — diretamente com a economia, situando a consciência dos homens como reflexo e expressão das condições econômicas. O que fez a genealogia foi considerar o saber — compreendido como materialidade, prática, acontecimento — como peça de um dispositivo político que, como tal, se articula com a estrutura econômica. Ou, mais especificamente, a questão da genealogia foi a de como se formaram domínios de saber a partir de práticas políticas disciplinares.52
Outra importante novidade dessas investigações foi não considerar pertinente para as análises a distinção entre ciência e ideologia. Foi a opção de não estabelecer ou procurar critérios de demarcação entre uma e outra que fez Foucault situar a arqueologia, no final de sua trajetória, como uma história do saber. O objetivo da genealogia foi neutralizar a idéia que faz da ciência um conhecimento em que o sujeito vence as limitações de suas condições particulares de existência instalando-se na neutralidade objetiva do universal e da ideologia um conhecimento em que o sujeito tem sua relação com a verdade perturbada, obscurecida, velada pelas condições de existência. Todo conhecimento, seja ele científico ou ideológico, só pode existir a partir de condições políticas que são a base para que se formem tanto o sujeito quanto os domínios do saber. A investigação do saber não deve remeter a um sujeito de conhecimento que seria sua origem, mas a relações de poder que lhe constituem. Não há saber neutro. Todo saber é político. E isso não porque cai nas malhas do Estado e é apropriado por esse Estado, que dele se serve como instrumento de dominação, desvirtuando seu núcleo essencial de racionalidade, mas porque todo saber tem sua gênese em relações de poder.
O fundamental da análise é que saber e poder se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, e, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder. Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber. Assim, o hospital não é apenas local de cura, “máquina de curar”, mas também instrumento de produção, acúmulo e transmissão do saber. Do mesmo modo, a escola está na origem da pedagogia, a prisão da criminalidade, o hospício da psiquiatria. E, em contrapartida, todo saber assegura o exercício de um poder. Cada vez mais se impõe a necessidade de o poder se tornar competente: vivemos cada vez mais sob o domínio do perito. Mais especificamente, a partir do século XIX todo agente do poder vai ser um agente de constituição de saber, devendo enviar, aos que lhe delegaram poder, um determinado saber correlativo do poder que exerce. É assim que se forma um saber experimental ou observacional. Mas a relação ainda é mais intrínseca: é o saber como tal que se encontra dotado estatutariamente, institucionalmente, de determinado poder. O saber funciona na sociedade dotado de poder. É como saber que tem poder.53
Esses são, grosso modo, alguns princípios da genealogia dos poderes realizada por Michel Foucault nos anos 70 em livros como Vigiar e punir e A vontade de saber.f Penso, porém, ter insistido suficientemente no caráter hipotético, específico e transformável tanto das análises arqueológicas quanto das análises genealógicas para que não se tomem essas investigações como uma palavra final, um caminho definitivo, um método universal.
E, de fato, a análise genealógica encontrou novos rumos, quando Foucault abandonou — mas seria melhor dizer complementou — essa genealogia da sociedade disciplinar, já no último capítulo de A vontade de saber. Pois, com o correr da pesquisa, ele descobriu que os dispositivos de sexualidade não são apenas do tipo disciplinar, isto é, não atuam unicamente para formar e transformar o indivíduo pelo controle do tempo, do espaço, da atividade e pela utilização de instrumentos como a vigilância e o exame. Além de constituírem uma “anátomo-política do corpo humano”, centrada no corpo considerado como máquina, eles também se realizam por uma “biopolítica da população”, pela regulação das populações, por um “biopoder” que age sobre a espécie humana, sobre o corpo como espécie, com o objetivo de assegurar sua existência. Questões como as do nascimento e da mortalidade, do nível de vida, da duração da vida estão ligadas não apenas a um poder disciplinar, mas a um tipo de poder que se exerce no âmbito da espécie, da população, com o objetivo de gerir a vida do corpo social. O que não significa que as estratégias e táticas de poder substituam o indivíduo pela população. A posição de Foucault é que, mais ou menos na mesma época, cada um foi alvo de mecanismos heterogêneos, mas complementares, que os instituíram como objeto de saber e de poder. Neste sentido, se as ciências do homem têm como condição de possibilidade política a disciplina, as “regulações da população”, os “dispositivos de segurança” estão na origem de ciências sociais como a estatística, a demografia, a economia, a geografia etc.g
Depois de A vontade de saber, o pensamento de Foucault segue duas direções principais, que podem ser definidas como uma genealogia do “governo de si” e do “governo dos outros”, para empregar os termos dos títulos de seus últimos cursos no Collège de France.
Por um lado, o estudo da gestão dos indivíduos e das populações, que desponta em A vontade de saber, mas ainda é realizado em termos de relações ou de técnicas de poder, se desenvolve a partir de 1977 como estudo do governo dos homens, da arte de governar. E talvez os documentos que melhor permitam compreender essa pesquisa em sua globalidade sejam as conferências realizadas na Universidade de Stanford, em outubro de 1979, “‘Omnes et singulatim’: para uma crítica da razão política”, onde a questão do governo considerado como um conjunto de procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens se apresenta de dois modos: como poder pastoral e como razão de Estado. E, a respeito dos dois aspectos dessa análise que ficou dispersa e inacabada, enquanto o curso do Collège de France “Segurança, território e população” (1977-78) e a conferência “A tecnologia política dos indivíduos” feita em 1882 na Universidade de Vermont, constituem uma boa introdução ao tema da razão de Estado, o curso de 1979-80 do Collège, intitulado “Do governo dos vivos”, é esclarecedor dos procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens no poder pastoral.54
O poder pastoral, inexistente entre os gregos e os romanos, é um poder de origem religiosa. É introduzido em Roma pelo cristianismo primitivo, desenvolve-se na Idade Média e principalmente no século XVI, com a Reforma e a Contra-Reforma, vigorando até a segunda metade do século XVIII. Ele se caracteriza pelo projeto de dirigir os homens, nos detalhes de sua vida, do nascimento até a morte, para obrigá-los a um comportamento capaz de levá-los à salvação. Foi com o cristianismo que nasceu a idéia de considerar os homens em geral como um rebanho obediente e alguns homens em particular como pastores, isto é, com a missão de velar pela salvação de todos, encarregandose da totalidade de suas vidas de maneira contínua e permanente, exigindo obediência incondicional. Trata-se, portanto, de um poder que não se exerce sobre um território, mas sobre uma multiplicidade de indivíduos, velando por cada um deles em particular. E Foucault se dedica a mostrar como esse poder se exerce sobre o indivíduo com o objetivo de conhecimento exaustivo de sua interioridade, da produção de sua verdade subjetiva, através das técnicas da confissão, do exame de consciência, da direção espiritual.
O outro tipo de gestão dos indivíduos e das populações estudado por Foucault nessa época foi a racionalidade de uma arte de governar voltada para o Estado, a racionalidade política moderna que se desenvolveu nos séculos XVII e XVIII, mais precisamente, o tipo de racionalidade política produzido pelo Estado moderno. Foi, portanto, nesse momento que a questão do Estado, até então não tematizada diretamente, adquiriu grande importância para a genealogia. Pois só então aparece nos estudos de Foucault o projeto de explicar a gênese do Estado a partir das práticas de governo que têm na população seu objeto, na economia seu saber mais importante e nos dispositivos de segurança seus mecanismos básicos.55 Essa emergência de uma “governamentalidade” política moderna, ou de uma racionalidade própria da arte moderna de governar, se manifesta através da doutrina da “razão de Estado”, de uma nova razão governamental no sentido de um governo racional capaz de conhecer e aumentar a potência do Estado. E nesse projeto biopolítico de gestão das forças estatais visando a sua intensificação, Foucault privilegia uma nova tecnologia de poder ou, mais precisamente, uma tecnologia governamental: a “polícia” considerada no século XVIII um conjunto de técnicas de governo próprias da administração do Estado.
Por outro lado, correlacionado ao estudo do governo de uns sobre os outros, a pesquisa genealógica de Foucault centrou-se no governo de si, apresentada em O uso dos prazeres e O cuidado de si, livros de 1984 que deixam transparecer profunda serenidade diante da proximidade da morte. O interesse de Foucault pelo governo de si já é manifestado na “Mesa redonda de 20 de março de 1978”, quando ele diz: “Meu problema é saber como os homens se governam (a si próprios e aos outros) através da produção de verdade… .”56 Mas é a partir de 1980, como atesta o curso do Collège de France “Subjetividade e verdade”, que o tema começa a adquirir importância em seus estudos. A introdução de um novo tema é assinalada claramente quando ele escreve no início do resumo desse curso do ano letivo 1980-81: “Com o título geral de ‘subjetividade e verdade’, inicia-se uma pesquisa sobre os modos instituídos do conhecimento de si e sobre a sua história…” É nesse momento que ele privilegia em suas análises as “técnicas de si” pelas quais os indivíduos se constituem como sujeito moral, na prática pagã e no cristianismo primitivo, na filosofia antiga e no ascetismo cristão.
Quando estabelece as técnicas de si como fio condutor da pesquisa sobre o governo de si, Foucault está pensando, de modo geral, em procedimentos encarregados de fixar a identidade dos indivíduos em função de determinados fins, graças ao domínio de si e ao conhecimento de si. A conferência de 1981 “Sexualidade e solidão”, cuja primeira versão é de setembro de 1980 — sendo assim um dos primeiros textos a abordar o novo tema pela correlação entre sexualidade, subjetividade e verdade —, as define como técnicas que “permitem aos indivíduos efetuar, por si próprios, um determinado número de operações sobre seus corpos, suas almas, seus pensamentos, suas condutas de modo a produzir em si próprios uma transformação, uma modificação, e atingir um determinado estado de perfeição, de felicidade, de pureza, de poder sobrenatural”57. E O uso dos prazeres, identificando técnicas de si e “artes da existência”, as define como “práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não apenas se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos critérios de estilo”58.
Assim, seguindo um caminho diferente do explorado em A vontade de saber, uma importante inflexão na análise levará Foucault a duas modificações: em primeiro lugar, a deslocar a análise do poder normalizador e da sujeição para os modos de subjetivação, em que o sujeito se constitui a partir de práticas que permitem ao indivíduo estabelecer uma determinada relação consigo; em segundo lugar, a recuar no tempo e concentrar sua atenção não só na importância que tem a sexualidade para os modernos, como também a “carne” para os cristãos e os aphrodisia para os gregos. Pois, percebendo que a genealogia do homem de desejo — objetivo principal de sua pesquisa sobre a sexualidade desde o primeiro projeto —, que pretende investigar “de que maneira os indivíduos foram levados a exercer, sobre si próprios e sobre os outros, uma hermenêutica do desejo”59, só poderá ser efetivamente realizada em contraponto com o cristianismo primitivo, o estoicismo tardio e o pensamento grego clássico, Foucault encontrará o tema que orientará sua História da sexualidade a partir de então: os modos de relação consigo.
Daí seu interesse pelo tema que teria dominado a reflexão moral, desde o Alcibíades de Platão até se transformar em uma verdadeira cultura de si com Sêneca, Plutarco, Epiteto, Marco Aurélio: a prática de si, o cuidado de si, o domínio de si, a elaboração de si, o governo de si.60 Governo de si, condição do governo do outro, que o cristianismo infletiu em direção da hermenêutica de si e da decifração de si próprio como sujeito de desejo. E, a esse respeito, uma das idéias mais interessantes dessa genealogia dos modos de subjetivação é a hipótese de que, entre o século IV a.C. até o século II de nossa era, os gregos e depois os romanos formularam uma estética da existência, no sentido de uma arte de viver entendida como cuidado de si, de uma elaboração da própria vida como uma obra de arte, da injunção de um governo da própria vida que tinha por objetivo lhe dar a forma mais bela possível.
Infelizmente essas pesquisas sobre o governo de si e o governo dos outros, que ocuparam o pensamento de Foucault nos últimos anos de sua vida, ficaram inconclusas. E, sendo a investigação de alguém que, pondo sempre em questão as evidências, escrevia para ser diferente do que era e modificar o que pensara, é impossível apontar em que direção ela seguiria.
a Sabemos que um livro sobre os “problemas de método” levantados pela história arqueológica já havia sido prometido no prefácio de As palavras e as coisas. Entretanto, é importante não esquecer que A arqueologia do saber tem origem em dois textos escritos em 1968 — Resposta a uma questão e Resposta ao Círculo de Epistemologia (D.E., I) — que são respostas a questões efetivamente formuladas a Foucault por professores e alunos da École Normale Supérieure de Paris e leitores da revista Esprit. Cf. L’Archeologie du savoir), p.27 (citarei como A.S.).
b Tratando-se desses dois livros, nos parece inteiramente fundada a distinção entre epistemologia e arqueologia a partir da diferença entre ciência e pré-ciência tal como estabelecia Michel Serres em seu texto sobre História da loucura. “Uma ciência que atingiu a maturidade é uma ciência que consumiu completamente a ruptura entre seu estado arcaico e seu estado atual. A história das ciências poderia então se reduzir à exploração do intervalo que as separa deste ponto preciso de ruptura de recorrência, no que diz respeito à explicação genética. Este ponto é facilmente determinável a partir do momento em que a linguagem utilizada neste intervalo torna incompreensível as tentativas anteriores. Além deste ponto, trata-se de arqueologia.” “Géométrie de l’incomunicable: la folie” in Hermès ou la communication, p.189. Essa idéia de que “a arqueologia descreve disciplinas que não são efetivamente ciências enquanto a epistemologia descreveria ciências que puderam se formar a partir (ou a despeito) das disciplinas existentes”, que acredito ser a de Foucault nessa época, é criticada em L’Archeologie du savoir; cf. p.232-4.
c A análise de duas investigações epistemológicas fortemente marcadas pelo projeto de Bachelard e Canguilhem — a de Louis Althusser com relação ao marxismo, tal como é realizada em Pour Marx e Lire le Capital e a de Pierre Bourdieu com relação à sociologia, tal como é realizada em Le métier de sociologue — certamente confirmaria esta hipótese.
d É verdade que esta inegável ambição de totalidade do livro — tão criticada — é compensada por uma análise detalhada de saberes específicos, que converge em um sentido preciso: determinar a posição que ocupam as ciências humanas entre os saberes da modernidade. Aí reside a grande importância do livro e é nesta direção que a arqueologia seguirá sua trajetória, confirmando, aliás, uma característica bastante clara de suas primeiras pesquisas.
e “… esta abordagem recorrente tem também e principalmente como justificação positiva o fato de que a recorrência da história da ciência é o correlato do aspecto inegavelmente teleológico do conhecimento científico.” Suzanne Bachelard, op.cit., p.41.
f Se prefiro caracterizar os estudos dessa época como uma genealogia do poder, e não do saber, é para assinalar que, embora o objetivo final das análises tenha continuado a ser a constituição dos saberes, Foucault deteve-se fundamentalmente na investigação dos poderes que lhe estão intrinsecamente ligados.
g A respeito da relação entre a disciplina e a regulação consideradas como dois pólos do poder sobre a vida, cf. V.S., p.182-91. É interessante observar que já em 1974, na conferência no Instituto de Medicina Social da Uerj intitulada “O nascimento da medicina social” (in Microfísica do poder), Foucault parte das concepções do corpo como realidade política e da medicina como estratégia biopolítica para expor a formação de três tipos de medicina social: a medicina de Estado alemã, a medicina urbana francesa e a medicina inglesa da força de trabalho.