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APONTAMENTOS HISTÓRICOS
E CONCEITOS BÁSICOS

Sumário: 7.1 Breve esboço histórico da responsabilidade civil. Da responsabilidade subjetiva à objetivação7.2 A responsabilidade pressuposta7.3 A responsabilidade civil e o Direito Civil Constitucional7.4 O conceito de ato ilícito7.5 O abuso de direito como ato ilícito: 7.5.1. O art. 187 do CC. Conceito, exemplos e consequências práticas; 7.5.2 A publicidade abusiva como abuso de direito; 7.5.3. As práticas previstas no Código de Defesa do Consumidor e o conceito do art. 187 do CC; 7.5.4 O abuso de direito e o direito do trabalho; 7.5.5 A lide temerária como exemplo de abuso de direito; 7.5.6 O abuso do direito de propriedade. A função socioambiental da propriedade; 7.5.7 Spam e abuso de direito7.6 Resumo esquemático7.7 Questões correlatasGabarito.

7.1 BREVE ESBOÇO HISTÓRICO DA RESPONSABILIDADE CIVIL. DA RESPONSABILIDADE SUBJETIVA À OBJETIVAÇÃO

Antes da análise da teoria construída pelo nosso ordenamento jurídico quanto à responsabilidade civil extracontratual, é interessante abordar o próprio conceito de responsabilidade civil e a sua evolução histórica, o que é de muita valia para a compreensão dos institutos relacionados com as indenizações.

A responsabilidade civil surge em face do descumprimento obrigacional, pela desobediência de uma regra estabelecida em um contrato, ou por deixar determinada pessoa de observar um preceito normativo que regula a vida. Neste sentido, fala-se, respectivamente, em responsabilidade civil contratual ou negocial e em responsabilidade civil extracontratual, também denominada responsabilidade civil aquiliana, diante da Lex Aquilia de Damno, do final do século III a.C. e que fixou os parâmetros da responsabilidade civil extracontratual, “... ao conferir à vítima de um dano injusto o direito de obter o pagamento de uma penalidade em dinheiro do seu causador (e não mais a retribuição do mesmo mal causado), independentemente de relação obrigacional preexistente” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil..., 2005, p. 27).

Aliás, a referida lei surgiu no Direito Romano justamente no momento em que a responsabilidade sem culpa constituía a regra, sendo o causador do dano punido de acordo com a pena de Talião, prevista na Lei das XII Tábuas (olho por olho, dente por dente). A experiência romana demonstrou que a responsabilidade sem culpa poderia trazer situações injustas, surgindo a necessidade de comprovação desta como uma questão social evolutiva. De toda sorte, deve ficar claro que o elemento culpa somente foi introduzido na interpretação da Lex Aquilia muito tempo depois, diante da máxima de Ulpiano segundo a qual in lege Aquilia et levissima culpa venit, ou seja, haveria o dever de indenizar mesmo pela culpa mais leve (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria geral..., 2008, p. 246).

A partir de então, a responsabilidade mediante culpa passou a ser a regra em todo o Direito Comparado, influenciando as codificações privadas modernas, como o Código Civil Francês, de 1804.

De qualquer forma, é importante um esclarecimento técnico, conforme retirado da leitura da obra de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (Responsabilidade..., 2005). Na realidade, a culpa do Direito Romano é diferente da culpa atual, pois a última, ao contrário da anterior, traz em seu conteúdo a ideia de castigo, por forte influência da Igreja Católica. Como os romanos eram essencialmente pragmáticos, a culpa era, antes de qualquer coisa, mero pressuposto do dever de indenizar. Em síntese, como aduz a Professora Titular da USP, tecnicamente, é incorreto usar a expressão aquiliana para denotar a culpa atual, contemporânea. De qualquer forma, essa utilização tornou-se costumeira na prática e pode ser solicitada em provas em geral.

Pois bem, pela doutrina clássica francesa e pela tradução do art. 1.382 do Código Napoleônico, os elementos tradicionais da responsabilidade civil são a conduta do agente (comissiva ou omissiva), a culpa em sentido amplo (englobando o dolo e a culpa stricto sensu), o nexo de causalidade e o dano causado. Seguindo essa construção, o Direito Civil pátrio continua consagrando como regra a responsabilidade com culpa, denominada responsabilidade civil subjetiva, apesar das resistências que surgem na doutrina.

Entretanto, afastando tal regra como preceito máximo, o Direito Comparado – principalmente o direito francês, precursor da maior parte das ideias socializantes – passou a admitir uma outra modalidade de responsabilidade civil, aquela sem culpa. Dos estudos de Saleilles e Josserand sobre a teoria do risco, surgem, a partir do ano de 1897, as primeiras publicações sobre a responsabilidade civil objetiva.

O estrondo industrial sentido na Europa com a segunda Revolução Industrial, precursora do modelo capitalista, trouxe consequências jurídicas importantes. De acordo com a aclamada teoria do risco iniciaram-se os debates para a responsabilização daqueles que realizam determinadas atividades em relação à coletividade. Verificou-se, a par dessa industrialização, uma maior atuação estatal, bem como a exploração em massa da atividade econômica, o que justificou a aplicação da nova tese de responsabilidade sem culpa. Mesmo com resistências na própria França, a teoria da responsabilidade sem culpa prevaleceu no direito alienígena, atingindo também a legislação do nosso País.

Nesse sentido, cite-se o antigo Decreto-lei 2.681/1912 que previa a culpa presumida no transporte ferroviário. Por analogia, conforme mencionado no Volume 1 desta coleção, tal preceito legislativo foi incidindo, de forma sucessiva, a todos os tipos de transporte terrestre.

Com efeito, tanto a doutrina quanto a jurisprudência passaram a entender que a responsabilidade do transportador não seria subjetiva por culpa presumida, mas objetiva, ou seja, independente de culpa. Foi importante o papel exercido pelo autor Alvino Lima na sua obra clássica Culpa e risco, editada atualmente pela Revista dos Tribunais. O renomado doutrinador foi um dos grandes responsáveis, no Brasil, pelo salto evolutivo da responsabilidade subjetiva para a objetiva. É imperioso consignar que, quando Alvino Lima defendeu a tese de aplicação do risco pela primeira vez, fortes foram as resistências na doutrina da época. Realmente, as novas teses, quando expostas inicialmente, causam espanto e receios.

O art. 15 do CC/1916 também representou uma das primeiras tentativas em consagrar a nova vertente doutrinária, trazendo a responsabilidade civil do Estado pelos atos comissivos de seus agentes. É importante anotar que, em complemento a tal dispositivo civil, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 37, § 6.º, também prevê responsabilidade civil objetiva do Estado. Em verdade, a doutrina considera que a responsabilidade estatal já é objetiva, independentemente de culpa, desde a Constituição Federal de 1946 (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso..., 2007, p. 989-1.004).

O Poder Público foi atingido pela responsabilidade sem culpa em virtude da amplitude de sua atuação diante dos cidadãos, tendo em vista a constatação de que prestação de serviços públicos cria riscos de eventuais prejuízos. Tal possibilidade sepulta de vez o conceito do Estado Mal da Idade Média, que era aquele que punia o mau pagador de impostos, justamente pela sobreposição de um novo conceito de Estado Soberano, qual seja o Estado Provedor, muitas vezes intervencionista, influenciado pelos ideais sociopolíticos decorrentes da Revolução Francesa (em 1793, os parisienses passaram a pintar na fachada de suas casas o lema da revolução: “unidade, indivisibilidade da República; liberdade, igualdade ou a morte”) e da Independência Norte-Americana.

Isso sem olvidar que em 1981 já surgia no Brasil a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981), exaltando a responsabilidade objetiva dos causadores de danos ao meio ambiente, consagração do princípio do poluidor pagador.

Retornando ao Direito Comparado, com a massificação dos contratos e o surgimento da mass consumption society, a teoria do risco mergulhou de vez no âmbito privado ao prever a responsabilidade civil objetiva dos prestadores de serviços e fornecedores de produtos por danos causados aos consumidores vulneráveis. Passou-se a admitir, também, ao lado do dever de indenizar independente de culpa, a tutela coletiva dos direitos e a prevenção de danos ao meio social. Sente-se uma nova revolução nas relações privadas, com o surgimento de tendências socializantes, marcadas pelo reconhecimento da existência dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Em nosso País, o reconhecimento destes direitos ocorreu após o milagre brasileiro dos anos setenta, com a massificação das atividades privadas e com o incremento do movimento consumerista. Em 1985, surge a Lei 7.347, que possibilita a defesa coletiva dos direitos a ser intentada por alguns órgãos legitimados, como, por exemplo, o Ministério Público. Logo em seguida, a Constituição de 1988 trouxe em seu bojo todas essas tendências, tais como a defesa dos consumidores como norma principiológica (art. 5.º, XXXII), a reparação de danos imateriais ou morais (art. 5.º, V e X), a função social da propriedade (art. 5.º, XXII e XXIII), a proteção do Bem Ambiental (art. 225), a proteção da dignidade da pessoa humana como direito fundamental (art. 1.º, III), a solidariedade social como preceito máximo de justiça (art. 3.º, I) e a isonomia ou igualdade lato sensu (art. 5.º, caput).

Mais tarde, em 1990, surge o Código de Defesa do Consumidor, passando a consagrar a responsabilidade civil sem culpa como regra inerente à defesa dos consumidores. Com tal previsão, pode-se concluir que houve a perpetuação da responsabilidade sem culpa também nas relações privadas no âmbito do Direito Privado Brasileiro.

Entendemos que a responsabilização independente de culpa representa um aspecto material do acesso à justiça, tendo em vista a conjuntura de desequilíbrio percebida nas situações por ela abrangidas. Com certeza, afastada a responsabilidade objetiva, muito difícil seria, pela deficiência geral observada na grande maioria dos casos, uma vitória judicial em uma ação promovida por um particular contra o Estado, ou de um consumidor contra uma grande empresa.

O Código Civil de 2002, como não poderia ser diferente, passou a tratar especificamente da responsabilidade objetiva, de forma geral no art. 927, parágrafo único, sem prejuízo de outros comandos legais que também trazem a responsabilidade sem culpa.

Mas é o momento para mais um salto histórico para o tratamento da responsabilidade civil, com a consagração da denominada responsabilidade pressuposta, que se passa a estudar no próximo tópico.

7.2 A RESPONSABILIDADE PRESSUPOSTA

Atualmente, a responsabilidade civil encontra uma nova dimensão, surgindo novas teses desassociadas da discussão ou não da culpa. Vivemos um momento de transição quanto à própria concepção da responsabilidade civil. Isso foi muito bem captado por Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka em sua tese de livre-docência, defendida na Faculdade de Direito da USP, em que sugeriu uma nova modalidade de responsabilização, a responsabilidade pressuposta. Essa tese de livre docência originou a obra de mesmo nome editada pela Editora Del Rey no ano de 2005.

A autora propõe, nesse trabalho, uma evolução para essa nova forma de responsabilidade, como tivemos, no passado, uma evolução da responsabilidade mediante culpa – subjetiva – para a responsabilidade objetiva. Lembra a renomada professora que “poucos institutos jurídicos evoluem mais que a responsabilidade civil. A sua importância em face do direito é agigantada e impressionante em decorrência dessa evolução, dessa mutabilidade constante, dessa movimentação eterna no sentido de ser alcançado seu desiderato maior, que é exatamente o pronto-atendimento às vítimas de danos pela atribuição, a alguém, do dever de indenizá-los. Refere-se, neste início de um tempo novo, à necessidade de se definir, de modo consentâneo, eficaz e ágil, um sistema de responsabilização civil que tenha por objetivo precípuo, fundamental e essencial a convicção de que é urgente que deixemos hoje, mais do que ontem, um número cada vez mais reduzido de vítimas irressarcidas. Mais que isso. O momento atual desta trilha evolutiva, isto é, a realidade dos dias contemporâneos, detecta uma preocupação – que a cada dia ganha mais destaque – no sentido de ser garantido o direito de alguém de não mais ser vítima de danos. Este caráter de prevenção da ocorrência de danos busca seu espaço no sistema de responsabilidade civil, em paralelo ao espaço sempre ocupado pela reparação de danos já existente. Há um novo sistema a ser construído, ou, pelo menos, há um sistema já existente que reclama transformação, pois as soluções teóricas e jurisprudenciais até aqui desenvolvidas, e ao longo de toda a história da humanidade, encontram-se em crise, exigindo revisão em prol da mantença do justo” (com destaques) (Responsabilidade..., 2005, p. 2).

Esse novo sistema a ser construído é justamente o que ela denomina responsabilidade pressuposta. Ao final do seu trabalho, Giselda Hironaka chega a essa conclusão, deixando em aberto a possibilidade de soluções concretas para regulamentar ou regularizar esse novo sistema. Pela tese da responsabilidade pressuposta deve-se atender a casos antes não ressarcíveis, novas situações existenciais de danos, independentemente da discussão da culpa.

Pois bem, com o tempo surgirão novas teses, justamente para trazer à baila outras maneiras de regulamentar essa responsabilidade pressuposta. Aqui tentaremos algumas construções que, logicamente, constituem impressões preliminares sobre essa evolução da responsabilidade civil. Na percepção deste autor, a responsabilidade pressuposta pode ser resumida nas seguintes palavras: deve-se buscar, em um primeiro plano, reparar a vítima, para depois verificar-se de quem foi a culpa, ou quem assumiu o risco. Com isso, o dano assume o papel principal no estudo da responsabilidade civil, deixando de lado a culpa. Ademais, pela tese, pressupõe-se a responsabilidade do agente pela exposição de outras pessoas a situações de risco ou de perigo, diante de sua atividade (mise en danger).

Em sintonia com esse pensamento, em obra que representa importante marco teórico para o Direito Brasileiro, Anderson Schreiber fala no ocaso da culpa. Mais especificamente, o autor fluminense menciona a “erosão da culpa como filtro da reparação”, concluindo da seguinte forma:

“A perda desta força de contenção da culpa resulta no aumento do fluxo de ações de indenização a exigir provimento jurisdicional favorável. Corrói-se o primeiro dos filtros tradicionais da responsabilidade civil, sendo natural que atenções se voltem – como, efetivamente, têm se voltado – para o segundo obstáculo à reparação, qual seja, a demonstração do nexo de causalidade” (Novos paradigmas..., 2007, p. 48).

Para os devidos aprofundamentos, recomenda-se a leitura dessa notável e revolucionária obra de Schreiber.

Demonstrando essa evolução, importante e indeclinável, é interessante a transcrição das palavras com as quais a Professora Titular da USP, Giselda Hironaka, encerra o seu brilhante trabalho:

“Provavelmente será necessário revisar, reler, reconsiderar sem demora, e em tempo já não tão distante de chegar, aquelas mesmas objeções que foram levantadas, ao longo da segunda metade do século que findou, contra uma efetiva possibilidade de se fundar, sobre a noção de ‘mise en danger’, ou sobre um critério melhor, que se possa logo estruturar, um mecanismo de reparação de danos cometidos às vítimas, que não fosse simplesmente um mecanismo assentado sobre a velha noção de culpa, mas que fosse um tal mecanismo no qual a exposição ao risco pudesse representar algo além da mera identificação causal do dano reparável, apresentando-se, quiçá, como um verdadeiro critério de imputação da responsabilidade sem culpa, elevado à categoria de ‘règle à valeur d’ordonnancement juridique’” (Responsabilidade..., 2005, p. 353).

Utilizando-se, ainda, das palavras da mestra, uma coisa é sempre certa quando se trata de responsabilidade civil: a noção do que seja dano – efeito ou consequência danosa – é extremamente fluida e dinâmica, em constante evolução, “sofisticando-se ao longo da história, na exata proporção em que se amplia também a tutela dos direitos da pessoa”, como escreveu o Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos (Pais, filhos e danos. Texto extraído do site <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?op=true&cod=5294> acesso em 11.08.2005). É ele também quem refere a Konrad Zwegert e Hein Kötz, citado por Eugênio Facchini Neto (Responsabilidade..., 2005, p. 2), que diz que “o principal objetivo da disciplina da responsabilidade civil consiste em definir, entre os inúmeros eventos danosos que se verificam quotidianamente, quais deles devam ser transferidos do lesado ao autor do dano, em conformidade com as ideias de justiça e equidade dominantes na sociedade”.

Na prática cível e nas provas em geral é grande a complexidade do Direito Privado nacional. Assim, o estudioso do Direito deve estar preparado para encarar questões de difícil solução. Uma dessas questões que pode surgir é justamente o questionamento acerca do preenchimento do conceito de responsabilidade pressuposta. Como resposta viável, pode-se dizer que pela responsabilidade pressuposta surgirá o dever de indenizar toda vez que o agente, por sua atividade, expuser outras pessoas a uma situação de risco ou de perigo. Trata-se de uma otimização da regra constante do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, que ainda será devidamente estudada.

Superada essa análise, parte-se à abordagem dos principais aspectos da responsabilidade civil, relacionando-a com o Direito Civil Constitucional.

7.3 A RESPONSABILIDADE CIVIL E O DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL

Como já mencionado no primeiro volume desta coleção, hoje está em voga no Direito Privado apontar a existência de um novo caminho metodológico, denominado Direito Civil Constitucional, em que se busca analisar os principais institutos privados não só à luz do Código Civil e de estatutos jurídicos importantes, mas também sob o prisma da Constituição Federal de 1988 e dos princípios constitucionais.

Para explicar essa variação de interpretação, pode ser evocada a feliz simbologia utilizada por Ricardo Lorenzetti, pela qual o sistema de Direito Privado é semelhante a um sistema solar, diante do notório Big Bang Legislativo que vivenciamos (explosão de leis). Nesse sistema, o Sol é a Constituição Federal de 1988; o planeta principal, o Código Civil; e os satélites, os microssistemas ou estatutos, como no caso do Código de Defesa do Consumidor, do Estatuto da Criança e do Adolescente, da Lei de Locação, da Lei do Bem de Família, etc. (Fundamentos..., 1998). Essa simbologia demonstra muito bem a concepção do Direito Civil Constitucional e da constitucionalização do Direito Civil, pois no centro do ordenamento está a Constituição, e não o Código Civil.

Assim sendo, Direito Constitucional e Direito Civil são interpretados dentro de um todo e não isoladamente. Todavia, essa interpretação não quer dizer que haja uma fusão de conceitos. A norma constitucional é uma regra geral voltada para a atuação do Estado em face da sociedade. E tendo na sociedade uma regra específica para a atuação entre particulares, nada é mais justo do que exigir que a interpretação dessas normas específicas seja feita em harmonia com a regra geral.

Pelo Direito Civil Constitucional, há, assim, não uma invasão do direito constitucional sobre o civil, mas sim uma interação simbiótica entre eles, funcionando ambos para melhor servir o todo Estado/Sociedade, dando as garantias para o desenvolvimento econômico, social e político, mas respeitadas determinadas premissas que nos identificam como seres coletivos. Existe, portanto, uma superação parcial, da velha dicotomia público x privado.

O Direito Civil Constitucional nada mais é do que a harmonização entre os pontos de interseção do Direito Público e do Direito Privado, mediante a adequação de institutos que são, em sua essência, elementos de Direito Privado, mas que estão na Constituição, sobretudo em razão das mudanças sociais do último século e das transformações das sociedades ocidentais. Todavia, destaque-se que, por tal caminho metodológico, o Direito Civil não perde a sua identidade.

Abordagem interessante no ponto de vista civil-constitucional é aquela que se faz em relação ao conceito de Bem Ambiental, construção importante tendo em vista o estudo da responsabilidade civil ambiental. Para muitos estudiosos do direito, na classificação de bens está superada em parte a dicotomia público x privado. Surge o conceito de bem difuso, sendo seu exemplo típico o meio ambiente, protegido pelo art. 225 da CF e pela Lei 6.938/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), visando a proteção da coletividade, de entes públicos e privados. O Bem Ambiental, nesse contexto, constitui um bem difuso, material ou imaterial, cuja proteção visa assegurar a sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações – direitos transgeracionais ou intergeracionais (PIVA, Rui Carvalho. Bem ambiental..., 2001, p. 114). Esta é a melhor concepção civil constitucional de meio ambiente, o que justifica a responsabilidade objetiva e solidária daqueles que causam danos dessa natureza.

Como ensina Gustavo Tepedino, o Direito Civil Constitucional está amparado em três princípios básicos, em relação direta com a responsabilidade civil (Premissas..., Temas..., 2004). Nunca é demais repeti-los, agora analisados sob o prisma da matéria que está sendo estudada.

O primeiro deles, o princípio de proteção da dignidade da pessoa humana, está estampado no art. 1.º, III, do Texto Maior, sendo a valorização da pessoa um dos objetivos da República Federativa do Brasil. Qualquer previsão em sentido contrário, seja ela legal ou contratual, não poderá trazer lesão a esse preceito máximo. A responsabilidade civil deve ser encarada no ponto de vista da personalização do Direito Privado, ou seja, da valorização da pessoa em detrimento da desvalorização do patrimônio (despatrimonialização).

Como exemplo de aplicação desse preceito em relação à responsabilidade civil, foi citado no primeiro volume desta coleção o entendimento do Superior Tribunal de Justiça apontando ser imprescritível a pretensão indenizatória no caso de tortura, à luz do que consta no Texto Maior: “O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais consequentes da sua prática” (STJ, REsp 379.414/PR, Rel. Min. José Delgado, DJ 17.02.2003). O julgado acaba por confirmar a tese pela qual a pretensão relacionada com os direitos da personalidade é imprescritível.

Reforçando esse entendimento, cabe transcrever outro julgado, do mesmo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, também tratando da referida imprescritibilidade: “Conforme restou concluído por esta Turma, por maioria, no julgamento do Recurso Especial 602.237/PB, de minha relatoria, em se tratando de lesão à integridade física, que é um direito fundamental, ou se deve entender que esse direito é imprescritível, pois não há confundi-lo com seus efeitos patrimoniais reflexos e dependentes, ou a prescrição deve ser a mais ampla possível, que, na ocasião, nos termos do art. 177 do Código Civil então vigente, era de vinte anos. Recurso especial provido, para afastar a ocorrência da prescrição quinquenal do direito aos danos morais e determinar o retorno dos autos à Corte de origem para que sejam analisadas as demais questões de mérito” (STJ, REsp 462.840/PR e 2002/0107836-5, Ministro Franciulli Netto, Segunda Turma, 02.09.2004, DJ 13.12.2004, p. 283).

Essa tendência foi reconhecida pelo mesmo eminente e saudoso Ministro Franciulli Netto, em outro acórdão, nos seguintes termos: “No que toca aos danos patrimoniais, os efeitos meramente patrimoniais do direito devem sempre observar o lustro prescricional do Decreto 20.910/1932, pois não faz sentido que o erário público fique sempre com a espada de Damocles sobre a cabeça e sujeito a indenizações ou pagamentos de qualquer outra espécie por prazo demasiadamente longo. Daí por que, quando se reconhece direito deste jaez, ressalva-se que quaisquer parcelas condenatórias referentes aos danos patrimoniais só deverão correr nos cinco anos anteriores ao ajuizamento da ação. Mas, para aforar esta, em se tratando de direitos fundamentais, das duas uma, ou deve a ação ser tida como imprescritível ou, quando menos, ser observado o prazo comum prescricional do direito civil, a menos que se queira fazer tabula rasa do novo Estado de Direito inaugurado, notadamente, a partir da atual Constituição Federal” (STJ, REsp 602.237/PB; REsp 2003/0191209-6, Ministro Franciulli Netto, Segunda Turma, 05.08.2004, DJ 28.03.2005, p. 245).

Pois bem, para os eventos danosos envolvendo direitos da personalidade ocorridos na vigência do Código Civil de 2002, a tendência é justamente entender pela imprescritibilidade, e não aplicar o prazo especial de três anos (art. 206, § 3.º, V, do CC) ou o prazo geral de dez anos (art. 205 do CC). Diante da valorização da pessoa e da sua dignidade, é de se concordar integralmente com o teor desses julgados. Não seria essa tendência uma regulamentação da Responsabilidade Pressuposta, eis que tende à proteção da dignidade humana e reparar a vítima, em um primeiro momento? Entendemos que sim.

De qualquer forma, deve-se ter em mente que as pretensões não são perpétuas quanto ao valor. Sendo assim, a pretensão em caso de lesão à dignidade humana é imprescritível, mas o tempo de propositura pode influenciar no quantum indenizatório. Essa tendência de influência do tempo vem sendo adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, sendo interessante transcrever o seguinte julgado:

“Direito civil – Danos morais – Morte – Atropelamento – Composição férrea – Ação ajuizada 23 anos após o evento – Prescrição inexistente – Influência na quantificação do quantum – Precedentes da Turma – Nascituro – Direito aos danos morais – Doutrina – Atenuação – Fixação nesta Instância – Possibilidade – Recurso parcialmente provido. I – Nos termos da orientação da Turma, o direito à indenização por dano moral não desaparece com o decurso de tempo (desde que não transcorrido o lapso prescricional), mas é fato a ser considerado na fixação do quantum. II – O nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas a circunstância de não tê-lo conhecido em vida tem influência na fixação do quantum. III – Recomenda-se que o valor do dano moral seja fixado desde logo, inclusive nesta instância, buscando dar solução definitiva ao caso e evitando inconvenientes e retardamento da solução jurisdicional” (STJ, REsp 399.028/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4.ª Turma, j. 26.02.2002, DJ 15.04.2002, p. 232).

Ressalte-se que a decisão transcrita é por igual importante por reconhecer danos morais ao nascituro, adotando a teoria concepcionista, pela qual o nascituro tem direitos, como pessoa humana que é. O aresto está de acordo com a tendência de ampliação e valorização de novas situações existenciais de danos.

O segundo princípio do Direito Civil Constitucional visa à solidariedade social, outro objetivo fundamental da República, conforme o art. 3.º, I, da CF/1988. Outros preceitos da própria Constituição trazem esse alcance como, por exemplo, o art. 170, pelo qual: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. Aplicando esse princípio da solidariedade social e também a valorização da dignidade humana, é oportuno lembrar de julgado do extinto Tribunal de Alçada de Minas Gerais, sobre o qual muito se comentou, em que foi adotada a tese do abandono paterno-filial. Por essa decisão, um pai foi condenado a pagar indenização de duzentos salários mínimos a título de danos morais, por não ter convivido com o seu filho:

“Indenização – Danos morais – Relação paterno-filial – Princípio da dignidade da pessoa humana – Princípio da afetividade. O dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana” (Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível 408.550-5 da Comarca de Belo Horizonte. Acorda, em Turma, a Sétima Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais dar provimento. Presidiu o julgamento o Juiz José Affonso da Costa Côrtes e dele participaram os Juízes Unias Silva, relator, D. Viçoso Rodrigues, revisor, e José Flávio Almeida, vogal).

O julgado está de acordo com a doutrina da citada Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, que se revela uma das maiores juristas deste País na atualidade. Quanto ao tema, ensina a brilhante professora:

“A responsabilidade dos pais consiste principalmente em dar oportunidade ao desenvolvimento dos filhos, consiste principalmente em ajudá-los na construção da própria liberdade. Trata-se de uma inversão total, portanto, da ideia antiga e maximamente patriarcal de pátrio poder. Aqui, a compreensão baseada no conhecimento racional da natureza dos integrantes de uma família quer dizer que não há mais fundamento na prática da coisificação familiar (...). Paralelamente, significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Poder-se-ia dizer, assim, que uma vida familiar na qual os laços afetivos são atados por sentimentos positivos, de alegria e amor recíprocos em vez de tristeza ou ódio recíprocos, é uma vida coletiva em que se estabelece não só a autoridade parental e a orientação filial, como especialmente a liberdade paterno-filial” (Responsabilidade civil na relação paterno-filial. Disponível em <www.flaviotartuce.adv.br>. Artigos de convidados. Acesso em 10 de junho de 2005).

Entretanto, como se sabe, o STJ reformou essa decisão anterior do Tribunal de Minas Gerais, afastando o dever de indenizar no caso em questão. A ementa do acórdão igualmente merece destaque:

“Responsabilidade civil – Abandono moral – Reparação – Danos morais – Impossibilidade. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido” (STJ, Recurso especial 757.411-MG (2005-0085464-3), Relator: Ministro Fernando Gonçalves; votou vencido o Ministro Barros Monteiro, que dele não conhecia. Os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro-relator. Brasília, 29 de novembro de 2005, data de julgamento).

De qualquer modo, como ressaltado em edições anteriores desta obra, tal decisão do STJ não encerrou o debate quanto à indenização por abandono afetivo, que permaneceu na doutrina. Cumpre destacar que, para o presente autor, há que se falar no dever de indenizar em casos tais, especialmente se houver um dano psíquico, a ser demonstrado por prova psicanalítica. O desrespeito ao dever de convivência é muito claro, eis que o art. 1.634 do Código Civil impõe como atributos do poder familiar a direção da criação dos filhos e o dever de ter os filhos em sua companhia. Além disso, o art. 229 da Constituição Federal é cristalino ao estabelecer que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores.

Demonstrando evolução quanto ao tema, surgiu, no ano de 2012, outra decisão do Superior Tribunal de Justiça em revisão à ementa anterior, ou seja, admitindo a reparação civil pelo abandono afetivo (caso Luciane Souza). A ementa foi assim publicada por esse Tribunal Superior (Informativo n. 496 da Corte):

“Civil e Processual Civil. Família. Abandono afetivo. Compensação por dano moral. Possibilidade. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/1988. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado –, importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido” (STJ, REsp 1.159.242/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 24.04.2012, DJe 10.05.2012).

Em sua relatoria, a Ministra Nancy Andrighi ressalta, de início, ser admissível aplicar o conceito de dano moral nas relações familiares, sendo despiciendo qualquer tipo de discussão a esse respeito, pelos naturais diálogos entre livros diferentes do Código Civil de 2002. Para ela, tal dano moral estaria presente diante de uma obrigação inescapável dos pais em dar auxílio psicológico aos filhos. Aplicando a ideia do cuidado como valor jurídico, Nancy Andrighi deduz pela presença do ilícito e da culpa do pai pelo abandono afetivo, expondo frase que passou a ser repetida nos meios sociais e jurídicos: “amar é faculdade, cuidar é dever”. Concluindo pelo nexo causal entre a conduta do pai que não reconheceu voluntariamente a paternidade de filha havida fora do casamento e o dano a ela causado pelo abandono, a magistrada entendeu por reduzir o quantum reparatório que foi fixado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, de R$ 415.000,00 (quatrocentos e quinze mil reais) para R$ 200.000,00 (duzentos mil reais).

O acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça representa correta concretização jurídica do princípio da solidariedade; sem perder de vista a função pedagógica que deve ter a responsabilidade civil. Espera-se, assim, que esse último posicionamento prevaleça na nossa jurisprudência, visando a evitar que outros pais abandonem os seus filhos. Conforme entrevista dada ao Jornal Folha de S. Paulo, de 5 de maio de 2012, a autora da ação, Luciane Souza, pretendia apenas um mínimo de atenção de seu pai, o que nunca foi alcançado. Diante das perdas imateriais irreparáveis que sofreu, não restava outro caminho que não o da indenização civil.

Por derradeiro, como terceiro princípio a Constituição consagra a isonomia ou igualdade lato sensu, traduzido no art. 5.º, caput, da Lei Maior, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. No que toca a essa igualdade, princípio maior, pode ser ela concebida pela seguinte oração, atribuída, entre tantos, a Ruy Barbosa, o seguinte sentido: a lei deve tratar de maneira igual os iguais, e de maneira desigual os desiguais (Oração aos Moços).

Esclareça-se que em relação à expressão da igualdade transcrita, nota-se na sua primeira parte a consolidação do princípio da igualdade stricto sensu (a lei deve tratar de maneira igual os iguais...), enquanto a segunda frase traz o princípio da especialidade (... e de maneira desigual os desiguais).

Como exemplo de aplicação desse princípio em sede de responsabilidade civil, vislumbra-se a impossibilidade de tarifar o dano moral, mediante uma tabela ou modelo, o que também vem sendo reconhecido por nossos tribunais, uma vez que os desiguais merecem tratamento desigual:

“Danos morais – Lei de Imprensa – Quantum indenizatório. I – A indenização por dano moral objetiva compensar a dor moral sofrida pela vítima, punir o ofensor e desestimular este e outros membros da sociedade a cometerem atos dessa natureza. II – Segundo reiterados precedentes, o valor da indenização por dano moral sujeita-se ao controle desta Corte, recomendando-se que a sua fixação seja feita com moderação. III – Conforme jurisprudência desta Corte, com o advento da Constituição de 1988 não prevalece a tarifação da indenização devida por danos morais. IV – Se para a fixação do valor da verba indenizatória, consideradas as demais circunstâncias do ato ilícito, acaba sendo irrelevante o fato de ter havido provocação da vítima, não é nula a decisão que, em liquidação de sentença, faz referência a tal fato. Não há, no caso, modificação na sentença liquidanda. V – Recurso especial conhecido e parcialmente provido” (STJ, Acórdão: REsp 168.945/SP (199800221050), 407.121 REsp, Data da decisão: 06.09.2001, Órgão julgador: Terceira Turma, Relator: Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, Fonte: DJ 08.10.2001, p. 210, RSTJ 151/269, Veja: STJ, REsp 226956/RJ, 295.175/RJ, 162.545/RJ (Inaplicabilidade, responsabilidade tarifada), STJ – REsp 89.156/MS, 72.415/RJ (LEX-STJ 113, janeiro 1999/91), 52.842/RJ (RSTJ 99/179, RDTJRJ 35/88, RTJE 166/280)).

Confirmando a impossibilidade de tarifação, pode ser citado o teor da Súmula 281 do STJ: “A indenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na Lei de Imprensa”. A súmula é anterior ao entendimento do Supremo Tribunal Federal que, em maio de 2009, concluiu pela inconstitucionalidade por não recepção de toda a Lei de Imprensa, que não tem mais aplicação no sistema jurídico nacional (cf. julgados publicados no Informativo n. 544 do STF). No âmbito doutrinário, a reforçar a premissa de afastamento da tarifação, na VI Jornada de Direito Civil (2013), aprovou-se o Enunciado n. 550, que não deixa dúvidas: “a quantificação da reparação por danos extrapatrimoniais não deve estar sujeita a tabelamento ou a valores fixos”. A proposta contou com o voto e o apoio deste autor.

De qualquer forma, cumpre esclarecer que este autor tem ciência acerca da existência de projetos de lei que tentam tabelar a indenização por danos morais, mas duvida de sua constitucionalidade, caso realmente venha a se tornar lei.

No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça não tem admitido a tarifação de indenização constante da Convenção de Varsóvia e da Convenção de Montreal para as hipóteses de danos morais decorrentes de atraso de voo ou extravio de bagagens, que, repita-se, não podem ser tarifados: “A quantificação da indenização por danos morais, decorrente de atraso de voo, deve pautar-se apenas pelas regras dispostas na legislação nacional, restando inaplicável a limitação tarifada prevista na Convenção de Varsóvia e em suas emendas vigentes, embora possam ser consideradas como mero parâmetro. Hipótese em que, contudo, a indenização por danos morais foi fixada em valor exorbitante. Recurso especial conhecido e parcialmente provido” (STJ, REsp 628.828/RJ; REsp 2004/0018890-5, Ministro Cesar Asfor Rocha – Quarta Turma, 20.04.2004, DJ 04.10.2004, p. 326).

Qualquer tabela a ser utilizada para a aferição dos danos morais, portanto, deve ser tida como inconstitucional como foi o caso, por exemplo, da tentativa de tarifação pelo extinto Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais, mencionada por Humberto Theodoro Júnior (Dano moral..., 2000, p. 39): “Centro de Estudos Jurídicos Ronaldo Cunha Campos do Tribunal de Alçada Civil do Estado de Minas Gerais (DJMG, Caderno II, 08.10.1998) – Pedido de dano moral por inclusão indevida do nome em SCPC, Serasa, Cartório de Protestos: até 20 SM – Pedido de dano por morte de esposo, esposa, filhos: 100 SM – Outras bases de pedidos: até 90 SM”.

Para terminar, destaque-se que, por diversas vezes, serão buscados esses princípios emergentes do Direito Civil Constitucional, demonstrando-se uma nova dimensão do Direito Privado, rompida com a visão anterior, particularmente quanto à responsabilidade civil. Concluindo, denota-se que a responsabilidade civil tem uma importante função social, conforme será também exposto neste trabalho. Superado esse ponto, passa-se à análise do conceito de ato ilícito.

7.4 O CONCEITO DE ATO ILÍCITO

A concepção da responsabilidade sempre esteve relacionada à lesão do direito, segundo ensina San Tiago Dantas, sendo este conceito “fundamental para compreender-se bem o tema que se passará a estudar, o tema da defesa dos direitos”. Ensina esse doutrinador que “sempre que se verifica uma lesão do direito, isto é, sempre que se infringe um dever jurídico correspondente a um direito, qual é a primeira consequência que daí advém? Já se sabe: nasce a responsabilidade” (Programa..., 1979, p. 376).

A ideia de lesão de direitos está expressa no art. 186 do CC, pelo qual o ato ilícito está configurado toda vez em que a lesão estiver presente, cumulada com um dano material, moral, estético ou de outra categoria.

No que concerne à classificação da responsabilidade civil, repise-se que se pode falar, inicialmente, em responsabilidade civil contratual ou negocial, situada no âmbito da inexecução obrigacional. Sendo uma regra já prevista no Direito Romano, a força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda) traz a previsão pela qual as cláusulas contratuais devem ser respeitadas, sob pena de responsabilidade daquele que as descumprir por dolo ou culpa.

Mas, conforme este autor tem defendido em todos os seus trabalhos, essa regra vem sendo bastante relativizada ou mitigada diante da influência da doutrina da função social dos contratos e da boa-fé objetiva (princípios sociais contratuais). De toda sorte, os fundamentos principais da responsabilidade civil contratual ou negocial, na atual lei codificada brasileira, estão nos arts. 389, 390 e 391 do CC, que foram incansavelmente mencionados neste volume quando do tratamento da teoria geral das obrigações.

Paralela à responsabilidade obrigacional está a responsabilidade civil extracontratual (denominada aquiliana pelos romanos, conceito que resiste), oriunda do desrespeito ao direito alheio e às normas que regram a conduta e que decorre de uma lesão de direitos que ocorre alheia à esfera contratual, conforme os arts. 186 e 927, caput, da atual codificação.

Como se nota, a dualidade entre responsabilidade civil contratual e responsabilidade civil extracontratual foi mantida pelo Código Civil Brasileiro de 2002 (summa divisio). Todavia, apesar de entraves legislativos, a tendência é a busca de um modelo uniforme de responsabilidade civil, uno e indivisível (CALIXTO, Marcelo Junqueira. A culpa..., 2008, p. 77-78). O Código de Defesa do Consumidor é um exemplo desta tendência de unificação, eis que não diferencia a responsabilidade contratual da extracontratual, tratando da responsabilidade pelo produto e pelo serviço.

Pois bem, o ato ilícito é o ato praticado em desacordo com a ordem jurídica violando direitos e causando prejuízos a outrem. Diante da sua ocorrência a norma jurídica cria o dever de reparar o dano, o que justifica o fato de ser o ato ilícito fonte do direito obrigacional.

O ato ilícito é considerado como fato jurídico em sentido amplo, uma vez que produz efeitos jurídicos que não são desejados pelo agente, mas somente aqueles impostos pela lei, sendo, por isso, chamados de involuntários. Quando alguém comete um ilícito há a infração de um dever e a imputação de um resultado.

O ato ilícito pode ser civil, penal ou administrativo. Vamos aqui nos ater ao ilícito civil, matéria que interessa ao Direito Privado e a esta obra. Entretanto, é fundamental apontar que há casos em que a conduta ofende a sociedade (ilícito penal) e o particular (ilícito civil), acarretando dupla responsabilidade. Exemplificamos com um acidente de trânsito, situação em que pode haver um crime, bem como o dever de indenizar. Por outro lado, não se pode esquecer a regra prevista no art. 935 do CC, pela qual a responsabilidade civil independe da criminal, regra geral.

Sem prejuízo dessas situações, às vezes, a responsabilidade pode ser tripla, abrangendo também a esfera administrativa, como no caso de uma conduta que causa danos ao meio ambiente, sendo-lhe aplicadas as sanções administrativas, civis e criminais previstas nas Leis 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente) e 9.605/1998 (Crimes Ambientais).

Dessa forma, pode-se afirmar que o ato ilícito é a conduta humana que fere direitos subjetivos privados, estando em desacordo com a ordem jurídica e causando danos a alguém. O art. 186 do atual CC tem a seguinte redação:

“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (destacamos).

Do art. 186 do CC/2002 percebe-se que o ato ilícito constitui uma soma entre lesão de direitos e dano causado, de acordo com a seguinte fórmula:

Ato ilícito (art. 186 do CC) = Lesão de direitos + dano

Esse comando legal apresenta duas importantes diferenças em relação ao art. 159 do CC/1916, seu correspondente na lei privada anterior, cuja redação também merece destaque:

“Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código, artigos 1.518 a 1.532 e 1.537 a 1.553” (destacamos).

A primeira e a mais importante diferença é que o dispositivo anterior utilizava a expressão ou em vez de e que consta da atual legislação, admitindo o ato ilícito por mera lesão de direitos. Isso, como se pode perceber da fórmula antes apontada, não é mais possível.

A segunda é que a disposição atual permite a reparação do dano moral puro, sem repercussão patrimonial (“dano exclusivamente moral”). A previsão não tem grande importância prática como inovação, pois tal reparação já era admitida pela Constituição Federal, no seu art. 5.º, incisos V e X, in verbis:

“V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.

“X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

A consequência do ato ilícito é a obrigação de indenizar, de reparar o dano, nos termos da parte final do art. 927 do CC. O presente autor está filiado à corrente doutrinária pela qual ato ilícito constitui um fato jurídico, mas não é um ato jurídico, eis que para este é necessária a licitude da conduta. Para aprofundamentos, remete-se mais uma vez o leitor ao Volume 1 desta coleção.

Ao lado do primeiro conceito de antijuridicidade, o art. 187 do CC traz uma nova dimensão de ilícito, consagrando a teoria do abuso de direito como ato ilícito, também conhecida por teoria dos atos emulativos. Amplia-se a noção de ato ilícito, para considerar como precursor da responsabilidade civil aquele ato praticado em exercício irregular de direitos, ou seja, o ato é originariamente lícito, mas foi exercido fora dos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé objetiva ou pelos bons costumes.

Justamente pelo que consta desse último dispositivo, percebe-se que o Código Civil brasileiro baseia a responsabilidade em dois alicerces: o ato ilícito e o abuso de direito. Trata-se de importantíssima inovação, eis que o Código Civil de 1916 amparava a responsabilidade civil somente no ato ilícito. A mudança é estrutural e merece grande destaque. Para demonstrar essa alteração de bases relativamente à antijuridicidade civil, elaboramos o desenho a seguir.

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Como se pode perceber pela simbologia, a responsabilidade civil no Código Civil de 1916 era alicerçada em um único conceito: o de ato ilícito (art. 159). Assim, havia uma única pilastra a sustentar a construção.

Por outro lado, a responsabilidade civil, no Código Civil de 2002, é baseada em dois conceitos: o de ato ilícito (art. 186) e o de abuso de direito (art. 187). Dessa forma, a construção, atualmente, tem duas pilastras, estando aqui a principal alteração estrutural da matéria de antijuridicidade civil no estudo comparativo das codificações privadas brasileiras. Vale frisar que a modificação também atinge a responsabilidade contratual, pois o art. 187 do CC também pode e deve ser aplicado em sede de autonomia privada. Eis aqui um dispositivo unificador do sistema de responsabilidade civil, que supera a dicotomia responsabilidade contratual x extracontratual.

Sobre o abuso de direito, pretende-se comentar de forma destacada e aprofundada a partir de agora.

7.5 O ABUSO DE DIREITO COMO ATO ILÍCITO

7.5.1 O art. 187 do CC. Conceito, exemplos e consequências práticas

Como foi mencionado, uma das modificações mais festejadas na atual codificação, emergente com a promulgação da Lei 10.406/2002, que introduziu o Código Civil de 2002, é a que consta no seu art. 187, que equipara o abuso de direito a um verdadeiro ato ilícito. Com efeito, é a redação do aludido comando legal:

“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Este autor acredita que tal dispositivo está revolucionando a visualização da responsabilidade civil, trazendo nova modalidade de ilícito, também precursora do dever de indenizar. É fundamental apontar, brevemente, quais são as raízes históricas do abuso de direito, para sua melhor compreensão, eis que o instituto deve ser conceituado de acordo com o Código Civil de 2002 e a legislação especial.

Renan Lotufo sinaliza que o conceito de abuso de direito encontra raízes históricas na aemulatio do Direito Romano, ou seja, no “exercício de um direito, sem utilidade própria, com a intenção de prejudicar outrem”, cuja aplicação ampliada atingiu as relações de vizinhança (Código Civil..., 2003, p. 499).

De acordo com a obra clássica de San Tiago Dantas, o abuso de direito também encontra origens no Direito Romano, principalmente nos conceitos de aequitas e no ius honorarium. Mas, para o doutrinador, é no Direito Medieval que o instituto encontra sua principal raiz: o surgimento do ato emulativo. São suas palavras:

“Já se sabe o que foi a vida medieval, o ambiente de emulação por excelência. A rixa, a briga, a altercação, é a substância da vida medieval. Brigas de vizinhos, brigas de barões, brigas de corporações, no seio das sociedades; brigas entre o poder temporal e o poder espiritual. Todas as formas de alterações a sociedade medieval conheceu, como não podia deixar de acontecer numa época de considerável atrofia do Estado. É aí que, pela primeira vez, os juristas têm conhecimento deste problema: o exercício de um direito com o fim de prejudicar outrem. O direito como elemento de emulação. Entende-se, por emulação, o exercício de um direito com o fim de prejudicar outrem. Quer dizer que em vez de ter o fim de tirar para si um benefício, o autor do ato tem em vista causar prejuízo a outrem” (Programa..., 1979, p. 368-369).

Silvio Rodrigues igualmente demonstra a origem romana do abuso de direito. Entretanto, ensina que “a teoria do abuso de direito, na sua forma atual, é, como diz Josserand, de tessitura jurisprudencial e surgiu na França na segunda metade do século XIX” (Direito civil..., 2003, p. 318).

Pela análise do art. 187 do Código Civil Brasileiro, vigor conclui-se que a definição de abuso de direito está baseada em quatro conceitos legais indeterminados, cláusulas gerais que devem ser preenchidas pelo juiz caso a caso, a saber:

a)  fim social;

b)  fim econômico;

c)  boa-fé;

d)  bons costumes.

O conceito de abuso de direito é, por conseguinte, aberto e dinâmico, de acordo com a concepção tridimensional de Miguel Reale, pela qual o Direito é fato, valor e norma. Eis aqui um conceito que segue a própria filosofia da codificação de 2002. O aplicador da norma, o juiz da causa, deverá ter plena consciência do aspecto social que circunda a lide, para aplicar a lei, julgando de acordo com a sua carga valorativa. Mais do que nunca, com o surgimento e o acatamento do abuso de direito como ato ilícito pela atual codificação, terá força a tese pela qual a atividade do julgador é, sobretudo, ideológica.

O conceito de abuso de direito mantém íntima relação com o princípio da socialidade, adotado pela atual codificação, uma vez que o art. 187 do CC faz referência ao fim social do instituto jurídico violado. Seguindo esta concepção, social por excelência, cite-se o artigo Critérios de fixação da indenização do dano moral, de autoria de Regina Beatriz Tavares da Silva, constante da obra Questões controvertidas no novo Código Civil, v. I, de 2003. Nesse trabalho, a doutrinadora afirma que “é sociológica a visão da responsabilidade civil” (Questões..., 2003, p. 261).

O abuso de direito também mantém relação com o princípio da eticidade, eis que o atual Código Civil Brasileiro estabelece as consequências do ato ilícito para a pessoa que age em desrespeito à boa-fé, aqui prevista a boa-fé de natureza objetiva, relacionada com a conduta leal e proba e integradora das relações negociais. O art. 187 da vigente codificação privada traz a função de controle exercido pela boa-fé objetiva, fazendo que o abuso de direito também esteja presente na esfera contratual, ou seja, da autonomia privada.

Em realidade, repise-se que o art. 187 do CC/2002 pode ser aplicado ao contrato pela menção ao fim social. Sendo assim, se a parte contratual viola a sua função social, comete abuso de direito e, portanto, ato ilícito, o que faz com que o negócio jurídico possa ser nulificado, pois o seu conteúdo é ilícito (art. 166, II, do CC).

Em suma, aplicando-se os arts. 166, 187 e 421 da norma civil geral, pode-se afirmar que a função social do contrato está no plano da validade do negócio jurídico celebrado, sendo esse um exemplo da eficácia interna do referido princípio, como reconhece o Enunciado n. 360, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, e de nossa autoria. Ilustrando, reconhecendo a nulidade da cláusula contratual que fere a função social, transcreve-se o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

“Apelação cível – Distrato válido com anulação de uma de suas cláusulas – Restituição de parcelas pagas – Multa contratual – Indenização de valores a título de aluguel – Dano moral – Recurso do demandado. A ausência de boa-fé nos contratos e a ofensa a sua função social justificam a intervenção estatal nos pactos estabelecidos entre particulares. Assim, entendo que a cláusula de quitação constante no distrato ora em análise, embora tenha sido inicialmente aceita pelos autores, é nula, pois causa manifesto prejuízo para os promitentes compradores que já adimpliram aproximadamente 70% do valor total” (TJRS, Processo: 70016007197, Data: 24.08.2006, Órgão julgador: Décima Oitava Câmara Cível, Juiz Relator: Mario Rocha Lopes Filho, Origem: Comarca de Rosário do Sul).

Quanto ao conceito de abuso de direito, o mais interessante produzido pela doutrina nacional, inclusive por seu intuito didático, é o de Rubens Limongi França, que em sua Enciclopédia Saraiva do Direito definiu o abuso de direito como “um ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito” (1977, p. 45).

Resumindo essa construção, pode-se chegar à conclusão de que o abuso de direito é um ato lícito pelo conteúdo, ilícito pelas consequências, tendo natureza jurídica mista – entre o ato jurídico e o ato ilícito – situando-se no mundo dos fatos jurídicos em sentido amplo. Em outras palavras, a ilicitude do abuso de direito está presente na forma de execução do ato. Desse conceito conclui-se que a diferença em relação ao ato ilícito tido como puro reside no fato de que o último é ilícito no todo, quanto ao conteúdo e quanto às consequências.

Esclareça-se, na linha do Enunciado n. 539, da VI Jornada de Direito Civil, que “o abuso de direito é uma categoria jurídica autónoma em relação à responsabilidade civil. Por isso, o exercício abusivo de posições jurídicas desafia controle independentemente de dano”. De fato, cabem, por exemplo, medidas preventivas se o abuso de direito estiver presente, independentemente da presença do dano. Todavia, para que o abuso de direito seja analisado dentro da matéria deste capítulo, o dano deve estar presente, conforme se abstrai do art. 927, caput, do CC/2002, que exige o elemento objetivo do prejuízo para que surja a consequente responsabilidade civil do agente.

Em continuidade de estudo, para que o abuso de direito esteja presente, nos termos do que está previsto na atual codificação privada, é importante que tal conduta seja praticada quando a pessoa exceda a um direito que possui, atuando em exercício irregular de direito, conforme anotado por Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery (Código Civil..., 2003, p. 255).

Dúvidas restam quanto à natureza jurídica da responsabilidade civil relacionada com o abuso de direito, prevalecendo na doutrina o posicionamento de que essa seria de natureza objetiva, ou seja, independente de culpa.

Essa é a conclusão a que chegaram os juristas participantes da I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, com a aprovação do Enunciado n. 37 e que tem a seguinte redação: “Art. 187. A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”. Na jurisprudência podem ser encontrados julgados que aplicam expressamente o enunciado doutrinário (TJRJ, Apelação 2009.001.18112, 3.ª Câmara Cível, Rel. Des. Roberto de Almeida Ribeiro, j. 06.10.2009, DORJ 30.10.2009, p. 183 e TJMT, Recurso 61.113/2008, Capital, 2.ª Câmara Cível, Rel. Des. Donato Fortunato Ojeda, j. 1.º.10.2008, DJMT 09.10.2008, p. 14).

Consigne-se que, na doutrina contemporânea, é claramente majoritário o entendimento pela responsabilidade objetiva em decorrência do abuso de direito (nessa linha, por exemplo: TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil..., 2004, p. 342; NORONHA, Fernando. Direito..., 2003, v. 1, p. 371-372; DINIZ, Maria Helena. Código Civil..., 2010, p. 209; DUARTE, Nestor. Código Civil..., 2007, p. 124; GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso..., 2007, v. 1, p. 448; FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito civil..., 2006, p. 479; CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa..., 2007, p. 143; BOULOS, Daniel M. Abuso..., 2006, p. 135-143).

Mas, conforme alertava Georges Ripert, não é tão simples apresentar o abuso de direito com um caráter moral, eis que “será preciso que o juiz reconheça a intenção de prejudicar. Esta busca de intenção oferece dificuldades insuperáveis? Não é mais arbitrária que a análise da fraude e da boa-fé” (A regra..., 2002, p. 176). Desse modo, há corrente defendendo a responsabilização por ato emulativo dependente de culpa ou dolo (responsabilidade subjetiva).

Fernando Noronha também pressente tal dificuldade, mesmo sendo adepto da teoria finalista, que sinaliza para a responsabilização objetiva do agente que comete o abuso de direito. Para ele, “o ato abusivo não é necessariamente ilícito subjetivamente, mas é sempre atuação contrária ao direito, atuação antijurídica”. Acrescenta o jurista que “quanto ao critério a usar para dar como caracterizado o abuso de direito, no âmbito de uma concepção objetivista e dentro de sistemas jurídicos como o nosso, que se caracterizam pelo relevo reconhecido à autonomia privada [5.7.2] e, por isso, pela larga margem de discricionariedade no exercício de direitos, acreditamos que o melhor é o da manifesta desproporção entre o interesse que o agente visa realizar e aquele da pessoa afetada, ou, dizendo de outro modo, entre as vantagens do titular do direito e os sacrifícios suportados pela outra parte, como dissemos em outro livro em que fizemos uma análise mais detida do abuso de direito [1994, p. 168-176]. Se todos os direitos têm finalidade social [1.3.4], não é possível tutelar pretensões que representem sacrifício manifestamente desproporcional dos interesses de outrem” (Direito das obrigações..., 2003, p. 372).

Outro problema reside na sua constituição ou no seu enquadramento, que não é tão simples assim, eis que a sua existência está fundada em conceitos legais indeterminados, para os quais não existem fórmulas mágicas de definição. Pergunta-se: o que é o fim social de um instituto jurídico? Quando um direito não está enquadrado na sua finalidade econômica? O que é boa-fé objetiva? E o pior: quando a conduta de alguém está desrespeitando os bons costumes?

Relativamente aos bons costumes, cabem algumas divagações, haja vista a sua variação de acordo com aspectos subjetivos (de pessoa para pessoa, e daí de julgador para julgador), espaciais (de lugar para lugar) e temporais (de época para época). Seguindo tais premissas, na V Jornada de Direito Civil foi aprovado o seguinte enunciado doutrinário, de autoria de Otávio Luiz Rodrigues Júnior: “Os bons costumes previstos no art. 187 do CC possuem natureza subjetiva, destinada ao controle da moralidade social de determinada época; e objetiva, para permitir a sindicância da violação dos negócios jurídicos em questões não abrangidas pela função social e pela boa-fé objetiva” (Enunciado n. 413).

Este autor acredita que o mais difícil enquadramento será justamente aquele que tem como objeto o bom costume e o mau costume. Como exemplo, cite-se o caso envolvendo a farra do boi, prática que foi considerada pelo Supremo Tribunal Federal como um mau costume e proibida no Estado de Santa Catarina. Aqui, cabe a transcrição da ementa do acórdão proferido pelo Excelso Pretório naquela ocasião:

“Costume – Manifestação cultural – Estímulo – Razoabilidade – Preservação da fauna e da flora – Animais – Crueldade. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do art. 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’” (STF, Descrição: Recurso extraordinário, 153531, j. 03.06.1997, Legislação: Leg. Fed. CFD, Ano-1988, Arts. 215 e 225, § 1.º, inc. 7, CF/1988, Observação: Votação: Por maioria, Resultado: Conhecido e provido, Origem: SC – Santa Catarina, partes: recte.: Apande-Associação Amigos de Petropólis – Patrimônio, proteção aos animais e defesa da ecologia e outros, recdo.: Estado de Santa Catarina, publicação: DJ 13.03.1998, p. 13, Ement. 01902-02, p. 388, relator p/ acórdão: Marco Aurélio, relator: Francisco Rezek, Sessão: 2 – Segunda Turma).

Sem pretender dar qualquer opinião sobre o tema, inclusive por envolver questão controvertida e incrementada por paixões, entendemos que outras interpretações poderiam ser dadas ao episódio. De qualquer maneira, a decisão foi difícil, eis que envolvia também a valorização do folclore e dos costumes locais, protegidos pela Constituição Federal.

Tal problemática envolve o debate de valores, o que Ricardo Lorenzetti expõe como sendo a busca do conceito de bons e maus costumes. Ensina o autor argentino: “o problema tem hoje grande transcendência. Os costumes são valorativamente assépticos? Evidentemente quando o Código Civil menciona que o costume não se refere aos ‘maus costumes’ mas aos ‘bons costumes’, como expressamente assinala ao regulamentar o objeto dos atos jurídicos (art. 953, CC)” (Fundamentos..., 1998, p. 275).

Tudo isso serve para demonstrar quão grande são as dificuldades para o aplicador da norma que, de acordo com as regras da hermenêutica e utilizando a equidade, deve trazer soluções para os casos concretos que envolverem o ato emulativo. Nesse ponto reside a grande revolução do conceito, eis que a responsabilidade civil não estará presente tão somente nos casos que até o momento eram tratados como ilícito puro. Se já é difícil a visualização do ato ilícito, que possui parâmetros legais mais objetivos, imaginemos a visualização do abuso de direito, fundado em conceitos legais indeterminados conforme exposto anteriormente.

Para esclarecer o enquadramento do abuso de direito como ato ilícito, serão buscados alguns exemplos dos institutos, já analisados pela doutrina e pela jurisprudência, em uma visão interdisciplinar. Como se concluiu na V Jornada de Direito Civil, realizada em 2011, o abuso de direito tem fundamento constitucional nos princípios da solidariedade, do devido processo legal e da proteção da confiança, aplicando-se a todos os ramos do direito (Enunciado n. 414).

7.5.2 A publicidade abusiva como abuso de direito

Muitos poderiam pensar ser o abuso de direito um conceito inédito, ainda não previsto em nosso ordenamento jurídico. Todavia, essa conclusão constitui um equívoco, podendo ser afastada pela simples leitura do Código de Defesa do Consumidor.

A Lei 8.078/1990, em alguns dos seus dispositivos, utiliza a expressão abusiva, que conduz ao conceito aqui estudado. Inicialmente, prevê o seu art. 6.º, IV, a proteção dos consumidores “contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos e desleais, bem como práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços” (destacamos). Essas formas de publicidade estão previstas como crime nos arts. 67 e 68 do CDC.

O conceito de publicidade abusiva pode ser encontrado no art. 37, § 2.º, do CDC, cuja transcrição merece realce, para os devidos aprofundamentos:

“§ 2.º É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança” (destacamos).

Pela excelência do seu trabalho, merecem aplausos os elaboradores do Código de Defesa do Consumidor, que foram além do que foi o legislador civil, prescrevendo alguns casos que podem ser tidos como abuso de direito ao exemplificar o seu enquadramento.

É certo que tal dispositivo deverá ser aplicado aos casos de oferta, publicidade e propaganda que envolvam a relação de consumo, mas, sem dúvida, serve como exemplo para situações futuras de órbita civil, a serem concebidas pela jurisprudência como abuso de direito. A título de ilustração, vale citar julgado notório do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que considerou ser abusiva uma publicidade que incitava as crianças à destruição de tênis velhos, que deveriam ser substituídos por outros novos, situação tida como incentivadora da violência, abusando da inocência das crianças:

“Ação civil pública – Publicidade abusiva – Propaganda de tênis veiculada pela TV – Utilização da empatia da apresentadora – Induzimento das crianças a adotarem o comportamento da apresentadora destruindo tênis usados para que seus pais comprassem novos, da marca sugerida – Ofensa ao art. 37, § 2.º, do CDC – Sentença condenatória proibindo a veiculação e impondo encargo de contrapropaganda e multa pelo descumprimento da condenação – Contrapropaganda que se tornou inócua ante o tempo já decorrido desde a suspensão da mensagem – Recurso provido parcialmente” (TJSP, Apelação Cível 241.337-1-São Paulo – 3.ª Câmara de Direito Público – Relator: Ribeiro Machado – 30.04.1996 – v.u.).

Pela ementa transcrita, nota-se que houve um enquadramento da prática como sendo um mau costume, conceito que mantém relação íntima com o texto encontrado no art. 187 do CC atual. Desse modo, as expressões constantes no art. 37, § 2.º, do CDC poderão ser utilizadas sem maiores problemas pelo aplicador da norma para a caracterização do ato emulativo civil como ato ilícito. Trata-se de um diálogo de complementaridade entre o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, o que está de acordo com a aclamada tese do diálogo das fontes, de Erik Jayme, trazida ao Brasil por Cláudia Lima Marques.

Outro exemplo de abusividade envolve a publicidade discriminatória, prevista expressamente no texto consumerista, o que gera muitas vezes discussões administrativas. Entre as decisões do Conselho Nacional de Regulamentação Publicitária (CONAR), pode ser extraída ementa do ano de 2009, que tratou de preconceito contra os portugueses. Transcreve-se a decisão para as devidas reflexões:

“‘Arno Laveo’. Representação n.º 441/08. Autor: Conar, a partir de queixa do consumidor. Anunciante: Arno. Relatora: Conselheira Cristina de Bonis. Segunda Câmara. Decisão: Arquivamento. Fundamento: Artigo 27, n.º 1, letra ‘a’ do Rice. Consumidora de Santo André, no ABC paulista, reclamou ao Conar do comercial de TV veiculado pela Arno. De acordo com a queixa, no referido anúncio há menção desmerecedora e até mesmo discriminatória com relação à determinada etnia, pelo uso de música típica portuguesa associada à conduta pouco inteligente. Além disso, a publicidade, segundo a denúncia, apresenta falta de cuidado dos protagonistas, que acabam provocando a queda de objeto do alto do prédio. Para a consumidora, embora a situação tenha sido utilizada como recurso humorístico, pode constituir-se exemplo inadequado de comportamento perigoso. A defesa alega que o comercial, entendido em seu verdadeiro sentido, nada tem que possa ser considerado um desrespeito aos portugueses, até porque não existe nenhuma menção à origem dos personagens. Segundo o anunciante, trata-se de uma mensagem lúdica e bem-humorada, na qual aparece uma cena caricata, fantasiosa, de um casal que tenta lavar um ventilador com uma mangueira. O apelo, como argumenta a defesa, apenas ajuda a demonstrar os benefícios do produto, o ventilador Laveo, fácil de desmontar e lavar. O relator concordou com esta linha de argumentação, considerando, em seu parecer, que o comercial revela uma situação absurda e que não há como afirmar que se trata de uma melodia portuguesa, o que descaracteriza a tese da discriminação. Os membros do Conselho de Ética acolheram por unanimidade o voto pelo arquivamento da representação”.

Em sentido oposto, ainda a ilustrar, e mais recentemente, o mesmo CONAR resolveu suspender campanha publicitária da Red Bull chamada “Nazaré”, em que Jesus Cristo consumia o produto antes de andar sobre as águas. A decisão, prolatada em março de 2012, foi da 6.ª Câmara do Conselho de Ética (Representação 041/2012), concluindo por um atentado a valores religiosos da sociedade brasileira.

Como se percebe, do conceito de publicidade abusiva transborda a concepção de interferência objetiva da ordem pública na ordem privada, interessando à matéria que envolve o abuso de direito ao interesse social e da coletividade. O fato de o legislador ter incriminado essas condutas nos arts. 67 e 68 do CDC evidencia ainda mais a existência do interesse social nessa questão. Atentos devem estar os olhos do Poder Judiciário para tais questões, principalmente se envolverem os dados que chegam aos consumidores, pela grande velocidade dos meios de comunicação e pela valorização da informação, que não pode chegar distorcida aos seus destinatários, sob pena de gerar danos irreparáveis, principalmente de natureza imaterial.

Eventualmente, se determinada pessoa, por uma condição especial, sofrer sério constrangimento decorrente de publicidade abusiva, caberá o direito de se ver reparada ou mesmo pleitear que a veiculação cesse, mesmo que o ato não seja considerado ilícito perante os demais membros da sociedade.

7.5.3 As práticas previstas no Código de Defesa do Consumidor e o conceito do art. 187 do CC

Em outro dispositivo de suma importância, o Código de Defesa do Consumidor utiliza a expressão abusiva, também fora da esfera contratual, prevendo práticas vedadas aos prestadores de serviços e fornecedores de produtos. Os nove incisos do art. 39 da Lei 8.078/1990 também trazem casos que mantêm íntima ligação com a concepção do art. 187 do CC/2002.

Inicialmente, o art. 39, I, veda ao fornecedor de produtos ou prestador de serviços a denominada venda casada, ou seja, o condicionamento de fornecimento ou de prestação à aquisição de outro produto ou serviço. É comum também submeter a solução de um problema anterior, relacionado com um produto já fornecido ou um serviço já prestado, à contratação de um novo fornecimento ou nova prestação posterior. Tais condutas contrariam a boa-fé objetiva que se espera nas relações negociais constituindo abuso de direito, em clara lesão ao equilíbrio das relações consumeristas, constituindo também tipos penais, conforme a Lei 8.137/1990. E como tal deverão ser repudiadas, gerando o dever de indenizar, caso tenham provocado danos materiais ou imateriais ao consumidor.

Seguindo na análise do dispositivo em questão, o seu inciso II traz a denominada negação de venda, ou recusa ao atendimento às demandas dos consumidores, prática muito comum nos grandes centros e que contraria, pela simples leitura da parte final do dispositivo, os bons costumes.

O inciso III do art. 39 elenca outra hipótese de prática abusiva que será oportunamente discutida, aplicável a uma situação também muito comum hoje em dia, vedando o envio de produto sem solicitação, prática esta que a nosso ver contraria o fim social e econômico do mercado e a boa-fé objetiva. Trazendo eventual solução, o parágrafo único do comando em análise prevê que eventual produto enviado sem solicitação equivale à amostra grátis, não devendo o consumidor por ele pagar. Utiliza-se a expressão eventual solução, eis que o consumidor poderá sofrer prejuízos irreparáveis, que deverão ser indenizados, conforme determina o art. 6.º, VI, do CDC (princípio da reparação integral dos danos).

Os incisos IV e V consagram conceitos genéricos, mas que poderão servir de apoio para o aplicador da norma visualizar o abuso de direito, uma vez que qualquer prática que se prevalece da ignorância e fraqueza do consumidor, bem como aquela que exige da parte vulnerável uma vantagem manifestamente excessiva podem ser tidas como abuso de direito consumerista e geradoras do dever de indenizar.

O art. 39, VI, da Lei 8.078/1990 prevê a negação de orçamento prévio, outra prática ainda comum, que, por contrariar a boa-fé e os bons costumes, gera o abuso de direito como ato ilícito.

Também é tido como abuso de direito o repasse de informação depreciativa referente a ato praticado pelo consumidor no exercício de seus direitos (art. 39, VII, CDC), como no caso de um consumidor que parcela uma dívida, informando o fornecedor a existência desse inadimplemento anterior para terceiro. Em casos tais, sofrendo o consumidor prejuízo com tal conduta, poderá pleitear a indenização cabível, inclusive por dano imaterial suportado, decorrente de abalo de crédito ou abalo moral.

Pela redação do inciso VIII do art. 39 do CDC, constitui abuso de direito a colocação no mercado de produto fora das especificações previstas pela ABNT ou CONMETRO. Caso tal produto gere prejuízos, a simples colocação no mercado acarretará o dever de reparar o prejuízo, independentemente de culpa. Tal conduta poderá influir em larga escala, possibilitando o ingresso de ação coletiva para a retirada dos produtos ou gerando consequências para contratos de natureza pública.

Finalmente, o inciso IX do dispositivo em análise enuncia ser prática abusiva a ausência de fixação de prazo, pelos fornecedores e prestadores, para o cumprimento da obrigação assumida, o que é corolário do desrespeito à boa-fé objetiva, conduta equilibrada e leal que se espera nas relações de consumo.

Argumento que aqui cabe é que muitas das condutas descritas não constituem abuso de direito, mas atos ilícitos na melhor concepção da expressão. De acordo com tal corrente, podem ser evocados os tipos penais elencados entre os arts. 61 e 80 da Lei 8.078/1990, que mantêm relação direta com as práticas aqui estudadas, e também com a publicidade abusiva, debatida no tópico anterior.

Concorda-se com tal conclusão, mas antes devem ser feitas algumas ressalvas. A primeira é de que os elementos do ilícito civil são diferentes daqueles do ilícito penal, conclusão que pode ser retirada da leitura do art. 935 do CC, que traz regra pela qual a responsabilidade civil independe da criminal. A segunda é que, dentro dessa linha de raciocínio, argumentos surgirão de que o ilícito civil não estará presente, o que afastaria o dever de reparar. O contra-ataque é fácil, no sentido de que o ilícito não está presente no conteúdo, mas sim pelas consequências, eis que as hipóteses do art. 39 do CDC abarcam o abuso de direito consumerista, que também gera a responsabilidade civil do agente.

Para encerrar a abordagem do tema, como foi dito no início do tópico, este autor acredita que o art. 39 da Lei 8.078/1990 pode ser utilizado como roteiro seguro, auxiliador do aplicador do direito para a concepção do abuso de direito como ato ilícito na ótica civil. Superado esse ponto, vejamos as relações entre o abuso de direito e o direito do trabalho.

7.5.4 O abuso de direito e o direito do trabalho

A vedação do abuso de direito em sede trabalhista também tem se tornado comum, com vários julgados afastando a sua prática, particularmente com a imposição de sanções àqueles que o cometem.

O exemplo típico de caracterização do abuso de direito na área trabalhista ocorre no caso de abuso na greve, conforme o art. 9.º, § 2.º, da CF/1988. Sobre o tema, também pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal, principalmente quanto à caracterização desse abuso:

“O direito à greve não é absoluto, devendo a categoria observar os parâmetros legais de regência. Descabe falar em transgressão à Carta da República quando o indeferimento da garantia de emprego decorre do fato de se haver enquadrado a greve como ilegal” (STF, RE 184.083, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 18.05.2001).

O Tribunal Regional do Trabalho da 2.ª Região, com sede em São Paulo, entendeu pela caracterização do abuso de direito em um caso em que o empregador dispensou um empregado doente. O TRT da 2.ª Região assim concluiu, pois a dispensa do empregado, que seria afastado em virtude de doença profissional, excede os limites da boa-fé objetiva, regramento básico da teoria geral dos contratos e que deve ser aplicado aos contratos de trabalho. Presente o abuso de direito, há o dever de indenizar os danos morais.

Segundo apontou a juíza Catia Lungov, relatora do recurso ordinário no Tribunal, a empresa cometeu ato ilícito, “pois exerceu direito que excedeu os limites da boa-fé, que norteia a celebração dos contratos em geral, inclusive os de trabalho, consoante estipula o Código Civil em vigor”. Ainda segundo a relatora, “restou configurada a imposição de dor moral despropositada ao trabalhador, eis que dispensado quando sem qualquer condição de procurar nova colocação no mercado de trabalho, quando, ao contrário, tinha direito a benefício previdenciário que a atividade da empregadora dificultou e procrastinou”. (...) “Nesse sentido, faz jus o autor a indenização por dano moral, que fixo no importe de R$ 3.000,00, compatível com os salários que seriam devidos, considerado o lapso desde a data em que findou o afastamento médico (29.01.2002) até a da concessão do benefício previdenciário (26.03.2002)”. A votação na 7.ª Turma do TRT/SP foi unânime (RO 01036.2002.036.02.00-0).

É de se concordar integralmente com a decisão, que traz diálogo interessante entre as normas de Direito do Trabalho, o Código Civil e a própria Constituição Federal (diálogo das fontes).

Do mesmo Tribunal do Trabalho, mais recentemente, entendeu-se pela configuração do abuso de direito em caso envolvendo a dispensa de empregado e a posterior declaração vexatória por parte do empregador. A ementa do julgado merece transcrição, como exemplo interessante de aplicação da tese do abuso de direito em sede trabalhista:

“Dano moral – Justa causa reconhecida – Publicidade vexatória dos fatos da dispensa – Indenização devida pelo empregador. Ainda que reconhecida judicialmente a falta grave, não há como confundir a prática da dispensa por justa causa, plenamente compatível com o legítimo exercício do jus variandi, com os danos morais decorrentes da divulgação dos fatos da dispensa pelo empregador, com vistas a produzir a execração pública do empregado. Não pode a empresa, sob pena de caracterização do bis in idem, impor penalização adicional que submeta o trabalhador a formas diretas ou indiretas de exclusão. Todo ser humano tem direito à preservação da sua integridade física, moral e intelectual. Mesmo faltoso, processado ou até condenado criminalmente, o trabalhador mantém íntegros e invioláveis os direitos inerentes à sua personalidade e dignidade, afetos aos fundamentos da República (CF, arts. 1.º, III, e 5.º, III e X). O Código Civil de 2002 assegura os direitos da personalidade, que por sua expressão são irrenunciáveis (art. 11) e reparáveis, sempre que lesados (art. 12). In casu, a referência nominal ao reclamante, em carta aberta ‘a quem possa interessar’, encaminhada pelo empregador a amigos e clientes, contendo informações explícitas sobre a dispensa, prática de irregularidades e abertura de inquérito policial, configura abuso de direito, com lesão objetiva à personalidade do autor. Aqui o dano moral se reconhece não pela demissão por justa causa, que até restou confirmada, mas sim pela publicidade nominal, vexatória, desnecessária e claramente persecutória, dos fatos da dispensa e do inquérito policial logo a seguir arquivado, afetando a integridade moral do empregado perante a sociedade e o mercado de trabalho” (TRT 2.ª Região, Recurso Ordinário, j. 10.05.2005, Rel. Ricardo Artur Costa e Trigueiros, Rev. Vilma Mazzei Capatto, Acórdão n. 20050288908, Processo n. 006572000-064-02-00-3/2003, 4.ª Turma, Data de publicação 20.05.2005).

Na verdade, a própria doutrina trabalhista vem tratando do tema do abuso de direito. A título de exemplo, mencione-se a obra de Edilton Meireles, que procurou explorar o tema de forma abrangente e exaustiva (Abuso..., 2005). O referido autor traz vários exemplos de cláusulas e práticas abusivas no contrato de trabalho, tais como: a remuneração aviltante, a presença de multas contratuais abusivas, a previsão de adicional de assiduidade, a previsão de cláusula de prorrogações sucessivas do contrato provisório, a elaboração de listas de maus empregados, o assédio moral, o rompimento contratual abusivo, o abuso ao não contratar, entre outros.

Outro autor da área trabalhista que tem se destacado na busca de diálogos entre o Direito Civil e Direito do Trabalho é José Afonso Dallegrave Neto, do Paraná. Em trabalho muito interessante, comenta o referido autor que: “Não se pode negar a relevância do abuso de direito na órbita trabalhista, máxime nas situações em que o empregador extrapola o seu direito de comando. O jus variandi patronal quando exercido de forma ilegítima e divorciado da real necessidade de serviço ou mesmo em confronto com os limites sociais e éticos do contrato caracteriza abuso de direito reparável mediante ação trabalhista” (Responsabilidade..., 2005, p. 138).

Por tudo isso é que se deve concluir que no Direito do Trabalho está se construindo um conceito muito interessante de abuso de direito, na esfera da autonomia privada, do contrato de trabalho.

7.5.5 A lide temerária como exemplo de abuso de direito

Alguns civilistas não hesitam em apontar a lide temerária como sendo exemplo de abuso de direito. Com parecer nesse sentido pode ser citado Sílvio de Salvo Venosa para quem, “no direito processual, o abuso de direito caracteriza-se pela lide temerária, trazendo o CPC, nos arts. 14 e 16, descrição pormenorizada da falta processual” (Direito civil..., 2003, p. 605).

Maria Helena Diniz tem entendimento semelhante, trazendo exemplos interessantes e apontando que “se o credor requerer maliciosamente arresto de bens que sabia não serem pertencentes ao devedor, mas a terceiros, está agindo no exercício irregular de direito (RT 127/175). O mesmo se diga se requerer a busca e apreensão sem necessidade, pois se trata de medida grave, que se realiza excepcionalmente, logo, se for desnecessária e se a utilidade que representa para o autor puder ser obtida sem ela, haverá abuso de direito” (Curso..., 2002, p. 500). Nessa linha de raciocínio, merecem ser transcritos os arts. 16 a 18 do CPC, que servem como parâmetros para a caracterização do abuso de direito processual, prevendo o último dispositivo penalidade processual que não exclui as demais perdas e danos:

“Art. 16. Responde por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente”.

“Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que:

I – deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

II – alterar a verdade dos fatos;

III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV – opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

VI – provocar incidentes manifestamente infundados;

VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório”.

“Art. 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou”.

O art. 17 do CPC, nesse diapasão, traz outros parâmetros que podem auxiliar o aplicador do Direito na caracterização do abuso de direito processual, comum nos dias de hoje, estando ali tipificadas condutas que devem ser repreendidas.

Parece que o presente entendimento quanto ao abuso de direito, no campo processual, deverá estar presente nos próximos anos, sendo certo que a lide temerária, contrariando boa-fé, bons costumes, fim social e econômico, deve ser reprimida por todos os que acreditam na Justiça.

Para ilustrar, pode ser mencionado o recente tema do assédio judicial, presente quando alguém que exerce alguma forma de liderança instiga os liderados a promoverem demandas descabidas contra determinada pessoa. O caso, sem dúvidas, é de abuso de direito processual, devendo ser resolvido pela responsabilidade civil, com a imputação do dever de indenizar.

Assim, existe a certeza de que o Código Civil de 2002, quanto ao tema, aumentou o leque de opções para que o aplicador afaste condutas que trazem malefícios ao meio social, caso da lide desprovida de qualquer fundamento, tudo isso em consonância com o princípio da socialidade.

7.5.6 O abuso do direito de propriedade. A função socioambiental da propriedade

Como exposto, desde os primórdios do Direito Romano, o exemplo típico de ato emulativo está relacionado com os abusos decorrentes do exercício do direito de propriedade, principalmente aqueles que envolvem os direitos de vizinhança.

De acordo com essa construção, pode-se afirmar que, sem dúvida, um dos conceitos que mais evoluiu no Direito Privado é o de propriedade, ganhando uma nova roupagem com a promulgação do Código Civil de 2002. As atribuições da propriedade estão previstas no caput do art. 1.228 do CC/2002, que repete parcialmente o que estava previsto no art. 524 do CC/1916. O direito de propriedade é aquele que atribui ao seu titular as prerrogativas de usar, gozar, buscar ou reaver a coisa, sendo oponível contra todos (erga omnes).

A reunião dessas quatro prerrogativas ou atributos caracteriza a propriedade plena, sendo necessário observar que esses elementos encontram limitações na própria norma civil codificada. Conforme entendiam os romanos, deve a propriedade ser limitada pelos direitos sociais e coletivos.

Se na teoria clássica isso já era observado, é de se imaginar que agora, após as revoluções populares históricas, a concepção de propriedade ficou ainda mais restrita. Nesse sentido, interessante verificar como se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, no que concerne à função social da propriedade:

“O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5.º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social da propriedade” (STF, ADIn 2.213/MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 23.04.2004).

Consigne-se que o Código Civil atual – a exemplo do que fazia a codificação anterior – consagra claras e fortes limitações para a utilização da propriedade, principalmente a imóvel, com a previsão do direito de vizinhança, a partir do seu art. 1.277, que traz regras relacionadas com o uso nocivo da propriedade, com as árvores limítrofes, com a passagem forçada, com as águas e com os limites entre prédios.

Outras restrições surgiram, como é o caso das previstas na legislação administrativa, que traz planejamentos quanto à utilização do solo urbano. O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) regula algumas limitações de cunho civil e administrativo, de vital importância para a organização das cidades.

O Direito Ambiental, particularmente pelo seu fundamento constitucional relacionado com a função social da propriedade, também trouxe outras importantíssimas limitações, sendo razão relevante para a restrição dos direitos advindos da propriedade.

Sobre o tema da socialização da propriedade, devem-se destacar os interessantes comentários de Arnoldo Wald, que relaciona tal relativização com o conceito de abuso de direito, da seguinte forma: “examinando e explicando esta socialização da propriedade, os autores invocam o conceito do direito como função social, a teoria do abuso do direito e outras a fim de submeter o interesse individual às exigências do bem-estar comum. Na realidade, assistimos a uma fase de predomínio do social sobre o individual. Os direitos do homem mereciam uma garantia especial quando o Estado representava uma minoria dos membros da comunidade. Dentro do plano democrático, havendo coincidência da maioria com o Estado, a noção predominante se torna a de utilidade pública, sem prejuízo do reconhecimento dos direitos intangíveis do indivíduo” (Curso..., 1973, p. 127).

Em outra oportunidade, escrevendo em coautoria com Márcio Araújo Opromolla, também fizemos tal associação apontando que “a noção de função social da propriedade se confunde, de certo modo, com a figura do abuso de direito, pois, conforme Georges Ripert ‘os direitos são outorgados ao homem senão para lhe permitir que preencha sua função na sociedade, não há qualquer razão para lhe conceder direitos que lhe permitiriam subtrair, da utilização comum, bens úteis a todos’” (Direito civil..., 2003, p. 367).

Seguindo essa lógica, merece destaque o que está previsto no § 1.º do art. 1.228 da atual codificação privada, cujo teor de redação é o seguinte: “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico, artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”. Em reforço, essa também a previsão do art. 2.º da Lei 4.504/1964 – Estatuto da Terra.

Assim sendo, a lei, ao fixar os contornos do conceito de propriedade, determina algumas limitações no interesse da coletividade. Na defesa do interesse público há restrições relacionadas com a segurança e a defesa nacional, com a economia, com a higiene e saúde pública, com o interesse urbanístico, com a cultura nacional e o patrimônio cultural e artístico. Existem também outras restrições, em defesa do interesse particular, previstas no Código Civil, conforme antes comentado. Tudo isso estribado no que prevê o Texto Maior, em seu art. 5.º, XXIII, ao consagrar a função social da propriedade.

Para a defesa do meio ambiente, de acordo com a própria conceituação de Bem Ambiental, há uma superação da velha dicotomia público x privado. Havendo amplas limitações decorrentes desse ramo, inclusive pela nova norma codificada, a sua proteção interessa tanto ao ente público quanto ao ente privado, uma vez que os sujeitos são indetermináveis.

Por tudo isso, e pela concepção de um direito de propriedade relativizado, parece que constitui abuso de direito a situação em que o proprietário se excede no exercício de qualquer um dos atributos decorrentes do domínio, de forma a causar prejuízo a outrem, como ocorre, por exemplo, no caso de danos ambientais e ecológicos.

Francisco Amaral assim também elucida: “são exemplos práticos de abuso de direito os que se verificam nas relações de vizinhança, na defesa da propriedade de imóvel invadido, em matéria de usufruto, quando o usufrutuário permite a deterioração do bem usufruído” (Os atos..., O novo Código Civil..., 2003, p. 162). Como se nota, todos os casos citados pelo jurista envolvem o Direito das Coisas.

O ato emulativo no exercício do direito de propriedade está vedado expressamente no § 2.º do art. 1.228 do atual CC, pelo qual: “são defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem”. Mas fica a ressalva de que também pode estar configurado o ato emulativo se o proprietário tiver vantagens com o prejuízo alheio. A previsão codificada é meramente exemplificativa, e não taxativa.

De qualquer forma, surge aqui uma polêmica, relacionada a uma aparente contradição entre o art. 187 do CC e o último dispositivo citado. Isso porque o art. 1.228, § 2.º, do CC faz referência ao dolo, ao mencionar a intenção de prejudicar outrem. Sendo assim, o dispositivo estaria a exigir tal elemento para a caracterização do ato emulativo no exercício da propriedade, o que conduziria à responsabilidade subjetiva. Por outra via, como aqui demonstrado, o art. 187 do Código consolida a responsabilidade objetiva (sem culpa), no caso de abuso de direito.

Essa contradição foi muito bem observada por Rodrigo Reis Mazzei, que assim conclui: “A melhor solução para o problema é a reforma legislativa, com a retirada do disposto no § 2.º do art. 1.228 do Código Civil, pois se eliminará a norma conflituosa, sendo o art. 187 do mesmo diploma suficiente para regular o abuso de direito, em qualquer relação ou figura privada, abrangendo os atos decorrentes do exercício dos poderes inerentes à propriedade. Até que se faça a (reclamada) reforma legislativa, o intérprete e o aplicador do Código Civil devem implementar interpretação restritiva ao § 2.º do art. 1.228, afastando do dispositivo a intenção (ou qualquer elemento da culpa) para a aferição do abuso de direito por aquele que exerce os poderes inerentes à propriedade” (Abuso de direito... In: BARROSO, Lucas Abreu (Org.). Introdução..., 2006, p. 356).

Tem razão o autor capixaba, professor da Universidade Federal do Espírito Santo. Esse, aliás, é o mesmo raciocínio que consta do Enunciado n. 49 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil, pelo qual “a regra do art. 1.228, § 2.º, do novo Código Civil interpreta-se restritivamente, em harmonia com o princípio da função social da propriedade e com o disposto no art. 187”. Em síntese, deve prevalecer a regra do art. 187 do CC que serve como leme orientador para os efeitos jurídicos do ato emulativo.

Para findar o presente tópico, deve-se compreender que essa nova visualização da propriedade deve ser feita a partir de uma concepção não de um direito absoluto, mas sim relativo diante de algumas situações excepcionais, em prol da coletividade e da valorização do fim social dos institutos jurídicos, da boa-fé e dos bons costumes, percebendo-se a relação com o conceito de ato emulativo civil. Dessa forma, qualquer ato de excesso de poder relacionado com o direito de propriedade e que possa gerar prejuízos a outras pessoas constituirá abuso de direito, que será tratado como ato ilícito gerando, assim, o dever de ressarcir nas exatas proporções do que prevê a lei.

7.5.7 Spam e abuso de direito

O assunto internet é novo no âmbito jurídico, trazendo aspectos polêmicos e desafiadores. O tema provoca calorosos debates, pois não se trata somente de discutir os princípios protetivos da intimidade humana, havendo a necessidade de ser elaborada uma nova concepção do conceito de privacidade, além do aspecto corpóreo, já que estamos lidando com o aspecto virtual-imaterial.

O Direito Digital ou Eletrônico ainda está em vias de formação, como qualquer ciência relacionada à grande rede, a internet. A expressão Direito Digital é utilizada pela especialista Patrícia Peck Pinheiro, que leciona: “O Direito Digital consiste na evolução do próprio Direito, abrangendo todos os princípios fundamentais e institutos que estão vigentes e são aplicados até hoje, assim como introduzindo novos institutos e elementos para o pensamento jurídico, em todas as suas áreas (Direito Civil, Direito Autoral, Direito Comercial, Direito Contratual, Direito Econômico, Direito Financeiro, Direito Tributário, Direito Penal, Direito Internacional, etc.)” (Direito digital..., 2008, p. 29).

Mais à frente, aponta a advogada que são características do Direito Digital a celeridade, o dinamismo, a autorregulamentação, a existência de poucas leis, uma base legal na prática costumeira, o uso da analogia e a busca da solução por meio da arbitragem (PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital..., 2008, p. 35).

No que concerne à natureza jurídica da internet e dos assuntos a ela ligados, há os que argumentam que, não havendo legislação específica regulando o tema, a sua natureza seria sui generis. Outros sustentam que, por ser matéria privada, as questões a ela referentes deveriam ter constado no Código Civil de 2002, o que dota a nova codificação de caráter antiquado, por não ter regulado os atuais paradigmas da sociedade atual.

Em defesa do atual Código Civil, cabe lembrar as palavras de Miguel Reale, em defesa da então nova codificação, para quem “compreende-se que as inteligências juvenis, entusiasmadas com as novidades da Internet ou a descoberta do genoma, tenham decretado a velhice precoce do novo Código, por ter sido elaborado antes dessas realizações prodigiosas da ciência e da tecnologia, mas os juristas mais experientes deviam ter tido mais cautela em suas afirmações, levando em conta a natureza específica de uma codificação, a qual não pode abranger as contínuas inovações sociais, mas tão somente as dotadas de certa maturação e da devida ‘massa crítica’, ou já tenham sido objeto de lei” (Novo Código Civil..., 2003).

Com a ausência de uma lei específica, deve-se compreender que o atual Código Civil poderá ser perfeitamente aplicado aos contratos eletrônicos, sendo correto o raciocínio de aplicar as regras gerais de responsabilidade civil às situações que envolvem a internet, como no caso do instituto do abuso de direito, previsto no art. 187 da nova norma privada.

Vislumbrando a natureza privada das questões relacionadas à internet, passamos então a analisar o spamming e a sua relação com a responsabilidade e os direitos da personalidade, para então elaborarmos nossa conclusão final, enquadrando tal prática como abusiva de direito.

O spamming consiste no envio de mensagens eletrônicas (e-mails), não solicitadas, normalmente de natureza comercial, em grande quantidade e de maneira repetida, a pessoas com as quais o remetente não teve contato anterior.

Como usuário frequente da internet, percebo que o spam se tornou uma realidade, porque a web fornece a todos muitas oportunidades para obtenção dos endereços eletrônicos dos utilizadores que estejam interessados em receber comunicações comerciais por correio eletrônico. Ademais, tornou-se prática comum a venda de endereços eletrônicos alheios. Isso muitas vezes é oferecido por meio de uma mensagem não solicitada, situação em que se tem aquilo que pode ser denominado como o spam do spam.

Analisando sob o prisma jurídico, conforme já apontado, o Código de Defesa do Consumidor estabelece normas de proteção e defesa dos consumidores. Visando justamente a coibir atitudes que coloquem o consumidor em desvantagem, foi visto que a Lei 8.078/1990 elenca nos nove incisos do art. 39 as práticas que considera como abusivas, ou seja, aquelas condutas que causam prejuízos aos consumidores e que, portanto, devem ser combatidas.

Conforme exposto, o inciso III do art. 39 do Código Consumerista determina que seja vedado ao fornecedor de produtos e prestador de serviços enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto ou fornecer qualquer serviço.

Um exemplo de tal prática, de conhecimento de todos, é a conduta efetivada pelas empresas administradoras de cartões de crédito. Tais empresas costumam enviar para uma lista de pessoas cartões de crédito que não foram solicitados, o que constitui um claro exemplo de abuso de direito. A jurisprudência já se pronunciou quanto à referida prática: “Responsabilidade civil – Dano moral – Cobrança indevida e negativação do nome do autor no cadastro do Serasa, decorrentes da utilização fraudulenta de cartão de crédito que lhe foi enviado sem que fosse solicitado – Situação que não pode ser considerada como mero aborrecimento – Indenização devida – Fixação dos danos em 10 vezes o valor cobrado (R$ 1.340,68) – Ação procedente em parte – Recurso parcialmente provido, para reduzir a indenização para cinco vezes o valor” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, Acórdão: 30125, Processo: 0741879-5, Proc. Princ.: 5, Recurso: Apelação Cível, Origem: São Paulo, Julgador: 6.ª Câmara, j. 02.06.1998, Relator: Windor Santos, Decisão: Unânime, Publicação: MF40/NP).

E é exatamente esse tipo de conduta que o Código de Defesa do Consumidor busca reprimir, o abuso de direito, vedado também pelo Código Civil de 2002, em seu art. 187, e que gera o dever de indenizar. E se pode facilmente traçar um paralelo entre a prática narrada e a conduta reprovável dos spammers.

O spam nada mais é do que o envio ao consumidor-usuário de publicidade de serviços ou produtos, sem que a mesma tenha sido solicitada. A origem da expressão está no conhecido enlatado americano de presunto, comumente distribuído em tempos de crise, tido como algo indigesto, como é a mensagem eletrônica não solicitada.

O ato de envio constitui abuso de direito – assemelhado ao ato ilícito pelas eventuais consequências –, eis que o usuário da internet não a solicita, não fornece seu endereço virtual, e, mesmo assim, recebe em sua caixa de correio eletrônico convites a aderir aos mais variados planos, produtos, grupos, jogos, serviços, entre outros. Após receber tais mensagens, o usuário perderá um bom tempo selecionando, lendo e excluindo aquelas inúmeras mensagens indesejadas.

Pela falência que pode gerar a internet deve-se entender que o spam contraria o fim social e econômico da grande rede, o que já serviria para enquadrar a prática como abuso de direito ou ato emulativo. Também é forçoso concluir que a conduta dos spammers é atentatória à boa-fé objetiva. Uma pessoa que nunca solicitou a mensagem mesmo assim a recebe, o que está distante da probidade e lealdade que se espera das relações interpessoais, mesmo que sejam virtuais. O destinatário recebe de um fornecedor para o qual ele nunca deu seu endereço virtual um e-mail que se mostra totalmente irrelevante e dispensável.

É forçoso concluir que aqueles que enviam spams podem sofrer sanções de diversas naturezas. Na esfera civil, a conduta abusiva pode gerar o dever de reparar, cabendo, sempre, indenização pelos danos causados, inclusive morais se for o caso, na forma do art. 6.º, VI, do CDC e do art. 187 do CC. Pode ainda o juiz, com fulcro no art. 84 do Código Consumerista, determinar a abstenção da conduta, sob a força de preceito cominatório (astreintes).

Por outro lado, pode-se também afirmar que o spam gera violação de garantias asseguradas pelo art. 5.º, XII, da CF/1988, pois o spammer utiliza-se de uma informação privativa, e até certo ponto íntima, de uso exclusivo do internauta, o seu endereço eletrônico.

Em suma, indeclinável em algumas situações o dano material que acaba por atingir interesses metaindividuais, mais especificamente interesses individuais homogêneos de consumidores, nada impedindo a reparação individual pelo evento virtual danoso. Podem ser citadas, aqui, a proteção constitucional dos consumidores, prevista no art. 5.º, XXXII, da própria CF e a possibilidade de defesa coletiva desses direitos por meio da ação civil pública. A disposição do art. 170, V, do Texto Maior também legitima constitucionalmente a medida.

O spammer excede os seus direitos ao enviar a mensagem sem qualquer solicitação, agindo de maneira contrária aos bons costumes, em atitude desrespeitosa em relação à privacidade dos destinatários de suas mensagens eletrônicas. Aqui pode até surgir um outro posicionamento, o de que o spam é mais do que mero ato de abuso de direito, sendo, na verdade, um evento que fere a inviolabilidade da privacidade dos internautas, sendo essa prerrogativa de natureza constitucional cuja regulamentação também foi feita pelo art. 21 do CC, nos seguintes termos: “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.

Pelo fato de o spam produzir também lesão a direitos personalíssimos, deve ser concluído que cabe ao prejudicado o pedido de que a prática cesse, ou a reclamação de perdas e danos, conforme regra expressa do art. 12 do CC, comentado no primeiro volume desta coleção.

Apesar de todo esse raciocínio, infelizmente nossa jurisprudência muitas vezes não tem condenado o spam como abuso de direito a gerar o dever de indenizar. A título de exemplo, é interessante transcrever julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, com o qual não se concorda, particularmente pela menção à responsabilidade subjetiva:

“Civil – Ação de indenização por danos morais – Mensagens eletrônicas indesejadas ou não solicitadas – SPAM, Ilícito não configurado – Incidência do CDC aos negócios eletrônicos (e-commerce) – Apreciação – Propaganda abusiva ou enganosa – Inexistência – Responsabilidade objetiva – Inaplicabilidade – Demonstração de culpa ou dolo – Exigência – Intangibilidade da vida privada, da intimidade, da honra e da imagem – Violação não demonstrada. 1. O simples envio de e-mails não solicitados, ainda que dotados de conotação comercial, não configura propaganda enganosa ou abusiva, a fazer incidir as regras próprias do CDC. 2. A eventual responsabilidade pelo envio das mensagens indesejadas rege-se pela teoria da responsabilidade subjetiva. 3. Não há falar em dano moral quando não demonstrada a violação à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem. 4. Apelo provido. Sentença reformada” (TJDF, Apelação Cível 20040111151542, Acórdão 227.275, 4.ª Turma Cível, Data: 22.08.2005, Rel. Cruz Macedo, Publicação: Diário da Justiça do DF 11.10.2005, p. 138).

Por estar em sentido próximo, lamenta-se igualmente o teor de decisio do Superior Tribunal de Justiça, assim ementada:

“Internet – Envio de mensagens eletrônicas – Spam – Possibilidade de recusa por simples deletação – Dano moral não configurado – Recurso especial não conhecido. 1 – Segundo a doutrina pátria ‘só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo’. 2 – Não obstante o inegável incômodo, o envio de mensagens eletrônicas em massa – spam – por si só não consubstancia fundamento para justificar a ação de dano moral, notadamente em face da evolução tecnológica que permite o bloqueio, a deletação ou simplesmente a recusada de tais mensagens. 3 – Inexistindo ataques a honra ou a dignidade de quem recebe as mensagens eletrônicas, não há que se falar em nexo de causalidade a justificar uma condenação por danos morais. 4 – Recurso Especial não conhecido” (STJ, REsp 844.736/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Rel. p/ Acórdão Min. Honildo Amaral de Mello Castro (Desembargador Convocado do TJ/AP), 4.ª Turma, j. 27.10.2009, DJe 02.09.2010).

Todavia, a questão não é pacífica na jurisprudência, eis que há decisões em sentido contrário, pela responsabilidade civil pelo envio do spam, como a seguinte, do Tribunal de Justiça de Rondônia:

“Indenizatória – Provedor de internet – Ataque de spam – Origem das mensagens – Comprovação – Dano material – Configuração – Pessoa jurídica – Honra objetiva – Ofensa ausente – Dano moral – Não configuração. Comprovada a origem das mensagens que configuraram ataque de spam, que obrigou o provedor de internet a adotar medidas para recuperação do normal funcionamento do acesso à rede mundial de computadores para seus clientes, são indenizáveis os danos materiais daí decorrentes. Inexiste direito à indenização por dano moral para a pessoa jurídica quando não comprovada ofensa à sua honra objetiva, caracterizada pela fama, conceito e credibilidade que passa ao mercado consumidor” (TJRO, Acórdão 100.007.2001.004353-1, 2.ª Câmara Cível, Rel. Des. Marcos Alaor Diniz Grangeia, j. 29.03.2006).

Entende este autor, em verdade, que, se o spam gerar um dano efetivamente presente, seja ele patrimonial ou extrapatrimonial, perfeitamente possível a sua reparação pela presença do abuso de direito (arts. 187 e 927, caput, do CC). Assim, espera-se novos posicionamentos jurisprudenciais no futuro, de aplicação da teoria do abuso de direito e da consequente responsabilidade objetiva dele decorrente.

7.6 RESUMO ESQUEMÁTICO

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A responsabilidade civil no Direito Brasileiro está agora construída sobre dois conceitos, que formam a base estrutural da matéria:

1. Conceito de ato ilícito (art. 186 do CC) = lesão de direitos + dano.

Não há que se admitir, pelo Código Civil de 2002, responsabilidade civil ou dever de indenizar, sem dano. A regra geral do nosso ordenamento jurídico é de que a responsabilidade depende de culpa (responsabilidade subjetiva).

2. Conceito de abuso de direito (art. 187 do CC) = Ato lícito pelo conteúdo, mas ilícito pelas consequências. Caracterizado como um exercício irregular de direitos, em que o titular de um direito, ao exercê-lo, excede os limites impostos: a) pelo fim social do instituto; b) pelo fim econômico; c) pela boa-fé objetiva; d) pelos bons costumes.

Diferenças entre ato ilícito e abuso de direito: O ato ilícito é ilícito no todo. O abuso de direito é lícito pelo conteúdo, mas ilícito pelas consequências.

Exemplos de abuso de direito, em uma visão interdisciplinar:

a)  Do Direito do Consumidor: publicidade abusiva (art. 37, § 2.º, do CDC) e práticas abusivas (art. 39 do CDC).

b)  Do Direito do Trabalho: abuso no direito de greve (art. 9.º, § 2.º, da CF/1988) e dispensa de empregado doente (julgado do TRT/SP).

c)  Do Direito Processual: lide temerária (arts. 16 a 18 do CPC).

d)  Do Direito Civil: abuso no direito de propriedade ou ato emulativo (art. 1.228, §§ 1.º e 2.º, do CC).

e)  Do Direito Eletrônico: spam (envio de e-mail indesejado ou não solicitado).

Conforme o Enunciado n. 37 do CJF, a responsabilidade decorrente do abuso de direito independe de culpa, ou seja, é objetiva.

7.7 QUESTÕES CORRELATAS

1.   (Procurador do Estado PGE/PA – 2009) Analise as proposições abaixo e assinale a alternativa incorreta:

(A) O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes.

(B) Consoante a jurisprudência do STJ, o dano reflexo enseja a responsabilidade civil do infrator, desde que seja demonstrado o prejuízo à vítima indireta.

(C) A compensação devida à vítima do dano, ainda que este resulte de dolo do devedor, deverá incluir os danos emergentes e os lucros cessantes decorrentes diretamente da conduta infracional, excluídos os danos remotos.

(D) À configuração do abuso de direito, consoante o Código Civil de 2002, é essencial a prova de que o agente tinha a intenção de prejudicar terceiro.

2.   (Defensor Público MA 2003) Comete ato ilícito, ficando civilmente responsável pela reparação do dano:

(A) o causador de qualquer dano, exceto se provar culpa exclusiva da vítima.

(B) o agente que pratica o ato em legítima defesa de direito de outrem, cabendo contra este ação regressiva.

(C) aquele que age no exercício regular de um direito reconhecido, causando dano a outrem, salvo se for servidor público.

(D) o que age em estado de necessidade, mesmo que o perigo tenha sido ocasionado pela pessoa lesada ou dono da coisa destruída.

(E) o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social.

3.   (III Juiz do Trabalho 22.ª Região) Consideradas as afirmações abaixo, marque a letra que contém a resposta correta:

I – Os poderes de representação são conferidos por lei ou pelo interessado. Salvo permissão da lei ou do representante, é anulável o negócio jurídico que o representado, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo.

II – A coação vicia a declaração de vontade, desde que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família ou a seus bens. No caso de coação à pessoa que não pertencer à família do paciente, o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação. Trata-se de coação moral, e não física.

III – É nulo o negócio jurídico, entre outras hipóteses legais, quando a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.

IV – Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Trata-se da teoria do abuso do direito, que relativiza os direitos subjetivos, de sorte que o exercício de um direito considera-se abusivo quando em descompasso com a finalidade social motivadora de sua instituição.

V – O bem de família é impenhorável. A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza. Tal regra comporta exceções, entre as quais, quando se tratar de execução de créditos trabalhistas da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias.

(A) Todas estão corretas.

(B) Somente I está errada.

(C) Somente III está errada.

(D) IV está errada.

(E) Somente II e V estão corretas.

4.   (TRT-3.ª Região – Concurso Público 1/2004 – 2005) A partir do conceito de ato ilícito, distinguir as categorias da antijuridicidade disciplinadas no Código Civil de 2002 quanto à estrutura, aos critérios de identificação e às sanções aplicáveis.

Resposta: Preparar dissertação com base nas informações transmitidas neste capítulo. Explorar as categorias de antijuridicidade que são o ato ilícito propriamente dito e o abuso de direito.

5.   (XVI Concurso Público para Provimento de Cargos de Juiz do Trabalho Substituto do TRT da 6.ª Região – Pernambuco) Em que situações o direito brasileiro admite a responsabilidade civil pelo dano lícito? Justificar a resposta e dar exemplos.

Resposta: Parte da doutrina entende que haveria a responsabilidade civil pelo dano lícito no caso de abuso de direito. Utilize o art. 187 do CC para fundamentar sua resposta, utilizando todos os exemplos que aqui demonstramos.

6.   (TJ/SP – Exame Oral – Prova de 2004) Defina o abuso de direito no direito civil.

Resposta: Segundo o art. 187 do CC, comete ato ilícito a pessoa que, ao exercer um determinado direito, excede manifestamente os limites impostos pela função social e econômica de um instituto, pela a boa-fé objetiva e pelos bons costumes. Trata-se de uma nova modalidade de ilícito que revoluciona a responsabilidade civil.

7.   (TJ/SP – Exame Oral – Prova de 2004) O conteúdo do ato abusivo é lícito?

Resposta: Segundo Rubens Limongi França, o abuso de direito é lícito pelo conteúdo, ilícito pelas consequências. Esse conceito, aliás, consta de artigo que escrevemos sobre o tema, na obra Questões controvertidas no novo Código Civil (Editora Método, 2004, v. II), bem como em nosso livro Função social dos contratos (Editora Método, 2007).

8.   (XXVIII Concurso MP RJ – Prova preliminar) O abuso de direito configura ato ilícito? Quais as suas características?

Resposta: Segundo a construção de Rubens Limongi França, o abuso de direito é lícito quanto ao conteúdo e ilícito quanto às consequências. Assim, pode-se afirmar que constitui um ato ilícito pela forma de sua execução. Pelo Código Civil de 2002 o abuso de direito está configurado toda vez que o titular de um direito, ao exercê-lo, exceder manifestamente os limites impostos pelo seu fim social ou econômico, pela boa-fé objetiva ou pelos bons costumes. O abuso de direito, assim, está baseado em cláusulas gerais, conceitos abertos deixados pelo legislador, para preenchimento pelo aplicador do direito caso a caso. Segundo o entendimento majoritário da doutrina, o abuso de direito gera a responsabilidade objetiva do agente, pois basta o exercício irregular do direito. Este é o entendimento constante do Enunciado n. 37, aprovado na I Jornada de Direito Civil, evento do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça. O exemplo típico do abuso de direito está presente no abuso do direito de propriedade (art. 1.228, § 2.º, do CC).

9.   (Concurso de PGE/RS – prova de 2012 – 2a fase). O artigo 186 do Código Civil trata dos atos ilícitos e o artigo 187 versa sobre atos equiparados a ilícitos. Estabeleça um paralelo entre as duas figuras, enfocando: (a) a natureza das responsabilidades oriundas de cada um dos dispositivos; (b) os requisitos de cada um; (c) as consequências em termos de reparação e/ou prevenção em cada caso.

Resposta: De início, é de se elogiar a questão formulada. O candidato deveria elaborar dissertação demonstrando as semelhanças e diferenças entre os conceitos de ato ilícito e abuso de direito. Vejamos, de forma resumida. O ato ilícito do art. 186 do CC gera responsabilidade subjetiva; o abuso de direito gera responsabilidade objetiva. O ato ilícito do art. 186 exige a lesão ao direito, o dano e a culpa (ação ou omissão voluntária, imprudência e negligência). O abuso de direito do art. 187 exige apenas o exercício irregular do direito, tendo como base os conceitos de função social e econômica, boa-fé e bons costumes. A despeito de alguns autores apontarem que o dano não é requisito do abuso de direito, ele consta como requisito para a reparação no art. 927, caput, do CC. Os dois conceitos – ato ilícito e abuso de direito – possibilitam amplamente o uso de medidas reparatórias e preventivas, especialmente se houver lesão a direitos da personalidade, nos termos do art. 12, caput, do Código Civil.

GABARITO

1 – D

2 – E

3 – E