Presença da entrevista
Cabra marcado para morrer pode ser visto também como marco inaugural, na obra de Eduardo Coutinho, da ênfase na palavra falada, enunciada nas conversas entre diretor e personagens, observados pelo aparato cinematográfico. Santo forte radicaliza essa postura e evidencia, ao mesmo tempo, parâmetros de uma abordagem que se tornou muito influente no documentário brasileiro ao longo dos anos 80 e 90: o privilégio da entrevista, associado à retração na montagem do uso de recursos narrativos e retóricos, particularmente da narração ou voz over, considerada uma intervenção excessiva, que dirige sentidos, fabrica interpretações. É como se a predisposição de dar a voz aos sujeitos da experiência (já presente no documentário do Cinema Novo, mas então associada à voz over interpretativa ou totalizadora) fosse ganhando força, a ponto de abolir ou subjugar outras formas de abordagem.
Embora bastante distintos entre si, filmes como 2000 nordestes (2001), de David França Mendes e Vicente Amorim, Janela da alma (2002), de João Jardim e Walter Carvalho, Morro da Conceição (2005), de Cristiana Grumbach, Estamira (2006), de Marcos Prado, Em trânsito (2006), de Henri Gervaiseau, e Pro dia nascer feliz (2007), de João Sardim, entre outros, expõem a presença decisiva desses traços.
Mas, ainda que a entrevista seja utilizada como estratégia de abordagem central, os assuntos, dispositivos e composições finais são variados. Pode haver um tema amplo como norte (como é o caso do “olhar” em Janela da alma); ou a aposta na associação entre uma temática específica e a experiência dos moradores de um local (como é o caso do trânsito na cidade de São Paulo, no longa Em trânsito, que trabalha entrevistas com moradores de diferentes regiões da capital, mas também acompanha o cotidiano dos personagens em seus fluxos pela cidade); ou ainda uma circunscrição espacial mais rigorosa, privilegiando a experiência de um determinado grupo de moradores (como se vê em Morro da Conceição).
Neste último, a presença da entrevista se associa intimamente ao trabalho da memória e ao tempo de narrar de seus personagens, oito dos mais velhos moradores dessa região no Centro antigo do Rio de Janeiro. O filme alinhava essas conversas, numa alternância entre segmentos temáticos que tecem uma memória coletiva (os tempos antigos do bairro e da cidade, o carnaval, a Rádio Nacional…) e outras sequências mais individualizadas que se dedicam às histórias de cada um dos personagens. Pontuando os segmentos, longos planos gerais fixos de algumas ruas e recantos, tomados no decorrer de um dia – neles, o tempo presente do morro da Conceição escorre entre minúsculos acontecimentos cotidianos. Na montagem das entrevistas e nas pontuações, o documentário elabora um tempo próprio, propiciatório. Entre fotografias, casos, lapsos e silêncios, os personagens criam, na interação com a diretora, as “imagens” de um tempo perdido. Suas performances, mais até do que o conteúdo narrativo das histórias, expressam a imbricação entre memória e esquecimento.
Já em Estamira, a entrevista aparece associada a outros procedimentos, inclusive ao registro cuidadoso do cotidiano, e o filme pode ser visto como uma síntese entre a busca de formas mais plásticas – numa tendência documental contemporânea que dialoga com a videoarte – e a atenção ao encontro praticada por Eduardo Coutinho. Não apenas um trabalho de apreensão e expressão estética do universo da personagem Estamira, mas de longo e denso relacionamento com ela, senhora com problemas mentais, trabalhadora de um lixão na periferia do Grande Rio, várias vezes visitada pela reduzida equipe de gravação. O diretor prefere, na montagem, excluir sua voz na interação com a personagem, diferenciando-se de um uso da entrevista mais próprio a um “cinema conversa”, como se vê nos filmes de Coutinho e em Morro da Conceição.
O tema é semelhante ao de Boca de lixo (1992), vídeo de Eduardo Coutinho, mas a representação empreendida em Estamira é bem diversa, ainda que saibamos do esforço de singularização das trajetórias de alguns catadores realizado pelo documentário de Coutinho, que visa a confrontar o estereótipo e busca a afirmação de sujeitos. Em Boca de lixo nota-se a proposta de resistir ao estigma que marca a representação pública de um grupo social marginalizado, remetendo, em alguma medida, a perspectiva dos sujeitos entrevistados a uma comunidade de sentido e experiência. Em Estamira, diversamente, vê-se uma notável radicalização do esforço de subjetivação já presente em Boca de lixo. O documentário nos permite refletir sobre o esvaziamento da vontade de representatividade, a favor de uma aposta na afirmação singular de uma única mulher. Este empenho se traduz em fotografia, som e montagem, e poderíamos afirmar, com Leandro Saraiva, que “a força de Estamira, sua subjetividade transbordante e arrebatada, contamina e conduz a expressão cinematográfica”.7
Equacionada a outros procedimentos de abordagem e trabalhada com rigor em longas como Estamira, a entrevista aparece como estratégia recorrente, diluída em muitos trabalhos recentes. É provável que o primeiro a chamar atenção publicamente para a hipótese de que “a entrevista virou cacoete” tenha sido Jean-Claude Bernardet, na segunda edição de Cineastas e imagens do povo (2003). No artigo “A entrevista”, um dos apêndices ao texto original, Bernardet constata o crescimento da produção de documentários cinematográficos no Brasil desde fins dos anos 90, mas adverte que tal boom não corresponde a um “enriquecimento da dramaturgia e das estratégias narrativas”; ao contrário, haveria a repetição de um único “sistema”, banalizado pelo jornalismo televisivo: “Não se pensa mais em documentário sem entrevista, e o mais das vezes dirigir uma pergunta ao entrevistado é como ligar o piloto automático.”8
Entre as consequências estéticas desse sistema estariam a dominância do “verbalizável”, a fraca capacidade de observação de situações reais em transformação, a repetição de uma mesma configuração espacial (aquela típica da entrevista), a ausência de relações entre os personagens – em função do enfoque centrado na interação entre cineasta e entrevistado. Bernardet observa também que tal relação, por sua vez, ainda se atém à dicotomia clássica sujeito-objeto. Dominam temáticas relacionadas à experiência do “outro de classe” e os cineastas tratam seus entrevistados pobres de modo fetichista e sacralizado, sem estabelecer real diálogo: “Tudo o que diz o pobre vale. Não vamos contradizer o pobre, que isso implicaria uma colaboração com os mecanismos de opressão – entrevistado pobre é um tanto sacralizado.”9
Neste contexto de repetição, diluição e esgotamento de um modelo, Bernardet se diz motivado por filmes que evidenciam a crise do sistema de entrevistas – filmes “de entrevista” que exibem, de algum modo, fissuras e tensões internas a seu procedimento central. Emblemático dessa situação, para ele, é À margem da imagem, primeiro longa de Evaldo Mocarzel. Nesse filme sobre moradores de rua da cidade de São Paulo, alguns clichês associados ao “sistema” estão mobilizados: entrevistas, presença da equipe na imagem e ausência de narração over. Ao final, a marcante autocrítica: um dos personagens, depois de assistir ao filme em sessão promovida pela equipe, mostra-se descontente com a representação de sua experiência empreendida pelo longa. Para ele, faltou mostrar a sua rotina invisível: ir de casa em casa, pedir comida, receber humilhações. Teria sido o caso, podemos pensar, de abandonar ou matizar a metodologia centrada em entrevistas, nesse caso insuficiente, em privilégio de uma postura de observação filmada do cotidiano.* O crítico não deixa ainda de sublinhar o fato de que “o sistema de entrevistas simplifica a produção e baixa seus custos”, explicitando a relação entre os mecanismos de produção audiovisual vigentes, a dominância de um procedimento e os resultados estéticos obtidos.
Notas
* Ao projetar o filme para os personagens, Evaldo Mocarzel já provoca, em À margem da imagem, reflexões sobre a apropriação da imagem do outro. Ele diversifica este questionamento e busca novos enfoques em seus documentários posteriores, que também se valem do procedimento da entrevista. Em Do luto à luta (2006), por exemplo, parte de uma experiência pes-soal (é pai de uma menina portadora da síndrome de Down) para focalizar a experiência de outros portadores e familiares. Algumas análises detidas dos filmes de Bernardet se encontram no Docblog, de Carlos Alberto Mattos.