Documentário e mídia:
confrontos, diálogos
Desde o início dos anos 90, é possível identificar sinais de uma questão que se tornou essencial para o documentário a partir do final da década: sua relação obrigatória, incontornável, com a mídia, sobretudo com as imagens produzidas nos programas de televisão, particularmente aquelas do telejornalismo. Uma relação contraditória, perturbadora, cheia de tensões e nuances, e presente em várias etapas, da realização à recepção dos filmes.
Se nos anos posteriores à ditadura as imagens televisivas continuaram mostrando um Brasil harmonioso, rico, branco, saudável, higienizado, em imagens estáveis, enquadradas, de boa qualidade, coube ao documentário se voltar para grupos urbanos até então praticamente invisíveis nesta produção audiovisual: a população carcerária, os moradores de rua e de favelas, pivetes e mendigos, prostitutas, trabalhadores do lixo.14 Mas a partir do final dos anos 80, um dado novo modifica o panorama televisivo: temas como violência urbana, pobreza e exclusão ganham visibilidade, passando a fazer parte de certa produção jornalística e a interessar um público cada vez maior. O programa Aqui agora, que foi ao ar pela primeira vez pelo SBT em 1991, inaugura um estilo de reportagem que fará escola para o sensacionalismo televisivo, em franca oposição à estética clássica do jornalismo da TV Globo. O programa exibe “a vida como ela é” nas favelas e periferias pobres da cidade de São Paulo, através de longos planos-sequências tremidos, com narrações feitas ao vivo pelos próprios repórteres, repletos de “sujeiras” que eram, até então, mantidas fora do ar. Elementos estéticos do Cinema Verdade dos anos 60 – câmera na mão e som direto – são reciclados e associados a um tipo de jornalismo que faz da miséria espetáculo midiático,15 mas que permite eventualmente vislumbrar imagens de um Brasil que não aparecia na TV. Em consequência, mesmo a TV Globo foi obrigada a incorporar gradualmente, ainda que domesticando, imagens de baixa qualidade, imprimindo “realidade” à assepsia estética que dominava o jornalismo da emissora.
Entre os anos 60 e 90, saímos definitivamente de “uma cultura cinematográfica, utópica e modernista para uma cultura de massa televisiva”, como nos lembra Ivana Bentes.16 Uma cultura audiovisual que nos forma e constitui, fornecendo visões de mundo, modelos de ação, normas de conduta, formas de expressão, vocabulário, atitudes e posturas corporais. Não se trata, porém, de uma “formação” que necessariamente domina e aliena, mas de um processo heterogêneo, paradoxal, incompleto, em que a negociação é permanente.
Ao mesmo tempo, com a deterioração das formas de representação política e de reconhecimento social tradicionais, a imagem televisiva se tornou um dos meios mais potentes de legitimação, onde basta aparecer para existir. Esses dois aspectos centrais da cultura midiática contemporânea – instrumento de formação e de reconhecimento –, produzem situações insólitas, como se vê em muitos documentários recentes. Indivíduos desprovidos de uma educação mais formal revelam consciência notável a respeito de sua imagem pública, exibem sabedoria intuitiva do que pode “funcionar” em uma entrevista, às vezes captam na pergunta os aspectos implícitos que apontam para a resposta “certa”, de modo a conquistar segundos de visibilidade. Esse estado de coisas deve ser levado em conta – especialmente por aqueles que constroem seus filmes a partir da palavra do outro, sob pena de imprimirem, sem o saber, maior existência social e mais crédito a pensamentos e emoções que têm origem nos próprios clichês que a televisão faz circular.
Em Babilônia 2000, filme de Eduardo Coutinho realizado no morro da Babilônia no último dia de 1999, um pequeno diálogo com uma personagem chamada Roseli é exemplar de como essa consciência, quando revelada, pode ser rica para o filme. “Deixe eu me arrumar, mudar o visual”, diz ela, quando a equipe aparece. “Não, assim está ótimo”, responde o diretor. Roseli, rindo: “Ah, você quer pobreza mesmo?” E ele: “Não, isso não é pobreza.” Roseli: “Sei, sei, é comunidade, né?” Roseli sabe “tudo”, sabe o que pode interessar – pobre “bem-arrumadinho”, pobreza “mesmo” ou vida em comunidade –, mas não se submete a esses clichês, os assimila e reorganiza com grande criatividade.
Filmar hoje é, portanto, entrar em um turbilhão de imagens, imiscuir-se no fluxo midiático de representações, confrontar-se com essa espécie de “meio ambiente” contemporâneo. É o que percebem José Padilha e Felipe Lacerda ao realizar Ônibus 174, filme que aborda o sequestro de um ônibus na Zona Sul do Rio de Janeiro em uma tarde de junho de 2000, que mobilizou o país inteiro por ter sido transmitido ao vivo durante cinco horas. Um sequestro que terminou em tragédia: a refém Geísa Firmo Gonçalves assassinada diante das câmeras e o sequestrador Sandro do Nascimento asfixiado pela polícia no trajeto até a delegacia.
Roseli, personagem de Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho, sabe intuitivamente as imagens da favela desejadas pela mídia.
Padilha e Lacerda partem do material filmado pelas televisões, realizam uma série de entrevistas e investigações e recuperam a trajetória do sequestrador do 174. O filme não inocenta o jovem bandido, mas realiza um trabalho que a imprensa deveria fazer e não faz: amplia as conexões possíveis entre diferentes acontecimentos, complexifica a situação inicial e nos faz ver o quanto esse sequestro está inextricavelmente ligado à tragédia social brasileira. Uma primeira grande qualidade do filme, portanto, é extrair do fluxo de informações televisivas um acontecimento já esmaecido na nossa memória, e nos obrigar, de algum modo, à reflexão. Contudo, o maior interesse dele talvez resida na exposição pormenorizada de como a mídia hoje organiza os acontecimentos do “interior” – eles já eclodem dentro de uma lógica midiática, que captura simultaneamente todos os envolvidos. No sequestro do ônibus 174, policiais, reféns e sequestrador parecem viver, interpretar e simular diante das câmeras de TV, tudo ao mesmo tempo, como se fosse uma reação imediata, orgânica, sensório-motora. Sofrem e simulam a dor que efetivamente sentem, ameaçam e simulam ameaçar, matam e simulam matar.
“Isso não é um filme de ação, não. É sério”: o sequestrador Sandro ameaçando e simulando ameaçar, em Ônibus 174.
Entre todas as alterações produzidas pela transmissão ao vivo das câmeras de televisão, a mais impactante é a performance de Sandro, e o filme nos mostra todas as etapas dessa “teatralização do mal”. A partir do instante em que se dá conta do espetáculo que protagoniza, e intuindo o desfecho, Sandro “piora” a sua atuação. Encena a morte de uma das reféns e pede a elas para representarem com mais realismo o estado de desespero em que se encontram. Apropria-se da imagem de bandido ensandecido inspirado no cinema e, como lembra Esther Hamburguer,17 “grita através da janela”, não para os que estavam ali do lado de fora do ônibus, mas “para os milhões de telespectadores que acompanham ao vivo os desdobramentos de sua arriscada operação”: “Isso não é um filme de ação, não. É sério.” Sandro sabe que foi esse papel de algoz que lhe restou para ser reconhecido socialmente, e não hesita em desempenhá-lo até o fim.
Em Edifício Master (2002), Eduardo Coutinho se depara com um novo tipo de efeito da mídia no campo social. Trata-se de um filme realizado com os moradores de um prédio de conjugados de Copacabana, em que a economia narrativa foi ao extremo do processo iniciado em Santo forte. Não há um som que não seja sincrônico à imagem; nenhuma voz, murmúrio, nenhuma música ou assobio que passe de um plano a outro; se há um corte na imagem, há inexoravelmente um corte no som. É o filme de Coutinho que mais sucesso fez desde Cabra marcado para morrer, atingindo um público de aproximadamente 85 mil espectadores. Edifício Master marca uma mudança de horizonte social na produção do cineasta, reunindo personagens pertencentes às camadas médias da população, universo pouco explorado pelo documentário brasileiro em geral.
O deslocamento de campo social trouxe para o cinema de Coutinho, entre outras mudanças, uma transformação específica na relação com as imagens midiáticas. Com os moradores do Master, as dificuldades surgiram particularmente do embate com os chamados reality shows e os programas sensacionalistas e de variedades, cuja lógica dominante é a exposição da intimidade. As existências banais que se acumulam no Master, desprezadas pelo telejornalismo, encontram alguma possibilidade de reconhecimento nesses outros programas. Houve momentos nos quais foi preciso defender o entrevistado dele mesmo, em que a lógica do pior se impôs, e o que se ouviu foi a pior história, a maior desgraça, a grande humilhação. Porque o desejo dos moradores, em muitos casos, é o de escapar do isolamento, ganhar visibilidade a qualquer preço. O confronto com esse tipo de exibicionismo, indissociável do voyeurismo do espectador, é incontornável e transformou-se hoje em imperativo para o documentário. “Desprogramar” o que estava previsto, produzir furos nos roteiros preestabelecidos, se ocupar do que ficou de fora dos espetáculos de telerrealidade, como escreve Jean-Louis Comolli18 – tarefas que se impuseram como “programa mínimo” desse documentário de Coutinho.
Em termos de abordagem, o que podemos identificar na maioria dos filmes citados até este ponto do livro é, primeiramente, uma tendência à particularização do enfoque: ao invés de almejarem grandes sínteses, análises ou interpretações de situações sociais mais amplas, os documentários buscam seus temas através do recorte mínimo, abordando experiências e expressões estritamente individuais.* As composições são variadas, mas há, de todo modo, uma valorização da subjetividade do homem comum. Muitos filmes se relacionam com experiências socialmente demarcadas (moradores de uma localidade, por exemplo), evitando o ensaio que poderia, a partir de características transversais ou generalizações, relacionar tais experiências àquelas de outros indivíduos ou grupos, pela via da interpretação ou do diagnóstico.
As experiências são, de um modo geral, tratadas como irredutíveis. Nem típicas, nem exemplares, tampouco extraordinárias. Ao contrário: únicas, singulares. O valor, aparentemente, está no “registro” e no trato respeitoso com elas, expondo suas particularidades – e não no olho que vê mais longe, relacionando-as à conjuntura e a outras experiências, ou à estrutura social, com suas potencialidades e problemas. São raros tanto os trabalhos que buscam explicações previamente estabelecidas, como era frequente nos documentários dos anos 60, quanto os filmes investigativos que constroem e expõem interpretações a partir do desenrolar de um processo ou percurso – Notícias de uma guerra particular e Ônibus 174 aparecem como exceções. Como bem observou em entrevista Ismail Xavier:
A vontade agora é explorar mais os sujeitos no que têm de singular. Evitam-se generalizações, a busca dos porquês. Concentra-se na apresentação de um inventário dos imaginários – enfim outra fenomenologia mais regrada – sem se deter no problema da relação entre eles e as condições materiais de existência, sem saltos da experiência imediata para suas implicações sociais e políticas.19
Notas
* Karla Holanda indica uma tendência à particularização do enfoque no documentário contemporâneo brasileiro em seu artigo “Documentário brasileiro contemporâneo e a micro-história” (2004) – tendência que ela compara à metodologia da micro-história, em oposição às macroanálises, no campo de estudo da história. Evitando estruturar seu discurso na forma do diagnóstico, a micro-história buscaria seus temas a partir da abordagem de situações singulares, indivíduos ou pequenos grupos.