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Drones e mídia social

DAVID LYON: Tendo em mente esses comentários introdutórios sobre vigilância líquida, a primeira questão que eu gostaria de explorar é esta: no mundo que você chama de líquido moderno, a vigilância assume algumas formas novas e significativas, das quais os drones e a mídia social constituem bons exemplos, como você observou recentemente num blog. Ambos produzem informações pessoais a serem processadas, mas de maneiras diferentes. Seriam essas mídias complementares, de modo que o uso despreocupado de uma delas (a mídia social) naturalize para nós a extração involuntária de dados pessoais em outro campo por meio de drones miniaturizados? E que significam esses novos desenvolvimentos para nosso anonimato e nossa invisibilidade relativa no mundo cotidiano?

ZYGMUNT BAUMAN: Creio que o pequeno texto que você menciona, publicado alguns meses atrás num blog postado no site Social Europe, seria um bom ponto de partida. Espero que você perdoe a longa citação. Nesse ensaio eu fiz a justaposição de duas notícias aparentemente não relacionadas que apareceram no mesmo dia, 19 de junho de 2011 – embora nenhuma delas tenha sido manchete, e os leitores possam ser desculpados por não ter tomado conhecimento de uma ou das duas. Como qualquer notícia, ambas foram trazidas pelo “tsunami de informações” diário, duas gotas pequeninas num fluxo de notícias aparentemente destinado a ilustrar e esclarecer (e do qual se espera isso), enquanto contribui para toldar a visão e confundir o observador.

Uma das matérias, da autoria de Elisabeth Bumiller e Thom Shanker,1 falava do aumento espetacular do número de drones reduzidos ao tamanho de uma libélula ou de um beija-flor confortavelmente empoleirado no peitoril de uma janela; ambos (drone e beija-flor) destinados, na saborosa expressão do engenheiro espacial Greg Parker, “a desaparecer em meio à paisagem”. A segunda, escrita por Brian Stelter, proclamava a internet como “o lugar onde morre o anonimato”.2 As duas mensagens falavam em uníssono, previam e anunciavam o fim da invisibilidade e do anonimato, os dois atributos definidores da privacidade – embora os textos tenham sido escritos independentemente e sem conhecimento da existência do outro.

Os drones não tripulados, realizando tarefas de espionagem e rastreamento pelas quais os Predators se tornaram famosos (“Mais de 1.900 insurgentes nas áreas tribais do Paquistão foram mortos por drones americanos desde 2006”), estão sendo reduzidos ao tamanho de pássaros, preferivelmente ao de insetos. (O bater de asas dos insetos, ao que parece, é mais fácil de imitar tecnologicamente que os movimentos das asas dos pássaros; segundo o major Michael L. Anderson, doutorando em tecnologia de navegação avançada, as complexas habilidades aerodinâmicas da mariposa-esfinge, inseto conhecido pela capacidade de pairar, foram escolhidas como alvo da onda atual de design – não atingido ainda, mas a ser alcançado em breve –, em função de seu potencial de superar qualquer coisa que “nossas desajeitadas aeronaves podem fazer”.)

A nova geração de drones será invisível enquanto torna tudo mais acessível à visão; eles continuarão imunes, ao mesmo tempo que tornam tudo mais vulnerável. Nas palavras de Peter Baker, professor de ética da Academia Naval dos Estados Unidos, os drones farão com que as guerras entrem na “era pós-heroica”; mas também, segundo outros especialistas em “ética militar”, vão ampliar ainda mais a já ampla “desconexão entre o público americano e suas guerras”; vão realizar, em outras palavras, um novo salto (o segundo após a substituição do recruta pelo soldado profissional) para tornar a própria guerra quase invisível à nação em nome da qual é travada (a vida de nenhum nativo estará em risco) e, portanto, muito mais fácil – na verdade, muito mais tentadora – de conduzir, graças à ausência quase total de danos colaterais e de custos políticos.

Os drones da próxima geração poderão ver tudo, ao mesmo tempo que permanecem confortavelmente invisíveis – em termos literais e metafóricos. Não haverá abrigo impossível de espionar – para ninguém. Até os técnicos que operam os drones vão renunciar ao controle de seus movimentos, e assim se tornarão incapazes, embora fortemente pressionados, de isentar qualquer objeto da chance de ser vigiado; os “novos e aperfeiçoados” drones serão programados para voar por si próprios, seguindo itinerários de sua própria escolha, no momento em que decidirem. O céu é o limite para as informações que irão fornecer, uma vez postos a operar na quantidade planejada.

Na verdade, esse é o aspecto da nova tecnologia de espionagem e vigilância, dotada como é da capacidade de agir a distância e de modo autônomo, que mais preocupa seus inventores; por conseguinte, os dois jornalistas relatam suas preocupações: “um tsunami de dados” que já está afogando o pessoal dos quartéis da Força Aérea e ameaçando ultrapassar sua capacidade de digeri-los e absorvê-los, e sua capacidade de sair de seu controle (ou do de qualquer outra pessoa). Desde o 11 de Setembro, o número de horas de que os funcionários da Força Aérea necessitam para reciclar as informações fornecidas pelos drones aumentou 3.100% – e a cada dia mais 1.500 horas de vídeos são acrescentadas ao volume de informações que demandam processamento. Quando a limitada visão “em túnel” dos sensores dos drones for substituída por uma “visão de Górgona”, capaz de abarcar uma cidade toda de uma só vez (desenvolvimento iminente), serão necessários 2 mil analistas para tratar as informações transmitidas por um único drone, em lugar dos noventa que hoje fazem esse trabalho. Mas isso apenas significa, permita-me comentar, que pescar um objeto “interessante” ou “relevante” num poço de dados sem fundo vai exigir trabalho duro e custar muito dinheiro; não que qualquer objeto potencialmente interessante possa garantir-se contra a possibilidade de ser arrastado para esse poço. Ninguém saberá com certeza se ou quando um beija-flor irá pousar em sua janela.

Quanto à “morte do anonimato” por cortesia da internet, a história é ligeiramente diferente: submetemos à matança nossos direitos de privacidade por vontade própria. Ou talvez apenas consintamos em perder a privacidade como preço razoável pelas maravilhas oferecidas em troca. Ou talvez, ainda, a pressão no sentido de levar nossa autonomia pessoal para o matadouro seja tão poderosa, tão próxima à condição de um rebanho de ovelhas, que só uns poucos excepcionalmente rebeldes, corajosos, combativos e resolutos estejam preparados para a tentativa séria de resistir. De uma forma ou de outra, contudo, nos é oferecida, ao menos nominalmente, uma escolha, assim como ao menos a aparência de um contrato em duas vias e o direito formal de protestar e processar se ele for rompido, algo jamais assegurado no caso dos drones.

Da mesma forma, uma vez dentro, nos tornamos reféns do destino. Como observa Brian Stelter, “a inteligência coletiva dos 2 bilhões de usuários da internet e as pegadas digitais que tantos deles deixam nos sites combinam-se para tornar cada vez mais provável que todo vídeo embaraçoso, toda foto íntima e todo e-mail indelicado seja relacionado à sua fonte, quer esta o deseje, quer não”. Levou apenas um dia para que Rich Lam, fotógrafo freelance que documentou os distúrbios de rua em Vancouver, rastreasse e identificasse um casal registrado (acidentalmente) em uma de suas fotos se beijando apaixonadamente.

Tudo o que é privado agora é feito potencialmente em público – e está potencialmente disponível para consumo público; e continua sempre disponível, até o fim dos tempos, já que a internet “não pode ser forçada a esquecer” nada registrado em algum de seus inumeráveis servidores.

Essa erosão do anonimato é produto dos difundidos serviços da mídia social, de câmeras em celulares baratos, sites grátis de armazenamento de fotos e vídeos e, talvez o mais importante, de uma mudança na visão das pessoas sobre o que deve ser público e o que deve ser privado.

Todas essas engenhocas tecnológicas são, pelo que nos dizem, “amigáveis ao usuário” – embora essa expressão favorita dos textos de publicidade signifique, sob exame mais minucioso, um produto que fica incompleto sem o trabalho do usuário, tal como os móveis da Ikea.a E, permita-me acrescentar, sem a devoção entusiástica nem o aplauso ensurdecedor dos usuários. Um Étienne de la Boétie contemporâneo provavelmente ficaria tentado a falar de servidão, mas não voluntária, e sim do tipo “faça você mesmo”.

Que conclusão se pode extrair desse encontro entre os operadores de drones e os operadores de contas do Facebook? Entre dois tipos de operadores atuando em função de objetivos aparentemente conflitantes e estimulados por motivos aparentemente opostos, e no entanto cooperando intimamente, de boa vontade e de forma bastante efetiva para criar, manter e expandir aquilo que você apelidou, com muita felicidade, de “categorização social”?

Creio que o aspecto mais notável da edição contemporânea da vigilância é que ela conseguiu, de alguma maneira, forçar e persuadir opositores a trabalhar em uníssono e fazê-los funcionar de comum acordo, a serviço de uma mesma realidade. Por um lado, o velho estratagema pan-óptico (“Você nunca vai saber quando é observado em carne e osso, portanto, nunca imagine que não está sendo espionado”) é implementado aos poucos, mas de modo consistente e aparentemente inevitável, em escala quase universal. Por outro, com o velho pesadelo pan-óptico (“Nunca estou sozinho”) agora transformado na esperança de “Nunca mais vou ficar sozinho” (abandonado, ignorado e desprezado, banido e excluído), o medo da exposição foi abafado pela alegria de ser notado.

Os dois desenvolvimentos – e acima de tudo sua conciliação e cooperação na promoção da mesma tarefa – foram evidentemente possibilitados por exclusão, e prisão e confinamento assumiram o papel da ameaça mais admirável à segurança existencial e da principal fonte de ansiedade. A condição de ser observado e visto, portanto, foi reclassificada de ameaça para tentação. A promessa de maior visibilidade, a perspectiva de “estar exposto” para que todo mundo veja e observe, combina bem com a prova de reconhecimento social mais avidamente desejada, e, portanto, de uma existência valorizada – “significativa”.

Ter o nosso ser completo, com verrugas e tudo, registrado em arquivos publicamente acessíveis parece o melhor antídoto profilático para a toxicidade da exclusão – assim como uma forma poderosa de manter distante a ameaça de expulsão; é, na verdade, uma tentação a que poucos praticantes da existência social, reconhecidamente precária, se sentiriam com força suficiente para resistir. Creio que a história do recente e fenomenal sucesso dos “websites sociais” é um bom exemplo dessa tendência.

De fato, Mark Zuckerberg, o jovem de vinte anos que abandonou os estudos em Harvard, deve ter topado com uma espécie de mina de ouro ao criar (alguns dizem roubar)3 a ideia do Facebook – e lançá-la na internet, para uso exclusivo dos alunos de Harvard, em fevereiro de 2004. Isso é bastante óbvio. Mas o que era aquele minério parecido com ouro que o sortudo do Mark descobriu e continua a extrair com lucros fabulosos, que prosseguem em imperturbável crescimento?

No site oficial do Facebook pode-se encontrar a seguinte descrição dos benefícios que tem a reputação de provocar, atrair e seduzir aquele meio bilhão de pessoas para gastar grande parte de seu tempo de vigília em seus domínios virtuais:

Os usuários podem criar perfis com fotos, listas de interesses pessoais, dados de contato e outras informações pessoais. Podem se comunicar com amigos e outros usuários com mensagens privadas ou públicas e numa sala de bate-papo. Também podem criar grupos de interesse ou juntar-se a algum já existente, como no botão “Curtir” (chamado “Fanpages” até 19 de abril de 2010), que remete a algumas páginas mantidas por organizações como meio de propaganda.

Em outras palavras, o que as legiões de “usuários ativos” abraçaram entusiasticamente ao se juntar às fileiras dessa categoria no Facebook foi a perspectiva de duas coisas com as quais devem ter sonhado, embora sem saber onde procurá-las ou encontrá-las, antes (e até) que a oferta de Mark Zuckerberg a seus colegas de Harvard aparecesse na internet. Em primeiro lugar, eles deviam se sentir solitários demais para serem reconfortados, mas achavam difícil, por um motivo ou outro, escapar da solidão com os meios de que dispunham. Em segundo lugar, deviam sentir-se dolorosamente desprezados, ignorados ou marginalizados, exilados e excluídos, porém, mais uma vez, achavam difícil, quiçá impossível, sair de seu odioso anonimato com os meios à disposição. Para ambas as tarefas, Zuckerberg ofereceu os recursos até então terrivelmente ausentes e procurados em vão; e eles pularam para agarrar a oportunidade. Já deviam estar prontos para saltar, os pés sobre o ponto de partida, os músculos retesados, as orelhas empinadas à espera do tiro de largada.

Como recentemente observou Josh Rose, diretor de criação digital da agência de publicidade Deutsch LA: “A internet não nos rouba a humanidade, é um reflexo dela. A internet não entra em nós, ela mostra o que há ali.”4 Como ele está certo. Jamais culpe o mensageiro pelo que você considera ruim na mensagem que ele entregou, mas também não o louve pelo que considera bom. Afinal, alegrar-se ou desesperar-se com a mensagem depende das preferências e animosidades do destinatário.

O que se aplica a mensagens e mensageiros também se aplica, de certa forma, às coisas que a internet oferece e a seus “mensageiros” – as pessoas que as exibem em nossas telas e as tornam objeto de nossa atenção. Nesse caso, são os usos que nós – todo o meio bilhão de “usuários ativos” do Facebook – fazemos dessas ofertas que as tornam, assim como seu impacto em nossa vida, boas ou más, benéficas ou prejudiciais. Tudo depende do que estamos procurando; engenhocas eletrônicas só tornam nossas aspirações mais ou menos realistas e nossa busca mais rápida ou mais lenta, mais ou menos eficaz.

DL: Sim, também gosto da ênfase naquilo que o uso da internet e da mídia social revela sobre nossas relações sociais, ainda mais porque isso nos fornece pistas sobre o que está mudando. As questões de “privacidade”, por exemplo, estão em mudança constante e são muito mais complexas do que se imaginava. Vemos algo semelhante na conexão entre privacidade e sigilo, sendo este último um tema importante no clássico sociológico de Georg Simmel.5 Segundo Simmel, não divulgar informações é fundamental para formatar a interação social; o modo como nos relacionamos com outras pessoas depende profundamente do que sabemos sobre elas. Mas o artigo de Simmel foi publicado em inglês em 1906, e o debate precisa ser atualizado, não apenas em função das maneiras pelas quais os fluxos de informação hoje são facilitados, bloqueados e desviados,6 mas também pelos novos desafios em termos dos “segredos” e de seu impacto nos domínios públicos da mídia social.

No fim do século XX, as ideias de Foucault sobre “confissão” tornaram-se bem conhecidas. Ele pensava que a confissão – digamos, de um crime – havia se tornado um critério-chave de verdade, algo extraído das profundezas do ser de uma pessoa. Ele observou tanto os meios mais privados de confissão – a um padre, por exemplo – quanto os meios públicos, que constituem as manchetes. Na percepção de Foucault, a confissão religiosa era literalmente “boa para a alma”, enquanto seus correlativos seculares contemporâneos valorizavam a saúde e o bem-estar pessoais. De toda forma, pensava Foucault, os indivíduos têm um papel ativo em sua própria vigilância. Ora, se Foucault iria considerar confessional ou não o blog em que se revela tudo ou o post “íntimo” no Facebook, isso é assunto para debate. E o que é “público” ou “privado” é algo a ser discutido. A confissão cristã, sussurrada a uma pessoa, tem a ver com humilhação. O blog é transmitido para qualquer um que queira lê-lo e faz propaganda de si mesmo. Tem a ver com propaganda ou pelo menos com exposição pública.

ZB: Há uma diferença profunda entre a compreensão pré-moderna (medieval) da confissão – acima de tudo como admissão de culpa por algo já conhecido antecipadamente por torturadores físicos ou espirituais, que a extraíam à guisa de reafirmação e confirmação da verdade como atributo dos superiores pastorais – e sua compreensão moderna, como manifestação, exteriorização e afirmação de uma “verdade interior”, da autenticidade do “self”, alicerce da individualidade e da privacidade do indivíduo. Na prática, porém, o advento da sociedade confessional de nosso tempo foi uma ocorrência ambivalente. Assinalou o triunfo final da privacidade, essa invenção inerentemente moderna, mas também o início de sua vertiginosa queda desde os píncaros de seu triunfo. Portanto, era chegada a hora de sua vitória (de Pirro, com certeza); a privacidade invadiu, conquistou e colonizou o domínio público – mas à custa da perda de seu direito ao sigilo, sua característica definidora e seu privilégio mais valorizado e ardentemente defendido.

Um segredo, tal como outras categorias de propriedades pessoais, é por definição a parte do conhecimento cujo compartilhamento com outros é recusada, proibida e/ou estritamente controlada. O sigilo traça e assinala, por assim dizer, a fronteira da privacidade; esta é o espaço daquilo que é do domínio da própria pessoa, o território de sua soberania total, no qual se tem o poder abrangente e indivisível de decidir “o que e quem eu sou”, e do qual se pode lançar e relançar a campanha para ter e manter suas decisões reconhecidas e respeitadas. Mas, numa surpreendente guinada de 180 graus em relação aos hábitos de nossos ancestrais, perdemos a coragem, a energia e, acima de tudo, a disposição de persistir na defesa desses direitos, esses tijolos insubstituíveis da autonomia individual.

Nos dias de hoje, o que nos assusta não é tanto a possibilidade de traição ou violação da privacidade, mas o oposto, o fechamento das saídas. A área da privacidade transforma-se num lugar de encarceramento, sendo o dono do espaço privado condenado e sentenciado a padecer expiando os próprios erros; forçado a uma condição marcada pela ausência de ouvintes ávidos por extrair e remover os segredos que se ocultam por trás das trincheiras da privacidade, por exibi-los publicamente e torná-los propriedade comum de todos, que todos desejam compartilhar. Parece que não sentimos nenhum prazer em ter segredos, a menos que sejam do tipo capaz de reforçar nossos egos atraindo a atenção de pesquisadores e editores de talk shows televisivos, das primeiras páginas dos tabloides e das capas das revistas atraentes e superficiais.

“No cerne das redes sociais há um intercâmbio de informações pessoais.” Os usuários sentem-se felizes por “revelar detalhes íntimos de suas vidas pessoais”, “postar informações precisas” e “compartilhar fotos”. Estima-se que 61% dos adolescentes do Reino Unido com idade entre treze e dezessete anos “têm um perfil pessoal num site da rede” que lhes permite “conviver on-line”.7

Na Grã-Bretanha, lugar onde o uso popular de dispositivos eletrônicos top de linha está ciberanos atrás do leste da Ásia, os usuários ainda podem acreditar que as “redes sociais” manifestam sua liberdade de escolha, e até que elas sejam uma forma de rebelião e autoafirmação da juventude. Mas na Coreia do Sul, por exemplo, onde, no cotidiano, a maior parte da vida social já é eletronicamente mediada (ou melhor, onde a vida social já se transformou em vida eletrônica ou cibervida, e onde se leva a maior parte da “vida social” na companhia de um computador, iPod ou celular, e só secundariamente com outros seres de carne e osso), é óbvio para os jovens que eles não têm muita chance de escolha; onde eles vivem, levar a vida social eletronicamente não é mais uma opção, mas uma necessidade do tipo “pegar ou largar”. A “morte social” aguarda os poucos que até agora não conseguiram vincular-se ao Cyworld (o equivalente coreano do Facebook). A Coreia do Sul é líder no cibermercado da “cultura do mostre e diga”.

Seria um erro grave, contudo, supor que o impulso de exibir publicamente o “eu interior” e a disposição de satisfazê-lo sejam apenas manifestações de um vício geracional, relacionado à idade, de adolescentes ávidos, como naturalmente tendem a ser, por se colocar na “rede” (termo que depressa substitui “sociedade”, tanto no discurso das ciências sociais quanto na fala popular) e lá permanecer, embora sem muita certeza sobre a melhor maneira de atingir esse objetivo. A nova tendência à confissão pública não pode ser explicada por fatores “específicos da idade” – de qualquer modo, não somente por eles. Eugène Enriquez recentemente resumiu a mensagem transmitida por crescentes evidências recolhidas de todos os setores do mundo líquido moderno de consumidores:

Desde que não nos esqueçamos de que o que antes era invisível – a cota de intimidade, a vida interior de cada um – agora deve ser obrigatoriamente exposto no palco público (sobretudo nas telas de TV, mas também no palco literário), devemos entender que aqueles que prezam sua invisibilidade tendem a ser rejeitados, postos de lado ou transformados em suspeitos de um crime. A nudez física, social e psicológica está na ordem do dia.8

Os adolescentes equipados com confessionários eletrônicos portáteis não passam de aprendizes treinando a (e treinados na) arte de viver numa sociedade confessional; uma sociedade que se destaca por eliminar a fronteira que antes separava o privado do público, por fazer da exposição pública do privado uma virtude e uma obrigação públicas, e por varrer da comunicação pública qualquer coisa que resista a ser reduzida a confidências privadas, juntamente com aqueles que se recusam a confidenciá-las.

Já na década de 1920, quando a iminente transformação da sociedade de produtores em sociedade de consumidores se encontrava em estado embrionário, ou melhor, incipiente (e era, portanto, negligenciada por observadores menos atentos e perspicazes), Siegfried Kracauer, pensador dotado da estranha capacidade de distinguir os contornos quase invisíveis e ainda incompletos de tendências que prefiguravam o futuro, perdidas numa massa informe de caprichos e idiossincrasias, fez o seguinte comentário:

A investida aos numerosos salões de beleza nasce, em parte, de preocupações existenciais, e o uso de cosméticos nem sempre é um luxo. Por medo de serem postos fora de uso como obsoletos, senhoras e cavalheiros tingem o cabelo, enquanto quarentões praticam esporte para se manter esbeltos. “Como posso ficar bonita”, diz o título de um panfleto lançado recentemente no mercado; os anúncios de jornal dizem que ele mostra formas de “continuar jovem e bela agora e sempre”.9

Os novos hábitos registrados por Kracauer em Berlim, no início da década de 1920, desde então têm se espalhado com notável curiosidade como um incêndio florestal, transformando-se em rotina do dia a dia (ou pelo menos num sonho) por todo o planeta. Oitenta anos depois, Germaine Greer observava que “até nos rincões mais longínquos do noroeste da China as mulheres deixaram de lado seus quimonos por sutiãs acolchoados e blusas sensuais, passaram a cachear e pintar seus cabelos lisos e a economizar para comprar cosméticos. A isso se deu o nome de liberalização”.10

Estudantes de ambos os sexos, expondo ávida e entusiasticamente suas qualidades, na esperança de atrair a atenção e também, possivelmente, ganhar o reconhecimento e a aprovação necessários para permanecer no jogo da convivência; clientes potenciais forçados a ampliar seus históricos de gastos e limites de crédito para ser mais bem atendidos; possíveis imigrantes lutando para ganhar e exibir brownie pointsb como prova da existência de uma demanda por seus serviços a fim de ter suas solicitações aprovadas; essas três categorias de pessoas, aparentemente tão distintas, assim como miríades de outras categorias forçadas a se vender no mercado e procurando, para isso, a melhor oferta, são incitadas, instigadas ou obrigadas a promover uma mercadoria atraente e desejável; assim, fazem todo o possível, usando os melhores recursos à disposição, para aumentar o valor de mercado dos artigos que estão vendendo. Os produtos que elas são estimuladas a colocar no mercado, assim como promover e vender, são elas próprias.

Elas são, simultaneamente, promotoras de produtos e os produtos que promovem. São, ao mesmo tempo, a mercadoria e seus agentes de marketing, os artigos e seus vendedores itinerantes (e, permita-me acrescentar, qualquer estudioso que tenha se candidatado a uma função professoral ou à concessão de verbas de pesquisa reconhecerá facilmente nessas experiências seus próprios apuros). Não importa como as enquadre o responsável pelas tabelas de estatísticas, todas elas habitam o mesmo espaço social conhecido pelo nome de mercado. Não interessa em que rubrica suas preocupações sejam classificadas por arquivistas do governo ou jornalistas investigativos, a atividade em que todas estão envolvidas (por escolha ou necessidade, ou mais comumente por ambas) é o marketing. O teste em que precisam passar para ganhar os prêmios sociais que ambicionam exige que elas mesmas se reclassifiquem como mercadorias: ou seja, como produtos capazes de atrair não apenas atenção, mas demanda e clientes.

Hoje, “consumir” significa nem tanto as delícias do paladar, mas investir na própria afiliação social, que na sociedade de consumidores se traduz como “potencial de venda”; desenvolver qualidades para as quais já exista uma demanda de mercado ou transformar aquelas que já se possui em mercadorias para as quais ainda se possa criar uma demanda. A maior parte das mercadorias de consumo oferecidas no mercado deve sua atração e seu poder de recrutar ávidos consumidores a seu valor de investimento, seja ele genuíno ou imputado, explicitamente propalado ou obliquamente implícito. Sua promessa de aumentar o poder de atração (e em consequência o preço de mercado) de seus compradores é explicitada – em letras grandes ou pequenas, ou pelo menos nas entrelinhas – na descrição de cada produto. Isso inclui os produtos que em aparência são comprados, principal ou exclusivamente, em função do prazer do consumidor. O consumo é um investimento em qualquer coisa que sirva para o “valor social” e a autoestima do indivíduo.

O propósito crucial, talvez decisivo, do consumo na sociedade de consumidores (embora raras vezes seja explicitado com tantas palavras e menos frequentemente ainda debatido no âmbito público) não é a satisfação de necessidades, desejos e vontades, mas a comodificação ou recomodificação do consumidor: elevar o status dos consumidores ao de mercadorias vendáveis. Por essa razão, em última instância, passar no teste de consumidor é condição inegociável para a admissão numa sociedade que foi remodelada à feição do mercado. Passar no teste é a precondição não contratual de todas as relações contratuais que constituem a rede de relacionamentos chamada “sociedade de consumidores” e que nela se constituem. É essa precondição, que não permite exceções nem tolera recusas, que consolida o agregado de transações vendedor/comprador numa totalidade imaginada; ou que, mais exatamente, permite que esse agregado seja vivenciado como uma totalidade chamada “sociedade” – entidade a que se pode atribuir a capacidade de “fazer demandas” e coagir atores a obedecê-las –, possibilitando que se impute a isso o status de “fato social”, no sentido durkheimiano.

Permita-me repetir: os membros da sociedade de consumidores são, eles próprios, mercadorias de consumo, e é essa qualidade que os torna integrantes legítimos dessa sociedade. Tornar-se e continuar a ser uma mercadoria vendável é o mais poderoso motivo de preocupações do consumidor, ainda que quase sempre oculto e poucas vezes consciente, que dirá explicitamente declarado. É por seu poder de aumentar o preço de mercado do consumidor que o poder de atração dos bens de consumo – atuais ou potenciais objetos de desejo que desencadeiam a ação do consumidor – tende a ser avaliado. “Fazer de si mesmo uma mercadoria vendável” é um trabalho do tipo “faça você mesmo”, uma tarefa individual. Observemos: “ fazer de si mesmo”, não apenas tornar-se, este é o desafio e a tarefa.

Ser membro da sociedade de consumidores é uma tarefa assustadora, além de um esforço penoso e interminável. O medo de não conseguir conformar-se foi deslocado pelo medo da inadequação, mas nem por isso se tornou menos apavorante. Os mercados de consumo são ávidos por tirar proveito desse medo, e as empresas que produzem bens de consumo competem pelo status de guias e auxiliares mais confiáveis nos intermináveis esforços de seus clientes para enfrentar o desafio. Elas fornecem “as ferramentas”, os instrumentos exigidos para o trabalho de “autofabricação” individualmente executado. Os produtos que apresentam como “ferramentas” para uso individual na tomada de decisões são de fato decisões tomadas por antecipação. Já estavam prontas muito antes de o indivíduo ser confrontado com a tarefa (apresentada como oportunidade) de decidir. É absurdo pensar nessas ferramentas como algo que possibilite ao indivíduo escolher seu propósito. Esses instrumentos são cristalizações de uma “necessidade” irresistível – que, agora como antes, os seres humanos devem aprender, obedecer e aprender a obedecer para serem livres.

O espantoso sucesso do Facebook não deveria ser atribuído a seu papel de mercado, onde, a cada dia, essa necessidade profunda pode se encontrar com uma emocionante liberdade de escolha?

DL: Você afirmou um pouco antes que a Grã-Bretanha está atrás de um país como a Coreia do Sul em termos do grau em que as relações sociais entre os jovens são mediadas eletronicamente. É verdade, claro, que a penetração de mercado – como a chamam – da mídia móvel e do Cyworld é maior na Coreia do Sul que no Reino Unido, mas haverá alguma razão pela qual isto não possa se igualar? Não consigo imaginar um motivo sequer. Mas “igualar-se” pode não ser a melhor maneira de conceber isso, porque na verdade estamos falando de fenômenos bem diversos. Cyworld e Facebook não são a mesma coisa. A dinâmica difere com a história e a cultura.

Mas em ambos os casos há questões difíceis. A sociologia agora é obrigada a se entender com o digital para não deixar de investigar e teorizar sobre espaços inteiros de atividade cultural significativa. Para início de conversa, a simples dependência tecnológica tem de ser considerada relevante em qualquer explicação social digna desse nome. São tantos os relacionamentos em parte – ou na totalidade – vivenciados on-line que uma sociologia sem o Facebook é inadequada. Independentemente de como o entenda a geração mais velha, o Facebook se tornou um meio básico de comunicação – de “conexão”, como expressa o próprio Facebook – e é agora uma nova dimensão da vida cotidiana para milhões de pessoas.

Daniel Miller, por exemplo, tem um livro recente, Tales from Facebook, de 2011, no qual mostra como esse meio digital está repleto de vida social de formas bastante profundas. Casais podem olhar o Facebook para descobrir se o “status de suas relações” continua intacto ou foi alterado por um clique do mouse do outro. Nos contos de Miller, esses parceiros podem culpar o Facebook por desempenhar algum papel no rompimento, ainda que eles próprios continuem a usá-lo. Mesmo nesse nível, há aspectos secundários de vigilância, já que os parceiros também ficam de olho na competição e fazem seus movimentos com base no que parecem informações fidedignas mostradas na tela.

Portanto, a sociologia tem de lidar com o digital. Mas uma coisa é observar que a mediação eletrônica é um fenômeno em rápida expansão, e mesmo perceber de que modo, no trabalho e na diversão, essa nova mídia pode ser “considerada relevante”. Outra coisa é lidar criticamente com os significados profundos dessa mediação e oferecer perspectivas críticas. Claramente, você não tenta ocultar sua preocupação com as relações aparentemente efêmeras e fragmentárias que parecem fomentadas – ou pelo menos facilitadas – por essa nova mídia.

Claro que você não está sozinho nisso. Sherry Turkle, que na década de 1980 escreveu, em tom de aprovação, sobre as possibilidades experimentais da nova mídia eletrônica por desenvolver o que ela chamou de “the second self” (nome de seu livro), e estudou isso de maneira fascinante, em meados da década seguinte, em Life on Screen, agora, em Alone Together, mudou de tom. “Hoje, inseguros em nossos relacionamentos e ansiosos por intimidade, recorremos à tecnologia, ao mesmo tempo em busca de maneiras de viver relacionamentos e de nos proteger deles.”11 Seu mote é que esperamos mais da tecnologia e menos uns dos outros.

Eu concordo com você: a sociologia é inelutavelmente crítica e deve analisar o que está realmente acontecendo. A obra de Sherry Turkle tornou-se muito mais crítica que antes. Mas essas questões sobre o que os sociólogos poderiam chamar de “relacionalidade” digital dão outra guinada quando pensamos sobre as dimensões de vigilância da nova mídia. Não que as relações pré-digitais estivessem de alguma forma isentas de vigilância – longe disso. Mas agora determinados tipos de vigilância estão rotineiramente envolvidos na mediação digital dos relacionamentos. Isso é válido em diversos níveis, desde a perseguição obsessiva do dia a dia (agora mencionada sem desaprovação) na mídia social até o marketing multinívelc e outras formas de vigilância administrativa on-line, que também afetam os relacionamentos.12

Minha pergunta é: se ou em que medida as relações digitalmente mediadas estarão sempre comprometidas, de alguma forma, por esse fato de natureza técnica, ou se o digital também pode apoiar o social? Isso afeta profundamente meu trabalho sobre vigilância, porque sempre afirmei que um problema-chave da vigilância contemporânea é seu foco estrito no controle, que rapidamente exclui qualquer preocupação com a proteção. Como as tecnologias eletrônicas servem muito frequentemente para amplificar alguns dos aspectos mais questionáveis da vigilância burocrática (mais distância, menos concentração no rosto, o que iremos debater em outro diálogo), deveríamos concluir que toda vigilância produz erosão do social? Ou, alternativamente (o que também veremos adiante), será que são possíveis formas responsáveis e até protetoras de vigilância digital?

ZB: Você está absolutamente certo em formular essas questões. Nossa vida divide-se (e cada vez mais, quando passamos das gerações mais velhas para as mais jovens) entre dois universos, “on-line” e “off-line”, e é irreparavelmente bicentrada. Como nossa vida se estende por dois universos, cada qual com um conteúdo substantivo e regras de procedimento próprias, tendemos a empregar o mesmo material linguístico ao nos movermos entre um e outro, sem perceber a mudança de campo semântico cada vez que cruzamos a fronteira. Há, portanto, uma interpenetração inevitável. A experiência obtida em um universo não pode deixar de reformar a axiologia que orienta a avaliação do outro. Parte da vida passada em um dos dois universos não pode ser descrita corretamente, seu significado não pode ser apreendido, nem sua lógica e sua dinâmica entendidas sem referência ao papel desempenhado em sua constituição pelo outro universo. Quase toda noção relacionada aos processos de vida do presente porta, inevitavelmente, a marca de sua bipolaridade.

Josh Rose, que já mencionei antes, prosseguiu como que instigado pelas suas (e, devo acrescentar, minhas) preocupações:

Recentemente fiz esta pergunta a meus amigos do Facebook: “Twitter, Facebook, Foursquare… Isso tudo está fazendo você se sentir mais próximo das pessoas ou mais afastado?” Ela provocou um monte de respostas, e parecia tocar num dos nervos expostos de nossa geração. Qual o efeito da internet e da mídia social sobre nossa humanidade? Vistas de fora, as interações digitais parecem frias e desumanas. Não há como negar isso. E, sem dúvida, dada a escolha entre abraçar e “cutucar”d uma pessoa, acho que todos concordaremos quanto ao que é melhor. O tema das respostas à minha pergunta no Facebook foi resumido por meu amigo Jason, que escreveu: “Mais próximo de pessoas das quais estou afastado.” Então, um minuto depois, acrescentou: “Porém, mais afastado de pessoas de que sou muito próximo.” E ainda: “Fiquei confuso.” Mas é confuso. Agora vivemos esse paradoxo em que duas realidades aparentemente conflitantes coexistem lado a lado. A mídia social simultaneamente nos aproxima e nos distancia.

Reconhecidamente, Rose estava preocupado em fazer avaliações inequívocas – como de fato se deveria estar no caso de uma transação seminal, porém arriscada, como a troca de esparsos incidentes de “proximidade” off-line pela volumosa variedade on-line. A “proximidade” trocada talvez fosse mais satisfatória, porém consumia tempo e energia, e era cercada de riscos; a “proximidade” adotada sem dúvida é mais rápida, quase não exige esforço e é praticamente livre de riscos, mas muitos a consideram muito menos capaz de aplacar a sede de companhia plena. Ganha-se uma coisa, perde-se outra – e é terrivelmente difícil decidir se os ganhos compensam as perdas; além disso, uma decisão está de uma vez por todas fora de questão – você vai achar a opção tão frágil e provisória quanto a “proximidade” que obteve.

O que você obteve foi uma rede, não uma “comunidade”. Como vai descobrir mais cedo ou mais tarde (desde que, claro, tenha esquecido ou deixado de aprender o que era uma “comunidade”, ocupado como está em construir e desfazer redes), elas não são mais parecidas que alhos e bugalhos. Pertencer a uma comunidade é uma condição mais segura e garantida do que ter uma rede – embora, reconhecidamente, com mais restrições e obrigações. A comunidade o observa de perto e deixa pouco espaço para manobras (ela pode bani-lo e exilá-lo, mas não permitirá que você saia por vontade própria). Uma rede, contudo, pode ter pouca ou nenhuma preocupação com sua obediência às normas por ela estabelecidas (se é que uma rede tem normas, o que frequentemente não ocorre), e portanto o deixa muito mais à vontade, e acima de tudo não o pune por sair dela. Você pode acreditar que uma comunidade seja “um amigo nas horas difíceis, e portanto um verdadeiro amigo”. Mas as redes funcionam mais para compartilhar diversão, e sua disponibilidade para vir em seu socorro no caso de problemas que não se relacionem a esse “foco de interesse” comum dificilmente é posta à prova; se o fosse, ainda mais dificilmente passaria na prova.

No final, a escolha é entre segurança e liberdade: você precisa de ambas, mas não pode ter uma sem sacrificar pelo menos parte da outra; e quanto mais tiver de uma, menos terá da outra. Em matéria de segurança, as comunidades ao estilo antigo batem de longe as redes. Em matéria de liberdade, é exatamente o contrário (afinal, basta pressionar a tecla “delete” ou decidir parar de responder a mensagens para se livrar de sua interferência).

Além disso, há uma diferença enorme, realmente profunda e intransponível, entre “abraçar” e “cutucar” alguém, como mostra Rose; em outras palavras, entre a variedade on-line de “proximidade” e seu protótipo off-line, entre profundo e raso, quente e frio, sincero e superficial. A escolha é sua, e é muito provável que você continue a escolher, e dificilmente poderá evitá-lo, mas é melhor escolher sabendo aquilo pelo qual está optando – e se preparar para assumir o custo de sua escolha. Pelo menos é isso que Rose parece sugerir, e não há como contestar seu conselho. Como diz Sherry Turkle na passagem que você menciona: “Hoje, inseguros em nossos relacionamentos e ansiosos por intimidade, recorremos à tecnologia, ao mesmo tempo em busca de maneiras de viver relacionamentos e de nos proteger deles.”

Assim, os nomes e fotos que os usuários do Facebook chamam de “amigos” são próximos ou distantes? Um dedicado “usuário ativo” do Facebook proclamou recentemente que conseguiu fazer quinhentos novos amigos em um dia – ou seja, mais do que consegui em 86 anos de vida. Mas Robin Dunbar, antropólogo evolucionista da Universidade de Oxford, insiste em que “nossas mentes não são planejadas [pela evolução] para permitir que tivéssemos mais que um número limitado de pessoas em nosso mundo social”. Na verdade, Dunbar calculou esse número; ele descobriu que “a maioria de nós só pode manter cerca de 150 relacionamentos significativos”. De modo nada inesperado, chamou esse montante, imposto pela evolução (biológica), de “número de Dunbar”. Essa centena e meia, podemos comentar, é o número atingido mediante evolução biológica por nossos ancestrais remotos. E foi aí onde ela parou, deixando o campo aberto para sua sucessora muito mais rápida, ágil, habilidosa, acima de tudo mais capaz e menos paciente – a chamada “evolução cultural” (promovida, moldada e dirigida pelos próprios seres humanos, empregando o processo de ensinamento e aprendizagem, em vez de mudar o arranjo dos genes).

Observemos que 150 era provavelmente o maior número de criaturas capazes de se reunir, permanecer juntas e cooperar lucrativamente, sobrevivendo apenas da caça e da coleta; o tamanho de uma horda proto-humana não conseguia ultrapassar esse limite mágico sem convocar, ou melhor, conjurar forças e (sim!) ferramentas além de dentes e garras. Sem essas outras forças e ferramentas ditas “culturais”, a proximidade permanente de um número maior de pessoas teria sido insustentável; assim, a capacidade de “ter em mente” um montante maior seria supérflua.

“Imaginar” uma totalidade mais ampla do que aquela acessível aos sentidos era desnecessário e, naquelas circunstâncias, inconcebível. As mentes não precisavam armazenar o que os sentidos não haviam tido a oportunidade de apreender. A chegada da cultura deveria coincidir, como de fato ocorreu, com o momento em que se ultrapassou o “número de Dunbar”? Teria sido esse o primeiro ato de transgressão dos “limites naturais”? E como transgredir os limites (sejam eles “naturais” ou autoestabelecidos) é o traço definidor e o próprio modo de ser da cultura, ele é também o ato que marca seu nascimento?13

As “redes de relacionamento” com base eletrônica prometiam romper as intrépidas e recalcitrantes limitações à sociabilidade estabelecidas por nosso equipamento transmitido pela genética. Bem, diz Dunbar, não o fizeram e não o farão: a promessa só pode ser quebrada. “Sim”, diz ele em seu artigo publicado no New York Times em 25 de dezembro de 2010, “você pode estabelecer ‘amizade’ com 500, mil, até 5 mil pessoas em sua página no Facebook, mas todos, com exceção do núcleo de 150, são meros voyeurs observando sua vida cotidiana.” Entre esses milhares de amigos do Facebook, as “relações significativas”, sejam elas eletrônicas ou vividas off-line, estão restringidas, tal como antes, aos limites intransponíveis do “número de Dunbar”. O verdadeiro serviço prestado pelo Facebook e outros sites “sociais” dessa espécie é a manutenção de um núcleo estável de amigos nas condições de um mundo altamente inconstante, em rápido movimento e acelerado processo de mudança.

Nossos ancestrais distantes tiveram uma facilidade: assim como as pessoas que lhe eram próximas e queridas, eles tendiam a morar no mesmo lugar do berço ao túmulo, ao alcance da vista uns dos outros. Isso indica que a base “topográfica” dos vínculos de longo prazo, e até para toda a vida, não tende a reaparecer, muito menos a ser imune ao fluxo do tempo, vulnerável como é às vicissitudes das histórias de vida individuais. Por felicidade, agora temos formas de “permanecer em contato” que são plena e verdadeiramente “extraterritoriais”, e, portanto, independentes do grau e da frequência da proximidade física.

“O Facebook e outros sites de rede social”, e apenas eles – insinua Dunbar – “nos permitem manter amizades que de outro modo logo definhariam.” Mas esse não é todo o benefício que proporcionam: “Eles nos permitem reintegrar nossas redes de modo que, em vez de termos vários subgrupos de amigos desconectados, podemos reconstruir, embora virtualmente, o tipo de comunidade rural antiga, em que todo mundo conhecia todo mundo” (grifo meu); no caso da amizade, ao menos, pelo que está implícito no texto de Dunbar, ainda que não com tantas palavras; foi refutada, assim, a ideia de Marshall McLuhan, de que “o meio é a mensagem”, embora sua outra memorável sugestão, a do advento de uma “aldeia global”, tenha se tornado realidade. “Ainda que virtualmente.”

Há motivo para suspeitar de que são essas facilidades que têm assegurado e garantido a tremenda popularidade dos sites das “redes sociais”; e que fez de seu autoproclamado inventor e, sem dúvida, marqueteiro-chefe, Mark Elliot Zuckerberg, um multibilionário instantâneo. Essas faculdades permitiram que o avanço moderno rumo ao desembaraço, à conveniência e ao conforto enfim alcançasse, conquistasse e colonizasse uma terra até então teimosa e apaixonadamente independente dos vínculos humanos. Tornaram essa terra livre de riscos, ou quase; impossibilitaram, ou quase, que pessoas não mais desejáveis abusassem da hospitalidade; fizeram com que reduzir as perdas fosse uma coisa gratuita. No cômputo geral, conseguiram a façanha de enquadrar o círculo, de preservar uma coisa e ao mesmo tempo destruí-la. Ao livrar a atividade do inter-relacionamento de toda e qualquer amarra, esses sites puxaram e removeram a mosca feia da inquebrantabilidade que costumava manchar o doce unguento da convivência humana.

DL: Muito do que você diz ressoa em mim, Zygmunt. Mas, de minha parte, estou profundamente consciente do fato de que não integro a geração Facebook. Sou o que chamam de imigrante digital que teve de encontrar seu caminho numa nova cultura, e não um nativo digital, para quem o Facebook é uma maneira garantida e indispensável de se conectar com os outros. Evidentemente, conseguimos perceber as formas pelas quais os usuários do Facebook são “comodificados”; que a palavra “amigo”, tal como a entendemos, é imprópria quando se refere a milhares de pessoas; e que, como instrumento de vigilância, o Facebook não apenas extrai dados úteis das pessoas, mas também, de modo brilhante, permite que elas façam as classificações iniciais, identificando-se como “amigos”. Falar sobre conspiração com vigilância! Mas também é fácil demais ver como as pessoas podem ser usadas pelo Facebook e esquecer que, da mesma forma, elas usam o Facebook de modo constante, entusiástico e viciador.

Nos estudos sobre vigilância, é fácil demais para nós acabar tratando os usuários do Facebook (ou, nesse sentido, qualquer outra pessoa) como incautos culturais. Reconhecemos que os aficionados da mídia social encontram benefícios conectivos em seus posts, mensagens, fotos, atualizações, curtidas e cutucadas; mas, ao mesmo tempo, tem-se a impressão de que as formas pelas quais eles são seguidos e enredados em suas trilhas de dados ultrapassam totalmente a significação do divertimento. Então, fico imaginando se você comentaria algumas questões que me parecem pertinentes a esse respeito.

A primeira delas é: como você explica a palpável popularidade da mídia social? Seria possível que, num mundo líquido moderno caracterizado por relacionamentos de curto prazo, compromissos “até segunda ordem” e altos níveis de mobilidade e velocidade, a mídia social preencha (ainda que inadequadamente) uma lacuna? As antigas comunidades face a face da aldeia em que todos conheciam todos são o tema de livros históricos romantizados ou, para alguns, de memórias claustrofóbicas. Mas o desejo de encontrar amigos, ainda que pouco estáveis, ou pelo menos de estabelecer algumas conexões com outros seres humanos, continua forte e talvez até seja estimulado pelo que se percebe como perdas em matéria de “comunidade”.

A segunda pergunta é: se a mídia social é ativamente usada pelas pessoas em função de seus próprios objetivos, o que acontece quando esses objetivos se opõem aos das empresas ou governos que podem estar utilizando-os? Considere estes exemplos: uma campanha do McDonald’s pelo Twitter usando um hashtag (palavra-chave precedida do símbolo #) para gerar histórias afirmativas sobre boas experiências com as refeições; contra-ataque dos clientes insatisfeitos que aproveitam a oportunidade para se queixar de envenenamento pela comida e do serviço deficiente.14 Se o Facebook e seus usuários têm conflitos, estes quase sempre são sobre o modo como são utilizadas as informações pessoais.

Diversos recursos novos, como Beacone ou Linha do Tempo, têm provocado a ira dos usuários, que desafiam o poder do Facebook de enfrentar o fogo, sua capacidade de apagar as chamas. Num outro plano, a mídia social tem sido empregada com preeminência numa série de protestos e movimentos democráticos, da chamada Primavera Árabe aos eventos do Occupy em 2011. Decerto isso também possibilitou que as autoridades rastreassem os manifestantes. Mas será que esse aspecto anula a utilidade da mídia social em termos da organização de movimentos dessa natureza?

Trata-se de uma questão complexa, bem sei, e você já apontou que a mídia social se distingue por criar redes. Estas se caracterizam por laços tênues, bons para aumentar a participação ou espalhar novas ideias e informações – o que é embaraçoso para o McDonald’s, por exemplo. Mas quem sabe eles seriam diferentes dos tipos de relacionamento com laços sólidos que tendem a favorecer a persistência, o autossacrifício e a assunção de riscos?15 No entanto, enquanto estou dizendo isso, parece que algumas das características desses compromissos com vínculos sólidos são visíveis ao menos em alguns países da Primavera Árabe.

ZB: O que você está dizendo é que uma faca pode ser usada para fatiar pão ou para cortar gargantas. Não há dúvida de que você está certo. Mas diferentes pães e gargantas são cortados no caso da faca em particular denominada conexões/desconexões, integrações/ separações on-line, e eu falo mais sobre a substância da interação e dos vínculos interpessoais a que essa determinada faca é aplicada, especialmente em seu efeito do tipo “o meio é a mensagem”.

Permita-me ilustrar brevemente essa ambiguidade com o exemplo do sexo mediado e executado on-line. E referir-me, para esse propósito, à brilhante e acurada observação de Jean-Claude Kaufmann, de que, graças à “computadorização” do namoro e do “encontro”, o sexo “agora é mais confuso que nunca”. Jean-Claude Kaufmann acertou na mosca com essas palavras. Diz ele:

Segundo o ideal romântico, tudo começou com o sentimento que se desenvolveu em desejo. O amor levou (via matrimônio) ao sexo. Agora, parece que temos opções muito diferentes: podemos praticar sexo alegremente como atividade de lazer ou optar por um compromisso de longo prazo. A primeira opção significa que o autocontrole é basicamente uma questão de evitar compromisso: temos o cuidado de não nos apaixonar (muito). … A linha divisória entre sexo e sentimento está se tornando cada vez menos nítida.16

Kaufmann parte para deslindar esse emaranhado, mas não para desemaranhar o que se mostrou tão resistente a todo e qualquer esforço nesse sentido quanto o nó górdio.

As duas opções, assinala Kaufmann, referem-se a dois modelos conflitantes de “individualidade”: de modo correspondente, indivíduos contemporâneos pressionados a seguir os dois tendem a ser puxados em direções opostas. Por um lado, há o “modelo econômico, presumindo que os indivíduos sempre agem com base no autointeresse racional. O modelo alternativo é fornecido pelo amor. Este permite que o indivíduo abandone o self egoísta do passado e se dedique aos outros.” (Essa descrição do amor, contudo, em minha visão, não é correta: os modelos “econômico” e do “amor” certamente se situam em profunda oposição – mas não da mesma forma que egoísmo e altruísmo; na verdade, é o “modelo econômico” que classifica egoísmo e altruísmo – “ser bom para si mesmo” e “ser bom para os outros” – como atitudes conflitantes; enquanto, no amor, os dois antagonistas aparentes e inimigos jurados se unem, se aglutinam e se misturam – e não são mais separáveis ou distinguíveis um do outro.)

A primeira opção é construída segundo a “ilusão consumista”:

ela quer que acreditemos ser possível escolher um homem (ou uma mulher) da mesma forma que escolhemos um iogurte num hipermercado. Mas não é assim que funciona o amor. O amor não pode ser reduzido ao consumismo, e isso provavelmente é bom. A diferença entre um homem e um iogurte é que uma mulher não pode trazer um homem para sua vida com a expectativa de que tudo permaneça igual.

Mas, graças à “ilusão consumista”,

tudo parece bastante seguro. Ela pode fazer o login com um clique e o logoff com outro. … Um indivíduo armado de mouse imagina estar no controle total e absoluto de seus contatos sociais. … Todos os obstáculos usuais parecem ter desaparecido, abrindo-se um mundo de possibilidades infinitas. … Uma mulher na net é como uma criança perdida numa loja de doces.

Tudo parece limpo, seguro e simpático, a menos… Sim, eis a dificuldade, a menos que surjam sentimentos, e o amor se aqueça, confundindo o raciocínio.

Por vezes Kaufmann se aproxima perigosamente de imputar a responsabilidade dessa confusão à enganosa brandura e docilidade do mouse e à revolução computacional que o colocou nas mãos de todos; mas tem consciência de que as raízes do problema estão fincadas muito mais profundamente nos dilemas existenciais em que a sociedade atual lança seus integrantes. No final, ele faz a observação correta:

A sociedade está obcecada com a busca de prazer, tem uma atração pela aventura e está interessada em novas e mais intensas sensações, mas também precisa da estabilidade e da certeza que nos estimulam a evitar assumir riscos e a não ir muito longe. É por isso que os acontecimentos atuais parecem tão contraditórios.

Bem, permita-me comentar, não parecem apenas. São contraditórios. Tão contraditórios quanto a necessidade de liberdade e de aventura, e quanto aos instrumentos e estratagemas socialmente fornecidos para atender a cada uma dessas necessidades, mas dificilmente as duas ao mesmo tempo.

Estamos todos num impasse – uma confusão sem saída clara e livre de riscos. Se você opta pela segurança em primeiro lugar, precisa desistir de muitas das experiências fantásticas que a nova liberdade sexual promete oferecer, e com frequência oferece. No entanto, se você quer sobretudo a liberdade, esqueça um parceiro de cuja mão você possa precisar quando estiver tropeçando por uma paisagem cheia de pântanos traiçoeiros e areias movediças. Entre as duas opções, uma caixa de Pandora escancarada e transbordante! A maldição do namoro pela internet vem da mesma fonte a que costumamos atribuir a sua bênção, como Kaufmann corretamente sugere. Ela emana de uma “zona intermediária em que nada é realmente preordenado, [e] ninguém sabe antecipadamente o que vai acontecer”. Em outras palavras, de um espaço em que tudo pode ocorrer, mas nada pode ser feito com algum grau, mesmo pequeno, de certeza, fé e autoconfiança.

Os computadores não são os culpados, ao contrário do que sugerem alguns de seus críticos acostumados a “surfar”, em vez de mergulhar e penetrar: a vertiginosa velocidade da brilhante carreira dos computadores deve-se ao fato de eles oferecerem a seus usuários uma oportunidade melhor de fazer o que sempre desejaram, mas não podiam, por falta de ferramentas adequadas. Mas também não são os salvadores, como seus entusiastas, de joelhos, costumam afirmar com impaciência. Essa confusão tem raízes na forma como a condição existencial é manejada e empregada pelo tipo de sociedade que construímos enquanto éramos por ela construídos. E, para nos livrarmos dessa confusão (se é que isso é concebível), precisaríamos ir além da mudança de ferramentas – que, afinal, só nos ajudam a fazer o que de todo modo tentaríamos fazer, quer à maneira de uma fábrica caseira, quer utilizando a tecnologia de ponta que todos desejam.

O fenômeno de tuítes e blogs que convocam as pessoas a ocupar ruas e praças públicas é outro exemplo da mesma ambiguidade. O que primeiro foi ensaiado verbalmente no Facebook e no Twitter agora é vivenciado em carne e osso. E sem perder as características que o tornaram tão benquisto quando praticado na web: a capacidade de aproveitar o presente sem hipotecar o futuro, de ter direitos sem obrigações.

A experiência inebriante da convivência – talvez, quem sabe, seja muito cedo para dizer da solidariedade. Essa mudança, que já está ocorrendo, significa não estar mais sozinho. E exigiu tão pouco esforço para se realizar – pouco mais do que colocar um “d” no lugar do “t” nessa palavra desagradável que é “solitário”. Solidariedade sob encomenda, e tão duradoura quanto a demanda (e nem um minuto a mais). Solidariedade não tanto em compartilhar a causa escolhida quanto em ter uma causa; você e todo o resto de nós (“nós”, quer dizer, as pessoas da praça) com um propósito, a vida com um significado.

Poucos meses atrás, jovens que faziam uma vigília em tendas armadas em torno de Wall Street enviaram uma carta convidando Lech Walesa, o legendário líder do igualmente legendário movimento polonês Solidariedade, famoso por desencadear o desmantelamento do império soviético com os trabalhadores de estaleiros, minas e fábricas, que permaneceram teimosamente em seus locais de trabalho até que suas reivindicações fossem atendidas. Nessa carta, os jovens reunidos em ruas e praças de Manhattan enfatizavam que eram estudantes e sindicalistas de muitas raças e com as mais variadas histórias de vida e ideias políticas, unidos apenas pelo desejo de “restaurar a pureza moral da economia americana”; que não tinham líder, exceto a crença comum de que 99% dos americanos não toleravam nem podiam tolerar mais a cobiça e a ganância do 1% restante. Os autores da carta disseram que o Solidariedade, na Polônia, dera um exemplo de como muralhas e barreiras podiam ser destruídas e o impossível tornado possível; um exemplo que pretendiam seguir.

As mesmas palavras ou termos semelhantes poderiam ter sido escritos pelas multidões de jovens e nem tanto do movimento dos indignados, de 15 de maio, agitando as praças de Madri, assim como por seus homólogos em 951 cidades de mais de noventa países. Nenhum desses movimentos tem um líder; seu apoio entusiástico vem de todas as veredas da vida, de todas as raças, credos e campos políticos, unidos apenas pela recusa de permitir que as coisas prossigam do jeito que estão. Cada qual tem em mente uma só barreira ou muralha a ser abalada e destruída. Essas barreiras podem variar de um país para outro, mas cada uma delas, acredita-se, bloqueia o caminho que leva a um tipo melhor de sociedade, mais hospitaleiro à humanidade e menos tolerante com a desumanidade. Cada barreira escolhida é vista como aquela cuja demolição tenderá a botar fim a todo e qualquer exemplo de sofrimento que uniu os manifestantes, como o elo que se precisa deslocar para pôr toda a cadeia em movimento. A pergunta sobre como serão as coisas só deve surgir depois que isso for feito e que a área de construção da nova e aperfeiçoada sociedade estiver esvaziada. Como os ingleses costumavam dizer, “Vamos atravessar aquela ponte quando chegarmos lá.”

Nesse arranjo de concentração numa única tarefa de demolição, enquanto se deixa vaga a imagem do mundo no dia seguinte, é que reside a força das pessoas nas ruas – assim como sua fraqueza. Já temos muitas provas de que os movimentos dos indignados são de fato todo-poderosos quando agem como brigadas de demolição; mas a prova de sua capacidade de planejar e de construir equipes ainda está pendente. Alguns meses atrás, todos nós vimos com a respiração contida e admiração crescente o maravilhoso espetáculo da Primavera Árabe. É final de outubro, quando escrevo estas palavras – mas ainda esperamos, até agora em vão, pelo Verão Árabe…

E Wall Street quase não percebeu estar “sendo ocupada” por visitantes off-line provenientes do mundo on-line.

a Empresa sueca produtora de móveis baratos que devem ser montados pelo cliente. (N.T.)

b Brownie points: crédito não monetário recebido por esforços feitos, mesmo que os resultados não tenham atingido o objetivo. (N.T.)

c Marketing multinível ou marketing em rede (em inglês, marketing layers): forma de vender produtos e serviços sem intermediários e sem o custo de campanhas publicitárias, por meio de uma estrutura disposta em camadas de distribuidores autônomos e independentes, num formato basicamente propiciado pela internet. (N.T.)

d No Facebook, quando clica no botão “cutucar”, o usuário emite um alerta para alguma pessoa com quem deseja estabelecer contato. (N.T.)

e O Beacon permitia que fossem enviados para o Facebook dados de websites externos relatando atividades dos usuários fora do site; depois de uma ação judicial, o Beacon foi retirado do Facebook, em setembro de 2009. (N.T.)