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Como o gênero estrutura o sistema prisional
Já me disseram que nunca vou sair da prisão se continuar a lutar contra o sistema. Minha resposta é que é preciso estar vivo para sair da prisão, e nosso padrão atual de assistência médica equivale a uma sentença de morte. Portanto, não tenho escolha a não ser continuar. (...) As condições dentro da instituição evocam continuamente memórias de violência e opressão, muitas vezes com resultados devastadores. Ao contrário de outras mulheres encarceradas que revelaram suas impressões sobre a prisão, não me sinto “mais segura” aqui porque “o abuso parou”. Não parou
. Ele mudou de forma e assumiu um ritmo diferente, mas continua tão insidioso e disseminado na prisão como sempre foi no mundo que conheço fora desses muros. O que chegou ao fim foi minha ignorância em relação aos fatos relativos ao abuso — e minha disposição de tolerá-lo em silêncio.
Nos últimos cinco anos, o sistema prisional recebeu muito mais atenção da mídia do que em qualquer momento desde o período que se sucedeu à Rebelião de Attica em 1971. No entanto, com algumas exceções importantes, as mulheres foram deixadas de fora da discussão pública sobre a expansão do sistema prisional dos Estados Unidos. Não estou sugerindo que o simples fato de incluir as mulheres nas discussões existentes sobre as cadeias e prisões vá aprofundar nossas análises sobre a punição estatal e levar adiante o projeto de abolição das prisões. Abordar questões específicas das prisões femininas é de vital importância, mas é igualmente importante mudar a forma como pensamos sobre o sistema prisional como um todo. Decerto as práticas nas penitenciárias femininas são marcadas pela questão do gênero, mas o mesmo acontece com as práticas nas prisões masculinas. Acreditar que as instituições para homens constituem a norma e as instituições para mulheres são marginais é, em certo sentido, tomar parte na normalização das prisões que uma abordagem abolicionista procura contestar. Assim, o título deste capítulo não é “Mulheres e o sistema prisional”, mas sim “Como o gênero estrutura o sistema prisional”. Da mesma maneira, estudiosos e ativistas envolvidos em projetos feministas não devem considerar a estrutura da punição estatal algo marginal a seu trabalho. Pesquisas e estratégias de organização progressistas devem reconhecer que o caráter profundamente influenciado pelo gênero da punição ao mesmo tempo reflete e consolida ainda mais a estrutura de gênero da sociedade como um todo.
Mulheres prisioneiras produziram um pequeno mas notável corpo de literatura que lançou luz sobre aspectos importantes da organização da punição que, de outra forma, permaneceriam desconhecidos. As memórias de Assata Shakur,
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por exemplo, revelam as perigosas interseções entre racismo, dominação masculina e estratégias estatais de repressão política. Em 1977, ela foi condenada por assassinato e agressão em decorrência de seu envolvimento em um incidente ocorrido em 1973 que deixou um policial do estado de Nova Jersey morto e outro ferido. Ela e seu companheiro, Zayd Shakur, que foi morto durante a troca de tiros, foram alvo do que agora denominamos perfil racial e foram parados por policiais sob o pretexto de que a lanterna traseira do carro estava queimada. Na época, Assata, então conhecida como Joanne Chesimard, estava na clandestinidade e tinha sido batizada pela polícia e pela mídia de “Alma do Exército Negro de Libertação”. Quando de sua condenação, em 1977, ela já havia sido absolvida ou tivera acusações arquivadas em outros seis casos — com base nos quais fora declarada foragida. Seu advogado, Lennox Hinds, observou que, como ficou provado que Assata não tinha manuseado a arma com a qual os policiais foram baleados, sua mera presença no automóvel, no contexto da demonização por parte da mídia à qual ela foi submetida, constituiu a base de sua condenação. No prefácio da autobiografia de Shakur, Hinds escreve:
Na história de Nova Jersey, nenhuma mulher detida à espera de julgamento ou prisioneira foi tratada como ela, continuamente confinada em uma prisão masculina, com suas funções mais íntimas sob vigilância 24 horas por dia, sem amparo intelectual, atendimento médico adequado e exercícios físicos e sem a companhia de outras mulheres durante todos os anos em que esteve sob custódia.
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Não há dúvida de que o status de Assata Shakur como prisioneira política negra acusada de matar um policial fez com que ela fosse alvo de um tratamento incomumente cruel por parte das autoridades. No entanto, seu próprio relato enfatiza o quanto suas experiências individuais refletiam as de outras mulheres presas, em especial as negras e porto-riquenhas. Sua descrição da revista íntima, que se concentra no exame interno das cavidades do corpo, é especialmente reveladora:
Joan Bird e Afeni Shakur [membros do Partido dos Panteras Negras] tinham me contado a respeito depois que foram libertadas mediante pagamento de fiança no julgamento Panther 21. Quando terminaram de me contar, fiquei horrorizada.
“Vocês querem dizer que eles realmente colocaram as mãos dentro de vocês, para revistá-las?”, perguntei.
“Ahã”, responderam elas. Todas as mulheres que já estiveram na rocha,
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ou na antiga casa de detenção, podem lhe contar a respeito. As mulheres chamam de “ser vasculhada” ou, mais vulgarmente, “ser fodida com o dedo”.
“O que acontece se você se recusar?”, perguntei a Afeni.
“Eles trancam você na solitária e não deixam que saia até concordar em ser revistada internamente.”
Pensei em recusar, mas definitivamente não queria ir para a solitária. Já havia ficado tempo suficiente em confinamento solitário. A “revista interna” foi tão humilhante e nojenta quanto parecia ser. Você se senta na beirada de uma mesa, e a enfermeira abre suas pernas, enfia um dedo em sua vagina e vasculha lá dentro. Ela usa uma luva de plástico. Algumas tentam colocar um dedo em sua vagina e outro em seu reto ao mesmo tempo.
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Tenho citado amplamente esta passagem porque ela expõe uma rotina diária nas prisões femininas que beira a agressão sexual ao mesmo tempo que é considerada algo natural. Tendo estado presa na Casa de Detenção Feminina à qual Joan Bird e Afeni Shakur se referem, posso afirmar pessoalmente a veracidade de suas asserções. Mais de trinta anos depois de ambas terem sido libertadas e depois que eu mesma passei vários meses na Casa de Detenção, essa questão da revista íntima ainda está na linha de frente do ativismo relacionado às prisões femininas. Em 2001, a Sisters Inside, uma organização australiana de apoio a mulheres prisioneiras, lançou uma campanha nacional contra a revista íntima cujo slogan era “Parem com o assédio sexual estatal”. A autobiografia de Assata Shakur traz diversas revelações sobre o gênero na punição estatal e revela como as prisões femininas mantêm práticas patriarcais opressivas consideradas ultrapassadas no “mundo livre”. Ela passou seis anos em várias cadeias e prisões antes de fugir, em 1979, e receber asilo político em Cuba, em 1984, onde vive até hoje.
Elizabeth Gurley Flynn escreveu um relato anterior sobre a vida em uma prisão feminina:
The Alderson Story: My Life as a Political Prisoner
[A história de Alderson: minha vida como prisioneira política].
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No auge do macartismo, Flynn, uma ativista do movimento operário e líder comunista, foi condenada sob o Smith Act e serviu dois anos no Reformatório Federal para Mulheres de Alderson, de 1955 a 1957. Seguindo o modelo dominante de prisões femininas durante o período, os regimes de Alderson se baseavam no pressuposto de que mulheres “criminosas” podiam se regenerar por meio da assimilação de comportamentos femininos adequados — isto é, tornando-se especialistas na vida doméstica —, especialmente cozinhar, limpar e costurar. Obviamente, um treinamento destinado a produzir esposas e mães melhores dentre as mulheres brancas de classe média produzia empregadas domésticas qualificadas dentre as mulheres negras e pobres. O livro de Flynn fornece descrições vívidas desse cotidiano. Sua autobiografia faz parte de uma tradição de escritos do cárcere produzidos por prisioneiras políticas que também inclui mulheres do nosso tempo. Escritos contemporâneos de prisioneiras políticas incluem os poemas e contos de Ericka Huggins e Susan Rosenberg, análises do complexo industrial-prisional feitas por Linda Evans e programas educacionais sobre HIV/aids nas prisões femininas elaborados por Kathy Boudin e pelos membros do coletivo ACE Bedford Hills.
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Apesar da disponibilidade de retratos detalhados da vida em prisões femininas, tem sido extremamente difícil persuadir o público — e até mesmo, por vezes, os ativistas antiprisionais que se preocupam sobretudo com as dificuldades dos prisioneiros do sexo masculino — sobre a centralidade do gênero na compreensão do sistema de punição estatal. Embora os homens constituam a ampla maioria dos prisioneiros no mundo, aspectos importantes da operação da punição estatal são ignorados quando se presume que as mulheres são marginais e, portanto, não merecem atenção. A justificativa mais frequente para a falta de atenção dada às prisioneiras e às questões específicas em torno do encarceramento feminino é a proporção relativamente pequena de mulheres entre as populações carcerárias ao redor do mundo. Na maioria dos países, a porcentagem de mulheres entre as populações carcerárias gira em torno de 5%.
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No entanto, as mudanças econômicas e políticas da década de 1980 — a globalização dos mercados econômicos, a desindustrialização da economia dos Estados Unidos, o desmonte de programas sociais como o Programa de Assistência a Famílias com Crianças Dependentes e, é claro, o boom na construção de prisões — levaram a um aumento significativo no índice de encarceramento feminino tanto dentro quanto fora dos Estados Unidos. Na verdade, ainda hoje as mulheres compõem o setor de mais rápido crescimento dentre a população carcerária norte-americana. Esse recente aumento da taxa de encarceramento feminino aponta diretamente para o contexto econômico que produziu o complexo industrial-prisional e que causou um impacto devastador tanto em homens quanto em mulheres.
É a partir dessa perspectiva da expansão contemporânea das prisões, tanto nos Estados Unidos quanto no restante do mundo, que devemos examinar alguns dos aspectos históricos e ideológicos da punição estatal imposta às mulheres. Desde o fim do século XVIII, quando, como vimos, o encarceramento começou a emergir como a forma predominante de punição, as condenadas são representadas como essencialmente diferentes de suas contrapartes masculinas. É verdade que os homens que cometem os tipos de transgressão considerados passíveis de punição pelo Estado são rotulados como delinquentes. A criminalidade masculina, entretanto, sempre foi considerada mais “normal” do que a criminalidade feminina. Sempre houve uma tendência a encarar as mulheres que foram punidas publicamente pelo Estado por seu mau comportamento como significativamente mais anormais e muito mais ameaçadoras para a sociedade do que suas numerosas contrapartes masculinas.
Ao tentar compreender essa diferença de gênero na percepção dos prisioneiros, deve-se ter em mente que, enquanto a prisão surgiu e evoluiu como a principal forma de punição pública, as mulheres continuaram a ser submetidas rotineiramente a formas de punição que não eram reconhecidas como tal. Por exemplo: as mulheres eram encarceradas em instituições psiquiátricas em proporções maiores do que em prisões.
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Estudos que indicam que as mulheres têm mais probabilidade do que os homens de ir parar em instituições psiquiátricas sugerem que, enquanto as cadeias e as prisões têm sido instituições dominantes no controle dos homens, as instituições psiquiátricas têm servido a um propósito similar no que diz respeito às mulheres. Ou seja, os homens delinquentes eram tidos como criminosos, enquanto as mulheres delinquentes eram tidas como insanas. Regimes que refletem esse pressuposto continuam a caracterizar as prisões femininas. Medicamentos psiquiátricos ainda são distribuídos de maneira muito mais ampla a detentas do que a suas contrapartes masculinas. Uma nativa americana encarcerada no Centro Correcional para Mulheres de Montana relatou sua experiência com drogas psicotrópicas à socióloga Luana Ross:
O Haloperidol é uma droga que eles dão às pessoas que não conseguem lidar com o encarceramento. Ela faz você se sentir morto, paralisado. Mas então eu comecei a sentir os efeitos colaterais do Haloperidol. Eu queria brigar com qualquer um, qualquer um dos guardas. Eu gritava com eles e mandava saírem da minha frente, então o médico disse: “Não podemos tolerar isso.” E me deram Clorazepato Dipotássico. Eu não tomava calmantes; nunca tive problema para dormir até chegar aqui. Agora tenho que me consultar [com o psicólogo] novamente por causa dos meus sonhos. Se você tem um problema, eles não tratam esse problema. Eles lhe dão drogas para que você fique sob controle.
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Antes do surgimento da penitenciária e, portanto, da noção de punição como “cumprimento de pena”, o uso do confinamento para controlar mendigos, ladrões e pessoas insanas não fazia necessariamente uma distinção entre essas categorias de desvio. Nessa fase da história da punição — antes das revoluções Americana e Francesa —, o processo de classificação por meio do qual a criminalidade é diferenciada da pobreza e da doença mental ainda não tinha sido desenvolvido. Enquanto o discurso sobre a criminalidade e as instituições correspondentes destinadas a controlá-la distinguia o “criminoso” do “insano”, a distinção de gênero se estabeleceu e continuou a estruturar as políticas penais. Classificada como feminina, essa categoria de insanidade era altamente sexualizada. Quando consideramos o impacto da classe e da raça, podemos dizer que, para mulheres brancas e ricas, essa equalização tende a servir como evidência de transtornos emocionais e mentais, mas para as mulheres negras e pobres, indica criminalidade.
Deve-se levar em consideração também que, até a abolição da escravidão, a maioria das mulheres negras estava sujeita a regimes de punição que diferiam significativamente daqueles vividos pelas mulheres brancas. Como escravas, eles eram direta e muitas vezes brutalmente disciplinadas por condutas consideradas perfeitamente normais em um contexto de liberdade. As punições impostas aos escravos eram visivelmente influenciadas pelo gênero — penalidades especiais eram, por exemplo, reservadas a mulheres grávidas incapazes de atingir as cotas que determinavam a duração e a rapidez de seus trabalhos. Em sua narrativa sobre a escravidão, Moses Grandy descreve uma forma especialmente brutal de açoitamento na qual a mulher era obrigada a se deitar no chão com a barriga encaixada em um buraco para proteger o feto (encarado como futura mão de obra escrava). Se expandirmos nossa definição de punição no contexto da escravidão, podemos dizer que as relações sexuais forçadas entre escravas e senhores eram uma punição imposta às mulheres, ainda que pela simples razão de elas serem escravas. Em outras palavras, a transgressão do senhor de escravos era transferida para a escrava que era sua vítima. Da mesma maneira, o abuso sexual cometido pelos guardas nas prisões é traduzido em hipersexualidade das prisioneiras. A ideia de que os “desvios” femininos sempre têm uma dimensão sexual persiste em nossa época, e essa interseção de criminalidade e sexualidade continua a ser racializada. Assim, as mulheres brancas rotuladas como “criminosas” são mais estreitamente associadas à negritude do que suas contrapartes “normais”.
Antes do surgimento da prisão como a principal forma de punição pública, era comum que quem violasse a lei fosse submetido a castigos corporais e muitas vezes a penas capitais. O que não se costuma reconhecer é a conexão entre o castigo corporal imposto pelo Estado e as agressões físicas a mulheres nos espaços domésticos. Essa forma de disciplinamento corporal continua sendo infligida a mulheres de forma rotineira no contexto de relacionamentos íntimos, mas raramente é encarada como algo relacionado à punição estatal.
Reformadores quacres nos Estados Unidos — especialmente a Sociedade da Filadélfia para o Alívio do Sofrimento nas Prisões Públicas, fundada em 1787 — desempenharam um papel fundamental nas campanhas para substituir a prisão por castigos corporais. Seguindo a tradição estabelecida por Elizabeth Fry na Inglaterra, os quacres também foram responsáveis por longas cruzadas para instituir prisões separadas para mulheres. Considerando que a prática era encarcerar mulheres criminalizadas em prisões masculinas, a demanda por prisões separadas para mulheres foi vista como bastante radical na época. Fry formulou os princípios que regeriam a reforma prisional para as mulheres em sua obra de 1827
Observations in Visiting, Superintendence and Government of Female Prisoners
[Observações sobre visitação, superintendência e gestão de prisioneiras], adotados nos Estados Unidos por mulheres como Josephine Shaw Lowell e Abby Hopper Gibbons. Na década de 1870, Lowell e Gibbons ajudaram a liderar, em Nova York, uma campanha por prisões separadas para mulheres.
As atitudes predominantes em relação às mulheres condenadas diferiram daquelas em relação aos homens condenados, que se considerava que tinham perdido direitos e liberdades que as mulheres geralmente não tinham nem mesmo no “mundo livre”. Embora algumas mulheres ficassem alojadas em penitenciárias, a instituição em si era masculina, porque, de modo geral, nenhum arranjo específico era feito para acomodar as mulheres sentenciadas.
As mulheres que cumpriram pena em instituições penais entre 1820 e 1870 não se beneficiaram da reforma prisional vivenciada pelos presos do sexo masculino. Os guardas empregavam isolamento, silêncio e trabalho duro para reabilitar prisioneiros do sexo masculino. A falta de acomodações para detentas fazia com que o isolamento e o silêncio fossem impossíveis para elas, e o trabalho produtivo não era considerado uma parte importante de sua rotina. A negligência com as prisioneiras, no entanto, raramente era benevolente. Em vez disso, um padrão de superlotação, tratamento severo e abuso sexual é recorrente na história das prisões.
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A punição masculina estava ligada ideologicamente à penitência e à reforma. A própria perda de direitos e liberdades implicava que, por meio da reflexão, do estudo religioso e do trabalho, condenados do sexo masculino poderiam alcançar a redenção e recuperar esses direitos e liberdades. No entanto, uma vez que não se considerava que as mulheres estivessem seguramente em posse desses direitos, elas não estavam aptas a participar desse processo de redenção.
De acordo com os pontos de vista dominantes, as mulheres condenadas eram irremediavelmente perdidas, sem possibilidade de salvação. Ao passo que os criminosos do sexo masculino eram considerados indivíduos que tinham simplesmente violado o contrato social, as criminosas eram vistas como mulheres que tinham transgredido princípios morais fundamentais da condição feminina. Os reformadores, que, seguindo Elizabeth Fry, argumentavam que as mulheres eram capazes de se redimir, não contestavam de fato esses pressupostos ideológicos a respeito do lugar da mulher. Em outras palavras, eles não questionavam a noção de “mulheres perdidas”. Em vez disso, simplesmente se opunham à ideia de que “mulheres perdidas” não podiam ser salvas. Elas podiam ser salvas, alegavam os reformistas, e para conseguir isso defendiam a criação de instituições penais separadas e uma abordagem especificamente feminina da punição. Sua abordagem demandava modelos arquitetônicos que substituíssem as celas por pequenas casas e “quartos”, de forma a infundir a domesticidade na vida na prisão. Esse modelo viabilizaria um regime concebido para reintegrar as criminosas no papel doméstico de esposas e mães. Eles não reconheciam, no entanto, as bases raciais e de classe desse regime. O treinamento que era, aparentemente, projetado para produzir boas esposas e mães, na verdade conduzia as mulheres pobres (e especialmente as mulheres negras) para trabalhar no “mundo livre” executando serviços domésticos. Em vez de esposas e mães qualificadas, muitas prisioneiras, depois da libertação, se tornavam empregadas, cozinheiras e lavadeiras de mulheres mais ricas. Os reformadores também argumentavam que uma equipe de guardas do sexo feminino minimizaria as tentações sexuais, que eles acreditavam muitas vezes estar na raiz da criminalidade feminina.
Quando o movimento de reforma que demandava prisões separadas para as mulheres surgiu na Inglaterra e nos Estados Unidos no século XIX, Elizabeth Fry, Josephine Shaw e outras defensoras combateram a ideia consagrada de que as criminosas estavam além do alcance da reabilitação moral. Assim como os condenados do sexo masculino, que presumivelmente podiam ser “corrigidos” por rigorosos regimes penitenciários, as condenadas do sexo feminino, conforme sugeriam, também poderiam ser moldadas em seres morais por métodos que encarassem o gênero de forma diferente. Mudanças arquitetônicas, regimes domésticos e uma equipe de guardas inteiramente feminina foram implementados no programa de reforma proposto pelos reformadores,
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e, por fim, as prisões femininas acabaram tão firmemente ancoradas no cenário social quanto as masculinas, porém ainda mais invisíveis. Essa maior invisibilidade era um reflexo tanto da forma como os deveres domésticos das mulheres eram encarados pelo patriarcado como algo normal, natural e consequentemente invisível, quanto do número relativamente pequeno de mulheres encarceradas nessas novas instituições.
Vinte e um anos depois da inauguração em Londres do primeiro reformatório inglês para mulheres, em 1853, o primeiro dos Estados Unidos foi aberto em Indiana. O objetivo era
treinar as prisioneiras na “importante” função feminina da domesticidade. Assim, um importante papel do movimento de reforma nas prisões femininas foi incentivar e arraigar papéis de gênero “apropriados”, como formação profissional em culinária, costura e limpeza. Para acomodar esses objetivos, as pequenas casas do reformatório costumavam ser projetadas com cozinhas, salas de estar e até berçários para as prisioneiras com bebês.
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Essa punição pública feminilizada, no entanto, não afetava todas as mulheres da mesma maneira. Quando cumpriam pena em reformatórios, as mulheres negras e nativas americanas muitas vezes eram separadas das brancas. Além disso, elas tendiam a ser desproporcionalmente condenadas a cumprir pena em prisões masculinas. Nos estados do Sul, no período seguinte à Guerra Civil, as mulheres negras eram submetidas às crueldades do sistema de arrendamento de prisioneiros em nada amenizadas pela feminilização da punição — nem suas sentenças nem o trabalho que eram obrigadas a executar eram atenuados em virtude do gênero. Conforme o sistema prisional dos Estados Unidos evoluiu durante o século XX, modos de punição feminilizados — o sistema de pequenas casas, o treinamento doméstico e assim por diante — foram ideologicamente projetados para reformar mulheres brancas, relegando grande parte das outras a reinos de punição pública nos quais não havia nenhuma pretensão de oferecer-lhes feminilidade.
Além disso, como salientou Lucia Zedner, as práticas de condenação feminina dentro do sistema reformatório muitas vezes obrigavam mulheres de todas as origens raciais a cumprir penas mais longas do que as dos homens por crimes semelhantes. “Essa diferença era justificada com base na alegação de que as mulheres eram mandadas para os reformatórios não para serem punidas de forma proporcional à seriedade de seus crimes, mas para serem reformadas e treinadas, um processo que, alegava-se, demandava tempo.”
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Ao mesmo tempo, destaca Zedner, essa tendência de mandar as mulheres para a prisão por mais tempo que os homens foi acelerada pelo movimento eugenista, “que buscava retirar as mulheres geneticamente inferiores da circulação social durante a maior parte possível de seus anos férteis”.
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No início do século XXI, as prisões femininas começaram a se parecer mais com suas homólogas masculinas, particularmente as instituições construídas na era contemporânea do complexo industrial-prisional. Conforme o envolvimento corporativo no sistema de punição se expandiu de maneiras que teriam sido inimagináveis apenas duas décadas atrás, o suposto propósito das prisões de promover a reabilitação foi completamente substituído pela incapacitação como o principal objetivo do encarceramento. Como já apontei, agora que a população carcerária das cadeias e prisões dos Estados Unidos supera a cifra de 2 milhões, a taxa de aumento do número de mulheres encarceradas excedeu a dos homens. Como observou o criminologista Elliot Currie,
durante a maior parte do período que sucedeu a Segunda Guerra Mundial, a taxa de encarceramento feminino girou em torno de 8 a cada 100 mil; não chegou a dois dígitos até 1977. Hoje é de 51 a cada 100 mil. (...) Com as atuais taxas de crescimento, haverá mais mulheres nas prisões nos Estados Unidos em 2010 do que havia presos de ambos os sexos em 1970. Quando combinamos os efeitos de raça e gênero, a natureza dessas mudanças na população carcerária fica ainda mais evidente. A taxa de encarceramento de mulheres negras hoje supera a de
homens
brancos em anos tão recentes quanto 1980.
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Em seu estudo sobre mulheres nativas americanas encarceradas no Centro Correcional para Mulheres de Montana, Luana Ross argumenta que “as prisões, como são empregadas pelo sistema euro-americano, funcionam de maneira a manter as nativas americanas em uma situação colonial”.
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Ela ressalta que os nativos americanos estão vastamente sobrerrepresentados nas prisões federais e estaduais do país. No estado de Montana, onde fez sua pesquisa, eles constituem 6% da população como um todo, mas 17,3% da população carcerária. As mulheres nativas estão ainda mais desproporcionalmente presentes no sistema prisional de Montana. Elas constituem 25% de todas as mulheres presas no estado.
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Trinta anos atrás, por volta da época da rebelião na prisão de Attica e do assassinato de George Jackson em San Quentin, a oposição radical ao sistema prisional o identificou como um dos principais locais de violência e repressão estatal. Em parte como uma reação à invisibilidade das prisioneiras nesse movimento e em parte como consequência da ascensão do movimento pela liberação das mulheres, foram desenvolvidas campanhas específicas em defesa dos direitos das mulheres encarceradas. Muitas dessas campanhas apresentaram — e continuam a promover — críticas radicais à repressão e à violência estatal. Na comunidade correcional, entretanto, o feminismo foi largamente influenciado por construções liberais de igualdade de gênero.
Em contraste com o movimento reformista do século XIX, fundamentado em uma ideologia de diferença de gênero, as “reformas” do fim do século XX se baseavam em um modelo “separado, porém igual”. Essa abordagem foi com frequência aplicada de forma acrítica, resultando ironicamente na reivindicação de condições mais repressivas a fim de tornar as instalações femininas “iguais” às masculinas. Um claro exemplo disso pode ser encontrado em um livro de memórias,
The Warden Wore Pink
[A diretora vestia rosa], escrito por uma ex-diretora da prisão feminina de Huron Valley, no estado do Michigan. Durante a década de 1980, a autora, Tekla Miller, defendeu uma mudança nas políticas internas do sistema prisional do estado de acordo com a qual as mulheres presas passariam a ser tratadas
da mesma maneira
que os homens presos. Sem nenhum traço de ironia, ela caracteriza como “feminista” sua luta por “igualdade de gênero” entre presos do sexo masculino e feminino e pela igualdade entre as instituições prisionais masculinas e femininas. Uma dessas campanhas se concentra na alocação desigual de armas, que ela buscava remediar:
Os arsenais nas prisões masculinas são grandes salas com prateleiras de espingardas, rifles, revólveres, munições, latas de gás e equipamentos antimotim (...) O arsenal da prisão feminina de Huron Valley era um pequeno armário, de um metro e meio por sessenta centímetros, no qual havia dois rifles, oito espingardas, dois megafones, cinco revólveres, quatro latas de gás e vinte conjuntos de amarras para imobilização.
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Não lhe ocorreu que uma versão mais produtiva de feminismo também questionaria a organização da punição estatal para os homens e, na minha opinião, consideraria seriamente a proposição de que a instituição como um todo — marcada pelo gênero como é — exige o tipo de crítica que pode nos levar a considerar sua abolição.
Miller também descreve o caso de uma tentativa de fuga. A prisioneira em questão escalou o arame farpado, mas foi capturada ao pular para o chão do outro lado. Essa tentativa iniciou um debate sobre a discrepância no tratamento dado a fugitivos homens e mulheres. A posição de Miller era que os guardas deveriam ser instruídos a atirar nas mulheres da mesma maneira que eram instruídos a atirar nos homens, argumentando que a paridade para prisioneiros homens e mulheres deveria consistir em seu direito igual de ser alvejado pelos guardas. A conclusão do debate, observou Miller, era que
as prisioneiras que tentam escapar de prisões [de segurança média ou alta] deveriam ser tratadas da mesma forma que os homens. Um tiro de aviso é disparado. Se o prisioneiro não parar e estiver além da cerca, um guarda pode disparar para ferir. Se a vida do agente estiver em perigo, ele pode atirar para matar.
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Paradoxalmente, as reivindicações por paridade com as prisões masculinas, em vez de criar melhores oportunidades educacionais, profissionais e de saúde para as prisioneiras, com frequência levaram a condições mais repressivas para essas mulheres. Isso não é apenas uma consequência do emprego liberal — isto é, formalista — de noções de igualdade, mas, o que é mais perigoso, de permitir que as prisões masculinas funcionem como a norma de punição. Miller salienta que tentou impedir que uma presa, a quem ela caracteriza como uma “assassina” cumprindo uma longa pena, de participar da cerimônia de graduação na Universidade de Michigan porque os assassinos do sexo masculino não tinham tais privilégios. (Obviamente, ela não revela a natureza das acusações de homicídio que recaíam sobre a mulher — se, por exemplo, ela havia sido condenada por matar um parceiro abusivo, como é o caso de um número significativo de mulheres condenadas por esse crime.) Embora Miller não tenha conseguido impedir a detenta de participar da formatura, além do chapéu e da beca, a mulher teve que usar correntes e algemas nos pés durante a cerimônia.
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Esse é de fato um exemplo bizarro de demandas feministas por igualdade dentro do sistema prisional.
Um exemplo amplamente divulgado do uso de uma parafernália repressiva associada historicamente ao tratamento de prisioneiros do sexo masculino para promover “igualdade” para as prisioneiras do sexo feminino foi a decisão, em 1996, do comissário prisional do Alabama de estabelecer grupos de prisioneiras acorrentadas destinados a executar trabalho forçado. Depois que o Alabama se tornou o primeiro estado a reinstituir os grupos de prisioneiros acorrentados, em 1995, o então comissário de correções estadual Ron Jones anunciou no ano seguinte que as mulheres seriam algemadas enquanto aparassem o capim, recolhessem o lixo ou cuidassem da horta na Prisão Estadual para Mulheres Julia Tutwiler. Essa tentativa de instituir grupos de prisioneiras acorrentadas foi em parte uma resposta a ações judiciais movidas por prisioneiros do sexo masculino, que acusavam que a prática era discriminatória aos homens, em razão de seu gênero.
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No entanto, imediatamente após o anúncio de Jones, o governador Fob James, que obviamente foi pressionado a evitar que o Alabama obtivesse a duvidosa distinção de ser o único estado a ter igualdade de oportunidade em grupos de presos acorrentados, o demitiu.
Pouco depois do embaraçoso flerte do Alabama com a possibilidade de estabelecer grupos de detentas acorrentadas, o xerife Joe Arpaio, do condado de Maricopo, no Arizona — representado na mídia como “o xerife mais severo da América” — concedeu uma entrevista coletiva para anunciar que, como era “um encarcerador a favor de oportunidades iguais”, estava estabelecendo o primeiro grupo de presas acorrentadas do país.
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Quando o plano foi implementado, jornais em todo o país publicaram uma fotografia de mulheres acorrentadas limpando as ruas de Phoenix. Embora isso possa ter sido um golpe publicitário destinado a fortalecer a fama de Arpaio, o fato de esse grupo de mulheres acorrentadas ter surgido no contexto de um aumento generalizado da repressão imposta às mulheres presas é certamente motivo para alarme. Prisões femininas em todo o país cada vez mais incluem alas conhecidas como “unidades de alojamento de segurança” (SHU, na sigla em inglês). Os regimes de confinamento solitário e privação sensorial nessas unidades das prisões femininas são versões menores das prisões de segurança supermáxima que proliferam rapidamente. Como a população carcerária feminina nas prisões agora consiste em uma maioria de mulheres de cor, os ecos históricos da escravidão, da colonização e do genocídio não devem passar despercebidos nessas imagens de mulheres acorrentadas e algemadas.
À medida que aumentou o nível de repressão nas prisões femininas e, paradoxalmente, conforme a influência dos regimes de prisão doméstica diminuiu, o abuso sexual — que, como a violência doméstica, é mais uma dimensão da punição privativa das mulheres — tornou-se um componente institucionalizado da punição por trás dos muros da prisão. Embora o abuso sexual de prisioneiras cometido por guardas não seja sancionado como tal, a indulgência generalizada com a qual os agentes transgressores são tratados sugere que, para as mulheres, a prisão é um espaço no qual a ameaça de violência sexual que assoma na sociedade em geral é sancionada como um aspecto rotineiro da paisagem da punição do sistema penitenciário.
De acordo com um relatório de 1996 da Human Rights Watch sobre o abuso sexual de mulheres nas prisões dos Estados Unidos:
Nossas conclusões indicam que ser uma prisioneira nas prisões estatais dos Estados Unidos pode ser uma experiência aterrorizante. Caso seja vítima de abuso sexual, você não consegue escapar de seu agressor. Queixas ou procedimentos de investigação, quando existem, muitas vezes são ineficazes, e os funcionários das prisões continuam a praticar abusos porque acreditam que dificilmente serão punidos, administrativa ou criminalmente. Poucas pessoas do lado de fora dos muros da prisão sabem o que está acontecendo lá dentro ou se importam quando sabem. Menos pessoas ainda fazem qualquer coisa para resolver o problema.
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O seguinte trecho do resumo deste relatório, intitulado All Too Familiar: Sexual Abuse of Women in U.S. State Prisons
[Familiar demais: abuso sexual de mulheres nas prisões estaduais dos Estados Unidos], revela como o ambiente das prisões femininas é violentamente sexualizado, recapitulando assim a violência familiar que caracteriza a vida privada de muitas mulheres:
Descobrimos que os funcionários do sexo masculino das instituições correcionais têm violentado por via vaginal, anal e oral as prisioneiras do sexo feminino, além de agredir e abusar sexualmente delas. Chegamos à conclusão de que, ao ter essa má conduta, os guardas do sexo masculino não apenas recorreram ou ameaçaram recorrer à força física, mas também usaram sua autoridade para fornecer ou negar itens e privilégios a prisioneiras a fim de obrigá-las a fazer sexo ou, em alguns casos, para recompensá-las por tê-lo feito. Em outros casos, guardas do sexo masculino violaram seu dever profissional mais básico e tiveram contato sexual com prisioneiras sem o uso da ameaça de força ou de qualquer recompensa material. Além de manter relações sexuais com prisioneiras, guardas do sexo masculino usam as revistas obrigatórias ou as revistas nas celas para apalpar os seios, as nádegas e a área vaginal das mulheres e observá-las de maneira imprópria enquanto estão despidas nas áreas de alojamento e nos banheiros. Guardas e funcionários do sexo masculino também se envolveram em humilhação verbal e assédio de prisioneiras, contribuindo assim para um ambiente de custódia nas prisões estatais para mulheres com frequência altamente sexualizado e excessivamente hostil.
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A violenta sexualização da vida prisional nas instituições para mulheres levanta uma série de questões que podem nos ajudar a aprofundar nossa crítica do sistema prisional. Ideologias da sexualidade — e particularmente da interseção entre raça e sexualidade — tiveram um efeito profundo nas representações e no tratamento recebido por mulheres de cor tanto dentro quanto fora da prisão. É claro que os homens negros e latinos vivenciam uma continuidade perigosa na forma como são tratados na escola, onde são disciplinados como criminosos em potencial; nas ruas, onde são submetidos ao perfil racial da polícia; e na prisão, onde são amontoados e privados de praticamente todos os seus direitos. No caso das mulheres, a continuidade de tratamento que recebem no mundo livre para o universo da prisão é ainda mais complicada, já que elas também enfrentam na prisão formas de violência que enfrentaram em casa e nos relacionamentos íntimos.
A criminalização de mulheres negras e latinas inclui imagens persistentes de hipersexualidade que servem para justificar os abusos sexuais cometidos contra elas tanto dentro quanto fora da prisão. Essas imagens foram vividamente representadas na televisão em uma série do
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filmada em novembro de 1999 na Valley State Prison for Women, na Califórnia. Muitas das mulheres entrevistadas pelo apresentador Ted Koppel se queixaram de ser submetidas a exames pélvicos frequentes e desnecessários, inclusive quando se consultavam com o médico por causa de doenças tão corriqueiras como resfriados. Em uma tentativa de justificar esses exames, o diretor médico explicou que as prisioneiras tinham poucas oportunidades de “contato masculino” e que, portanto, acolhiam com prazer esses exames ginecológicos supérfluos. Embora o diretor tenha sido destituído de seu cargo em consequência desses comentários, sua transferência não mudou em praticamente nada a vulnerabilidade generalizada das mulheres presas no que diz respeito ao abuso sexual.
Estudos sobre prisões femininas em todo o mundo indicam que este abuso é uma forma de punição permanente, embora não reconhecida, à qual as mulheres que têm o infortúnio de ser mandadas para a prisão são submetidas. Trata-se de um aspecto da vida na prisão que as mulheres podem esperar encontrar, direta ou indiretamente, não importa quais sejam as políticas escritas que regem a instituição. Em junho de 1998, Radhika Coomaraswamy, relatora especial das Nações Unidas para a violência contra a mulher, visitou prisões federais e estaduais, bem como centros de detenção do Serviço de Imigração e Naturalização em Nova York, Connecticut, Nova Jersey, Minnesota, Geórgia e Califórnia. Ela não teve permissão para visitar prisões femininas no Michigan, onde graves acusações de abuso sexual estavam sendo investigadas. Ao fim dessas visitas, Coomaraswamy anunciou que “o assédio sexual por parte dos funcionários das prisões é generalizado nas prisões femininas norte-americanas”.
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Essa institucionalização clandestina do abuso sexual viola um dos princípios fundamentais das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros das Nações Unidas, instrumento da ONU adotado pela primeira vez em 1955 e usado como diretriz por muitos governos para implementar o que se considera “boas práticas prisionais”. O governo dos Estados Unidos, no entanto, não fez muito no sentido de divulgar essas regras, e é provável que a maioria dos funcionários de instituições penais nunca tenha ouvido falar desses padrões da ONU. De acordo com as Regras Mínimas,
o aprisionamento e outras medidas que resultem em isolar um criminoso do mundo exterior já são aflitivos pelo simples fato de tirarem dessa pessoa o direito à autodeterminação, privando-a de sua liberdade. Portanto, o sistema prisional não deve, exceto como resultado incidental de uma segregação justificável ou da manutenção da disciplina, agravar o sofrimento inerente a tal situação.
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O abuso sexual é incorporado às escondidas a um dos aspectos mais habituais do encarceramento feminino: a revista íntima. Como os ativistas e as próprias prisioneiras apontaram, o Estado está diretamente implicado nessa rotineirização do abuso sexual, tanto ao permitir as condições que tornam as mulheres vulneráveis à coerção sexual explícita imposta pelos guardas e por outros funcionários da prisão quanto ao incorporar, nas políticas de rotina, práticas como a revista corporal e o exame de cavidades corporais.
A advogada e ativista australiana Amanda George salientou que
[o] reconhecimento de que o abuso sexual de fato ocorre em instituições para pessoas com deficiência intelectual, prisões, hospitais psiquiátricos, centros de treinamento de jovens e delegacias geralmente se concentra nos atos criminosos de estupro e abuso sexual cometidos por indivíduos que trabalham nessas instituições.
Esses delitos, embora raramente sejam denunciados, são claramente compreendidos como “crimes” pelos quais o indivíduo, e não o Estado, é responsável. Ao mesmo tempo que condena abusos sexuais “ilegais” por parte de seus funcionários, o Estado na verdade usa o abuso sexual como forma de controle.
Em Victoria, os agentes penitenciários e a polícia têm o poder e a responsabilidade de cometer atos que, se cometidos fora do horário de trabalho, seriam crimes de abuso sexual. Se uma pessoa não “consentir” em ser despida por esses oficiais, pode-se recorrer legalmente ao uso da força para fazê-lo. (...) As revistas corporais legais são, na opinião da autora, abusos sexuais de acordo com a definição de atentado ao pudor que consta do
Crimes Act 1958 (Vic)
, conforme retificado na seção 39.
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Em uma conferência sobre mulheres na prisão realizada em novembro de 2001 pela organização Sisters Inside, de Brisbane, Amanda George descreveu uma ação realizada em uma reunião nacional de funcionários do sistema carcerário que trabalhavam em prisões femininas. Várias mulheres invadiram o palco e, algumas representando guardas, outras desempenhando o papel de prisioneiras, dramatizaram uma revista corporal. De acordo com George, os participantes da reunião sentiram tanta repulsa por essa dramatização de uma prática que ocorre rotineiramente nas prisões femininas, que muitos se sentiram impelidos a se dissociar de tais práticas, insistindo que não era aquilo que faziam. Alguns dos guardas, disse George, simplesmente choraram ao assistir à encenação de suas próprias ações fora do contexto da prisão. O que eles devem ter percebido é que “sem o uniforme, sem o poder do Estado, [a revista corporal] é abuso sexual”.
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Mas por que a compreensão da onipresença desse abuso nas prisões femininas é um elemento importante de uma análise radical do sistema prisional, e especialmente das análises progressistas que nos conduzem na direção da abolição? Porque a demanda por abolir a prisão como a forma dominante de punição não pode ignorar que a instituição da prisão armazenou ideias e práticas que, espera-se, se aproximam da obsolescência na sociedade em geral, mas que retêm toda a sua horrenda vitalidade por trás dos muros da prisão. A combinação destrutiva de racismo e misoginia, por mais que tenha sido combatida pelos movimentos sociais, pelas bolsas de estudo e pela arte nas últimas três décadas, mantém todas as suas terríveis consequências nas prisões femininas. A presença relativamente incontestada do abuso sexual nessas instituições é apenas um de muitos exemplos dessa natureza. A crescente evidência, nos Estados Unidos, de um complexo industrial-prisional com ressonâncias globais nos leva a pensar sobre até que ponto as muitas empresas que investiram na expansão do sistema prisional estão, assim como o Estado, diretamente implicadas em uma instituição que perpetua a violência contra a mulher.