VI

CONTRATOS EMPRESARIAIS

Sumário: 1. Introdução: 1.1. Aplicação do CDC aos contratos entre empresários2. O Código Civil de 2002 e a unificação do direito obrigacional: 2.1. Contratos cíveis x contratos empresariais3. Teoria geral do direito contratual: 3.1. Princípios gerais dos contratos; 3.2. A exceção do contrato não cumprido; 3.3. A teoria do adimplemento substancial4. Compra e venda empresarial: 4.1. Elementos essenciais da compra e venda; 4.2. Direitos e deveres fundamentais do comprador e do vendedor; 4.3. Cláusulas especiais da compra e venda5. Contratos de colaboração empresarial: 5.1. Subordinação empresarial nos contratos de colaboração; 5.2. As cláusulas de exclusividade nos contratos de colaboração; 5.3. Comissão mercantil; 5.4. Representação comercial (agência); 5.5. Concessão mercantil; 5.6. Franquia (franchising)6. Contratos bancários: 6.1. Decisões importantes do STJ sobre contratos bancários; 6.2. Depósito bancário; 6.3. Mútuo bancário; 6.4. Desconto bancário; 6.5. Abertura de crédito; 6.6. Contratos bancários impróprios7. Contrato de seguro: 7.1. Regras gerais; 7.2. Seguro de dano; 7.3. Seguro de pessoa8. Solução alternativa de conflitos: 8.1. A constitucionalidade da Lei de Arbitragem; 8.2. Direito intertemporal: aplicação da Lei de Arbitragem aos contratos anteriores à sua vigência; 8.3. A convenção de arbitragem e seus efeitos; 8.4. Cláusulas compromissórias cheias e vazias; 8.5. A autonomia da cláusula compromissória e o princípio da kompetnz-kompetenz; 8.6. Modelo de cláusula compromissória9. Questões.

“Nós negociamos como iguais, por consentimento mútuo, para mútua vantagem, e eu tenho orgulho de cada centavo que ganhei dessa maneira.” (Ayn Rand, em A revolta de Atlas, em passagem que expressa fala do personagem Hank Rearden, um empresário)

1.   INTRODUÇÃO

No conceito de empresário descrito no art. 966 do Código Civil está implícito o conceito de empresa, entendida esta como atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Por atividade econômica organizada se entende aquela em que, além do intuito de lucro, há articulação dos diversos fatores de produção (capital, mão de obra, insumos e tecnologia). Sendo assim, é óbvio que no exercício de sua atividade econômica, o empresário (tanto o empresário individual quanto a sociedade empresária) celebra diversos contratos cotidianamente.

Quando uma determinada sociedade empresária que explora atividade industrial de grande porte, por exemplo, necessita de recursos para ampliar seu maquinário, pode celebrar com uma instituição financeira um contrato de financiamento ou mesmo adquirir as novas máquinas por meio de leasing. Da mesma forma, um pequeno comerciante pode celebrar com outro contrato de compra e venda de mercadorias, a fim de revendê-las aos seus consumidores, com os quais celebrará novos contratos de compra e venda, os quais, por sua vez, poderão ser celebrados por meio de operações especiais como, por exemplo, o cartão de crédito. Já uma outra sociedade empresária, que teve aumento significativo de suas vendas, poderá estar precisando de mais funcionários, razão pela qual firmará uma série de contratos de trabalho com novos empregados. Pode-se pensar também no caso de uma sociedade empresária que, para absorver novos mercados, resolve se expandir por meio da concessão de franquias ou da constituição de representantes comerciais. Por fim, pode-se citar, ainda, a hipótese de determinada sociedade empresária que participa de procedimento licitatório e, vencendo-o, contrata com o poder público a prestação de serviços específicos.

São, enfim, diversos os contratos que os empresários individuais e as sociedades empresárias celebram no exercício diário de suas atividades econômicas. Estes contratos, perceba-se, podem ser estritamente empresariais, quando firmados entre empresários – é o caso do leasing feito entre a indústria e o banco para a aquisição de novas máquinas –, ou não, caso em que se sujeitarão a disciplina especial – são os casos dos contratos de trabalho com empregados, dos contratos com consumidores e dos contratos com a Administração Pública. Nesta obra, voltaremos nossos estudos para os contratos estritamente empresariais, ou seja, para aquelas avenças celebradas entre empresários.

Cabe aqui uma importante observação: os contratos entre empresários podem eventualmente se submeter às regras do Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei 8.078/1990), bastando para tanto que um dos contratantes assuma a posição de consumidor, ou seja, de destinatário final do produto ou serviço negociado, nos termos do art. 2.° do CDC. Nossas atenções, todavia, voltar-se-ão para os contratos empresariais que não se enquadram nessa situação, motivo pelo qual os chamamos contratos estritamente empresariais.

1.1.   Aplicação do CDC aos contratos entre empresários

Uma relação empresarial (mesmo que as partes sejam empresários individuais) não pode ser considerada uma relação de consumo, razão pela qual não deveriam ser aplicadas a tais relações as regras do CDC. Isso se dá porque nas relações empresariais nenhuma das partes adquire produto ou serviço como destinatário final. A propósito, confiram-se os seguintes julgados do STJ:

Competência. Relação de consumo. Utilização de equipamento e de serviços de crédito prestado por empresa administradora de cartão de crédito. Destinação final inexistente. – A aquisição de bens ou a utilização de serviços, por pessoa natural ou jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar a sua atividade negocial, não se reputa como relação de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária. Recurso especial conhecido e provido para reconhecer a incompetência absoluta da Vara Especializada de Defesa do Consumidor, para decretar a nulidade dos atos praticados e, por conseguinte, para determinar a remessa do feito a uma das Varas Cíveis da Comarca (REsp 541.867/BA, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, Rel. p/ Acórdão Min. Barros Monteiro, 2.ª Seção, j. 10.11.2004, DJ 16.05.2005, p. 227).

Conflito positivo de competência. Medida cautelar de arresto de grãos de soja proposta no foro de eleição contratual. Expedição de carta precatória. Conflito suscitado pelo juízo deprecado, ao entendimento de que tal cláusula seria nula, porquanto existente relação de consumo. Contrato firmado entre empresa de insumos e grande produtor rural. Ausência de prejuízos à defesa pela manutenção do foro de eleição. Não configuração de relação de consumo. – A jurisprudência atual do STJ reconhece a existência de relação de consumo apenas quando ocorre destinação final do produto ou serviço, e não na hipótese em que estes são alocados na prática de outra atividade produtiva. (...) (CC 64.524/MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, 2.ª Seção, j. 27.09.2006, DJ 09.10.2006, p. 256).

Conflito de competência. Sociedade empresária. Consumidor. Destinatário final econômico. Não ocorrência. Foro de eleição. Validade. Relação de consumo e hipossuficiência. Não caracterização. 1 – A jurisprudência desta Corte sedimenta-se no sentido da adoção da teoria finalista ou subjetiva para fins de caracterização da pessoa jurídica como consumidora em eventual relação de consumo, devendo, portanto, ser destinatária final econômica do bem ou serviço adquirido (REsp 541.867/BA). 2 – Para que o consumidor seja considerado destinatário econômico final, o produto ou serviço adquirido ou utilizado não pode guardar qualquer conexão, direta ou indireta, com a atividade econômica por ele desenvolvida; o produto ou serviço deve ser utilizado para o atendimento de uma necessidade própria, pessoal do consumidor. 2 – No caso em tela, não se verifica tal circunstância, porquanto o serviço de crédito tomado pela pessoa jurídica junto à instituição financeira de certo foi utilizado para o fomento da atividade empresarial, no desenvolvimento da atividade lucrativa, de forma que a sua circulação econômica não se encerra nas mãos da pessoa jurídica, sociedade empresária, motivo pelo qual não resta caracterizada, in casu, relação de consumo entre as partes. (...) (CC 92.519/SP, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 2.ª Seção, j. 16.02.2009, DJe 04.03.2009).

Direito Civil. Produtor rural. Compra e venda de sementes de milho para o plantio. Código de Defesa do Consumidor. Não aplicação. Precedentes. Reexame de matéria-fático probatória. Óbice da Súmula 7/STJ. Recurso especial improvido. I – Os autos dão conta tratar-se de compra e venda de sementes de milho por produtor rural, destinadas ao plantio em sua propriedade para posterior colheita e comercialização, as quais não foram adquiridas para o próprio consumo. II – O entendimento da egrégia Segunda Seção é no sentido de que não se configura relação de consumo nas hipóteses em que o produto ou o serviço são alocados na prática de outra atividade produtiva. Precedentes. (...) (REsp 1.132.642/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. p/ Acórdão Min. Massami Uyeda, 3.ª Turma, j. 05.08.2010, DJe 18.11.2010).

Recurso especial. Contrato de seguro-saúde de reembolso de despesas médico-hospitalares. Plano empresarial. Contrato firmado entre o empregador e a seguradora. Não aplicação do CDC. Código de Defesa do Consumidor. E da hipossuficiência na relação entre as empresas contratantes. Contrato oneroso. Reajuste. Possibilidade. Artigos 478 e 479 do Código Civil. Recurso especial improvido. I – Trata-se de contrato de seguro de reembolso de despesas de assistência médica e/ou hospitalar, firmado entre duas empresas. II – A figura do hipossuficiente, que o Código de Defesa do Consumidor procura proteger, não cabe para esse tipo de relação comercial firmado entre empresas, mesmo que uma delas seja maior do que a outra e é de se supor que o contrato tenha sido analisado pelos advogados de ambas as partes. III – Embora a recorrente tenha contratado um seguro de saúde de reembolso de despesas médico-hospitalares, para beneficiar seus empregados, dentro do pacote de retribuição e de benefícios que oferta a eles, a relação da contratante com a seguradora recorrida é comercial. IV – Se a mensalidade do seguro ficou cara ou se tornou inviável paras os padrões da empresa contratante, seja por variação de custos ou por aumento de sinistralidade, cabe ao empregador encontrar um meio de resolver o problema, o qual é de sua responsabilidade, pois é do seu pacote de benefícios, sem transferir esse custo para a seguradora. A recorrida não tem a obrigação de custear benefícios para os empregados da outra empresa. (...) (REsp 1.102.848/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. p/ Acórdão Min. Massami Uyeda, 3.ª Turma, j. 03.08.2010, DJe 25.10.2010).

Recurso especial. Contrato de mútuo bancário. Empresa. Capital de giro. Inaplicabilidade do CDC. Precedentes. Não se aplica o CDC ao contrato de mútuo tomado por empresa junto à instituição financeira destinado ao fomento da atividade empresarial. Precedentes da Corte. Recurso Especial improvido (REsp 773.927/MG, Rel. Min. Sidnei Beneti, 3. ª Turma, j. 03.12.2009, DJe 14.12.2009).

Enfim, o STJ tem entendido que um empresário ou uma sociedade empresária não são considerados consumidores quando adquirem produtos ou serviços que são utilizados, direta ou indiretamente, na atividade econômica que exercem. Está correto o entendimento do STJ, porque nesses casos há uma relação empresarial, e não uma relação de consumo. Nesse sentido, confira-se o Enunciado 20 da I Jornada de Direito Comercial do CJF: “Não se aplica o Código de Defesa do Consumidor aos contratos celebrados entre empresários em que um dos contratantes tenha por objetivo suprir-se de insumos para sua atividade de produção, comércio ou prestação de serviços”.

No entanto, quando o empresário individual ou a sociedade empresária adquirem produtos ou serviços na qualidade de destinatários finais econômicos deles, o STJ entende configurada uma relação de consumo e aplica o CDC a tais relações.

Recurso especial. Fornecimento de água. Consumidor. Destinatário final. Relação de consumo. Devolução em dobro dos valores pagos indevidamente. Aplicação dos artigos 2.° e 42, parágrafo único, da Lei n.° 8.078/90.

I – “O conceito de ‘destinatário final’, do Código de Defesa do Consumidor, alcança a empresa ou o profissional que adquire bens ou serviços e os utiliza em benefício próprio” (AgRg no Ag n.° 807.159/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 25.10.2008). II – No caso em exame, a recorrente enquadra-se em tal conceituação, visto ser empresa prestadora de serviços médico-hospitalares, que utiliza a água para a manutenção predial e o desenvolvimento de suas atividades, ou seja, seu consumo é em benefício próprio. III – A empresa por ser destinatária final do fornecimento de água e, portanto, por se enquadrar no conceito de consumidora, mantém com a recorrida relação de consumo, o que torna aplicável o disposto no artigo 42, parágrafo único, da Lei 8.078/90. IV – Recurso especial conhecido e provido (REsp 1.025.472/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, 1.ª Turma, j. 03.04.2008, DJe 30.04.2008).

Processo civil. Conflito de competência. Contrato. Foro de eleição. Relação de consumo. Contratação de serviço de crédito por sociedade empresária. Destinação final caracterizada. – Aquele que exerce empresa assume a condição de consumidor dos bens e serviços que adquire ou utiliza como destinatário final, isto é, quando o bem ou serviço, ainda que venha a compor o estabelecimento empresarial, não integre diretamente – por meio de transformação, montagem, beneficiamento ou revenda – o produto ou serviço que venha a ser ofertado a terceiros. – O empresário ou sociedade empresária que tenha por atividade precípua a distribuição, no atacado ou no varejo, de medicamentos, deve ser considerado destinatário final do serviço de pagamento por meio de cartão de crédito, porquanto esta atividade não integra, diretamente, o produto objeto de sua empresa (CC 41.056/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, Rel. p/ Acórdão Min. Nancy Andrighi, 2.ª Seção, j. 23.06.2004, DJ 20.09.2004, p. 181).

O STJ também tem admitido a aplicação do CDC a relações entre empresários quando fica caracterizada a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica de uma das partes.

Processual civil. Sociedade estrangeira sem imóveis, mas com filial no país. Desnecessidade de caução para litigar em juízo. Mitigação da exigência legal. Código de Defesa do Consumidor. Pessoa jurídica. Teoria finalista. 1. O autor estrangeiro prestará, nas ações que intentar, caução suficiente às custas e honorários de advogado da parte contrária, se não tiver no Brasil imóveis que lhes assegurem o pagamento. 2. Tal exigência constitui pressuposto processual que, por isso, deve ser satisfeito ao início da relação jurídico-processual. Nada impede, porém, que seja ela suprida no decorrer da demanda, não havendo falar em nulidade processual sem que haja prejuízo, especialmente em caso no qual a pessoa jurídica estrangeira já veio pagando adequadamente todas as despesas processuais incorridas e possui filial no país. 3. No caso concreto, ademais, considerando-se o resultado da demanda, não faz sentido exigir a caução em referência. Não há porque exigir da recorrida o depósito de caução cuja finalidade é garantir o pagamento de despesas que, com o resultado do julgamento, ficarão por conta da parte contrária. 4. A jurisprudência desta Corte, no tocante à matéria relativa ao consumidor, tem mitigado os rigores da teoria finalista para autorizar a incidência do Código de Defesa do Consumidor nas hipóteses em que a parte (pessoa física ou jurídica), embora não seja tecnicamente a destinatária final do produto ou serviço, se apresenta em situação de vulnerabilidade. 5. O Acórdão recorrido destaca com propriedade, porém, que a recorrente é uma sociedade de médio porte e que não se vislumbra, no caso concreto, a vulnerabilidade que inspira e permeia o Código de Defesa do Consumidor. 6. Recurso Especial a que se nega provimento (REsp 1.027.165/ES, Rel. Min. Sidnei Beneti, 3.ª Turma, j. 07.06.2011, DJe 14.06.2011).

Agravo regimental. Agravo de instrumento. Consumidor. Relação de consumo. Caracterização. Destinação final fática e econômica do produto ou serviço. Atividade empresarial. Mitigação da regra. Vulnerabilidade da pessoa jurídica. Presunção relativa. 1. O consumidor intermediário, ou seja, aquele que adquiriu o produto ou o serviço para utilizá-lo em sua atividade empresarial, poderá ser beneficiado com a aplicação do CDC quando demonstrada sua vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica frente à outra parte. 2. Agravo regimental a que se nega provimento (AgRg no Ag 1.316.667/RO, Rel. Min. Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ/RS), 3.ª Turma, j. 15.02.2011, DJe 11.03.2011).

Processo Civil e Consumidor. Agravo de instrumento. Concessão de efeito suspensivo. Mandado de segurança. Cabimento. Agravo. Deficiente formação do instrumento. Ausência de peça essencial. Não conhecimento. Relação de consumo. Caracterização. Destinação final fática e econômica do produto ou serviço. Atividade empresarial. Mitigação da regra. Vulnerabilidade da pessoa jurídica. Presunção relativa. (...) – A jurisprudência consolidada pela 2.ª Seção deste STJ entende que, a rigor, a efetiva incidência do CDC a uma relação de consumo está pautada na existência de destinação final fática e econômica do produto ou serviço, isto é, exige-se total desvinculação entre o destino do produto ou serviço consumido e qualquer atividade produtiva desempenhada pelo utente ou adquirente. Entretanto, o próprio STJ tem admitido o temperamento desta regra, com fulcro no art. 4.°, I, do CDC, fazendo a lei consumerista incidir sobre situações em que, apesar do produto ou serviço ser adquirido no curso do desenvolvimento de uma atividade empresarial, haja vulnerabilidade de uma parte frente à outra. – Uma interpretação sistemática e teleológica do CDC aponta para a existência de uma vulnerabilidade presumida do consumidor, inclusive pessoas jurídicas, visto que a imposição de limites à presunção de vulnerabilidade implicaria restrição excessiva, incompatível com o próprio espírito de facilitação da defesa do consumidor e do reconhecimento de sua hipossuficiência, circunstância que não se coaduna com o princípio constitucional de defesa do consumidor, previsto nos arts. 5.°, XXXII, e 170, V, da CF. Em suma, prevalece a regra geral de que a caracterização da condição de consumidor exige destinação final fática e econômica do bem ou serviço, mas a presunção de vulnerabilidade do consumidor dá margem à incidência excepcional do CDC às atividades empresariais, que só serão privadas da proteção da lei consumerista quando comprovada, pelo fornecedor, a não vulnerabilidade do consumidor pessoa jurídica. – Ao encampar a pessoa jurídica no conceito de consumidor, a intenção do legislador foi conferir proteção à empresa nas hipóteses em que, participando de uma relação jurídica na qualidade de consumidora, sua condição ordinária de fornecedora não lhe proporcione uma posição de igualdade frente à parte contrária. Em outras palavras, a pessoa jurídica deve contar com o mesmo grau de vulnerabilidade que qualquer pessoa comum se encontraria ao celebrar aquele negócio, de sorte a manter o desequilíbrio da relação de consumo. A “paridade de armas” entre a empresa-fornecedora e a empresa-consumidora afasta a presunção de fragilidade desta. Tal consideração se mostra de extrema relevância, pois uma mesma pessoa jurídica, enquanto consumidora, pode se mostrar vulnerável em determinadas relações de consumo e em outras não. Recurso provido (RMS 27.512/BA, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª Turma, j. 20.08.2009, DJe 23.09.2009).

Portanto, pode-se concluir que, nas relações entre empresários: (i) em regra, não se aplica o CDC, porque nenhuma das partes assume a condição de destinatário final, já que os produtos ou serviços que são utilizados, direta ou indiretamente, na atividade econômica que exercem; (ii) aplica-se o CDC quando uma das partes, ainda que seja um empresário individual ou sociedade empresária, assuma a condição de destinatário final econômico do produto ou serviço; e (iii) aplica-se excepcionalmente o CDC, ainda que nenhuma das partes seja destinatária final do bem, mas ostente vulnerabilidade técnica, econômica ou jurídica em relação à outra.

Para finalizar, esclareço apenas que não concordo com esse alargamento da aplicação do CDC às relações entre empresários. O CDC é um microssistema legislativo específico que consagra um sistema de proteção do consumidor, entendido pelo legislador como parte contratual vulnerável, que precisa da tutela estatal. Na visão liberal adotada nesta obra, a própria existência do CDC, pois, é um erro, mas não cabe essa discussão neste espaço. O que cabe é apontar o erro maior ainda, que é a aplicação desse sistema protetivo a relações empresariais, nas quais a intervenção estatal deve ser a todo custo evitada, com as partes tendo ampla e irrestrita liberdade contratual e assumindo os riscos de suas contratações. Os entendimentos acima transcritos do STJ aumentam os custos de transação e trazem insegurança jurídica, o que, em última análise, acaba prejudicando justamente os consumidores, porque tais custos acabam sendo internalizados e refletem no geral um aumento dos preços.

2.   O CÓDIGO CIVIL DE 2002 E A UNIFICAÇÃO DO DIREITO OBRIGACIONAL

Nos capítulos I e II desta obra apontamos mais de uma vez que o Código Civil de 2002, seguindo a inspiração do Codice Civile italiano de 1942, tentou unificar o direito privado, abrangendo em um único diploma legislativo tanto as normas do direito civil quanto as normas do direito empresarial.

Vimos, todavia, que parte dessa pretendida unificação, se de fato ocorreu, deu-se tão somente no plano formal, uma vez que o Código Civil, realmente, hoje contempla uma série de regras que disciplinam as atividades empresariais, reunidas basicamente nos Títulos I a IV, do Livro II, da Parte Especial, que trata do direito de empresa. No entanto, substancialmente (ou materialmente) continuam a existir o direito civil e o direito comercial (ou empresarial) como ramos autônomos e independentes da árvore jurídica. Basta citar, por exemplo, o direito falimentar. Se tivesse havido mesmo a unificação substancial ou material do direito privado, a falência deveria ser instituto aplicável tanto aos empresários quanto aos não empresários, o que, conforme veremos no capítulo seguinte, não é verdadeiro.

No campo obrigacional, entretanto, a situação parece ser um pouco distinta, submetendo-se os contratos cíveis e empresariais a uma mesma disciplina geral, constante do Código Civil de 2002. Com efeito, os contratos mercantis estavam disciplinados no Código Comercial de 1850 em sua parte primeira, a qual, como já visto, foi totalmente revogada pelo atual Código Civil. Assim, portanto, atualmente tanto os contratos cíveis quanto os contratos empresariais regem-se pelas mesmas regras gerais, dispostas basicamente no Título V, do Livro I, da Parte Especial, que vai do art. 421 ao 480. Ademais, vários contratos em espécie também possuem a mesma disciplina legal, a despeito de poderem ser qualificados como cíveis ou empresariais, a depender das circunstâncias em que são celebrados. É o caso, por exemplo, da compra e venda (arts. 481 a 532 do Código Civil).

2.1.   Contratos cíveis x contratos empresariais

A situação descrita no parágrafo anterior é extremamente perigosa. Submeter contratos cíveis e contratos empresariais (estes entendidos como aqueles firmados entre empresários, no exercício de atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços) a uma mesma “teoria geral” é algo absolutamente equivocado e que a doutrina comercialista, praticamente de forma unânime, tem criticado severamente, a ponto de ter sido iniciado, conforme mencionamos no capítulo I, intenso movimento em defesa da edição de um novo Código Comercial, já tendo sido apresentado à Câmara dos Deputados, inclusive, projeto de lei nesse sentido (PL 1.572/2011).

No entanto, enquanto tal diploma legislativo não vem, é urgente que, pela via da interpretação, seja feita a imprescindível distinção entre os contratos cíveis e empresariais, dada a nítida diferença que há entre eles. Com efeito, os contratos empresariais se caracterizam pela simetria natural entre os contratantes, não sendo justificável aplicar a eles certas regras do Código Civil que analisaremos adiante, as quais limitam ou relativizam a imprescindível liberdade para a celebração de contratos.

Ademais, em homenagem aos princípios da livre-iniciativa, da livre concorrência e da propriedade privada (princípios constitucionais que sustentam o direito empresarial, conforme visto no capítulo I), os empresários devem ter total liberdade para realizar negócios – desde que lícitos, obviamente –, bem como assumir os riscos de contratações malfeitas. A regra de ouro do livre mercado é a seguinte: o empresário que acerta, ganha; o empresário que erra, perde. Portanto, a intervenção estatal prévia (dirigismo contratual) ou posterior (revisão judicial) nos contratos empresariais deturpa a lógica natural do livre mercado, cria risco moral e traz insegurança jurídica para as relações interempresariais.

Nesse sentido, confira-se o Enunciado 21, da I Jornada de Direito Comercial do CJF, de nossa autoria: “Nos contratos empresariais, o dirigismo contratual deve ser mitigado, tendo em vista a simetria natural das relações interempresariais”.

Corroborando o que defendemos acima, confiram-se os seguintes acórdãos do STJ:

Direito Empresarial. Contratos. Compra e venda de coisa futura (soja). Teoria da imprevisão. Onerosidade excessiva. Inaplicabilidade. 1. Contratos empresariais não devem ser tratados da mesma forma que contratos cíveis em geral ou contratos de consumo. Nestes admite-se o dirigismo contratual. Naqueles devem prevalecer os princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória das avenças. 2. Direito Civil e Direito Empresarial, ainda que ramos do Direito Privado, submetem-se a regras e princípios próprios. O fato de o Código Civil de 2002 ter submetido os contratos cíveis e empresariais às mesmas regras gerais não significa que estes contratos sejam essencialmente iguais. (...) (REsp 936.741/GO, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4.ª Turma, j. 03.11.2011).

Conflito de competência. Cláusula de eleição de foro. Relação empresarial. Não incidência do Código de Defesa do Consumidor. I – É válida cláusula de eleição de foro consensualmente estipulada pelas partes em relação tipicamente empresarial, mormente quando se trata de produtores rurais que desenvolvem atividades de grande porte e contratam em igualdades de condições. Agravo Regimental improvido (AgRg no CC 68.062/SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, 2.ª Seção, j. 13.10.2010, DJe 27.10.2010).

Finalmente, mais uma vez corroborando nosso entendimento de que as regras do Código Civil sobre contratos não devem ser aplicadas indistintamente a contratos cíveis e empresariais, confira-se o Enunciado 28 da I Jornada de Direito Comercial do CJF: “Em razão do profissionalismo com que os empresários devem exercer sua atividade, os contratos empresariais não podem ser anulados pelo vício da lesão fundada na inexperiência”.

3.   TEORIA GERAL DO DIREITO CONTRATUAL

Antes de se fazer qualquer abordagem sobre a teoria geral do direito contratual, é preciso destacar, inicialmente, que tanto na doutrina quanto na jurisprudência as noções de fato jurídico, ato jurídico e negócio jurídico estão longe de alcançar entendimentos consensuais. O que tentaremos fazer, pois, é apenas definir, sucinta e superficialmente, a natureza jurídica das relações contratuais e enquadrá-las como espécie de obrigação.

Parte da doutrina costuma apontar que o fato jurídico “lato sensu” pode ser dividido em ato jurídico “lato sensu” e fato jurídico “stricto sensu”, correspondendo aquele à noção de ato voluntário, e este à noção de fato involuntário. O ato jurídico “lato sensu”, por sua vez, pode ser subdividido em ato jurídico “stricto sensu”, do qual decorrem efeitos jurídicos independentemente da vontade do agente, e negócio jurídico, do qual decorrem os efeitos jurídicos perseguidos pelo agente.

Feitas, então, as distinções entre o ato jurídico “stricto sensu” e o negócio jurídico, cumpre-nos agora enquadrar os contratos nessa segunda categoria. Ora, os negócios jurídicos se subdividem em negócios jurídicos unilaterais, que se formam a partir da declaração de vontade de uma única pessoa, e negócios jurídicos bilaterais, que se formam a partir de declarações coincidentes de vontade de mais de um indivíduo (não custa lembrar também o contrato plurilateral, do qual é exemplo o contrato social, já estudado no capítulo referente ao direito societário).

Com base nos critérios distintivos acima delineados, portanto, pode-se compreender o contrato como um negócio jurídico bilateral.

3.1.   Princípios gerais dos contratos

Desde a sua formação, passando pela sua execução e até a sua definitiva resolução, o contrato se submete a uma série de princípios norteadores, atualmente disciplinados pelo Código Civil, dentre os quais se destacam, por exemplo, a boa-fé objetiva, a força obrigatória e a autonomia da vontade. Passemos, pois, a analisar detalhadamente os diversos princípios que informam o regime jurídico contratual dos empresários.

3.1.1.   Princípio da autonomia da vontade

O princípio fundamental da teoria geral do direito contratual é o da autonomia da vontade das partes contratantes, que assegura às pessoas a liberdade de contratar, desde que respeitada a chamada função social dos contratos, conforme determina o art. 421 do Código Civil: “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

Assim, as partes são livres, em princípio, para (i) escolher com quem vão manter relações contratuais, (ii) delimitar o que vai ser objeto da relação contratual e (iii) fixar o conteúdo dessa mesma relação.

Alguns autores desdobram o princípio da autonomia da vontade em duas vertentes distintas. A primeira seria a que consagra a liberdade de contratar, que assegura a faculdade de realizar ou não um determinado contrato. A segunda seria a que consagra a chamada liberdade contratual, que permite às partes estabelecer livremente o conteúdo do contrato.

Claro que essa liberdade de contratar assegurada às partes de maneira ampla pelo princípio da autonomia da vontade não é absoluta, sendo limitada não apenas pela necessidade de atendimento à sua função social, conforme determinação do art. 421 do Código Civil, mas também pelos preceitos de ordem pública e pelo respeito aos bons costumes.

Ademais, o ordenamento jurídico, hoje, tem procurado cada vez mais assegurar o equilíbrio contratual entre as partes contratantes, razão pela qual a própria legislação estipula limites, não raro, à autonomia da vontade, o que se convencionou chamar de dirigismo contratual.

O surgimento desse dirigismo contratual, apontam os doutrinadores, se deu em razão do reconhecimento de que a liberdade de contratar, num regime de desigualdades econômicas latentes, produz um forte desequilíbrio em muitas relações contratuais. Assim, é comum ler em obras sobre contratos a já famosa afirmação de que em matéria contratual “a lei liberta, e a liberdade escraviza”.

Registre-se aqui apenas uma opinião particular nossa. A autonomia da vontade, como se sabe, desenvolveu-se a partir da ideologia do liberalismo, que consagrou a liberdade individual que cada pessoa possui para obrigar-se contratualmente. Portanto, não nos encanta essa recente tendência de realçar o chamado conteúdo social do contrato. Trata-se, na verdade, de um flerte com o autoritarismo ideológico, uma brecha a mais para que a lei fustigue o individualismo. No âmbito do direito empresarial, o norte interpretativo deve ser sempre, na nossa modesta opinião, a autonomia da vontade das partes. Caso contrário, o que se instaura é a insegurança jurídica, que se manifesta especificamente nas atividades econômicas como um obstáculo ao desenvolvimento.

Em determinados ramos do direito, como o direito do consumidor e o direito do trabalho, por exemplo, pode até ser justificável, para alguns, a preocupação da lei em proteger a parte contratual reconhecidamente vulnerável (na visão liberal adotada na presente obra, nem isso é aceitável). O que não se pode é querer generalizar regras desses direitos especiais e transformá-las em normas gerais do direito contratual. Em vez disso, talvez fosse melhor o legislador tentar entender os motivos que fazem o Brasil aparecer sempre nas últimas posições no ranking que classifica os países segundo índices de cumprimentos dos contratos.

Finalmente, cabe ressaltar apenas que, no que tange ao cumprimento da função social do contrato empresarial, foi aprovado o Enunciado 26 da I Jornada de Direito Comercial do CJF, com o seguinte teor: “O contrato empresarial cumpre sua função social quando não acarreta prejuízo a direitos ou interesses, difusos ou coletivos, de titularidade de sujeitos não participantes da relação negocial”.

3.1.1.1.   O princípio da atipicidade dos contratos empresariais

Pode-se também analisar o princípio da autonomia da vontade sob outra perspectiva, relativa à possibilidade conferida às partes para a criação de contratos atípicos, isto é, não compreendidos nas modalidades típicas expressamente reguladas pelo ordenamento jurídico. Essa possibilidade, frise-se, está expressamente consagrada no atual Código Civil, em seu art. 425, segundo o qual “é lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código”.

Na verdade, nos contratos empresariais a atipicidade contratual deveria ser a regra geral, devendo o legislador evitar ao máximo criar contratos típicos.

Prevalecendo a atipicidade dos contratos empresariais, os empresários estariam absolutamente livres para celebrar qualquer tipo de contrato, adaptando cada avença às necessidades específicas de determinada negociação.

No entanto, quando se cria um contrato típico, com detalhada regulamentação legal, essa liberdade contratual dos empresários diminui, já que eles ficam impossibilitados de estipular cláusulas que supostamente contrariem a chamada “essência” do contrato ou as regras legais cogentes que o disciplinam. Isso ocorre, por exemplo, com muitos contratos de colaboração empresarial (representação comercial e franquia, por exemplo, que analisaremos adiante) e com o contrato de factoring, no caso da cláusula de regresso, que abordaremos com mais detalhes oportunamente.

3.1.2.   Princípio do consensualismo

De acordo com o princípio do consensualismo ou do consentimento, basta para a constituição do vínculo contratual o acordo de vontade entre as partes, sendo, pois, desnecessária qualquer outra condição para que se aperfeiçoe o contrato.

Nem todos os contratos, todavia, podem ser classificados como consensuais. Fogem a essa regra os contratos reais, para os quais, além do consentimento, é imprescindível, para o aperfeiçoamento da relação contratual, a entrega de uma determinada coisa. É o que ocorre, por exemplo, no mútuo, no depósito, no comodato etc. Da mesma forma, fogem à regra da necessidade do mero consentimento das partes os contratos solenes, que se submetem a formalidades específicas, sem as quais a relação contratual não se aperfeiçoa.

3.1.3.   Princípio da relatividade

Segundo o princípio da relatividade dos contratos, entende-se que a relação contratual produz efeitos somente entre as partes contratantes – bem como aos seus herdeiros, salvo se o contrato é personalíssimo – e não se estende além do objeto da avença.

Em outras palavras, pode-se dizer que esse princípio possui um aspecto subjetivo e outro aspecto objetivo. Quanto ao seu aspecto subjetivo, entende-se que o contrato vale apenas entre as pessoas que contraíram o vínculo contratual, não produzindo efeitos perante terceiros estranhos à relação pactuada. De acordo com o seu aspecto objetivo, por outro lado, entende-se que o contrato está restrito ao seu objeto, não atingindo bens estranhos a este.

Tal princípio, entretanto, não é absoluto, existindo algumas exceções quanto à sua aplicação, ou seja, há contratos que, excepcionalmente, produzem efeitos em relação a terceiros não vinculados à relação contratual. É o que ocorre, por exemplo, no contrato de seguro em favor de terceiro. Ressalte-se, entretanto, que para que o contrato possa produzir efeitos sobre a esfera jurídica de terceiros estranhos ao pacto, é preciso que esta possibilidade esteja prevista expressamente em lei.

3.1.3.1.   A teoria da aparência

Uma questão interessante acerca do princípio da relatividade dos contratos e que tem repercussão específica relevante no âmbito das relações empresariais é a da possibilidade de uma relação contratual acarretar deveres para pessoa estranha, em razão da ocorrência de situações aparentes que possam levar a erro contratantes de boa-fé.

A discussão se dá em função da aplicação da chamada teoria da aparência, segundo a qual, em determinados casos específicos em que um contratante de boa-fé engana-se diante de uma situação aparente, tomando-a como verdadeira, podem ser criadas obrigações em relação a terceiros que não atuaram diretamente na constituição do vínculo contratual.

A teoria da aparência, segundo aponta a doutrina, merece ser aplicada especificamente, por exemplo, nas hipóteses de excesso de mandato ou de continuação de mandato encerrado, o que ocorre, não raro, em relações mercantis. Outra hipótese específica de aplicação da teoria da aparência se dá nos contratos de representação comercial, quando o representante se desvia das orientações do representado.

A teoria da aparência tem tanta aplicação no âmbito dos contratos mercantis, que certa doutrina costuma identificar a proteção da aparência como característica essencial do direito empresarial.

3.1.4.   Princípio da força obrigatória

Visto que os contratos só geram direitos e deveres entre as partes contratantes, salvo em situações excepcionais, cumpre destacar que esses direitos e deveres assumidos valem como lei entre essas partes. Trata-se da aplicação do princípio da força obrigatória dos contratos, representado pela conhecida cláusula pacta sunt servanda, implícita em qualquer relação contratual.

Em outros termos, pode-se dizer ainda que o princípio da força obrigatória tem uma manifestação especial, relativa à impossibilidade de uma das partes contratantes se retratar ou alterar, unilateralmente, as condições acordadas. Assim, em consequência da força obrigatória, há nos contratos, implicitamente, uma cláusula geral de irretratabilidade e de intangibilidade, fundamental para a garantia da segurança jurídica das relações contratuais.

3.1.4.1.   A teoria da imprevisão

Da mesma forma que o princípio da relatividade é excepcionado pela teoria da aparência, conforme vimos, o princípio da força obrigatória também é excepcionado pela aplicação da chamada teoria da imprevisão, representada pela cláusula rebus sic stantibus, segundo a qual os direitos e deveres assumidos em um determinado contrato podem ser revisados se houver uma alteração significativa e imprevisível nas condições econômicas que originaram a constituição do vínculo contratual.

Ocorrendo tal alteração, pode acontecer de o cumprimento das obrigações contratuais assumidas se tornar demasiadamente oneroso para uma das partes, o que rompe o equilíbrio contratual e autoriza a revisão do contrato. Em síntese, pois, a cláusula rebus sic stantibus determina que a obrigatoriedade do contrato só deverá ser observada se as condições existentes no momento da celebração da avença se mantiverem inalteradas ou, pelo menos, sofrerem alterações que não afetem o equilíbrio contratual.

Registre-se que o Código Civil esteve atento a essa cláusula rebus sic stantibus, permitindo que o contrato seja resolvido ou modificado em razão de alterações fáticas relevantes e imprevisíveis que tornem a execução do pacto muito onerosa para uma das partes. Nesse sentido, dispôs o art. 478 do Código Civil que “nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”. O art. 479 do Código, por sua vez, permite uma solução alternativa, dispondo que “a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato”. O mesmo faz o art. 480 do Código em relação aos contratos em que apenas uma das partes assume obrigações: “se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva”.

No âmbito dos contratos empresariais, é temerário admitir a rescisão ou a revisão de contratos com base na onerosidade excessiva, ainda que esta seja decorrente de situações extraordinárias e imprevisíveis. Trata-se de uma regra que não pode ser aplicada indistintamente a contratos cíveis, contratos de consumo e contratos empresariais. Nas duas primeiras espécies de contrato, pode-se até aceitar a aplicação da teoria da imprevisão, mas nos contratos empresariais ela deve ser rechaçada.

Se um empresário celebra um contrato no qual ele vislumbra a possibilidade, ainda que mínima, de alterações circunstanciais que afetem a relação contratual, deve se precaver, por exemplo, por meio de um hedge.

O hedge é uma operação muito específica, usada principalmente no mercado de valores mobiliários (mercado de capitais). Traduzidas para o português, as expressões “hedge” ou “hedging” significam “cerca”, “proteção” ou “cobertura”, e isso ajuda a entender melhor o instituto, que visa a proteger um determinado agente econômico quanto a eventuais riscos de uma operação futura sujeita a oscilações naturais do seu mercado. Assim, o hedge, na verdade, não é um contrato típico, mas apenas uma operação ínsita a determinados negócios aleatórios (que envolvem risco), como os realizados no mercado de capitais, por exemplo.

Um exemplo bem simples de hedge é dado pela Exposição de Motivos da Resolução 272 do Conselho Monetário Nacional (CMN), que foi a primeira norma regulamentar das atividades de “hedging” no Brasil: “um exportador adquire, na época de colheita, uma mercadoria que será posteriormente vendida, a preços que poderão variar. Para se prevenir contra possíveis prejuízos causados pela oscilação de preços, o exportador vende a futuro igual quantidade na bolsa de mercadorias, para o prazo em que pretende efetivar a venda física das mercadorias estocadas. Quando ocorrer a venda das mercadorias, caso os preços tenham baixado, o prejuízo que terá em seus estoques de mercadorias será compensado pela liquidação do seu contrato a futuro, vendido a um preço mais caro, o que lhe dará um lucro”.

Finalmente, é preciso destacar também que, para um empresário, certas situações, que dizem respeito à sua atividade, não podem ser consideradas como fatos extraordinários e imprevisíveis. Por exemplo, podemos citar a variação cambial. Em contratos de consumo, o STJ já decidiu várias vezes que a variação cambial é motivo suficiente para a aplicação da teoria da imprevisão.

Direito do Consumidor. Leasing. Contrato com cláusula de correção atrelada à variação do dólar americano. Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. Revisão da cláusula que prevê a variação cambial. Onerosidade excessiva. Distribuição dos ônus da valorização cambial entre arrendantes e arrendatários. Recurso parcialmente acolhido. (...) III – Consoante o art. 6.°-V do Código de Defesa do Consumidor, sobrevindo, na execução do contrato, onerosidade excessiva para uma das partes, é possível a revisão da cláusula que gera o desajuste, a fim de recompor o equilíbrio da equação contratual. IV – No caso dos contratos de leasing atrelados à variação cambial, os arrendatários, pela própria conveniência e a despeito do risco inerente, escolheram a forma contratual que no momento da realização do negócio lhes garantia prestações mais baixas, posto que o custo financeiro dos empréstimos em dólar era bem menor do que os custos em reais. A súbita alteração na política cambial, condensada na maxidesvalorização do real, ocorrida em janeiro de 1999, entretanto, criou a circunstância da onerosidade excessiva, a justificar a revisão judicial da cláusula que a instituiu. V – Contendo o contrato opção entre outro indexador e a variação cambial e tendo sido consignado que os recursos a serem utilizados tinham sido captados no exterior, gerando para a arrendante a obrigação de pagamento em dólar, enseja-se a revisão da cláusula de variação cambial com base no art. 6.°-V do Código de Defesa do Consumidor, para permitir a distribuição, entre arrendantes e arrendatários, dos ônus da modificação súbita da política cambial com a significativa valorização do dólar americano (REsp 437.660/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4.ª Turma, j. 08.04.2003, DJ 05.05.2003, p. 306).

No entanto, o mesmo STJ, corretamente, já negou a aplicação da teoria da imprevisão, em contratos empresariais, em casos de variação cambial, bem como em outras situações normais às atividades do empresários, as quais não podem, portanto, serem consideradas fatos extraordinários e imprevisíveis.

Direito Civil e Comercial. Compra de safra futura de soja. Elevação do preço do produto. Teoria da imprevisão. Inaplicabilidade. Onerosidade excessiva. Inocorrência. 1. A cláusula rebus sic stantibus permite a inexecução de contrato comutativo – de trato sucessivo ou de execução diferida – se as bases fáticas sobre as quais se ergueu a avença alterarem-se, posteriormente, em razão de acontecimentos extraordinários, desconexos com os riscos ínsitos à prestação subjacente. 2. Nesse passo, em regra, é inaplicável a contrato de compra futura de soja a teoria da imprevisão, porquanto o produto vendido, cuja entrega foi diferida a um curto espaço de tempo, possui cotação em bolsa de valores e a flutuação diária do preço é inerente ao negócio entabulado. 3. A variação do preço da saca da soja ocorrida após a celebração do contrato não se consubstancia acontecimento extraordinário e imprevisível, inapto, portanto, à revisão da obrigação com fundamento em alteração das bases contratuais. 4. Ademais, a venda antecipada da soja garante a aferição de lucros razoáveis, previamente identificáveis, tornando o contrato infenso a quedas abruptas no preço do produto. Em realidade, não se pode falar em onerosidade excessiva, tampouco em prejuízo para o vendedor, mas tão somente em percepção de um lucro aquém daquele que teria, caso a venda se aperfeiçoasse em momento futuro. 5. Recurso especial conhecido e provido (REsp 849.228/GO, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4.ª Turma, j. 03.08.2010, DJe 12.08.2010).

Civil. Recurso especial. Ação revisional de contratos de compra e venda de safra futura de soja. Ocorrência de praga na lavoura, conhecida como “ferrugem asiática”. Onerosidade excessiva. Pedido formulado no sentido de se obter complementação do preço da saca de soja, de acordo com a cotação do produto em bolsa que se verificou no dia do vencimento dos contratos. Impossibilidade. Direito Agrário. Contrato de compra e venda de soja. Fechamento futuro do preço, em data a ser escolhida pelo produtor rural. Ausência de abusividade. Emissão de Cédula de Produto Rural (CPR) em garantia da operação. Anulação do título, porquanto o adiantamento do preço consubstanciaria requisito fundamental. Reforma da decisão. Reconhecimento da legalidade da CPR. Precedentes. – Nos termos de precedentes do STJ, a ocorrência de “ferrugem asiática” não é fato extraordinário e imprevisível conforme exigido pelo art. 478 do CC/02. – A Lei 8.929/94 não impõe, como requisito essencial para a emissão de uma Cédula de Produto Rural, o prévio pagamento pela aquisição dos produtos agrícolas nela representados. A emissão desse título pode se dar para financiamento da safra, com o pagamento antecipado do preço, mas também pode ocorrer numa operação de “hedge”, na qual o agricultor, independentemente do recebimento antecipado do pagamento, pretende apenas se proteger contra os riscos de flutuação de preços no mercado futuro. Recurso especial conhecido e provido (REsp 858.785/GO, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Rel. p/ Acórdão Min. Nancy Andrighi, 3.ª Turma, j. 08.06.2010, DJe 03.08.2010).

Corretíssimo o posicionamento do STJ. Empresários são profissionais dos seus respectivos ramos de atividade, não podendo alegar a imprevisibilidade de situações que dizem respeito aos negócios que exploram.

Por fim, destaquem-se alguns enunciados sobre o tema aprovados na I Jornada de Direito Comercial do CJF:

Enunciado 23. Em contratos empresariais, é lícito às partes contratantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação dos requisitos de revisão e/ou resolução do pacto contratual.

Enunciado 25. A revisão do contrato por onerosidade excessiva fundada no Código Civil deve levar em conta a natureza do objeto do contrato. Nas relações empresariais, deve-se presumir a sofisticação dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles acordada.

Estes enunciados estão em perfeita sintonia com o que defendemos nesta obra acerca da teoria geral dos contratos empresariais.

3.1.5.   Princípio da boa-fé

O princípio da boa-fé, no âmbito do direito contratual, está relacionado, em um primeiro aspecto, a uma questão de interpretação do contrato. Nesse sentido, entende-se que não se deve fazer prevalecer, sobre a real intenção das partes, apenas o que está eventualmente escrito no acordo firmado. Assim, em todos os contratos há certas regras implícitas, decorrentes da própria natureza da relação contratual firmada.

Mas esse princípio pode ser ainda visualizado sob outro aspecto, o da necessidade de as partes contratantes atuarem com boa-fé na celebração do contrato, bem como na sua execução, algo que é defendido há bastante tempo pela doutrina contratualista e que o Código Civil expressamente consagrou em seu art. 422: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Este dispositivo incorporou ao ordenamento jurídico-contratual brasileiro, conforme aponta a doutrina, o chamado princípio da boa-fé objetiva.

Com base na interpretação da norma do art. 422 do Código Civil, foram aprovados importantes enunciados nas Jornadas de Direito Civil promovidas pelo Conselho da Justiça Federal. O Enunciado 168 dispõe que “o princípio da boa-fé objetiva importa no reconhecimento de um direito a cumprir em função o titular passivo da obrigação”. Já o Enunciado 169 dispõe que “o princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”. O Enunciado 170, por sua vez, dispõe que “a boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato”.

Finalmente, sobre a aplicação do princípio da boa-fé objetiva especificamente aos contratos empresariais, foi aprovado o Enunciado 27 da I Jornada de Direito Comercial do CJF: “Não se presume violação à boa-fé objetiva se o empresário, durante as negociações do contrato empresarial, preservar segredo de empresa ou administrar a prestação de informações reservadas, confidenciais ou estratégicas, com o objetivo de não colocar em risco a competitividade de sua atividade”.

3.2.   A exceção do contrato não cumprido

Para finalizar este tópico sobre a teoria geral do direito contratual, importante destacar a importância da consagração da chamada exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus), segundo a qual uma parte contratante não pode exigir o cumprimento da obrigação da outra parte se não cumpriu também a sua obrigação respectiva.

É o que determina de forma bastante clara o art. 476 do Código Civil, segundo o qual “nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”.

O art. 477 do Código Civil, por sua vez, traz uma regra complementar à do art. 476, dispondo o seguinte: “se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la”.

3.3.   A teoria do adimplemento substancial

A tão propalada “socialização” do contrato, provocada pelo Código Civil de 2002, por meio da consagração dos princípios da função social dos contratos (art. 421) e da boa-fé objetiva (art. 422), dentre outros, tem dado ensejo, conforme temos destacado neste capítulo, a entendimentos temerários, os quais nos permitem afirmar, sem medo, que vivemos um período de “crise” das relações contratuais.

Não duvidamos também de que tal “socialização” do contrato é uma das principais razões pelas quais o Brasil fica sempre nos últimos lugares em pesquisas sobre cumprimentos de acordos e afins.

Um desses entendimentos temerários a que nos referimos é a banalização da aplicação da chamada “teoria do adimplemento substancial”, construção teórica que deve ser aplicada com muita cautela, algo que, infelizmente, não tem sido feito pelos nossos tribunais, os quais muitas vezes usam critérios meramente matemáticos para tanto (reconhece-se o adimplemento substancial, por exemplo, quando, num financiamento de 36 meses, o devedor pagou 30 parcelas ou mais, aproximadamente). Confiram-se, a propósito, os seguintes julgados do STJ:

Direito Civil. Contrato de arrendamento mercantil para aquisição de veículo (leasing). Pagamento de trinta e uma das trinta e seis parcelas devidas. Resolução do contrato. Ação de reintegração de posse. Descabimento. Medidas desproporcionais diante do débito remanescente. Aplicação da teoria do adimplemento substancial. 1. É pela lente das cláusulas gerais previstas no Código Civil de 2002, sobretudo a da boa-fé objetiva e da função social, que deve ser lido o art. 475, segundo o qual “[a] parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos”. 2. Nessa linha de entendimento, a teoria do substancial adimplemento visa a impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença, com vistas à realização dos princípios da boa-fé e da função social do contrato. 3. No caso em apreço, é de se aplicar a da teoria do adimplemento substancial dos contratos, porquanto o réu pagou: “31 das 36 prestações contratadas, 86% da obrigação total (contraprestação e VRG parcelado) e mais R$ 10.500,44 de valor residual garantido”. O mencionado descumprimento contratual é inapto a ensejar a reintegração de posse pretendida e, consequentemente, a resolução do contrato de arrendamento mercantil, medidas desproporcionais diante do substancial adimplemento da avença. 4. Não se está a afirmar que a dívida não paga desaparece, o que seria um convite a toda sorte de fraudes. Apenas se afirma que o meio de realização do crédito por que optou a instituição financeira não se mostra consentâneo com a extensão do inadimplemento e, de resto, com os ventos do Código Civil de 2002. Pode, certamente, o credor valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à persecução do crédito remanescente, como, por exemplo, a execução do título. 5. Recurso especial não conhecido (REsp 1.051.270/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4.ª Turma, j. 04.08.2011, DJe 05.09.2011).

Processual civil. Recurso especial. Prequestionamento. Tema central. Consignação em pagamento. Depósito parcial. Procedência na mesma extensão. Alienação fiduciária. Busca e apreensão. Adimplemento substancial. Improcedência. Possibilidade. Desprovimento. I. “É inequívoco o prequestionamento quando a questão objeto do especial é o tema central do acórdão estadual.” (AgRg no Ag 1.012.324/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, Unânime, DJe: 24.11.2008) II. “Esta Corte de Uniformização Infraconstitucional firmou entendimento no sentido de que o depósito efetuado a menor em ação de consignação em pagamento não acarreta a total improcedência do pedido, na medida em que a obrigação é parcialmente adimplida pelo montante consignado, acarretando a liberação parcial do devedor. O restante do débito, reconhecido pelo julgador, pode ser objeto de execução nos próprios autos da ação consignatória (cf. REsp n.° 99.489/SC, Rel. Ministro Barros Monteiro, DJ de 28.10.2002; REsp n.° 599.520/TO, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJ de 1.2.2005; REsp n.° 448.602/SC, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 17.2.2003; AgRg no REsp n.° 41.953/SP, Rel. Ministro Aldir Passarinho Júnior, DJ de 6.10.2003; REsp n.° 126.326/RJ, Rel. Ministro Barros Monteiro, DJ de 22.9.2003).” (REsp 613.552/RS, Rel. Min. Jorge Scartezzini, Quarta Turma, Unânime, DJ: 14.11.2005, p. 329). III. Se as instâncias ordinárias reconhecem, após a apreciação de ações consignatória e de busca e apreensão, com fundamento na prova dos autos, que é extremamente diminuto o saldo remanescente em favor do credor de contrato de alienação fiduciária, não se justifica o prosseguimento da ação de busca e apreensão, sendo lícita a cobrança do pequeno valor ainda devido nos autos do processo. IV. Recurso especial a que se nega provimento (REsp 912.697/RO, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, 4.ª Turma, j. 07.10.2010, DJe 25.10.2010).

4.   COMPRA E VENDA EMPRESARIAL

Iniciaremos o estudo específico dos contratos estritamente empresariais com o contrato de compra e venda empresarial, por se tratar, com certeza, da mais importante e relevante modalidade contratual para o exercício de atividade econômica organizada.

De acordo com o art. 481 do Código Civil, “pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro”. Assim, o vendedor assume a obrigação de entregar ao comprador determinada coisa, e este assume a obrigação de entregar àquele o respectivo preço.

Claro que nem todo contrato de compra e venda é empresarial. Até a entrada em vigor do Código Civil de 2002 só eram mercantis os contratos de compra e venda que atendessem a três requisitos, de forma cumulativa: (i) o subjetivo, que exigia a presença de um comerciante em um dos polos da relação contratual, ou seja, como comprador ou vendedor; (ii) o objetivo, que restringia a mercantilidade da compra e venda aos contratos que tivessem por objeto, apenas, bens móveis ou semoventes; e (iii) o finalístico, segundo o qual só era mercantil a compra e venda que tivesse a finalidade de propiciar a circulação de mercadorias.

Com a entrada em vigor do Código de 2002, todavia, a situação mudou radicalmente, e agora uma compra e venda é considerada mercantil a depender, tão somente, da qualidade de empresário das partes contratantes. Assim, é mercantil o contrato de compra e venda celebrado entre empresários, ou seja, em que comprador e vendedor são empresários (empresários individuais ou sociedades empresárias), com a ressalva já apontada quanto aos casos em que o empresário comprador se enquadra no conceito de consumidor, hipótese em que terão incidência as normas especiais do CDC (Lei 8.078/1990).

4.1.   Elementos essenciais da compra e venda

Segundo entendimento unânime da doutrina contratualista, o contrato de compra e venda possui três elementos essenciais à sua caracterização: (i) o consentimento; (ii) a coisa; e (iii) o preço.

É o que se infere a partir da leitura do art. 482 do Código Civil, segundo o qual “a compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no preço”.

No que se refere ao consentimento, deve ele ser livre e espontâneo, sob pena de o contrato de compra e venda se tornar anulável por vício na sua formação. Assim, pode-se dizer que a compra e venda é um contrato consensual, que se aperfeiçoa, pois, a partir do mero consentimento das partes acerca do seu objeto, do respectivo preço e das demais condições da avença. Ressalve-se, contudo, a situação especial da compra e venda de bens imóveis, que somente se aperfeiçoa com o respectivo registro, nos termos do art. 108 do Código Civil.

Quanto à coisa objeto da compra e venda, por sua vez, ela pode ser um bem móvel, semovente ou imóvel, podendo ainda se referir a bens incorpóreos. O Código Civil contempla algumas regras específicas sobre o tema. De acordo com o art. 483 do Código Civil, “a compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura. Neste caso, ficará sem efeito o contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório”. Assim, a mercadoria não precisa, necessariamente, ser uma coisa presente, que exista já no momento da celebração do contrato. É plenamente possível que a mercadoria contratada seja uma coisa futura, isto é, ainda não existente no momento da contratação. É o que ocorre, por exemplo, num contrato de compra e venda de uma determinada safra. Atente-se, apenas, para o final da regra em comento, segundo a qual, nos casos de compra e venda relativa à coisa futura (emptio rei speratae = venda de coisa esperada), o contrato não produzirá efeito se esta não vier a existir, salvo se as partes contratantes tiverem firmado contrato aleatório, ou seja, que envolve risco. Nesse caso, as partes já sabiam do risco de a coisa futura não vir a existir, e, assim, esse fato, por si só, não torna sem efeito a relação contratual. A parte que assumiu esse risco arcará com os prejuízos decorrentes.

Outra regra específica relativa à coisa objeto da compra e venda está prevista no art. 484 do Código Civil, segundo o qual, “se a venda se realizar à vista de amostras, protótipos ou modelos, entender-se-á que o vendedor assegura ter a coisa as qualidades que a elas correspondem”. Complementando a regra do caput, dispõe o seu parágrafo único que “prevalece a amostra, o protótipo ou o modelo, se houver contradição ou diferença com a maneira pela qual se descreveu a coisa no contrato”.

No que se refere ao preço, é óbvio que as partes devem estipulá-lo. O Código também traz uma série de regras específicas sobre o assunto. Segundo o art. 485 do Código Civil, “a fixação do preço pode ser deixada ao arbítrio de terceiro, que os contratantes logo designarem ou prometerem designar. Se o terceiro não aceitar a incumbência, ficará sem efeito o contrato, salvo quando acordarem os contratantes designar outra pessoa”.

Já o art. 486 do Código prevê a possibilidade de as partes contratantes deixarem “a fixação do preço à taxa de mercado ou de bolsa, em certo e determinado dia e lugar”.

O art. 487 do Código, por sua vez, determina que “é lícito às partes fixar o preço em função de índices ou parâmetros, desde que suscetíveis de objetiva determinação”.

Caso, todavia, as partes contratantes não estipulem expressamente o preço nem o fixem nos termos das regras acima transcritas, aplica-se a regra do art. 488 do Código, que assim dispõe: “convencionada a venda sem fixação de preço ou de critérios para a sua determinação, se não houver tabelamento oficial, entende-se que as partes se sujeitaram ao preço corrente nas vendas habituais do vendedor”. E o seu parágrafo único complementa, afirmando que “na falta de acordo, por ter havido diversidade de preço, prevalecerá o termo médio”.

O que a legislação não admite, porém, é que se deixe ao arbítrio exclusivo de uma das partes a fixação do preço, pois nesse caso o contrato de compra e venda será considerado nulo, conforme disposto no art. 489 do Código: “nulo é o contrato de compra e venda, quando se deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes a fixação do preço”.

Por fim, registre-se que, em decorrência da própria aplicação da conhecida cláusula da exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus), o art. 491 do Código determina que “não sendo a venda a crédito, o vendedor não é obrigado a entregar a coisa antes de receber o preço”.

4.2.   Direitos e deveres fundamentais do comprador e do vendedor

Como contrato sinalagmático que é, a compra e venda gera direitos e deveres para ambas as partes contratantes, quais sejam comprador e vendedor. A mais elementar obrigação do comprador é pagar o preço correspondente à coisa comprada, o que lhe assegura o respectivo direito de recebê-la. Consequentemente, cabe ao vendedor a obrigação de entregar a coisa vendida, bem como o direito de receber o preço dela. Porém, estes, embora sejam os principais direitos e deveres do comprador e do vendedor, não são os únicos, obviamente. O Código Civil possui uma série de regras específicas que trata de direitos e deveres acessórios relativos à compra e venda.

De acordo com o art. 490 do Código, “salvo cláusula em contrário, ficarão as despesas de escritura e registro a cargo do comprador, e a cargo do vendedor as da tradição”. O art. 492, por sua vez, prevê que “até o momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor, e os do preço por conta do comprador”. O § 1°, no entanto, faz uma ressalva, dispondo o seguinte: “todavia, os casos fortuitos, ocorrentes no ato de contar, marcar ou assinalar coisas, que comumente se recebem, contando, pesando, medindo ou assinalando, e que já tiverem sido postas à disposição do comprador, correrão por conta deste”. E o § 2° dispõe que “correrão também por conta do comprador os riscos das referidas coisas, se estiver em mora de as receber, quando postas à sua disposição no tempo, lugar e pelo modo ajustados”.

No que se refere à regra do art. 490, mencionada acima, cabe fazer uma importante ressalva: as partes podem estipular no contrato regras diversas da prevista em lei. Nesse sentido, a prática empresarial criou os chamados INCOTERMS 2000, que são termos internacionais de comércio que definem os direitos e obrigações mínimas do vendedor e do comprador quanto a fretes, seguros, movimentação em terminais, liberações em alfândegas e obtenção de documentos de um contrato internacional de venda de mercadorias, como, por exemplo, as cláusulas FOB (free on board) e CIF (cost, insurance and freight). Segundo a cláusula FOB, todas as despesas correm por conta do comprador. Já pela cláusula CIF, o preço abrange, além do valor das mercadorias, também o valor do frete e do seguro.

A seguir, confira-se a Resolução 21/2011, da CAMEX, que reproduz os Incoterms, versão 2010, divulgados pela Câmara Internacional de Comércio:

RESOLUÇÃO N° 21, DE 07 DE ABRIL DE 2011

O PRESIDENTE DO CONSELHO DE MINISTROS DA CÂMARA DE COMÉRCIO EXTERIOR, no uso da atribuição que lhe confere o § 3° do art. 5° do Decreto ri° 4.732, de 10 de junho de 2003, com fundamento na alínea “a” do inciso III e no inciso VII do art. 2o do mesmo diploma legal,

RESOLVE, adreferendum do Conselho:

Art. 1° Nas exportações e importações brasileiras, serão aceitas quaisquer condições de venda praticadas no comércio internacional, desde que compatíveis com o ordenamento jurídico nacional.

Art. 2° Para fins de identificação da condição de venda praticada, nos documentos e registros de controle dos órgãos da Administração Federal, deverão ser adotados os seguintes códigos:

I – Termos Internacionais de Comércio (Incoterms) discriminados pela International Chamber of Commerce (ICC) em sua Publicação n° 715E, de 2010:

CÓDIGO

DESCRIÇÃO

EXW

EX WORKS (namedplace of delivery)

NA ORIGEM (local de entrega nomeado)

O vendedor limita-se a colocar a mercadoria à disposição do comprador no seu domicílio, no prazo estabelecido, não se responsabilizando pelo desembaraço para exportação nem pelo carregamento da mercadoria em qualquer veículo coletor.

Utilizável em qualquer modalidade de transporte.

Nota: em virtude de o comprador estrangeiro não dispor de condições legais para providenciar o desembaraço para saída de bens do País, fica subentendido que esta providência é adotada pelo vendedor, sob suas expensas e riscos, no caso da exportação brasileira.

FCA

FREE CARRIER (named place of delivery)

LIVRE NO TRANSPORTADOR (local de entrega nomeado)

O vendedor completa suas obrigações e encerra sua responsabilidade quando entrega a mercadoria, desembaraçada para a exportação, ao transportador ou a outra pessoa indicada pelo comprador, no local nomeado do país de origem.

Utilizável em qualquer modalidade de transporte.

FAS

FREE ALONGSIDE SHIP (named port of shipment)

LIVRE AO LADO DO NAVIO (porto de embarque nomeado)

O vendedor encerra suas obrigações no momento em que a mercadoria é colocada, desembaraçada para exportação, ao longo do costado do navio transportador indicado pelo comprador, no cais ou em embarcações utilizadas para carregamento da mercadoria, no porto de embarque nomeado pelo comprador.

Utilizável exclusivamente no transporte aquaviário (marítimo ou hidroviário interior).

FOB

FREE ON BOARD (namedport of shipment)

LIVRE A BORDO (porto de embarque nomeado)

O vendedor encerra suas obrigações e responsabilidades quando a mercadoria, desembaraçada para a exportação, é entregue, arrumada, a bordo do navio no porto de embarque, ambos indicados pelo comprador, na data ou dentro do período acordado.

Utilizável exclusivamente no transporte aquaviário (marítimo ou hidroviário interior).

CFR

COST AND FREIGHT (namedport of destination)

CUSTO E FRETE (porto de destino nomeado)

Além de arcar com obrigações e riscos previstos para o termo FOB, o vendedor contrata e paga frete e custos necessários para levar a mercadoria até o porto de destino combinado.

Utilizável exclusivamente no transporte aquaviário (marítimo ou hidroviário interior).

CIF

COST, INSURANCE AND FREIGHT (named port of destination)

CUSTO, SEGURO E FRETE (porto de destino nomeado)

Além de arcar com obrigações e riscos previstos para o termo FOB, o vendedor contrata e paga frete, custos e seguro relativos ao transporte da mercadoria até o porto de destino combinado.

Utilizável exclusivamente no transporte aquaviário (marítimo ou hidroviário interior).

CPT

CARRIAGE PAID TO (named place of destination)

TRANSPORTE PAGO ATÉ (local de destino nomeado)

Além de arcar com obrigações e riscos previstos para o termo FCA, o vendedor contrata e paga frete e custos necessários para levar a mercadoria até o local de destino combinado.

Utilizável em qualquer modalidade de transporte.

CIP

CARRIAGE AND INSURANCE PAID TO (named place of destination)

TRANSPORTE E SEGURO PAGOS ATÉ (local de destino nomeado)

Além de arcar com obrigações e riscos previstos para o termo FCA, o vendedor contrata e paga frete, custos e seguro relativos ao transporte da mercadoria até o local de destino combinado.

Utilizável em qualquer modalidade de transporte.

DAT

DELIVERED AT TERMINAL (named terminal at port or place of destination)

ENTREGUE NO TERMINAL (terminal nomeado no porto ou local de destino)

O vendedor completa suas obrigações e encerra sua responsabilidade quando a mercadoria é colocada à disposição do comprador, na data ou dentro do período acordado, num terminal de destino nomeado (cais, terminal de contêineres ou armazém, dentre outros), descarregada do veículo transportador mas não desembaraçada para importação.

Utilizável em qualquer modalidade de transporte.

DAP

DELIVERED AT PLACE (named place of destination)

ENTREGUE NO LOCAL (local de destino nomeado)

O vendedor completa suas obrigações e encerra sua responsabilidade quando coloca a mercadoria à disposição do comprador, na data ou dentro do período acordado, num local de destino indicado que não seja um terminal, pronta para ser descarregada do veículo transportador e não desembaraçada para importação. Utilizável em qualquer modalidade de transporte.

DDP

DELIVERED DUTY PAID (named place of destination)

ENTREGUE COM DIREITOS PAGOS (local de destino nomeado)

O vendedor completa suas obrigações e encerra sua responsabilidade quando a mercadoria é colocada à disposição do comprador, na data ou dentro do período acordado, no local de destino designado no país importador, não descarregada do meio de transporte. O vendedor, além do desembaraço, assume todos os riscos e custos, inclusive impostos, taxas e outros encargos incidentes na importação. Utilizável em qualquer modalidade de transporte.

Nota: em virtude de o vendedor estrangeiro não dispor de condições legais para providenciar o desembaraço para entrada de bens do País, este termo não pode ser utilizado na importação brasileira, devendo ser escolhido o DAT ou DAP no caso de preferência por condição disciplinada pela ICC.

II – Condições de venda não disciplinadas pela publicação n° 715E, de 2010, da ICC:

CÓDIGO

DESCRIÇÃO

C + F

COST PLUS FREIGHT

CUSTO MAIS FRETE

O vendedor arca com os custos e riscos das tarefas no país de exportação, bem como contrata e paga o transporte internacional convencional.
Utilizável em qualquer modalidade de transporte.

C + I

COST PLUS INSURANCE

CUSTO MAIS SEGURO

O vendedor arca com os custos e riscos das tarefas no país de exportação, bem como contrata e paga o seguro de transporte internacional convencional. Utilizável em qualquer modalidade de transporte.

OCV

OUTRA CONDIÇÃO DE VENDA

Utilizável em operação que não se enquadre em qualquer das situações descritas nesta Resolução.

Parágrafo único. As descrições contidas neste artigo não têm o objetivo de disciplinar as condições de venda acordadas entre as partes nas exportações e importações nem substituem ou alteram as regras definidas para os Incoterms pela ICC em sua Publicação n° 715E, de 2010.

Art. 3° A utilização das condições de venda previstas nesta Resolução não modifica as responsabilidades legais das pessoas envolvidas nas operações de exportação e de importação perante as autoridades administrativas.

Art. 4° Esta Resolução entra em vigor em 30 dias após a sua publicação.

FERNANDO DAMATA PIMENTEL

No que se refere ao local da entrega da mercadoria vendida, dispõe o art. 493 do Código que “a tradição da coisa vendida, na falta de estipulação expressa, dar-se-á no lugar onde ela se encontrava, ao tempo da venda”. Porém, o art. 494 traz regra excepcional, dispondo que “se a coisa for expedida para lugar diverso, por ordem do comprador, por sua conta correrão os riscos, uma vez entregue a quem haja de transportá-la, salvo se das instruções dele se afastar o vendedor”.

Quanto aos débitos anteriores à entrega que eventualmente recaiam sobre a mercadoria comprada, o Código estabelece a responsabilidade do vendedor, salvo se o contrato dispuser expressamente de forma diversa. É o que determina o art. 502: “o vendedor, salvo convenção em contrário, responde por todos os débitos que gravem a coisa até o momento da tradição”.

4.3.   Cláusulas especiais da compra e venda

A compra e venda é um contrato que admite a sua celebração com algumas cláusulas especiais, que configuram verdadeiros pactos acessórios ou adjetos à compra e venda. O Código Civil não os esqueceu, trazendo em seu bojo todo um conjunto de regras específicas para a disciplina do assunto.

4.3.1.   Retrovenda

A cláusula especial de retrovenda é aquela que assegura ao vendedor, nos contratos de compra e venda de bem imóvel, o direito de recomprar o bem vendido no prazo máximo de três anos após a venda. Essa cláusula está disciplinada pelo Código Civil em seu art. 505, que assim dispõe: “o vendedor de coisa imóvel pode reservar-se o direito de recobrá-la no prazo máximo de decadência de três anos, restituindo o preço recebido e reembolsando as despesas do comprador, inclusive as que, durante o período de resgate, se efetuaram com a sua autorização escrita, ou para a realização de benfeitorias necessárias”. Frise-se que a retrovenda, como é fácil perceber da leitura do dispositivo transcrito, só é possível quando o bem objeto do contrato for imóvel.

Caso o comprador não queira receber o dinheiro a que tem direito, colocando empecilhos para a recompra do bem, caberá ao vendedor recorrer ao Judiciário, efetuando o depósito judicial do valor, nos termos do que dispõe o art. 506 do Código: “se o comprador se recusar a receber as quantias a que faz jus, o vendedor, para exercer o direito de resgate, as depositará judicialmente”. Claro que o depósito tem que ser do valor integral devido ao comprador. Assim, determina o parágrafo único do art. 506 que, “verificada a insuficiência do depósito judicial, não será o vendedor restituído no domínio da coisa, até e enquanto não for integralmente pago o comprador”.

O art. 507 do Código assegura a possibilidade de recompra do bem também aos sucessores do vendedor, e este direito pode ser exercido, inclusive, contra um terceiro adquirente. Eis o teor da norma: “o direito de retrato, que é cessível e transmissível a herdeiros e legatários, poderá ser exercido contra o terceiro adquirente”.

Por fim, o Código regula a hipótese excepcional de existência de mais de um direito de recompra sobre um mesmo bem imóvel. Nesse caso, estabelece o art. 508 do Código que “se a duas ou mais pessoas couber o direito de retrato sobre o mesmo imóvel, e só uma o exercer, poderá o comprador intimar as outras para nele acordarem, prevalecendo o pacto em favor de quem haja efetuado o depósito, contanto que seja integral”.

4.3.2.   Venda a contento

Outra cláusula especial da compra e venda expressamente disciplinada pelo Código Civil é a chamada venda a contento. Trata-se de venda realizada sob condição suspensiva, relacionada ao agrado do comprador em relação à mercadoria adquirida. O contrato só se aperfeiçoa, então, quando o comprador manifesta o seu contentamento com a mercadoria entregue pelo vendedor. É o que dispõe o art. 509 do Código Civil, segundo o qual “a venda feita a contento do comprador entende-se realizada sob condição suspensiva, ainda que a coisa lhe tenha sido entregue; e não se reputará perfeita, enquanto o adquirente não manifestar seu agrado”.

Uma modalidade especial de venda a contento é a venda sujeita a prova, regulada pelo art. 510 do Código Civil. Nesse caso, a venda também é feita sob condição suspensiva, mas desta vez relacionada à certeza de que a coisa vendida tenha realmente as qualidades que o vendedor assegurou. Eis o teor da regra em questão: “também a venda sujeita a prova presume-se feita sob a condição suspensiva de que a coisa tenha as qualidades asseguradas pelo vendedor e seja idônea para o fim a que se destina”.

Assim, na venda a contento, enquanto o comprador não manifesta seu agrado sobre a coisa comprada, assume a posição de mero comodatário, nos termos do art. 511 do Código, que assim dispõe: “em ambos os casos, as obrigações do comprador, que recebeu, sob condição suspensiva, a coisa comprada, são as de mero comodatário, enquanto não manifeste aceitá-la”.

Claro, porém, que o comprador deve manifestar seu agrado ou desagrado em um determinado prazo, que deve vir estipulado no contrato. Caso, todavia, não exista essa estipulação expressa, aplica-se a regra do art. 512 do Código, segundo a qual “não havendo prazo estipulado para a declaração do comprador, o vendedor terá direito de intimá-lo, judicial ou extrajudicialmente, para que o faça em prazo improrrogável”.

4.3.3.   Preempção ou preferência

Outra cláusula especial que pode ser estipulada nos contratos de compra e venda é da preempção ou preferência, que assegura ao vendedor o chamado direito de prelação. Segundo essa cláusula, sempre que o comprador quiser vender ou dar em pagamento o bem que adquiriu do vendedor, tem que oferecê-lo a este, nas mesmas condições de preço. É o que determina o art. 513 do Código, segundo o qual “a preempção, ou preferência, impõe ao comprador a obrigação de oferecer ao vendedor a coisa que aquele vai vender, ou dar em pagamento, para que este use de seu direito de prelação na compra, tanto por tanto”. De acordo com o parágrafo único desse dispositivo, “o prazo para exercer o direito de preferência não poderá exceder a cento e oitenta dias, se a coisa for móvel, ou a dois anos, se imóvel”.

Se o vendedor souber, de alguma forma, que o comprador pretende vender o bem, poderá intimá-lo para que resguarde o seu direito de prelação (o legislador usa três termos como sinônimos: preempção, preferência e prelação), nos termos do art. 514 do Código: “o vendedor pode também exercer o seu direito de prelação, intimando o comprador, quando lhe constar que este vai vender a coisa”.

Se o vendedor exercer a preferência, então recairá sobre ele a obrigação legal de pagar o mesmo preço e nas mesmas condições da venda que seria feita. É o que manda o art. 515 do Código: “aquele que exerce a preferência está, sob pena de a perder, obrigado a pagar, em condições iguais, o preço encontrado, ou o ajustado”.

Comunicado acerca da venda ou da dação em pagamento do bem, o vendedor deverá exercer o seu direito de prelação, se assim o desejar, no prazo previsto no art. 516 do Código, que assim dispõe: “inexistindo prazo estipulado, o direito de preempção caducará, se a coisa for móvel, não se exercendo nos três dias, e, se for imóvel, não se exercendo nos sessenta dias subsequentes à data em que o comprador tiver notificado o vendedor”.

O art. 517, por sua vez, regula a situação em que a preempção foi assegurada a mais de uma pessoa, assim dispondo: “quando o direito de preempção for estipulado a favor de dois ou mais indivíduos em comum, só pode ser exercido em relação à coisa no seu todo. Se alguma das pessoas, a quem ele toque, perder ou não exercer o seu direito, poderão as demais utilizá-lo na forma sobredita”.

Caso a cláusula especial da preempção não seja respeitada pelo comprador, claro que o Código lhe atribui responsabilidades. Nesse sentido, estabelece o art. 518 que “responderá por perdas e danos o comprador, se alienar a coisa sem ter dado ao vendedor ciência do preço e das vantagens que por ela lhe oferecem. Responderá solidariamente o adquirente, se tiver procedido de má-fé”.

Por fim, registre-se que, nos termos do art. 520 do Código, “o direito de preferência não se pode ceder nem passa aos herdeiros”. Trata-se, pois, de um direito exclusivo do vendedor.

4.3.4.   Venda com reserva de domínio

Outra cláusula especial da compra e venda é a que assegura ao vendedor a reserva de domínio sobre a coisa vendida, até que o comprador pague integralmente o preço ajustado. Está regulada no art. 521 do Código, que assim dispõe: “na venda de coisa móvel, pode o vendedor reservar para si a propriedade, até que o preço esteja integralmente pago”. Perceba-se que essa cláusula especial de reserva de domínio só é possível quando o bem objeto do contrato for móvel.

Para que essa cláusula produza os seus efeitos legais perante terceiros, deve estar expressamente prevista no contrato, além de ser registrada em cartório, no local do domicílio do comprador. Nesse sentido é a regra do art. 522 do Código: “a cláusula de reserva de domínio será estipulada por escrito e depende de registro no domicílio do comprador para valer contra terceiros”.

Além de o bem ser móvel, é imprescindível que ele seja suscetível de caracterização perfeita. Assim, de acordo com o art. 523 do Código, “não pode ser objeto de venda com reserva de domínio a coisa insuscetível de caracterização perfeita, para estremá-la de outras congêneres. Na dúvida, decide-se a favor do terceiro adquirente de boa-fé”.

Se a compra e venda contém a cláusula especial de reserva de domínio, dá-se então o seguinte: o comprador, enquanto não terminar de pagar o preço, não tem a propriedade do bem, que continua sendo, pois, do vendedor. Apenas quando houver o pagamento integral do preço, dar-se-á a transferência de propriedade do bem do vendedor para o comprador. Não obstante, como o comprador fica na posse do bem desde a formalização do contrato, ele responde pelos riscos da coisa desde o momento em que ela lhe foi entregue, nos termos do que dispõe o art. 524 do Código: “a transferência de propriedade ao comprador dá-se no momento em que o preço esteja integralmente pago. Todavia, pelos riscos da coisa responde o comprador, a partir de quando lhe foi entregue”.

Como a propriedade do bem, conforme destacamos acima, é do vendedor, enquanto não pago o preço integralmente, ele poderá, em caso de inadimplemento por parte do comprador, tomar duas atitudes: (i) cobrar as prestações, com as devidas correções e juros; (ii) tomar o bem de volta. É o que prevê o art. 526 do Código: “verificada a mora do comprador, poderá o vendedor mover contra ele a competente ação de cobrança das prestações vencidas e vincendas e o mais que lhe for devido; ou poderá recuperar a posse da coisa vendida”.

Para tomar o bem de volta, todavia, recuperando a sua posse, deverá o vendedor constituir o comprador em mora, o que pode ser feito por meio de protesto do título que embasou a venda ou mediante interpelação judicial. Nesse sentido é o art. 525 do Código: “o vendedor somente poderá executar a cláusula de reserva de domínio após constituir o comprador em mora, mediante protesto do título ou interpelação judicial”.

É claro que, caso o vendedor execute a cláusula de reserva de domínio, tomando o bem de volta e recuperando a sua posse, deverá restituir ao comprador as prestações eventualmente pagas por ele. Todavia, prevê o Código, em seu art. 527, que nesse caso “é facultado ao vendedor reter as prestações pagas até o necessário para cobrir a depreciação da coisa, as despesas feitas e o mais que de direito lhe for devido. O excedente será devolvido ao comprador; e o que faltar lhe será cobrado, tudo na forma da lei processual”.

Por fim, dispõe o art. 528 do Código que “se o vendedor receber o pagamento à vista, ou, posteriormente, mediante financiamento de instituição do mercado de capitais, a esta caberá exercer os direitos e ações decorrentes do contrato, a benefício de qualquer outro. A operação financeira e a respectiva ciência do comprador constarão do registro do contrato”.

4.3.5.   Venda sobre documentos

A última cláusula especial do contrato de compra e venda disciplinada pelo Código Civil é a referente à venda sobre documentos. De acordo com o art. 529 do Código, “na venda sobre documentos, a tradição da coisa é substituída pela entrega do seu título representativo e dos outros documentos exigidos pelo contrato ou, no silêncio deste, pelos usos”. Veja-se, pois, que nesse contrato especial de compra e venda não há a tradição da própria coisa vendida, mas tão somente de um título ou de documentos que a representem.

Dispõe o parágrafo único do art. 529 do Código que, “achando-se a documentação em ordem, não pode o comprador recusar o pagamento, a pretexto de defeito de qualidade ou do estado da coisa vendida, salvo se o defeito já houver sido comprovado”.

Já o art. 530 do Código determina que, “não havendo estipulação em contrário, o pagamento deve ser efetuado na data e no lugar da entrega dos documentos”. O art. 531, por sua vez, prevê que “se entre os documentos entregues ao comprador figurar apólice de seguro que cubra os riscos do transporte, correm estes à conta do comprador, salvo se, ao ser concluído o contrato, tivesse o vendedor ciência da perda ou avaria da coisa”. Por fim, o art. 532 determina que, “estipulado o pagamento por intermédio de estabelecimento bancário, caberá a este efetuá-lo contra a entrega dos documentos, sem obrigação de verificar a coisa vendida, pela qual não responde”. Complementando a regra do caput, o seu parágrafo único prevê que, “nesse caso, somente após a recusa do estabelecimento bancário a efetuar o pagamento, poderá o vendedor pretendê-lo, diretamente do comprador”.

5.   CONTRATOS DE COLABORAÇÃO EMPRESARIAL

Conforme destacamos no início da presente obra, o comércio foi o grande responsável pelo surgimento e pelo desenvolvimento do direito comercial. No tópico anterior deste capítulo, por sua vez, analisamos detalhadamente o contrato de compra e venda mercantil, que se traduz, como visto, na principal modalidade contratual para exploração do comércio, ou seja, para a intermediação de bens entre o mercado produtor e o mercado consumidor.

Ocorre, entretanto, que a compra e venda não é, obviamente, o único contrato que interessa ao comércio. Ao contrário: com o desenvolvimento da economia e a cada vez maior complexidade das relações econômicas, surge uma incrível quantidade de contratos específicos que se destinam, especialmente, a facilitar o comércio, aproximando o produtor do consumidor. Chamaremos esses contratos, enfim, seguindo a terminologia de Fábio Ulhoa Coelho, de contratos de colaboração.

5.1.   Subordinação empresarial nos contratos de colaboração

Em todos os contratos de colaboração que iremos analisar adiante, há uma marca característica: a subordinação empresarial entre o colaborador e o colaborado. Destaque-se que essa subordinação é empresarial, e não pessoal, uma vez que esta, se presente, poderia configurar a existência de relação empregatícia, o que não é o caso. Essa subordinação empresarial, em síntese, representa a obrigatoriedade de o colaborador manter uma organização de sua atividade seguindo padrões fixados pelo colaborado.

Em todos os contratos que analisaremos a seguir, perceberemos que há entre colaborador e colaborado uma relação de subordinação. Em alguns contratos, o grau de subordinação é maior (franquia, por exemplo). Em outros, a subordinação pode não ser tão acentuada (representação comercial, por exemplo).

O que se deve questionar, porém, é se esta subordinação empresarial típica dos contratos de colaboração é suficiente para caracterizar essas avenças como relações contratuais assimétricas, a justificar o dirigismo contratual como forma de tutelar os interesses dos colaboradores (representantes, franqueados etc.), os quais seriam, na visão de alguns, contratantes vulneráveis ou hipossuficientes.

Em nossa opinião, essa tese é insustentável. Ainda que saibamos que, muitas vezes, o colaborador é um empresário individual ou uma pequena sociedade empresária, enquanto o colaborado é uma sociedade empresária de maior porte, não podemos concordar com a ideia de que contratos de colaboração são relações assimétricas nas quais é necessário o dirigismo contratual. Relações entre empresários não podem ser tratadas, conforme já frisamos, como relações cíveis, de consumo ou de trabalho. Empresários são profissionais dos seus respectivos ramos e negociam com outros empresários como iguais, por mútuo consentimento e para mútua vantagem, razão pela qual devem ter ampla liberdade para contratar entre si e, em contrapartida, suportar os prejuízos normais de tais contratações.

No entanto, se formos observar algumas leis que disciplinam tais contratos (cite-se, por exemplo, a Lei 4.886/1965, que disciplina o contrato de representação comercial), veremos que elas são extremamente protetivas e “dirigistas”, algo que, no nosso entender, não é compatível com a essência dos contratos empresariais.

Na jurisprudência do STJ, podemos encontrar, felizmente, julgados que reconhecem o caráter empresarial dos contratos de colaboração e, portanto, reconhecem a plena validade das cláusulas livremente pactuadas. Confiram-se, a propósito, os seguintes julgados, que analisaram a validade de cláusula de eleição de foro em contrato de concessão mercantil, um tipo muito comum de contrato de colaboração, que estudaremos adiante:

Processo civil. Recurso especial. Ação cautelar. Incidente de exceção de incompetência. Contratos celebrados entre montadora e concessionária de veículos. Cláusula de eleição de foro. Validade. – Os ajustes firmados entre montadora e concessionária de veículos constituem contratos empresariais pactuados entre empresas de porte, financeiramente capazes de demandar no foro de eleição contratual. – A mera circunstância de a montadora de veículos ser empresa de maior porte do que a concessionária não é suficiente, por si só, a afastar o foro eleito. – Recurso especial provido (REsp 471.921/BA, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª Turma, j. 03.06.2003, DJ 04.08.2003, p. 297).

Processual civil. Recurso especial. Competência. Foro de eleição. Empresas de grande porte. Alto valor do contrato. Montadora de veículos e concessionária. Precedentes da 2.ª Seção. 1 – Contratos firmados entre montadora e concessionária de veículos constituem contratos empresariais pactuados entre empresas de porte, financeiramente capazes de demandar no foro de eleição contratual. 2 – A mera circunstância de a montadora de veículos ser empresa de maior porte do que a concessionária não é suficiente, por si só, a afastar o foro eleito. 3 – Recurso especial conhecido e provido para reconhecer a competência do foro de eleição, qual seja, da cidade de São Bernardo do Campo/SP, para o processo e julgamento do feito (REsp 827.318/RS, Rel. Min. Jorge scartezzini, 4.ª Turma, j. 12.09.2006, DJ 09.10.2006, p. 309).

5.2.   As cláusulas de exclusividade nos contratos de colaboração

Outro tema deveras interessante relacionado aos contratos de colaboração empresarial é o referente às cláusulas de exclusividade, muito comuns nessas avenças.

Tais cláusulas são muitos importantes nos contratos de colaboração, uma vez que visam a assegurar ao colaborador (representante, franqueado etc.) o retorno dos investimentos que eles provavelmente fizeram para iniciar a colaboração (pesquisa de mercado, formação de estoque, campanhas publicitárias etc.). Assim, por exemplo, fica o colaborado obrigado a não comercializar diretamente seus produtos na região do colaborador, nem por meio de outro colaborador.

Pense-se, por exemplo, no caso do contrato de representação comercial. Se isso fosse possível, o representante comercial que fez todo o trabalho de abertura daquele mercado referente à sua zona de exclusividade sofreria prejuízos consideráveis, uma vez que teve gastos para promover o produto. Assim, jamais conseguiria o representante praticar preços compatíveis, já que necessita embutir seus gastos nos preços. Portanto, a cláusula de exclusividade de zona é, em síntese, o segredo, no mais das vezes, para o sucesso de um contrato de colaboração. Portanto, as partes devem estar bastante atentas na hora de redigir o contrato, para que tal assunto seja tratado com cuidado.

Em alguns contratos, porém, dado o dirigismo contratual que marca suas respectivas leis, a cláusula de exclusividade de zona é considerada implícita, como ocorre, por exemplo, no contrato de representação comercial (vide art. 31 da Lei 4.886/1965, que analisaremos adiante).

Finalmente, ainda sobre as cláusulas de exclusividade comumente presentes nos contratos de colaboração empresarial, é importante lembrar que, não obstante elas sejam absolutamente justificáveis do ponto de vista do direito empresarial, muitas vezes elas são contestadas no âmbito do direito concorrencial perante a autoridade antitruste (no Brasil, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE), a qual, em algumas situações, rechaça tais estipulações, por vislumbrar nelas, em determinadas circunstâncias, efeitos nocivos à livre concorrência.

Na visão liberal adotada na presente obra, a intervenção do CADE nesses casos é descabida. Aliás, a própria existência de uma autoridade antitruste é questionável num regime capitalista de livre mercado genuíno. As cláusulas de exclusividade só são contratadas quando se justificam economicamente, para ambas as partes. Com efeito, se determinada relação contratual entre empresários ostenta uma cláusula de exclusividade, é porque tal cláusula se afigura vantajosa para ambos os contratantes. Caso contrário, não teria sido convencionada. Um distribuidor aceita uma cláusula de exclusividade porque ela lhe traz benefícios, como o retorno mais rápido e fácil dos investimentos realizados para iniciar a contratação. Por outro lado, a mesma cláusula de exclusividade é benéfica também para o distribuído, porque provavelmente sem ela nenhum distribuidor se interessaria em realizar os investimentos iniciais necessários à distribuição de seus produtos.

5.3.   Comissão mercantil

De acordo com o art. 693 do Código Civil, “o contrato de comissão tem por objeto a aquisição ou a venda de bens pelo comissário, em seu próprio nome, à conta do comitente”. Em suma: o comissário é um empresário que irá realizar negócios no interesse de um outro empresário, o comitente, mas os realizará em seu nome.

Portanto, o comissário age no interesse e seguindo as instruções do comitente, mas o faz em seu nome, ou seja, assumindo responsabilidade perante os terceiros com quem contrata. É o que prevê o art. 694 do Código, que assim dispõe: “o comissário fica diretamente obrigado para com as pessoas com quem contratar, sem que estas tenham ação contra o comitente, nem este contra elas, salvo se o comissário ceder seus direitos a qualquer das partes”.

Atente-se para o fato de que essa regra do art. 694 é que distingue, claramente, a comissão do contrato de mandato, já que neste o mandatário age em nome do mandante, enquanto na comissão, conforme visto, o comissário age em seu próprio nome. Daí porque alguma doutrina chega a chamar a comissão de mandato sem representação. Isso é muito importante para o próprio sucesso do contrato de comissão mercantil, uma vez que em diversas situações o comitente não quer aparecer na relação. É o que ocorre, por exemplo, com grandes empresários, que muitas vezes usam comissários, porque se fossem negociar diretamente teriam dificuldades em barganhar preços e outras condições contratuais. É o que ocorre também nas negociações realizadas na Bolsa de Valores.

Não obstante a distinção entre mandato e comissão, determina o art. 709 do Código que “são aplicáveis à comissão, no que couber, as regras sobre mandato”.

Segundo o disposto no art. 695 do Código, “o comissário é obrigado a agir de conformidade com as ordens e instruções do comitente, devendo, na falta destas, não podendo pedi-las a tempo, proceder segundo os usos em casos semelhantes”. Complementando a regra em questão, o parágrafo único deste artigo, levando em consideração que a comissão é feita no interesse do comitente, determina que “ter-se-ão por justificados os atos do comissário, se deles houver resultado vantagem para o comitente, e ainda no caso em que, não admitindo demora a realização do negócio, o comissário agiu de acordo com os usos”. De fato, se o negócio foi vantajoso ao comitente, presume-se que o comissário agiu corretamente.

Ainda sobre as instruções do comitente para o comissário realizar suas atividades, dispõe o art. 699 do Código que “presume-se o comissário autorizado a conceder dilação do prazo para pagamento, na conformidade dos usos do lugar onde se realizar o negócio, se não houver instruções diversas do comitente”. Já o art. 700, por sua vez, estabelece que “se houver instruções do comitente proibindo prorrogação de prazos para pagamento, ou se esta não for conforme os usos locais, poderá o comitente exigir que o comissário pague incontinenti ou responda pelas consequências da dilação concedida, procedendo-se de igual modo se o comissário não der ciência ao comitente dos prazos concedidos e de quem é seu beneficiário”.

Vê-se, pois, que é deveras importante que o comissário exerça suas atividades seguindo as instruções do comitente, cabendo ressaltar ainda que é interessante que essas instruções sejam detalhadamente pactuadas, para que o comissário atue com segurança no desempenho de seu mister. Nada impede, porém, que as instruções inicialmente pactuadas sejam depois alteradas, caso em que as novas instruções serão observadas, inclusive, nos negócios pendentes. É o que preceitua o art. 704 do Código: “salvo disposição em contrário, pode o comitente, a qualquer tempo, alterar as instruções dadas ao comissário, entendendo-se por elas regidos também os negócios pendentes”.

No art. 696 do Código determina-se que “no desempenho das suas incumbências o comissário é obrigado a agir com cuidado e diligência, não só para evitar qualquer prejuízo ao comitente, mas ainda para lhe proporcionar o lucro que razoavelmente se podia esperar do negócio”. Caso não cumpra suas tarefas satisfatoriamente, acarretando prejuízos ao comitente por ato omissivo ou comissivo, poderá ser responsabilizado. É o que prevê o parágrafo único do dispositivo em comento: “responderá o comissário, salvo motivo de força maior, por qualquer prejuízo que, por ação ou omissão, ocasionar ao comitente”.

Claro que o comissário deverá ser remunerado pelo comitente pelos negócios que realizar, já que estes são efetuados no interesse do comitente. A essa remuneração dá-se o nome de comissão. Em princípio, deve a comissão devida ao comissário ser estipulada no contrato. Não obstante, prevê o art. 701 do Código que, “não estipulada a remuneração devida ao comissário, será ela arbitrada segundo os usos correntes no lugar”.

Ainda sobre a remuneração devida ao comissário, dispõe o art. 702 do Código que “no caso de morte do comissário, ou, quando, por motivo de força maior, não puder concluir o negócio, será devida pelo comitente uma remuneração proporcional aos trabalhos realizados”. Por sua vez, o art. 703 estipula que “ainda que tenha dado motivo à dispensa, terá o comissário direito a ser remunerado pelos serviços úteis prestados ao comitente, ressalvado a este o direito de exigir daquele os prejuízos sofridos”. Se, todavia, a dispensa do comissário se der sem justa causa, aplica-se então a regra do art. 705, que assim dispõe: “se o comissário for despedido sem justa causa, terá direito a ser remunerado pelos trabalhos prestados, bem como a ser ressarcido pelas perdas e danos resultantes de sua dispensa”.

Falindo o comitente, a comissão devida ao comissário é classificada no processo falimentar como crédito com privilégio geral, nos termos do art. 707 do Código: “o crédito do comissário, relativo a comissões e despesas feitas, goza de privilégio geral, no caso de falência ou insolvência do comitente”.

Por fim, registre-se que o contrato de comissão pode ostentar a chamada cláusula del credere. Conforme vimos, os riscos do negócio cabem ao comitente, já que o comissário, embora atue em seu próprio nome, o faz no interesse do comitente e à conta dele, seguindo, aliás, as suas instruções. Assim, se os terceiros com quem o comissário contratou não honrarem suas obrigações, o prejuízo deverá ser suportado pelo comitente, e não pelo comissário (art. 697). Todavia, havendo a previsão da cláusula del credere, o comissário assumirá a responsabilidade solidária juntamente com os terceiros com quem contratar. Claro que, nesse caso, como o risco de suas operações aumenta, ele será ainda mais diligente, e terá, obviamente, direito a uma comissão maior. A regra está disciplinada no art. 698 do Código: “se do contrato de comissão constar a cláusula del credere, responderá o comissário solidariamente com as pessoas com que houver tratado em nome do comitente, caso em que, salvo estipulação em contrário, o comissário tem direito a remuneração mais elevada, para compensar o ônus assumido”.

5.4.   Representação comercial (agência)

A representação comercial autônoma é modalidade especial de contrato de colaboração em que o colaborador, chamado de representante, assume a incumbência de obter pedidos de compra e venda para os produtos comercializados pelo colaborado, chamado de representado. Trata-se de contrato que possui regulamentação legal específica (Lei 4.886/1965, que sofreu relevantes alterações provocadas pela Lei 8.420/1992). Não obstante, o Código Civil também trouxe disciplina legal para esse contrato, denominando-o de contrato de agência (arts. 710 a 721), expressão que, segundo alguns autores, é mais apropriada.

Embora nós tenhamos optado por considerar representação comercial e agência como uma mesma figura contratual, é importante destacar que há autores que distinguem esses contratos, entendendo que a agência seria modalidade contratual de maior amplitude, que englobaria qualquer contrato firmado com pessoa que exerça a intermediação com habitualidade. São os casos, por exemplo, de agentes de atletas ou artistas.

De acordo com o art. 1.° da Lei 4.886/1965, “exerce a representação comercial autônoma a pessoa jurídica ou a pessoa física, sem relação de emprego, que desempenha, em caráter não eventual por conta de uma ou mais pessoas, a mediação para a realização de negócios mercantis, agenciando propostas ou pedidos, para transmiti-los aos representados, praticando ou não atos relacionados com a execução dos negócios”.

Perceba-se, pois, que a representação comercial não se confunde com o mandato, uma vez que o representante não tem poderes para concluir os negócios em nome do representado. Cabe a este, em última análise, aprovar ou não os pedidos de compra obtidos pelo representante. Não obstante tal distinção, a lei autoriza, no parágrafo único do seu art. 1.°, que a representação inclua também os poderes do mandato: “quando a representação comercial incluir poderes atinentes ao mandato mercantil, serão aplicáveis, quanto ao exercício deste, os preceitos próprios da legislação comercial”.

Perceba-se também que na representação comercial não se caracteriza nenhum tipo de relação empregatícia entre representante e representado. A subordinação existente entre ambos, conforme já apontamos, é eminentemente empresarial, e não pessoal. Essa subordinação diz respeito apenas à forma de organização empresarial do representante, que deve, obviamente, seguir determinadas instruções do representado. Caso, todavia, essa subordinação seja pessoal, e não meramente empresarial, descaracterizado estará o vínculo contratual da representação, havendo, na verdade, um contrato de trabalho ou um contrato de prestação de serviços. Nesse sentido, confiram-se decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Superior do Trabalho em que se destaca, claramente, que o importante para definir se há contrato de representação ou não é a análise do tipo de subordinação existente: se meramente empresarial, trata-se de representação; se pessoal, não se trata de representação.

Contrato. Venda. Assinatura. Jornal. Prestação. Serviço. Firmado que o contrato para a venda de assinaturas de jornal em questão foi cumprido com subordinação a regime de metas, prestação de contas diárias e com atuação do contratado no próprio endereço comercial da contratante, não há que se falar em contrato de representação comercial (Lei n. 4.886/1965), mas, sim, em de prestação de serviços (REsp 642.728-PR, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 20.09.2005, Informativo 261/2005).

Recurso de revista. Representante comercial. Vínculo empregatício. Não configuração. Ausência de subordinação. Ausência de registro no Conselho Regional. Irrelevância. Verificando-se a ausência do elemento subordinação, previstos no artigo 3.° da CLT, a partir da análise da realidade fática havida entre as partes, incabível o reconhecimento de vínculo. A simples ausência de registro do reclamante no Conselho Regional não tem o condão, por si só, de descaracterizar uma relação de representação comercial, mormente se nos autos existem outros elementos que conduzam à conclusão de que o vínculo havido entre as partes tinha tal natureza. Recurso de Revista conhecido e não provido (TST, RR 42319-2002-900-10-00, 3.ª Turma, Rel. Juíza convocada Dora Maria da Costa, DJ 31.10.2003).

Por outro lado, é importante destacar também que o contrato de representação comercial é um contrato empresarial (entre empresários), razão pela qual é inaplicável o CDC.

Direito Comercial. Contratos mercantis. Representação comercial autônoma. Código de Defesa do Consumidor. Não incidência. Processual civil. Recurso especial. Dispositivo legal inapto para sustentar a pretensão recursal. Prequestionamento. I – A relação jurídica que se estabelece entre o representante comercial autônomo e a sociedade representada é regulada por disciplina jurídica própria, não se aplicando as regras protetivas do Código de Defesa do Consumidor. (...) (REsp 761.557/RS, Rel. Min. Sidnei Beneti, 3.ª Turma, j. 24.11.2009, DJe 03.12.2009).

De acordo com o art. 2.° da Lei 4.886/1965, é obrigatório registro dos representantes comerciais no órgão regulador de sua atividade, o Conselho Regional dos Representantes Comerciais. O art. 5.° desta mesma lei determina que “somente será devida remuneração, como mediador de negócios comerciais, a representante comercial devidamente registrado”. No entanto, a jurisprudência pretoriana já decidiu ser inconstitucional essa regra.

De acordo com o art. 27 da Lei 4.886/1965, “do contrato de representação comercial, além dos elementos comuns e outros a juízo dos interessados, constarão obrigatoriamente: a) condições e requisitos gerais da representação; b) indicação genérica ou específica dos produtos ou artigos objeto da representação; c) prazo certo ou indeterminado da representação; d) indicação da zona ou zonas em que será exercida a representação; e) garantia ou não, parcial ou total, ou por certo prazo, da exclusividade de zona ou setor de zona; f) retribuição e época do pagamento, pelo exercício da representação, dependente da efetiva realização dos negócios, e recebimento, ou não, pelo representado, dos valores respectivos; g) os casos em que se justifique a restrição de zona concedida com exclusividade; h) obrigações e responsabilidades das partes contratantes; i) exercício exclusivo ou não da representação a favor do representado; j) indenização devida ao representante pela rescisão do contrato fora dos casos previstos no art. 35, cujo montante não poderá ser inferior a 1/12 (um doze avos) do total da retribuição auferida durante o tempo em que exerceu a representação”.

No que se refere ao requisito da alínea c, dispõe o § 2.° do art. 27 que “o contrato com prazo determinado, uma vez prorrogado o prazo inicial, tácita ou expressamente, torna-se a prazo indeterminado”. Já o § 3.°, por sua vez, dispõe que se considera “por prazo indeterminado todo contrato que suceder, dentro de seis meses, a outro contrato, com ou sem determinação de prazo”. Vê-se, pois, que somente o primeiro contrato de representação pode ser estipulado com prazo determinado. E essa regra legal foi estabelecida como forma de proteger o representante. Afinal, em cada renovação o representado, provavelmente, iria tentar estabelecer novas condições contratuais, e o representante, para não perder o vínculo, muitas vezes seria obrigado a aceitá-las. Sobre o assunto, decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

Indenização. Rescisão. Contrato. Representação comercial. Prosseguindo o julgamento, a Turma entendeu que, na vigência da Lei n. 8.420/1992, nos contratos de representação comercial seguidamente firmados com prazos determinados, com duração de um ano cada, cujo objeto, basicamente, foi o mesmo, está caracterizada a continuidade, devendo ser considerados, assim, por prazo indeterminado. Dessa forma, faz jus o representante comercial ao pagamento de aviso prévio e de indenização quando da extinção injusta do contrato. No caso, o primeiro contrato de representação entre as partes foi firmado em 1.°/12/1975 e o último em 2/1/1992 rescindido em 1°/7/1992. Dessarte, o pagamento ao representante comercial será relativo ao período posterior à vigência da Lei n. 8420/1992, (2/1/1992), uma vez que seus efeitos não retroagem para atingir situações consolidadas na vigência da Lei 4.886/1965 (REsp 198.149-RS, Rel. Min. Ari Pargendler, j. 1.°.04.2003, Informativo 168/2003).

Por outro lado, no que se refere à indenização devida em caso de rescisão contratual (matéria tratada na alínea j), determina o § 1.° do art. 27 que “na hipótese de contrato a prazo certo, a indenização corresponderá à importância equivalente à média mensal da retribuição auferida até a data da rescisão, multiplicada pela metade dos meses resultantes do prazo contratual”.

No que tange, por sua vez, aos requisitos de que tratam as alíneas d, e e g, que mencionam a cláusula de exclusividade de zona, deve ser feita aqui uma observação especial. Essa cláusula é deveras importante nos contratos de colaboração, notadamente no de representação, uma vez que visa a assegurar ao colaborador (no caso, o representante) o retorno dos investimentos que ele fez para iniciar a colaboração (pesquisa de mercado, formação de estoque, campanhas publicitárias etc.). Assim, fica o colaborador (no caso, o representado) obrigado a não comercializar seus produtos na região do representante diretamente nem por meio de outro representante. Afinal, se isto fosse possível, o representante comercial que fez todo o trabalho de abertura daquele mercado referente à sua zona de exclusividade sofreria prejuízos consideráveis, uma vez que teve gastos para promover o produto. Assim, jamais conseguiria o representante praticar preços compatíveis, já que necessita embutir seus gastos nos preços. Portanto, a cláusula de exclusividade de zona é, em síntese, o segredo, no mais das vezes, para o sucesso de um contrato de colaboração. Nesse sentido, veja-se que a Lei 4.886/1965, com vistas a proteger o representante que possui exclusividade de zona, estipula, em seu art. 31, que “prevendo o contrato de representação a exclusividade de zona ou zonas, ou quando este for omisso, fará jus o representante à comissão pelos negócios aí realizados, ainda que diretamente pelo representado ou por intermédio de terceiros”.

Em suma: a cláusula de exclusividade de zona, nos contratos de representação, é implícita. O STJ já decidiu que essa cláusula deve ser observada até mesmo em contratos de representação comercial verbais.

Processual civil e comercial. Recurso especial. Contrato de representação. Embargos declaratórios. Omissão. Inocorrência. Rescisão imotivada. Exclusividade. Contrato verbal. Possibilidade. Interpretação de cláusulas contratuais e reexame de prova. (...) 2. Possibilidade da demonstração da existência de cláusula de exclusividade mesmo em contratos de representação firmados verbalmente, admitindo-se a respectiva prova por todos os meios em direito admitidos. Aplicação do art. 212 do CC/02 c/c os arts. 400 e segs. do CPC. Doutrina e jurisprudência desta Corte acerca do tema. 3. Estabelecida, no caso concreto, pelo acórdão recorrido a premissa de que o ajuste de representação comercial vigorava com cláusula de exclusividade, confirmada por prova testemunhal, inarredável a conclusão de que houve rescisão imotivada do contrato, pela contratação de novo representante para atuar na mesma zona anteriormente conduzida pela recorrida. (...) (REsp 846.543/RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3.ª Turma, j. 05.04.2011, DJe 11.04.2011).

No entanto, ressalte-se que, de acordo com o parágrafo único do art. 31, “a exclusividade de representação não se presume na ausência de ajustes expressos”. Assim, embora a cláusula de exclusividade de zona seja implícita, a cláusula de exclusividade de representação não é: isso significa que o representante, salvo cláusula contratual expressa em contrário, pode trabalhar para outro(s) representado(s). Nesse sentido, aliás, dispõe expressamente o art. 41 da Lei 4.886/1965 que, “ressalvada expressa vedação contratual, o representante comercial poderá exercer sua atividade para mais de uma empresa e empregá-la em outros mistéres ou ramos de negócios”. Nesse sentido, confira-se a seguinte decisão do STJ:

Comercial. Contrato de representação. Exclusividade. A exclusividade de representação não se presume (Lei n.° 4.886/65, art. 31, parágrafo único); o ajuste de exclusividade numa praça, só a esta se aplica, pouco importando que a representação tenha se estendido a outra praça, salvo aditamento expresso a respeito – no caso, inexistente. Recurso especial conhecido e provido em parte (REsp 229.761/ES, Rel. Min. Waldemar Zveiter, Rel. p/ Acórdão Min. Ari Pargendler, 3.ª Turma, j. 05.12.2000, DJ 09.04.2001, p. 354).

A Lei 4.886/1965 estabelece uma série de deveres ao representante comercial. Assim, por exemplo, o art. 28 dispõe que “o representante comercial fica obrigado a fornecer ao representado, segundo as disposições do contrato ou, sendo este omisso, quando lhe for solicitado, informações detalhadas sobre o andamento dos negócios a seu cargo, devendo dedicar-se à representação, de modo a expandir os negócios do representado e promover os seus produtos”. O art. 29, por seu turno, prevê que, “salvo autorização expressa, não poderá o representante conceder abatimentos, descontos ou dilações, nem agir em desacordo com as instruções do representado”. Em suma: deverá o representante seguir as instruções do representado, o que configura, conforme já destacamos, a subordinação empresarial típica deste contrato. Já o art. 30 estabelece que “para que o representante possa exercer a representação em Juízo, em nome do representado, requer-se mandato expresso. Incumbir-lhe-á porém, tomar conhecimento das reclamações atinentes aos negócios, transmitindo-as ao representado e sugerindo as providências acauteladoras do interesse deste”. Complementando essa regra, o parágrafo único do art. 30 prevê que “o representante, quanto aos atos que praticar, responde segundo as normas do contrato e, sendo este omisso, na conformidade do direito comum”.

A Lei 4.886/1965 também estabeleceu as obrigações do representado, dentre as quais se destacam a de pagar a comissão do representante e a de respeitar a cláusula de exclusividade de zona.

No que tange ao pagamento da comissão, prevê o art. 32 que “o representante comercial adquire o direito às comissões quando do pagamento dos pedidos ou propostas”. O § 1.° determina que “o pagamento das comissões deverá ser efetuado até o dia 15 do mês subsequente ao da liquidação da fatura, acompanhada das respectivas cópias das notas fiscais”. Já o § 2.° estabelece que “as comissões pagas fora do prazo previsto no parágrafo anterior deverão ser corrigidas monetariamente”. O § 3.°, por sua vez, faculta ao representante “emitir títulos de créditos para cobrança de comissões”, e como se trata de compra e venda mercantil, presume-se que esse título é a duplicata. No que se refere ao cálculo das comissões, determina o § 4.° que elas “deverão ser calculadas pelo valor total das mercadorias”. Continua o § 5.° estabelecendo que “em caso de rescisão injusta do contrato por parte do representando, a eventual retribuição pendente, gerada por pedidos em carteira ou em fase de execução e recebimento, terá vencimento na data da rescisão”. Por fim, o § 7.° determina que “são vedadas na representação comercial alterações que impliquem, direta ou indiretamente, a diminuição da média dos resultados auferidos pelo representante nos últimos seis meses de vigência”.

As comissões deverão ser pagas, em princípio, mensalmente, salvo se o contrato dispuser de forma diversa. É o que determina o art. 33, § 2.°, da Lei 4.886/1965: “salvo ajuste em contrário, as comissões devidas serão pagas mensalmente, expedindo o representado a conta respectiva, conforme cópias das faturas remetidas aos compradores, no respectivo período”.

O art. 33, § 1.°, da Lei 4.886/1965 prevê, entretanto, que “nenhuma retribuição será devida ao representante comercial, se a falta de pagamento resultar de insolvência do comprador, bem como se o negócio vier a ser por ele desfeito ou for sustada a entrega de mercadorias devido à situação comercial do comprador, capaz de comprometer ou tornar duvidosa a liquidação”. Nada mais justo. Afinal, se a operação agenciada pelo representante não se consumar, não recebendo o representado o valor dos produtos, não deve pagar comissão.

Registre-se que, conforme veremos com mais detalhes no capítulo seguinte, os créditos relativos às comissões do representante comercial autônomo são equiparados ao crédito trabalhista no processo de falência, em obediência ao disposto no art. 44 da Lei 4.886/1965: “no caso de falência do representado as importâncias por ele devidas ao representante comercial, relacionadas com a representação, inclusive comissões vencidas e vincendas, indenização e aviso prévio, serão considerados créditos da mesma natureza dos créditos trabalhistas”. E o prazo prescricional para a cobrança desses créditos é de cinco anos, conforme dispõe o art. 44, parágrafo único: “prescreve em cinco anos a ação do representante comercial para pleitear a retribuição que lhe é devida e os demais direitos que lhe são garantidos por esta lei”. Ressalte-se que a contagem desses cinco anos se inicia a partir do término do contrato, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

Representação comercial. Rescisão. Indenização. Prescrição. Trata-se de ação de indenização pela ruptura unilateral do contrato de representação comercial. Nesse contexto, a Turma, prosseguindo o julgamento, entendeu que o direito de o representante comercial pleitear em juízo a indenização prescreve em cinco anos contados da data em que rompido o contrato (art. 44, parágrafo único, da Lei n. 4.886/1965). Anotou-se que a prescrição de que trata o referido artigo diz respeito ao exercício do direito de ação e não ao próprio direito indenizatório, sendo certo que o representante pode reivindicar indenização calculada sobre comissões auferidas em todo período laboral, porém propondo a ação dentro do prazo quinquenal. O Min. Carlos Alberto Menezes Direito acompanhou o entendimento diante da constatação feita pelo Min. Relator de que a hipótese não cuida da matéria referente a direito intertemporal, mesmo diante de inovações trazidas por lei nova, estando em questão apenas a interpretação do referido artigo de lei. Acompanhou também pela conclusão de que o não conhecimento é compatível com precedentes do STJ, entendimento constante do voto vista da Min. Nancy Andrighi (REsp 434.885-AM, Rel. Min. Castro Filho, j. 16.09.2004, Informativo 221/2004).

Já destacamos acima que na representação comercial o representado não é obrigado a aceitar os pedidos de compra obtidos pelo representante. Portanto, o contrato de representação possui a seguinte sistemática: o representante, seguindo as instruções do representado, procura clientes para os produtos deste, enviando-lhe então os respectivos pedidos. A partir do envio, cabe ao representado manifestar-se, informando se aceita ou não o pedido obtido pelo representante. Os prazos para essa manifestação devem estar descritos no contrato. Na ausência de previsão expressa, aplica-se o disposto no art. 33 da Lei 4.886/1965: “não sendo previstos, no contrato de representação, os prazos para recusa das propostas ou pedidos, que hajam sido entregues pelo representante, acompanhados dos requisitos exigíveis, ficará o representado obrigado a creditar-lhe a respectiva comissão, se não manifestar a recusa, por escrito, nos prazos de 15, 30, 60 ou 120 dias, conforme se trate de comprador domiciliado, respectivamente, na mesma praça, em outra do mesmo Estado, em outro Estado ou no estrangeiro”. Assim, se o comprador é domiciliado na mesma praça do representado, o prazo para este manifestar eventual recusa é de 15 dias; se é domiciliado no mesmo Estado, mas em praça diversa, o prazo é de 30 dias; se é domiciliado em outro Estado, o prazo passa a ser de 60 dias; por fim, se o comprador é de outro país, o prazo então será de 120 dias.

Outra preocupação específica da Lei 4.886/1965 foi estabelecer a indenização devida em caso de resolução imotivada do contrato de representação comercial. Assim, determina o art. 34 que “a denúncia, por qualquer das partes, sem causa justificada, do contrato de representação, ajustado por tempo indeterminado e que haja vigorado por mais de seis meses, obriga o denunciante, salvo outra garantia prevista no contrato, à concessão de pré-aviso, com antecedência mínima de trinta dias, ou ao pagamento de importância igual a um terço (1/3) das comissões auferidas pelo representante, nos três meses anteriores”. Interpretando a contrario sensu o dispositivo em questão, vê-se que se o contrato era por tempo indeterminado, e vigorou por menos de seis meses, nenhuma indenização será devida em caso de resolução imotivada. Da mesma forma, se a resolução for justamente motivada, também não caberá nenhuma indenização. Se a resolução do contrato que durou mais de seis meses, todavia, for imotivada, caberá ao representado, frise-se, indenizar o representante. Nesse sentido, confira-se o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:

Representação. Comissão. Indenização. Rescisão contratual desmotivada. A Turma proveu parcialmente o recurso ao entendimento de que o contrato de representação comercial, por se assemelhar a contrato de trabalho, acarreta o dever de indenização no caso de rescisão desmotivada e por iniciativa de representado, não se aplicando o art. 35 da Lei n. 4.886/1965 por inocorrência das hipóteses nele previstas. Outrossim, é devido, também, o pagamento de comissão por representação comercial em razão de negócios realizados. Precedentes citados: REsp 4.474-SP, DJ 1.°/7/1991, e REsp 9.144-MG, DJ 1.°/7/1991 (REsp 577.864-MG, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, j. 30.11.2004, Informativo 231/2004).

No que se refere aos motivos que justificam a resolução do contrato, por parte do representado, dispõe assim o art. 35 da Lei 4.886/1965: “constituem motivos justos para rescisão do contrato de representação comercial, pelo representado: a) a desídia do representante no cumprimento das obrigações decorrentes do contrato; b) a prática de atos que importem em descrédito comercial do representado; c) a falta de cumprimento de quaisquer obrigações inerentes ao contrato de representação comercial; d) a condenação definitiva por crime considerado infamante; e) força maior”. Em contrapartida, quanto aos motivos que justificam a resolução do contrato, por parte do representante, assim dispõe o art. 36 da mesma lei: “constituem motivos justos para rescisão do contrato de representação comercial, pelo representante: a) redução de esfera de atividade do representante em desacordo com as cláusulas do contrato; b) a quebra, direta ou indireta, da exclusividade, se prevista no contrato; c) a fixação abusiva de preços em relação à zona do representante, com o exclusivo escopo de impossibilitar-lhe ação regular; d) o não pagamento de sua retribuição na época devida; e) força maior”.

Interessante é a regra do art. 37 da Lei 4.886/1965, que permite ao representado reter comissões do representante, para compensação de eventuais prejuízos, quando a resolução do contrato ocorrer com base num dos motivos acima elencados (art. 35). Eis o que dispõe o art. 37: “somente ocorrendo motivo justo para a rescisão do contrato, poderá o representado reter comissões devidas ao representante, com o fim de ressarcir-se de danos por este causados e, bem assim, nas hipóteses previstas no art. 35, a título de compensação”.

O art. 39 da Lei 4.886/1965, por sua vez, traz importante regra, determinando o juízo competente para dirimir eventuais litígios entre representado e representante. Eis o que determina a regra legal em comento: “para julgamento das controvérsias que surgirem entre representante e representado é competente a Justiça Comum e o foro do domicílio do representante, aplicando-se o procedimento sumaríssimo previsto no art. 275 do Código de Processo Civil, ressalvada a competência do Juizado de Pequenas Causas”. Não obstante tal regra, o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo que é possível às partes eleger outro foro, sendo válida tal previsão contratual, desde que o representante não seja hipossuficiente e que isso não obstaculize seu acesso à justiça.

Competência. Foro de eleição. Na espécie, cuidou-se de uma representação comercial na qual se tratava de contrato de adesão. O Min. Barros Monteiro entendeu que deveria prevalecer a cláusula eletiva do foro, como permite o art. 111 do CPC. A competência estabelecida pelo art. 39 da Lei n. 4.886/1965, com a redação da Lei n. 8.420/1992, é de natureza relativa, permitindo, pois, que as partes ajustem o foro de eleição. Substancialmente, não há que se falar em hipossuficiência de uma das partes, quando contendem duas empresas de porte razoável (REsp 579.324-SC, Rel. originário Min. Jorge Scartezzini, Rel. p/ Acórdão Min. Barros Monteiro, j. 15.02.2005, Informativo 235/2005).

Contrato de representação comercial. Foro de eleição. Em retificação à notícia do julgamento do REsp 110.104-SP (v. Informativo 01), tratando-se de ação em que se cuida de controvérsias surgidas entre representante e representado, a Turma, por maioria, entendeu que a competência estabelecida pelo art. 39, da Lei n.° 4.886/65, com a redação da Lei n.° 8.420/92, é relativa, podendo ser modificada pela vontade das partes, como, no caso, por eleição de foro (art. 111, CPC) (REsp 110.104-SP, Rel. Min. Waldemar Zveiter, Rel. p/ Acórdão Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 24.11.1998, Informativo 02/1998).

Direito comercial. Representação comercial. Art. 39 da Lei n.° 4.886/65. Competência relativa. Eleição de foro. Possibilidade, mesmo em contrato de adesão, desde que ausente a hipossuficiência e obstáculo ao acesso à justiça. – A Lei n.° 4.886/65 tem nítido caráter protetivo do representante comercial. – Na hipótese específica do art. 39 da Lei n.° 4.886/95, o objetivo é assegurar ao representante comercial o acesso à justiça. – A competência prevista no art. 39 da Lei n.° 4.886/65 é relativa, podendo ser livremente alterada pelas partes, mesmo via contrato de adesão, desde que não haja hipossuficiência entre elas e que a mudança de foro não obstaculize o acesso à justiça do representante comercial. – Embora a Lei n.° 4.886/65 tenha sido editada tendo em vista a realidade vivenciada pela grande maioria dos representantes comerciais, não se pode ignorar a existência de exceções. Em tais circunstâncias, ainda que a relação entre as partes continue a ser regulada pela Lei n.° 4.886/65, esta deve ser interpretada e aplicada como temperança e mitigação, sob pena da norma se transformar em instrumento de beneficiamento indevido do representante em detrimento do representado. Embargos conhecidos, mas não providos (EREsp 579.324/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, 2.ª Seção, j. 12.03.2008, DJe 02.04.2008).

Ainda sobre a competência para o julgamento dos litígios entre o representante e o representado, merece destaque a polêmica que se estabeleceu a respeito do assunto após a edição da Emenda Constitucional 45/2004, que alterou a redação do art. 114 da Constituição Federal, o qual passou a prever a competência da Justiça do Trabalho para o julgamento de todas as ações oriundas da relação de trabalho (antes se falava na relação entre trabalhadores e empregadores). Com a mudança, entende-se atualmente que a Justiça do Trabalho é competente para julgar toda e qualquer demanda referente a uma relação de trabalho, em cujo conceito poderiam se incluir as relações mantidas, por exemplo, pelos profissionais liberais com seus clientes. Diante dessa nova realidade, questionou-se a conformidade do art. 39 da Lei 4.886/1965 com o novo texto constitucional, uma vez que as relações entre os representantes e os representados podem se inserir no conceito genérico de relação de trabalho. No entanto, o STJ entendeu que, mesmo após a EC 45/2004, continua sendo competente a Justiça Comum Estadual para processar e julgar as causas relativas aos contratos de representação comercial por se tratar de relação mercantil (empresarial).

Conflito negativo de competência. Justiça Estadual e Justiça do Trabalho. Contrato de representação comercial. Competência da Justiça Estadual. 1. Malgrado o artigo 114, inciso I da Constituição Federal, disponha que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, na Segunda Seção desta Corte Superior é firme a orientação de que a competência ratione materiae deve ser definida em face da natureza jurídica da quaestio, deduzida dos respectivos pedido e causa de pedir. 2. O art. 1.° da Lei n.° 4.886/65 é claro quanto ao fato de o exercício da representação comercial autônoma não caracterizar relação de emprego. 3. Não se verificando, in casu, pretensão de ser reconhecido ao autor vínculo empregatício, uma vez que objetiva ele o recebimento de importância correspondente pelos serviços prestados, a competência para conhecer de causas envolvendo contratos de representação comercial é da justiça comum, e não da justiça laboral, mesmo após o início da vigência da EC n.° 45/2004. 4. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 1.ª Vara de Canoinhas/SC, o suscitado (CC 96.851-SC, Rel. Min. convocado Carlos Fernando Mathias, DJ 20.03.2009).

Conflito negativo de competência. Contrato de representação comercial entre pessoas jurídicas. Relação de trabalho. Inexistência. Competência da Justiça comum estadual. – A Justiça do Trabalho não é competente para julgar ação indenizatória oriunda de representação comercial, envolvendo pessoas jurídicas. É que o suposto dano não decorre de relação de trabalho, mas de relação mercantil (CC 77.034/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 2.ª Seção, j. 27.06.2007, DJ 01.08.2007, p. 432).

Por fim, destaque-se que, no contrato de representação comercial, é expressamente vedada a previsão da cláusula del credere, que analisamos quando do estudo do contrato de comissão mercantil. É o que preceitua o art. 43 da Lei 4.886/1965: “é vedada no contrato de representação comercial a inclusão de cláusulas del credere”.

5.5.   Concessão mercantil

Nesse contrato específico de colaboração, um empresário, o concessionário, assume a obrigação de comercializar produtos fabricados por outro empresário, o concedente. Trata-se, em regra, de contrato atípico, com exceção da concessão comercial relativa a veículos automotores terrestres, que é disciplinada especialmente pela Lei 6.729/1979, batizada de Lei Ferrari. Assim, em regra, as partes são livres para estipular as cláusulas do contrato de concessão mercantil, salvo, frise-se, no caso da concessão relativa a veículos automotores, em que o contrato se submete ao disposto na Lei 6.729/1979.

O contrato de concessão mercantil se caracteriza pelo fato de a subordinação empresarial existente entre as partes ser um pouco maior, ou seja, o concedente exerce sobre o concessionário um maior grau de ingerência na organização de sua atividade. Com efeito, como é muito comum nesses contratos que o concessionário assuma a obrigação de prestar assistência técnica aos consumidores dos produtos do concedente, por exemplo, justifica-se um maior controle do concedente sobre a atuação do concessionário.

Ressalte-se, por fim, que no contrato de concessão mercantil, que se configura como um contrato de distribuição-intermediação, é comum a presença de algumas cláusulas contratuais essenciais, dentre as quais podemos destacar: (i) a de exclusividade de distribuição, que obriga o concessionário a comercializar apenas produtos fabricados pelo concedente; (ii) a de exclusividade de zona (ou de territorialidade), que obriga, por outro lado, o concedente a só comercializar seus produtos na área de atuação do concessionário por intermédio deste.

Sobre o contrato de concessão de veículos automotores, o STJ já decidiu, mais de uma vez, que concedente e concessionária são solidariamente responsáveis perante o consumidor.

Direito Civil e Processual Civil. Código de Defesa do Consumidor. Ação de indenização. Compra de automóvel novo. Defeito de fábrica. Responsabilidade solidária do fabricante e da concessionária. Art. 18 da Lei n. 8.078/90. Caso concreto. Responsabilidade da concessionária afastada. Decisão anterior irrecorrida. Preclusão. Julgamento extra petita. Ausência de prequestionamento. Danos morais. Liquidação por arbitramento. Desnecessidade. Fixação desde logo. Quantum. Meros dissabores e aborrecimentos. Redução da indenização. Recurso parcialmente provido. I – Em princípio, considerando o sistema de comercialização de automóvel, através de concessionárias autorizadas, são solidariamente responsáveis o fabricante e o comerciante que aliena o veículo. II – Tratando-se de responsabilidade solidária, a demanda pode ser direcionada contra qualquer dos coobrigados. A existência de solidariedade, no entanto, não impede que seja apurado, no caso concreto, o nexo de causalidade entre as condutas dos supostos responsáveis para concluir-se pela responsabilidade de apenas um deles. (...) (REsp 402.356/MA, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4.ª Turma, j. 25.03.2003, DJ 23.06.2003, p. 375).

Recurso especial. Ação indenizatória. Compra de automóvel. Concessionária. Entrega. Não ocorrência. Responsabilidade solidária do fabricante. Art. 18 da Lei n. 8.078/90. 1. Em princípio, considerando o sistema de comercialização de automóvel, através de concessionárias autorizadas, são solidariamente responsáveis o fabricante e o comerciante que aliena o veículo. 2. Tratando-se de responsabilidade solidária, a demanda pode ser direcionada contra qualquer dos coobrigados. A existência de solidariedade, no entanto, não impede que seja apurado, no caso concreto, o nexo de causalidade entre as condutas dos supostos responsáveis para concluir-se pela responsabilidade de apenas um deles. (...) (REsp 1.155.730/SP, Rel. Min. Sidnei Beneti, 3.ª Turma, j. 16.08.2011, DJe 09.09.2011).

5.6.   Franquia (franchising)

Empreender, sabe-se, não é tarefa fácil. Aquele que resolve investir em determinado empreendimento, seja como empresário individual, seja constituindo com alguém uma sociedade empresária, sabe dos riscos que corre. Todo empreendedor em potencial, portanto, antes de se aventurar no exercício de uma atividade econômica, calcula – espera-se que ele o faça, pelo menos – o risco empresarial do seu empreendimento.

Com efeito, é deveras difícil decidir em que ramo de atividade atuar, em que local se estabelecer, como investir os recursos iniciais, entre outras coisas. Se o empreendedor não possui muita experiência, o risco aumentará consideravelmente, e é por isso que há, inclusive, uma preocupação específica do Estado em oferecer condições especiais para que os pequenos empreendedores consigam se desenvolver (art. 179 da CF/1988).

Pois bem. Uma forma inteligente de um empreendedor diminuir o risco inerente ao exercício de atividade econômica é procurar serviços especializados de organização empresarial, e talvez a forma mais apropriada de fazê-lo é celebrando um contrato de franquia (franchising), cujos aspectos principais de sua formação foram regulados pela Lei 8.955/1994.

De acordo com o art. 2.° da referida lei, “franquia empresarial é o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuição exclusiva ou semiexclusiva de produtos ou serviços e, eventualmente, também ao direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado vínculo empregatício”.

Vê-se, pois, que o contrato de franquia atende tanto aos interesses do franqueador, que consegue expandir seus negócios e divulgar sua marca sem necessitar investir na construção de novos pontos de negócios, quanto aos interesses do franqueado, o qual se aproveita da “fama” do franqueador e de sua experiência administrativa e empresarial.

Percebe-se também que o contrato de franquia envolve outros contratos, como a cessão do uso de marca ou patente e a distribuição exclusiva ou semiexclusiva de produtos ou serviços. Ademais, o franqueador presta ao franqueado serviços de organização empresarial, que se desdobram, basicamente, em três contratos específicos: (i) engineering, por meio do qual o franqueador orienta o franqueado em todo o processo de montagem e planejamento do seu estabelecimento; (ii) management, mediante o qual o franqueador orienta o franqueado no treinamento de sua equipe de funcionários e na gerência de sua atividade; (iii) marketing, por meio do qual o franqueador orienta o franqueado quanto aos procedimentos de divulgação e promoção dos produtos comercializados.

Assim como ocorre em todos os contratos de colaboração, há na franquia uma clara subordinação empresarial do franqueado em relação ao franqueador, sem que exista, todavia, vínculo empregatício. Essa subordinação, pois, diz respeito apenas à organização da atividade do franqueado, que deve seguir as orientações traçadas pelo franqueador, já que este tem total interesse de que os seus produtos mantenham a sua qualidade e sua marca conserve o “respeito” adquirido junto ao mercado consumidor.

Com o incrível crescimento do número de franquias verificado a partir de 1990, o legislador sentiu a necessidade de regulamentar minimamente o contrato de franquia, fazendo-o por meio da edição da Lei 8.955/1994, já mencionada. Ressalte-se que essa lei não disciplinou detalhadamente o contrato de franquia, mas apenas regulou alguns aspectos essenciais de sua formação, no intuito de conferir maior transparência a essa modalidade de contratação entre empresários.

Para atender o objetivo acima referido de conferir maior transparência na formalização dos contratos de franquia, a Lei 8.955/1994 determina, em seu art. 3.°, que o franqueador interessado em “abrir” franquias deve fornecer aos potenciais franqueados uma Circular de Oferta de Franquia (COF), que conterá os dados fundamentais do negócio a ser realizado entre as partes. Assim, sempre que o franqueador tiver interesse na implantação de sistema de franquia empresarial, deverá fornecer ao interessado em tornar-se franqueado uma circular de oferta de franquia, por escrito e em linguagem clara e acessível, contendo obrigatoriamente as seguintes informações:

I – histórico resumido, forma societária e nome completo ou razão social do franqueador e de todas as empresas a que esteja diretamente ligado, bem como os respectivos nomes de fantasia e endereços; II – balanços e demonstrações financeiras da empresa franqueadora relativos aos dois últimos exercícios; III – indicação precisa de todas as pendências judiciais em que estejam envolvidos o franqueador, as empresas controladoras e titulares de marcas, patentes e direitos autorais relativos à operação, e seus subfranqueadores, questionando especificamente o sistema da franquia ou que possam diretamente vir a impossibilitar o funcionamento da franquia; IV – descrição detalhada da franquia, descrição geral do negócio e das atividades que serão desempenhadas pelo franqueado; V – perfil do franqueado ideal no que se refere a experiência anterior, nível de escolaridade e outras características que deve ter, obrigatória ou preferencialmente; VI – requisitos quanto ao envolvimento direto do franqueado na operação e na administração do negócio; VII – especificações quanto ao: a) total estimado do investimento inicial necessário à aquisição, implantação e entrada em operação da franquia; b) valor da taxa inicial de filiação ou taxa de franquia e de caução; e c) valor estimado das instalações, equipamentos e do estoque inicial e suas condições de pagamento; VIII – informações claras quanto a taxas periódicas e outros valores a serem pagos pelo franqueado ao franqueador ou a terceiros por este indicados, detalhando as respectivas bases de cálculo e o que as mesmas remuneram ou o fim a que se destinam, indicando, especificamente, o seguinte: a) remuneração periódica pelo uso do sistema, da marca ou em troca dos serviços efetivamente prestados pelo franqueador ao franqueado (royalties); b) aluguel de equipamentos ou ponto comercial; c) taxa de publicidade ou semelhante; d) seguro mínimo; e e) outros valores devidos ao franqueador ou a terceiros que a ele sejam ligados; IX – relação completa de todos os franqueados, subfranqueados e subfranqueadores da rede, bem como dos que se desligaram nos últimos doze meses, com nome, endereço e telefone; X – em relação ao território, deve ser especificado o seguinte: a) se é garantida ao franqueado exclusividade ou preferência sobre determinado território de atuação e, caso positivo, em que condições o faz; e b) possibilidade de o franqueado realizar vendas ou prestar serviços fora de seu território ou realizar exportações; XI – informações claras e detalhadas quanto à obrigação do franqueado de adquirir quaisquer bens, serviços ou insumos necessários à implantação, operação ou administração de sua franquia, apenas de fornecedores indicados e aprovados pelo franqueador, oferecendo ao franqueado relação completa desses fornecedores; XII – indicação do que é efetivamente oferecido ao franqueado pelo franqueador, no que se refere a: a) supervisão de rede; b) serviços de orientação e outros prestados ao franqueado; c) treinamento do franqueado, especificando duração, conteúdo e custos; d) treinamento dos funcionários do franqueado; e) manuais de franquia; f) auxílio na análise e escolha do ponto onde será instalada a franquia; e g) layout e padrões arquitetônicos nas instalações do franqueado; XIII – situação perante o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) das marcas ou patentes cujo uso estará sendo autorizado pelo franqueador; XIV – situação do franqueado, após a expiração do contrato de franquia, em relação a: a) know how ou segredo de indústria a que venha a ter acesso em função da franquia; e b) implantação de atividade concorrente da atividade do franqueador; XV – modelo do contrato-padrão e, se for o caso, também do pré-contrato-padrão de franquia adotado pelo franqueador, com texto completo, inclusive dos respectivos anexos e prazo de validade.

De acordo com o art. 4.° da mesma lei, “a circular oferta de franquia deverá ser entregue ao candidato a franqueado no mínimo 10 (dez) dias antes da assinatura do contrato ou pré-contrato de franquia ou ainda do pagamento de qualquer tipo de taxa pelo franqueado ao franqueador ou a empresa ou pessoa ligada a este”.

A exigência de que a COF seja enviada ao potencial franqueado tem a finalidade clara de lhe permitir conhecer com detalhes os termos do contrato e analisar a viabilidade econômica do negócio. A lei deu tanta importância ao assunto que o parágrafo único do dispositivo em questão estabelece que “na hipótese do não cumprimento do disposto no caput deste artigo, o franqueado poderá arguir a anulabilidade do contrato e exigir devolução de todas as quantias que já houver pago ao franqueador ou a terceiros por ele indicados, a título de taxa de filiação e royalties, devidamente corrigidas, pela variação da remuneração básica dos depósitos de poupança mais perdas e danos”. No mesmo sentido é a regra do art. 7.° da lei em análise, segundo o qual “a sanção prevista no parágrafo único do art. 4.° desta lei aplica-se, também, ao franqueador que veicular informações falsas na sua circular de oferta de franquia, sem prejuízo das sanções penais cabíveis”. Não basta, pois, enviar a COF no prazo legal: é fundamental que a COF contemple informações verdadeiras sobre o negócio oferecido.

O art. 6.° da Lei 8.955/1994, por sua vez, estabelece que “o contrato de franquia deve ser sempre escrito e assinado na presença de 2 (duas) testemunhas e terá validade independentemente de ser levado a registro perante cartório ou órgão público”. Não obstante, o art. 211 da LPI determina que os contratos de franquia devem ser registrados no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), nos seguintes termos: “o INPI fará o registro dos contratos que impliquem transferência de tecnologia, contratos de franquia e similares para produzirem efeitos em relação a terceiros”. Como conjugar, então, as duas regras? Ora, uma trata da validade do contrato, e a outra da sua eficácia perante terceiros. Assim, a ausência de registro da franquia no INPI não invalida o contrato, mas nesse caso ele só produzirá efeitos perante as partes contratantes – franqueador e franqueado –, não sendo oponível perante terceiros.