Contrapontos com o
documentário moderno
A recusa do que é “representativo” e o privilégio da afirmação de sujeitos singulares são dois traços marcantes de diferenciação entre o documentário contemporâneo brasileiro e o chamado documentário moderno, em particular aquele produzido no decorrer dos anos 60. Quando falamos em documentário “moderno” estamos nos referindo a um conjunto de obras em 16 ou 35mm, de curta ou média metragens e circulação restrita, realizadas sobretudo por documentaristas ligados ao Cinema Novo. Interessa-nos sublinhar brevemente suas principais características, na medida em que há, desde então, um diálogo permanente entre a produção posterior aos anos 60 e esse primeiro momento do documentário social, crítico e independente no Brasil. São filmes que abordam criticamente, pela primeira vez na história do documentário brasileiro, problemas e experiências das classes populares, rurais e urbanas, nos quais emerge o “outro de classe”* – pobres, desvalidos, excluídos, marginalizados, presença constante em nosso documental desde então, sob diversos recortes e abordagens.
Dar voz a esse “outro” desconhecido torna-se questão importante para os cineastas, e a entrevista – possibilitada pelo advento das técnicas de gravação de som direto** – torna-se um procedimento privilegiado. A “voz do povo” faz-se portanto presente, mas ela não é ainda o elemento central, sendo mobilizada sobretudo na obtenção de informações que apoiam os documentaristas na estruturação de um argumento sobre a situação real focalizada. As falas dos personagens ou entrevistados são tomadas como exemplo ou ilustração de uma tese ou argumento, este, muitas vezes, elaborado anteriormente à realização do filme, não raramente a partir de teorias sociais que forneciam explicações tidas como universalmente aplicáveis. Trata-se de um conjunto de filmes que remetem ao modelo que Jean-Claude Bernardet definiu, em seu livro Cineastas e imagens do povo, de 1985, como “sociológico”, e cujas características convergem, em inúmeros aspectos, para a estética do documentário clássico. Em especial, os mecanismos de produção de significação do filme, centrados na relação entre o particular e o geral.
A forma do documentário brasileiro nos anos 60 é, portanto, bastante híbrida, dividindo-se entre o projeto de “dar a voz” (através de entrevistas) e a proposta de totalizar e interpretar situações sociais complexas, manifestada sobretudo pelo comentário do narrador, pelo uso da música, pelas entrevistas com especialistas e autoridades, e também pela montagem trabalhada de modo retórico. Diferentemente de movimentos inovadores do documentário nesse período – tais como o Cinema Verdade francês e o cinema direto norte-americano, que aboliram a narração over desencarnada, onisciente e onipresente, em favor de um universo sonoro rico e variado –, a forma documental brasileira se deixa contaminar por procedimentos modernos de interação e de observação, mas não se transforma efetivamente. As implicações políticas do Cinema Novo parecem ter criado uma situação especial para o documentário, que continuou recorrendo à “voz do saber” para construir com clareza os significados sociais e políticos visados pelos filmes. Portanto, a narração explicativa perdura e expressa um modelo bastante característico da primeira metade dos anos 60 no Brasil: o do cineasta/intelectual que se julga no papel de intérprete que aponta problemas e busca soluções para a experiência popular.***
Várias circunstâncias fizeram com que esse modelo de documentário sofresse mudanças ao longo das últimas décadas, e o quadro é bem mais complexo do que podemos desenvolver aqui. Cabe, no entanto, destacar alguns momentos dessa trajetória que contribuíram para problematizar opções éticas e estéticas do documentário dos anos 60, imprimindo modificações a essa estrutura. Algumas características se mantêm dominantes, tais como a atitude dos cineastas de filmar indivíduos pertencentes a segmentos sociais diferentes dos seus, mas as aproximações se diversificam e escapam da “exterioridade” do diretor em relação a quem é filmado e dos “tipos sociais” presentes, de diferentes maneiras, em filmes como Viramundo (1965), de Geraldo Sarno, Opinião pública (1966), de Arnaldo Jabor, Maioria absoluta (1964-66), de Leon Hirszman, entre outros.
Uma das respostas, já nos anos 70, aos limites da tendência “sociológica” encontra-se em curtas documentais que buscaram “promover” o sujeito da experiência à posição de sujeito do discurso; tentativas e propostas para que o “outro de classe” se afirmasse sujeito da produção de sentidos sobre sua própria experiência. Uma dessas vias se materializou na radicalização do ímpeto de “dar a voz”. Em alguns filmes (como Tarumã (1975), de Aloysio Raulino), Bernardet observa certa “magreza estética”, “poesia menos” ou “estilo pobre”, pouco retórico, que reduz sua forma de expressão ao mínimo, para que “o outro de classe assuma o discurso e não seja abafado pela voz do cineasta”.5 Outro experimento, também levado a cabo por Raulino, é Jardim Nova Bahia (1971), em que o cineasta entrega a câmera a Deutrudes, migrante nordestino, para que ele filme “sem qualquer interferência do diretor”, como informam os créditos finais. Raulino abdica de sua posição e constrói o documentário também com imagens produzidas pelo personagem (num esforço de compartilhar não apenas a voz, mas o olhar do filme).
Ainda na década de 70, experiências menos marginais, como os documentários realizados no programa de televisão Globo Repórter, permitem testar outras formas de abordar a realidade. Driblando tanto a censura da ditadura quanto a direção de jornalismo da TV Globo, a equipe formada por jornalistas e cineastas consegue realizar em alguns filmes um trabalho autoral de filmagem e montagem, distante da estética-padrão do programa que já começava a se consolidar e contava com um apresentador e narrador oficial. Câmera na mão em muitas cenas, longos planos-sequências, ausência de narração over, personagens fugindo das tipificações, mistura de ficção com documentário, são elementos que singularizam essa produção, abrindo perspectivas interessantes para o documentário da época.
Mas as premissas do documentário brasileiro moderno são mais profundamente contestadas no início da década de 70 nos filmes de Arthur Omar – Congo (1972), especialmente – e no célebre texto-manifesto do diretor, O antidocumentário, provisoriamente, do mesmo ano. Omar implode, nessas intervenções, as boas intenções dos documentaristas de então: tematiza a exterioridade que motiva a realização de todo projeto de documentário (“Só se documenta aquilo de que não se participa”), evidencia a distância entre o saber documental e seus objetos, afirma a mediação como o que verdadeiramente interessa e explicita a natureza “falsa” de toda e qualquer imagem. Menos preocupado em contestar o documentário mas igualmente demolidor de todas as premissas do gênero, Glauber Rocha realiza Di/Glauber (1977), em torno do velório e enterro do pintor Di Cavalcanti, talvez o primeiro documentário efetivamente subjetivo do cinema brasileiro. Congo e Di/Glauber são filmes experimentais, reflexivos, ensaísticos; obras em que a intervenção dos cineastas é central e explícita, realizadas a partir de um material audiovisual heterogêneo, e nas quais o que importa não são as “coisas” propriamente, mas a relação que se pode estabelecer entre elas. Filmes que deixam claros os limites da representação documental e propõem novas formas de relação com o espectador, mas foram infelizmente muito pouco vistos. A exibição de Di/Glauber é até hoje proibida no Brasil, em função de um processo movido pela família do pintor.
É Cabra marcado para morrer (1964/1984), de Eduardo Coutinho, o filme que reúne, sintetiza e indica novos caminhos para o documentário brasileiro, transformando-se em um “divisor de águas”, segundo Jean-Claude Bernardet, entre o cinema moderno dos anos 60 e 70 e o documentário das décadas de 80 e 90. Em vez dos grandes acontecimentos e dos grandes homens da história brasileira, ou de fatos e pessoas exemplares, o filme se ocupa de episódios fragmentários, personagens anônimos, aqueles que foram esquecidos e recusados pela história oficial e pela mídia. Cabra marcado efetua desvios significativos nas formas de se fazer documentário no Brasil, mas não deixa de dialogar com diferentes estéticas documentais e da reportagem televisiva, retomando algumas delas e reinventando outras.
A história de Cabra é conhecida. Iniciado e interrompido em 1964, pelo golpe militar, o projeto tencionava contar a trajetória do líder camponês João Pedro Teixeira, assassinado a mando de latifundiários, tendo camponeses como atores de uma ficção inspirada em “fatos reais” (a viúva de João Pedro, Elizabeth Teixeira, desempenhava o seu próprio papel). Quando Coutinho retoma o filme na década de 80, não se trata mais de implantar um projeto estético coletivo, engajando camponeses e intelectuais numa experiência comum, com fins didáticos e de promoção da luta camponesa. Trata-se agora de um indivíduo em busca de outros indivíduos. Os camponeses que o cineasta reencontra estão transformados pela experiência histórica que viveram, assim como o projeto de filme se transformou nos quase vinte anos que separam uma filmagem da outra, anos de ditadura militar. Coutinho volta para ouvir os camponeses e expor a experiência anterior a um balanço – os balanços possíveis, agora, são individuais.
Sua postura em 1981 (quando o filme é retomado) é de disponibilidade e abertura para o encontro. Trata-se de abrir a câmera para a complexidade das representações que os camponeses fazem de sua experiência e de sua história, muitas vezes contraditórias. O Cabra de 1984, centrado em entrevistas, é um filme aberto, sem certezas. Coutinho aposta no processo de filmagem como aquele que produz acontecimentos e personagens; aposta no encontro entre quem filma e quem é filmado como essencial para tornar o documentário possível. A entrevista não é mais simples depoimento nem dar a voz, mas um diálogo fruto de permanente negociação em que as versões dos personagens vão sendo produzidas em contato com a câmera. Trata-se de um filme que, para Ismail Xavier,6 encerra simbolicamente o período “estética e intelectualmente mais denso do cinema brasileiro”, marcado pela tradição do cinema moderno, articulando de forma inventiva e heterogênea a dimensão estética com as questões políticas nacionais.
Notas
* Conceito utilizado por Bernardet para caracterizar o tipo de construção, pelos filmes, de seus “objetos”, e a relação de alteridade privilegiada por alguns dos 23 documentários que analisou em seu indispensável estudo sobre o moderno documentário brasileiro: Cineastas e imagens do povo, lançado em 1985.
** A partir do começo dos anos 60, a captação de som direto se torna pouco a pouco usual, com a popularização dos gravadores portáteis Nagra e de câmeras 16mm mais leves. O primeiro representante do Cinema Novo a ter contato com a técnica do som direto foi Joaquim Pedro de Andrade, que a experimentou de modo pioneiro (mas ainda precariamente, por indisponibilidade de equipamentos) em Garrincha, alegria do povo (1962). Realizados em 1963/1964, Maioria absoluta (Leon Hirszman) e Integração racial (Paulo César Saraceni) são considerados os primeiros filmes efetivamente “diretos” brasileiros, seguidos da primeira leva de produções de Thomaz Farkas em São Paulo. Para mais informações, ver “A descoberta da espontaneidade”, de David Neves.
*** Por seu caráter panorâmico, nossa abordagem não destaca as singularida-des dos filmes do período, bem mais diversos do que este breve apontamento poderia sugerir. Nem todos conjugam nos mesmos termos as características do filme “sociológico”, interpretativo, com pretensões generalizantes. Um comentário sobre a diversidade desta produção se encontra no texto “A Caravana Farkas e nós”, de Cláudia Mesquita.