Tendências do documentário
contemporâneo
Em 1999, a quarta edição do “É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários” decide incluir na sua seleção filmes produzidos em diferentes formatos e não apenas em película, o que faz com que as inscrições brasileiras, que até então giravam em torno de 15 filmes, alcancem a marca de 130 trabalhos.* E premia Nós que aqui estamos por vós esperamos, de Marcelo Masagão, filme que o diretor realizou em computador doméstico, sem grandes recursos, em um trabalho árduo de edição de imagens de arquivo.
No filme, Masagão refaz a seu modo um gesto que será cada vez mais frequente em uma certa produção ensaística contemporânea: a retomada e manipulação de imagens alheias, a maioria delas extraída de cinematecas, museus e televisões. O filme é feito de fragmentos de imagens produzidas ao longo do século XX, nas quais o diretor destaca biografias reais, insere pequenas ficções, inventa personagens, retira-os do anonimato das “atualidades cinematográficas”, dando-lhes origem e destino. Serve-se de pequenas frases inscritas na imagem, e também de fusões, sobreposições, mudanças de velocidade e diferentes telas para realizar um filme que custou apenas 140 mil reais – 80 mil deles usados na compra dos direitos autorais de arquivos audiovisuais espalhados pelo mundo. O restante foi usado na transferência do trabalho final para 35mm nos Estados Unidos. Essa experiência quase artesanal, propiciada principalmente pela edição não linear, explicitou algo que já se identificava em muitos trabalhos do final da década de 90: que as condições de produção do documentário haviam definitivamente mudado, e que era possível realizar praticamente sozinho um filme para ser exibido na tela grande.
Notícias de uma guerra particular, de João Salles e Kátia Lund, é parte de um dos experimentos bem-sucedidos, no campo do documentário, de relacionamento entre um canal por assinatura (GNT/Globosat) e uma produtora independente (a carioca Videofilmes) – parceria que gerou séries importantes, como Futebol (1998), de João Salles e Arthur Fontes, e 6 histórias brasileiras (2000), de João Salles e Marcos Sá Corrêa, entre outros diretores. Realizado entre 1997 e 1998, Notícias de uma guerra particular aborda os impasses da guerra insana entre policiais e traficantes nos morros e periferias do Rio de Janeiro, e os efeitos do conflito na vida cotidiana da população pobre, moradora dessas regiões conflagradas. Embora tenha o morro Santa Marta como locação privilegiada, particularizando em alguns momentos a abordagem, o filme realiza um diagnóstico da escalada de violência no Rio relacionada historicamente ao tráfico de drogas.
Os diretores optaram por ouvir exclusivamente os envolvidos na questão, prescindindo de depoimentos de típicos especialistas, embora as trajetórias do então chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro Hélio Luz e do escritor Paulo Lins os posicione de modo diferenciado entre os personagens. O depoimento de um soldado do Batalhão de Operações Especiais, Rodrigo Pimentel,** é um desabafo que expressa com precisão a inutilidade, o desgaste e a aparente ausência de qualquer objetivo concreto nas políticas de segurança pública de combate ao tráfico de drogas. Ele fala francamente de seu cotidiano e consegue uma empatia com o espectador extremamente rara no que diz respeito à imagem do policial no Brasil. Talvez seja o único personagem efetivo desse filme, realizado sem roteiro, na “urgência” e no “improviso”, segundo o próprio diretor, fruto de “um desejo de ser testemunha”3 – e por isso é um filme que difere de uma certa “estética da observação”, mais frequente no cinema de Salles.
Desesperançado, o documentário não oferece consolo ao espectador, não lhe dá escapatória, coloca-o frente a frente com policiais exauridos, traficantes nada românticos, menores presos sem qualquer possibilidade de recuperação, moradores rendidos. Trata-se de um filme crucial para a inclusão das questões envolvendo tráfico de drogas, contrabando de armas, violência e pobreza na pauta do audiovisual nacional. Notícias concentra e deixa nítidas tensões da violência carioca presentes em muitos filmes de ficção dos anos 90, a exemplo de Como nascem os anjos (1996), de Murilo Salles, O primeiro dia (1998), de Walter Salles – que ajudou o irmão João no documentário –, e Orfeu (1999), de Cacá Diegues; e antecipa problemas que serão retomados em filmes da década seguinte, tais como Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund, Quase dois irmãos (2004), de Lúcia Murat, e Tropa de elite (2007), de José Padilha. É como se o documentário estabelecesse um pano de fundo, destrinchasse os mecanismos da violência e se apresentasse como síntese de uma situação com a qual todo filme realizado nas periferias e morros do Rio teria, dali para a frente, que se confrontar – ainda que na forma de recusa.
Na produção documental, O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas (2000), de Paulo Caldas e Marcelo Luna, reencontra essa mesma temática na periferia do Recife a partir da trajetória de um matador e de um músico, mas o excesso de fragmentação e uma câmera por vezes frenética demais bloqueiam uma construção mais consistente dos personagens. É Ônibus 174 (2002), de José Padilha e Felipe Lacerda, que se filia mais diretamente a Notícias, reutilizando imagens, refazendo entrevistas com alguns personagens e retomando o mesmo tipo de trilha sonora. Ainda que dedicado à trajetória de um único indivíduo, o filme não se esgota numa subjetividade: é notável o alcance social e político desse documentário, construído a partir de um trabalho exaustivo de investigação e “ressignificação” de arquivos televisivos.
Já Santo forte (1999) marca a volta de Eduardo Coutinho à tela grande, quinze anos depois de Cabra marcado para morrer, até então o único documentário do diretor com exibição comercial em salas de cinema. O filme inicia a fase mais produtiva do cineasta – a partir de então, uma média de um filme por ano –, dando-lhe um reconhecimento que ele não esperava mais. Baseado essencialmente nas falas de 11 moradores de Vila Parque da Cidade (favela na Zona Sul do Rio) sobre suas experiências religiosas, associadas a menos de cinco minutos de imagem “pura” (como Coutinho costuma definir os planos em que não há pessoas falando), o documentário inaugura um minimalismo estético que será a marca do diretor nos filmes posteriores: sincronismo entre imagem e som, ausência de narração over,*** de trilha sonora, de imagens de cobertura. Trata-se de uma operação de “subtração” de tudo o que não lhe parece essencial, de um exercício de eliminação que exige muito esforço e uma postura extremamente ativa, que pensa, repensa e discute o que está sendo produzido, distante de qualquer passividade ou submissão diante do real.
Coutinho radicaliza em Santo forte a aposta de filmar a palavra do outro e concentra-se no encontro, na fala e na transformação de seus personagens diante da câmera. O momento da filmagem tem para o diretor uma dimensão quase mística. Ali, no encontro com o outro, é tudo ou nada. Coutinho mantém uma escuta ativa e procura se abster de qualquer julgamento moral diante do que dizem as pessoas filmadas, que constroem – na “cena” provisória da entrevista – seus autorretratos, sendo responsáveis pela elaboração de sentidos e interpretações sobre sua própria e singular experiência.4 Não correspondem a “tipos” com um perfil sociológico determinado, não fazem parte de uma estatística, não justificam nem provam nenhuma tese do diretor. Ambiguidades e sentidos múltiplos não são “resolvidos” na montagem; contradições não ganham uma síntese, mas são postas lado a lado.
É nesse filme que Coutinho percebe a importância, para o seu cinema, de filmar em um espaço restrito, em uma “locação única”, que permite estabelecer relações complexas entre o singular de cada personagem, de cada situação e algo como um “estado de coisas” da sociedade brasileira. Como falar de religião no Brasil? Percorrendo o país inteiro? Como falar da favela? Filmando várias? A abordagem de Coutinho em Santo forte não deixa dúvidas: filmar em um espaço delimitado e, dali, extrair uma visão, que evoca um “geral” mas não o representa nem o exemplifica.
Notas
* Para se ter uma ideia do crescimento da produção dos anos 90 para cá, o número de filmes brasileiros inscritos na primeira edição do mesmo festival, em 1996, foi de 45, contra 400 em 2007. A criação (pelo crítico de cinema Amir Labaki) e consolidação do “É Tudo Verdade” parecem indicar, portanto, a revitalização do gênero documental no Brasil.
**Hoje afastado do Bope, o ex-comandante assina o roteiro do filme Tropa de elite (com Bráulio Mantovani e o diretor José Padilha), inspirado em seu livro Elite da tropa (coautoria com Luis Eduardo Soares e André Batista).
*** Embora as expressões “voz off” e “narração off” sejam mais usuais, optamos por “voz over” e “narração over”, neste ensaio, por considerá-las mais precisas. O “over” remete à sobreposição às imagens de vozes externas, alheias à cena, enquanto o “off” diz respeito às vozes que estão fora de quadro, mas pertencem ao universo sonoro da cena em questão.