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Aprisionamento e reforma
Devemos lembrar que o movimento para reformar as prisões, para controlar seu funcionamento, não é um fenômeno tardio. Não parece nem mesmo ter se originado de um reconhecimento de fracasso. A “reforma” prisional é mais ou menos contemporânea a própria prisão: constitui, por assim dizer, seu programa.
É irônico que a prisão tenha sido um produto de esforços coordenados de reformadores no sentido de criar um melhor sistema de punição. Se as palavras “reforma prisional” saem com tanta facilidade de nossos lábios, é porque “prisão” e “reforma” estão indissociavelmente ligadas desde o início do emprego do encarceramento como o principal meio de punir aqueles que violam as normas sociais. Como já indiquei, as origens da prisão remontam à Revolução Americana e, portanto, à resistência ao poder colonial britânico. Hoje isso parece irônico, mas o encarceramento em uma penitenciária era considerado algo humano — ou pelo menos muito mais humano do que as punições corporais e capitais herdadas da Inglaterra e de outros países europeus. Foucault abre seu estudo
Vigiar e punir: nascimento da prisão
com a descrição de uma execução em Paris no ano de 1757. O homem condenado à morte foi submetido antes a uma série de terríveis torturas ordenadas pelo tribunal. Tenazes incandescentes foram usadas para queimar a pele dos membros, e chumbo derretido, óleo fervente, resina e outras substâncias foram fundidas e derramadas sobre os ferimentos. Por fim, ele foi arrastado e esquartejado, seu corpo, queimado, e as cinzas, jogadas ao vento.
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De acordo com a
common law
inglesa, os condenados por sodomia eram enterrados vivos, e hereges também eram queimados vivos. “O crime de traição por parte de uma mulher inicialmente era punido, de acordo com a
common law
, queimando a ré viva. No ano de 1790, esse método foi abolido, e a punição passou a ser estrangulamento e cremação do cadáver.”
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Reformadores europeus e americanos se empenharam em pôr fim a punições macabras como essas, assim como a outras formas de castigo corporal, como troncos e pelourinhos, açoitamentos, marcação com ferro quente e amputações. Antes de surgir o encarceramento, essas punições eram destinadas a surtir seu efeito mais profundo não tanto na pessoa punida, mas na multidão de espectadores. A punição era, em essência, um espetáculo público. Reformadores como John Howard, na Inglaterra, e Benjamin Rush, na Pensilvânia, argumentavam que a punição — quando acontecia de maneira isolada, atrás dos muros da prisão — deixaria de ser uma retaliação e de fato reformaria aqueles que infringiam a lei.
Também é preciso salientar que a punição não deixava de ter dimensões de gênero. As mulheres eram punidas com frequência no domínio doméstico, e instrumentos de tortura eram por vezes importados por autoridades para dentro do lar. Na Inglaterra do século XVII, mulheres consideradas irascíveis e refratárias ao domínio masculino pelo marido eram punidas com uma “mordaça”, espécie de aro que envolvia a cabeça com uma corrente presa a ele e uma haste de ferro que era introduzida na boca da mulher.
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Embora o amordaçamento de mulheres estivesse muitas vezes associado a um desfile público, esse instrumento era por vezes preso a uma das paredes da casa, onde a mulher punida permanecia até que seu marido decidisse libertá-la. Menciono essas formas de punição infligidas à mulher porque, como as impostas aos escravos, raramente eram abordadas pelos reformadores do sistema prisional.
Outros modos de punição que antecederam a ascensão da prisão incluem o banimento, o trabalho forçado em galés, o degredo e o confisco das propriedades do acusado. O degredo punitivo de um grande número de pessoas da Inglaterra, por exemplo, facilitou a colonização inicial da Austrália. Condenados ingleses desterrados também se instalaram na colônia norte-americana da Geórgia. Durante o início dos anos 1700, um em cada oito condenados degredados era mulher, e o trabalho que eram obrigadas a realizar muitas vezes consistia em prostituição.
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O encarceramento não foi empregado como a principal forma de punição até o século XVIII na Europa e o século XIX nos Estados Unidos. E sistemas prisionais europeus foram instituídos na Ásia e na África como um importante componente do domínio colonial. Na Índia, por exemplo, o sistema prisional inglês foi introduzido durante a segunda metade do século XVIII, quando prisões foram estabelecidas nas regiões de Calcutá e Madras. Na Europa, o movimento contra penas capitais e outras punições corporais refletiu novas tendências intelectuais associadas ao Iluminismo, intervenções ativistas de reformadores protestantes e transformações estruturais associadas à ascensão do capitalismo industrial. Em Milão, em 1764, Cesare Beccaria publicou seu
Dos delitos e das penas
,
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fortemente influenciado pelas noções de igualdade promovidas por filósofos — especialmente Voltaire, Rousseau e Montesquieu. Beccaria argumentava que a punição jamais deveria ser uma questão privada, tampouco arbitrariamente violenta; em vez disso, deveria ser pública, rápida e tão leniente quanto possível. Revelava a contradição do que era na época uma característica distintiva do aprisionamento: o fato de ele, de maneira geral, ser imposto antes de a culpa ou a inocência do réu ser decidida.
O encarceramento, entretanto, acabou por se tornar a pena em si, fazendo surgir uma distinção entre o aprisionamento como punição e a detenção antes do julgamento ou até a aplicação da pena. O processo por meio do qual o encarceramento se tornou a maneira primária de punição imposta pelo Estado estava intimamente relacionado à ascensão do capitalismo e ao surgimento de um novo conjunto de condições ideológicas. Essas novas condições refletiram a ascensão da burguesia como a classe social cujos interesses e aspirações patrocinaram novas ideias científicas, filosóficas, culturais e populares. É, portanto, importante compreender que a prisão como a conhecemos não surgiu no palco histórico como a forma suprema e definitiva de punição. Foi simplesmente — embora não devamos subestimar a complexidade desse processo — o que fazia mais sentido em determinado momento da história. Deveríamos, portanto, nos perguntar se um sistema que estava intimamente relacionado com um conjunto específico de circunstâncias que predominaram durante os séculos XVIII e XIX pode continuar reinando absoluto no século XXI.
É importante, nesse ponto de nossa análise, reconhecer a mudança radical na percepção social do indivíduo que surgiu nas ideias daquela época. Com a ascensão da burguesia, o indivíduo passou a ser visto como titular de direitos e liberdades formais. A noção dos direitos e das liberdades inalienáveis do indivíduo foi imortalizada nas revoluções Francesa e Americana. Os lemas “
Liberté, Egalité, Fraternité
”, da Revolução Francesa, e “Consideramos estas verdades evidentes em si mesmas: todos os homens são criados iguais...”, da Revolução Americana, eram ideias novas e radicais, ainda que não se estendessem às mulheres, aos trabalhadores, aos africanos e aos índios. Antes da aceitação do caráter sagrado dos direitos individuais, o encarceramento não poderia ser concebido como punição. Se o indivíduo não era reconhecido como detentor de direitos e liberdades inalienáveis, então a alienação desses direitos e liberdades por meio do isolamento da sociedade em um espaço governado de forma tirânica pelo Estado não faria sentido. O banimento para além dos limites geográficos da cidade poderia fazer sentido, mas não a alteração do status legal do indivíduo por meio da imposição de uma pena de encarceramento.
Além disso, essa pena, que é sempre computada em termos de tempo, está relacionada a uma quantificação abstrata, evocando a ascensão da ciência e ao que com frequência nos referimos como a Era da Razão. Devemos ter em mente que esse foi precisamente o período histórico durante o qual o valor do trabalho começou a ser calculado em termos de tempo e, portanto, compensado de outra maneira quantificável: com dinheiro. A computabilidade da punição estatal em termos de tempo — dias, meses, anos — ecoa o papel da hora de trabalho como base para computar o valor das
commodities
capitalistas. Teóricos marxistas da punição observaram que o período histórico durante o qual a
commodity
surgiu foi precisamente a época em que as sentenças de prisão emergiram como a forma primária de punição.
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Hoje, o crescente movimento social de contestação da supremacia do capital global é uma corrente que desafia diretamente o domínio do planeta — de suas populações humanas, animais e vegetais, assim como de seus recursos naturais — por corporações que estão especialmente interessadas no crescimento da produção e da circulação de
commodities
cada vez mais rentáveis. É um desafio à supremacia da
commodity
, uma crescente resistência à tendência contemporânea de transformar cada aspecto da existência planetária em um produto. A questão que precisamos considerar é se essa nova oposição à globalização capitalista também deve incorporar a oposição à prisão.
Até agora, usei majoritariamente uma linguagem neutra em termos de gênero para descrever o desenvolvimento histórico da prisão e seus reformadores. Mas os condenados punidos com o aprisionamento em sistemas penitenciários emergentes eram sobretudo homens. Isso refletia a estrutura profundamente influenciada pelo gênero dos direitos econômicos, políticos e legais. Como o status público de indivíduos detentores de direitos era amplamente negado às mulheres, elas não podiam ser punidas com a privação desses direitos por meio do encarceramento.
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Isso era especialmente verdadeiro no que dizia respeito às mulheres casadas, que não tinham direitos perante a lei. De acordo com a
common law
inglesa, o casamento resultava em um estado de “morte civil”, simbolizado pela adoção do sobrenome do marido pela mulher. Consequentemente, ela tendia a ser punida por se rebelar contra seus deveres domésticos em vez de por falhar em suas escassas responsabilidades públicas. O fato de as mulheres brancas serem relegadas à economia doméstica impediu que desempenhassem um papel significativo no reino emergente das
commodities
. Isso era ainda mais verdadeiro quando se considerava que o trabalho assalariado era tipicamente destinado a indivíduos brancos do sexo masculino. Não é fortuito que as punições corporais domésticas aplicadas a mulheres tenham sobrevivido por muito tempo depois de esses modos de punição terem se tornado obsoletos para os homens (brancos). A persistência da violência doméstica é uma evidência dolorosa desses modos históricos de punição por gênero.
Alguns estudiosos argumentaram que a palavra “penitenciária” pode ter sido usada primeiro em conexão com projetos elaborados na Inglaterra em 1758 para abrigar “prostitutas arrependidas”, ou “penitentes”. Em 1777, John Howard, o principal protestante defensor da reforma penal na Inglaterra, publicou
The State of the Prisons
[O estado das prisões],
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no qual conceituava o aprisionamento como uma ocasião de autorreflexão religiosa e autorreforma. Entre 1787 e 1791, o filósofo utilitarista Jeremy Bentham publicou suas cartas sobre um modelo de prisão que ele chamou de panóptico.
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Bentham afirmava que os criminosos só poderiam internalizar hábitos de trabalho produtivos se estivessem sob constante supervisão. De acordo com seu modelo de panóptico, os prisioneiros deveriam ficar em celas individuais em andares circulares, todas voltadas para uma torre de guarda de vários níveis. Por meio de persianas e de um complicado jogo de luz e sombra, os prisioneiros — que não poderiam ver uns aos outros — não conseguiriam enxergar o carcereiro. De seu lugar privilegiado, por outro lado, o carcereiro seria capaz de ver todos os prisioneiros. Contudo — e esse era o aspecto mais importante do gigantesco panóptico de Bentham —, como os prisioneiros nunca seriam capazes de determinar para onde o carcereiro estava olhando, todos se sentiriam compelidos a agir, ou seja, a trabalhar como se estivessem sendo vigiados o tempo todo.
Se combinarmos a ênfase dada por Howard à autorreflexão disciplinada com as ideias de Bentham no que diz respeito à tecnologia de internalização projetada para introduzir a vigilância e a disciplina na esfera de ação de cada prisioneiro, poderemos começar a enxergar como esse conceito da prisão tinha implicações abrangentes. As condições de possibilidade dessa nova forma de punição estavam fortemente ancoradas em uma época histórica durante a qual a classe trabalhadora precisava ser constituída como um exército de indivíduos autodisciplinados capazes de realizar o trabalho industrial necessário para o sistema capitalista em desenvolvimento.
As ideias de John Howard foram incorporadas no Penitentiary Act de 1799, que abriu o caminho para a prisão moderna. Enquanto as ideias de Jeremy Bentham influenciaram a criação da primeira penitenciária nacional da Inglaterra, localizada em Millbank e inaugurada em 1816, a primeira tentativa completa de criar uma prisão panóptica foi nos Estados Unidos. A penitenciária Western State, em Pittsburgh, baseada em um modelo arquitetônico revisado do panóptico, foi inaugurada em 1826. A penitenciária em si, no entanto, já havia surgido nos Estados Unidos. A cadeia de Walnut Street, na Pensilvânia, abrigou a primeira penitenciária estadual do país quando uma parte das instalações foi convertida, em 1790, de uma unidade de detenção em uma instituição para abrigar condenados cujas sentenças de prisão se tornaram ao mesmo tempo punição e oportunidade de penitência e reforma.
O regime austero da Walnut Street — isolamento completo em celas individuais onde os prisioneiros viviam, comiam, trabalhavam, liam a Bíblia (caso fossem alfabetizados) e supostamente refletiam e se arrependiam — ficou conhecido como sistema pensilvânico. Esse regime constituiu um dos dois principais modelos de encarceramento da época. Embora o outro modelo, desenvolvido em Auburn, Nova York, fosse visto como um rival, as bases filosóficas de ambos não diferiam muito. O modelo pensilvânico, que acabou por se cristalizar na penitenciária de Eastern State, em Cherry Hill — cujos planos de construção foram aprovados em 1821 —, enfatizava o isolamento completo, o silêncio e a solidão, enquanto o modelo auburniano preconizava celas individuais, mas trabalho em grupo. Esse modelo de trabalho prisional, chamado de congregado, deveria ser realizado no mais completo silêncio. Os prisioneiros podiam permanecer juntos enquanto trabalhavam, mas com a condição de não se comunicarem. Por causa de suas práticas de trabalho mais eficientes, o modelo auburniano acabou se tornando dominante, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa.
Por que os reformadores dos séculos XVIII e XIX se empenhariam tanto em criar condições de punição baseadas no confinamento solitário? Hoje, exceto pela pena de morte, o confinamento solitário — assim como a tortura, ou como uma forma de tortura — é considerado a pior forma de punição imaginável. Naquela época, no entanto, acreditava-se que tinha um efeito emancipador. O corpo era colocado em condições de segregação e solidão a fim de permitir que a alma florescesse. Não é acidental que a maioria dos reformadores da época fosse profundamente religiosa e, portanto, visse a arquitetura e os regimes da penitenciária como algo que emulava a arquitetura e o regime da vida monástica. Ainda assim, observadores da nova penitenciária enxergaram, desde cedo, o verdadeiro potencial para a insanidade no confinamento solitário. Em uma passagem muito citada de suas
American Notes
, Charles Dickens iniciou uma descrição da visita que fez em 1842 à Eastern State com a observação de que “o sistema aqui é o rígido, severo e desesperador confinamento solitário. Considero isso, por seus efeitos, cruel e errado”.
Em suas intenções, estou bastante convencido de que ele é bom, humano e destinado à regeneração; mas estou persuadido de que aqueles que elaboraram esse sistema de Disciplina Prisional, e os cavalheiros benevolentes que o colocam em prática, não sabem o que estão fazendo. Acredito que pouquíssimos homens são capazes de estimar a imensa quantidade de tortura e sofrimento que essa terrível punição, prolongada por anos, inflige a quem é vítima dela (...). Estou cada vez mais convencido de que há um martírio profundo e pavoroso nisso que ninguém além das próprias vítimas pode imaginar, e que nenhum homem tem o direito de infligir a seus semelhantes. Considero essa manipulação lenta e diária dos mistérios da mente infinitamente pior do que qualquer tortura imposta ao corpo (...) porque suas feridas não ficam na superfície, e arranca gritos que os ouvidos humanos não são capazes de ouvir; portanto eu a denuncio, como uma punição secreta que a humanidade adormecida não despertou para deter.
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Diferente de outros europeus, como Alexis de Tocqueville e Gustave de Beaumont, que acreditavam que esse tipo de punição resultaria em uma renovação moral e dessa forma transformaria os detentos em cidadãos melhores,
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na opinião de Dickens “[a]queles que foram submetidos a essa punição SEM DÚVIDA voltarão à sociedade moralmente insalubres e doentes”.
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Essa primeira crítica à penitenciária e a seu regime de encarceramento solitário abala a ideia de que o aprisionamento é a forma mais adequada de punição para uma sociedade democrática.
A atual construção e expansão de prisões federais e estaduais de segurança supermáxima, cujo suposto propósito seria lidar com problemas disciplinares dentro do sistema penal, se baseia na concepção histórica da penitenciária, considerada na época a forma mais progressista de punição. Hoje, afro-americanos e latinos estão amplamente sobrerrepresentados nessas prisões e unidades de controle de segurança supermáxima, a primeira das quais surgiu quando as autoridades correcionais federais começaram a mandar prisioneiros considerados “perigosos” para a prisão federal de Marion, no estado de Illinois. Em 1983, toda a prisão estava “em isolamento”, o que significava que os prisioneiros ficavam confinados em suas celas 23 horas por dia. Esse isolamento se tornou permanente, fornecendo assim o modelo geral de unidade de controle e prisão de segurança supermáxima.
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Hoje, há aproximadamente sessenta prisões federais e estaduais de segurança supermáxima localizadas em 36 estados, e muitas outras unidades de detenção de segurança supermáxima em praticamente todos os estados do país.
Uma descrição das prisões de segurança supermáxima em um relatório publicado em 1997 pela Human Rights Watch parece assustadoramente semelhante à descrição de Dickens da penitenciária Eastern State. A diferença, porém, é que todas as referências à reabilitação individual desapareceram.
Os detentos em unidades de segurança supermáxima geralmente são mantidos em isolamento em uma única cela, no que se costuma chamar de confinamento solitário. (...) As atividades conjuntas com outros prisioneiros em geral são proibidas; um detento não consegue nem ao menos ver os outros prisioneiros de sua cela; a comunicação com outros detentos é proibida ou difícil (consistindo, por exemplo, em gritar de uma cela para outra); os privilégios de visitas e ligações telefônicas são limitados.
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A nova geração de unidades de segurança supermáxima também conta com tecnologia de última geração para monitorar e controlar o comportamento e os movimentos dos prisioneiros, utilizando, por exemplo, monitores de vídeo e portas acionadas por controle remoto.
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“Essas prisões representam a aplicação de uma moderna e sofisticada tecnologia inteiramente dedicada à tarefa de controle social, e isolam, regulam e monitoram com mais eficiência do que qualquer coisa que as tenha precedido.”
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Destaquei as semelhanças entre as primeiras penitenciárias dos Estados Unidos — com suas aspirações de reabilitação individual — e as repressivas prisões de segurança supermáxima de nossa época como uma maneira de lembrar a mutabilidade da história. O que já foi considerado progressista e até mesmo revolucionário representa hoje a união da superioridade tecnológica com o atraso político. Ninguém — nem mesmo os mais ardentes defensores das prisões de segurança supermáxima — tentaria argumentar hoje que a segregação absoluta, incluindo a privação sensorial, é reparadora e regenerante. A justificativa predominante para a prisão de segurança supermáxima é que os horrores que ela cria são o complemento perfeito para as personalidades monstruosas consideradas o que há de pior pelo sistema prisional. Em outras palavras, não há a falsa aparência de que direitos são respeitados, não há preocupação com o indivíduo, não há a noção de que os homens e as mulheres encarcerados em prisões de segurança supermáxima merecem qualquer coisa que se aproxime de respeito e conforto. De acordo com um relatório publicado em 1999 pelo National Institute of Corrections,
de modo geral, a constitucionalidade desses programas [de segurança supermáxima] permanece pouco clara. Conforme números maiores de presos com maior diversidade de características, origens e comportamentos são encarcerados nessas unidades, a probabilidade de questionamento legal aumenta.
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Nos séculos XVIII e XIX, a solidão absoluta e o monitoramento rigoroso de cada ação do prisioneiro eram vistos como estratégias para transformar hábitos e moral. Ou seja, a ideia de que a prisão deveria ser a principal forma de punição refletia uma crença no potencial da humanidade branca para o progresso, não apenas na ciência e na indústria, mas também como membros individuais da sociedade. Os reformadores do sistema prisional espelhavam os pressupostos iluministas de progresso em todos os aspectos da sociedade humana — ou, para ser mais precisa, da sociedade branca ocidental. Em seu estudo de 1987
Imagining the Penitentiary: Fiction and the Architecture of Mind in Eighteenth-Century England
[Imaginando a penitenciária: ficção e a arquitetura da mente na Inglaterra do século XVIII], John Bender propõe o intrigante argumento de que o gênero literário emergente do romance promovia um discurso de progresso e transformação individual que estimulava a mudança das atitudes em relação à punição.
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Essas atitudes, sugere ele, anunciaram a concepção e a construção de prisões penitenciárias no fim do século XVIII como uma reforma condizente com as capacidades daqueles considerados humanos.
Os reformadores que defendiam a imposição da arquitetura e dos regimes penitenciários à estrutura da prisão então existente direcionavam suas críticas às prisões que eram usadas principalmente para a detenção preventiva ou como punição alternativa para aqueles que não podiam pagar as multas exigidas pelos tribunais. John Howard, o mais conhecido desses reformadores, foi o que poderíamos chamar hoje de ativista prisional. Em 1773, aos 47 anos, ele iniciou uma série de visitas que o levaram a “todas as instituições para os pobres na Europa (...) [uma campanha] que lhe custou sua fortuna e, por fim, sua vida em uma batalha do exército russo contra o tifo em Cherson, em 1791”.
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Ao fim de sua primeira viagem ao exterior, ele concorreu com sucesso ao cargo de xerife em Bedfordshire. Como xerife, investigou as prisões sob sua jurisdição e depois “partiu para visitar todas as prisões da Inglaterra e do País de Gales a fim de documentar os males que já havia observado em Bedford”.
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Bender argumenta que o romance ajudou a facilitar as campanhas para transformar as antigas prisões — que eram imundas e caóticas, e nas quais prosperava o suborno de guardas — em penitenciárias de reabilitação bem organizadas. Ele mostra que romances como
Moll Flanders
e
Robinson Crusoé
enfatizavam “o poder do confinamento para remodelar a personalidade”
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e popularizaram algumas das ideias que levaram os reformadores a agir. Como Bender observa, os reformadores do século XVIII criticavam as antigas prisões por seu caos, sua falta de organização e classificação, pela livre circulação de álcool, pela prostituição e pela incidência de enfermidades e doenças contagiosas.
Os reformadores, sobretudo protestantes, entre os quais os quacres eram especialmente dominantes, baseavam suas ideias em grande parte em sistemas de crenças religiosos. Embora John Howard não fosse um quacre — ele era um protestante independente —, mesmo assim
foi atraído pelo ascetismo quacre e adotou a vestimenta “de um simples Amigo”. Seu tipo particular de devoção lembrava fortemente as tradições quacre de oração silenciosa, introspecção “sofredora” e fé no poder de iluminação da luz divina. Os quacres, por sua vez, estavam destinados a ser atraídos pela ideia do encarceramento como um purgatório, como um isolamento forçado das distrações dos sentidos em uma confrontação silenciosa e solitária com o eu. Howard concebia o processo de reforma de um condenado em termos semelhantes ao despertar espiritual de um crente em uma reunião quacre.
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No entanto, de acordo com Michael Ignatieff, as contribuições de Howard não residiam tanto na religiosidade de seus esforços reformistas.
A originalidade da denúncia de Howard reside em seu caráter “científico”, não em seu caráter moral. Eleito membro da Royal Society em 1756 e autor de vários artigos científicos sobre variações climáticas em Bedfordshire, Howard foi um dos primeiros filantropos a tentar fazer uma descrição estatística sistematizada de um problema social.
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Da mesma forma, a análise de Bender sobre a relação entre o romance e a penitenciária enfatiza como os fundamentos filosóficos das campanhas do reformador ecoavam o materialismo e o utilitarismo do Iluminismo inglês. A campanha para reformar as prisões era um projeto destinado a impor ordem, classificação, limpeza, bons hábitos de trabalho e autoconsciência. Ele argumenta que as pessoas detidas nas antigas prisões não enfrentavam restrições severas — às vezes gozavam até mesmo da liberdade de ir e vir. Não eram obrigados a trabalhar e, lançando mão de seus próprios recursos, podiam comer e beber o que desejassem. Até o sexo por vezes estava disponível, uma vez que ocasionalmente prostitutas tinham permissão para entrar temporariamente nas prisões. Howard e outros reformadores demandavam a imposição de regras rígidas que “reforçassem a solidão e a penitência, a limpeza e o trabalho”.
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“As novas penitenciárias”, de acordo com Bender, “suplantando tanto as antigas prisões como as casas de correção, buscavam explicitamente (...) três objetivos: manutenção da ordem em uma força de trabalho em sua maioria urbana, salvação da alma e racionalização da personalidade”.
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Ele argumentava que era precisamente isso que o romance conseguia por meio da narrativa. Ordenava e classificava a vida social, representava os indivíduos como seres conscientes de seu entorno, autoconscientes e capazes de se moldar. Bender, portanto, vê uma semelhança entre dois grandes acontecimentos do século XVIII — a ascensão do romance na esfera cultural e o surgimento da penitenciária na esfera sociojurídica. Se o romance como forma de expressão cultural ajudou a dar origem à penitenciária, então os reformadores da prisão devem ter sido influenciados pelas ideias geradas por e através do romance do século XVIII.
A literatura continuou a desempenhar um papel em campanhas relacionadas à prisão. Durante o século XX, os escritos do cárcere, em particular, experimentaram ondas periódicas de popularidade. O reconhecimento público da escrita do cárcere nos Estados Unidos coincidiu historicamente com a influência de movimentos sociais que exigiam a reforma e/ou a abolição das prisões. O livro de Robert Burns
I Am a Fugitive from a Georgia Chain Gang!
[Eu sou um fugitivo de um grupo de presos acorrentados da Geórgia!]
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e o filme
O Fugitivo
de 1932 baseado nele desempenharam um papel central na campanha para abolir os grupos de prisioneiros acorrentados obrigados a realizar trabalhos forçados. Durante a década de 1970, que foi marcada por uma intensa organização dentro, fora e além dos muros da prisão, diversas obras escritas por prisioneiros se seguiram à publicação, em 1970, de
Soledad Brother
[Irmão Soledad],
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de George Jackson, à antologia que coeditei com Bettina Aptheker
If They Come in the Morning
[Se eles vierem pela manhã].
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Embora muitos escritores do cárcere de então tivessem descoberto o poder emancipatório da escrita por conta própria, recorrendo à educação que receberam antes da prisão ou aos esforços obstinados para se autoeducar, outros se dedicaram à escrita como resultado direto da expansão dos programas educacionais nas prisões nessa época.
Mumia Abu-Jamal, que questionou o desmonte contemporâneo dos programas educacionais nas prisões, pergunta em
Live from Death Row
[Ao vivo do corredor da morte],
Que interesse social é servido por prisioneiros que permanecem analfabetos? Que benefícios sociais há na ignorância? Como as pessoas poderão se regenerar enquanto estiverem presas se sua educação for proibida por lei? Quem lucra (além do próprio estabelecimento prisional) com presos estúpidos?
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Jornalista antes de ser preso, em 1982, acusado de matar o policial do estado da Filadélfia Daniel Faulkner, Abu-Jamal tem escrito com regularidade artigos sobre a pena de morte, concentrando-se especialmente em suas desproporções raciais e de classe. Suas ideias ajudaram a vincular críticas à pena de morte aos questionamentos mais gerais direcionados ao sistema prisional norte-americano em expansão e são particularmente úteis para os ativistas que buscam associar a abolição da pena de morte à abolição das prisões. Seus escritos do cárcere foram publicados em periódicos acadêmicos e populares (como
The Nation
e
Yale Law Journal
), bem como em três coletâneas:
Live from Death Row
,
Death Blossoms
[A morte floresce]
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e
All Things Censored
[Todas as coisas censuradas].
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Abu-Jamal e muitos outros escritores do cárcere criticaram veementemente a proibição da concessão de subsídios do programa Pell Grants
*
a prisioneiros, promulgada no decreto criminal de 1994,
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como um indicador do padrão contemporâneo de desmonte de programas educacionais nas prisões. Com o fim do subsídio para os cursos de escrita criativa para prisioneiros, praticamente todas as revistas literárias que publicavam textos de detentos entraram em colapso. Das dezenas de revistas e jornais produzidos dentro dos muros das prisões, apenas o
Angolite
, da penitenciária do estado de Louisiana, conhecida como Angola, e o
Prison Legal News
, da Washington State Prison, subsistem. Isso significa que precisamente no momento de consolidar uma cultura de escrita significativa por trás das grades, estratégias repressivas estão sendo empregadas no sentido de impedir os prisioneiros de se educar.
Se a publicação da autobiografia de Malcolm X marcou o desenvolvimento da literatura carcerária e um momento muito promissor para os prisioneiros que tentam fazer da educação uma das principais dimensões de seu tempo atrás das grades,
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as práticas prisionais contemporâneas estão sistematicamente esmagando essas esperanças. Na década de 1950, a educação de Malcolm na prisão foi um grande exemplo da capacidade de um prisioneiro de fazer de seu encarceramento uma experiência transformadora. Sem meios disponíveis para organizar sua busca por conhecimento, ele começou a ler um dicionário, copiando cada palavra à mão. Quando conseguiu mergulhar na leitura, observou: “Meses se passaram sem que eu nem sequer pensasse sobre estar preso. Na verdade, até aquele momento, eu nunca tinha sido tão verdadeiramente livre na vida.”
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Na época, de acordo com Malcolm, considerava-se que prisioneiros que demonstravam um interesse incomum pela leitura tinham embarcado em uma jornada de autorreabilitação, e com frequência eles tinham direito a privilégios especiais — como pegar emprestado mais do que o número máximo de livros permitido. Ainda assim, a fim de dar continuidade a sua autoeducação, Malcolm teve que lutar contra o regime prisional — ele muitas vezes lia no chão da cela, muito depois de as luzes terem sido apagadas, valendo-se da luminosidade que vinha do corredor e tomando o cuidado de voltar para a cama a cada hora durante os dois minutos em que os guardas passavam diante de sua cela.
A extinção contemporânea da escrita e de outros programas educacionais na prisão são indicadores da atual indiferença oficial em relação às estratégias de reabilitação, particularmente aquelas que incentivam os prisioneiros a adquirir autonomia de pensamento. O documentário
The Last Graduation
[A última formatura] retrata o papel que os presos desempenharam ao estabelecer um programa de faculdade em quatro anos na prisão de Greenhaven, em Nova York, e 22 anos depois, a decisão oficial de extingui-lo. De acordo com Eddie Ellis, que passou 25 anos na prisão e atualmente é um conhecido líder do movimento antiprisional, “como resultado do que aconteceu em Attica, programas universitários adentraram as prisões”.
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Depois da rebelião de prisioneiros na prisão de Attica em 1971 e do massacre patrocinado pelo governo, a opinião pública começou a se mostrar favorável à reforma prisional. Na ocasião, 43 prisioneiros e 11 guardas e civis foram mortos pela Guarda Nacional, que tinha recebido ordens do governador Nelson Rockefeller de retomar o controle da prisão. Os líderes da rebelião no presídio tinham sido muito específicos em suas exigências. Em suas “exigências práticas”, expressaram preocupação em relação a dieta, melhoria na qualidade dos guardas, programas de reabilitação mais realistas e melhores programas educacionais. Eles também demandavam liberdade religiosa, liberdade de se engajar em atividades políticas e o fim da censura — todas coisas que consideravam indispensáveis a suas necessidades educacionais. Como Eddie Ellis observa em
The Last Graduation
:
Os prisioneiros reconheceram desde muito cedo o fato de que precisavam ser mais bem-instruídos, de que, quanto mais instrução tivessem, mais preparados estariam para lidar consigo mesmos e com seus problemas, com os problemas das prisões e os problemas das comunidades de onde a maioria tinha vindo.
Lateef Islam, outro ex-condenado que aparece no documentário, disse: “Nós tínhamos aulas antes de a faculdade chegar. Ensinávamos uns aos outros, às vezes sob risco de levar uma surra.”
Depois da Rebelião de Attica, mais de quinhentos prisioneiros foram transferidos para Greenhaven, incluindo alguns dos líderes que continuaram a pressionar por programas educacionais. Como resultado direto de suas demandas, o Marist College, uma faculdade do estado de Nova York perto de Greenhaven, começou a oferecer cursos de nível universitário em 1973 e, por fim, estabeleceu a infraestrutura necessária para um programa de cursos universitários de quatro anos no local. O programa prosperou por 22 anos. Alguns dos muitos prisioneiros que obtiveram seus diplomas em Greenhaven continuaram os estudos depois de sair da prisão. Como o documentário demonstra de maneira contundente, o programa produziu homens dedicados que deixaram a prisão e ofereceram o conhecimento e as habilidades recém-adquiridos a suas comunidades do lado de fora.
Em 1994, em consonância com o padrão geral de criar mais prisões e mais repressão dentro das prisões, o Congresso se ocupou da questão da revogação do financiamento universitário para presos. O debate foi concluído com a decisão de acrescentar uma emenda à lei criminal de 1994 que eliminou os Pell Grants para prisioneiros, retirando assim o financiamento de todos os programas de ensino superior. Depois de 22 anos, o Marist College foi obrigado a encerrar seu programa na prisão de Greenhaven. O documentário, portanto, gira em torno da última cerimônia de graduação, em 15 de julho de 1995, e do processo comovente de remover os livros que, de muitas maneiras, simbolizavam possibilidades de liberdade. Ou, como disse um dos professores maristas, “para eles, os livros estão repletos de ouro”. Um prisioneiro que durante muitos anos tinha trabalhado como funcionário da faculdade refletiu com tristeza, enquanto os livros eram levados embora, que não havia mais nada para fazer na prisão — exceto talvez musculação. “Mas”, perguntou ele, “de que serve esculpir o corpo se você não pode esculpir a mente?” Ironicamente, não muito tempo depois de os programas educacionais serem extintos, pesos e equipamentos de musculação também foram removidos da maioria das prisões nos Estados Unidos.